Sendo um amador tão apaixonado quanto um admirador do seu talento, tomo a liberdade de lhe escrever para lhe perguntar se estaria disposto a compor um, dois ou três novos quartetos. Terei o maior prazer em pagar-lhe, pelo trabalho, qualquer quantia que considere adequada.
Assim Nikolay Borisovich Golitsyn escreveu de sua São Petersburgo natal a Beethoven, a quem conhecera durante os anos que passara em Viena.
Se o sobrenome de Golitsyn não é tão famoso quanto o de Andrey Kirillovich Razumovsky, é porque qualquer encomenda feita a Beethoven nos oitocentos e vintes entrava numa fila de espera da qual nada tinha qualquer previsão de saída. Assim, quando o conde (e depois príncipe) Razumovsky pediu a Ludwig três quartetos com temas russos, em 1806, a trinca de novas obras ficou pronta no mesmo ano e, mais ainda, acabou publicada sob o mesmo número de Opus, e alcunhada com o sobrenome que imortalizariam. Já em 1822, quando o príncipe russo seguinte, cujo sobrenome vocês também encontrarão transliterado como “Galitzin”, pediu três novos quartetos ao renano, talvez tenha se deixado levar pelo entusiasmo com que o compositor aceitou a proposta. Beethoven já tinha em seus planos dedicar-se só a quartetos de cordas, e um estipêndio generoso como o que pediu a Golitsyn viria bem a calhar para tapar as crateras de suas finanças. O que ele não contou ao príncipe é que, naquele momento, ele nadava no turbilhão composicional da Missa Solemnis e da Nona Sinfonia, alimentava a conta-gotas sua obsessão sobre uma valsa de Diabelli e dava os retoques em duas das três sonatas que prometera a Maurice Schlesinger – em outras palavras, que o príncipe não veria a cor de suas encomendas por um bom tempo. Assim, o russo teve que esperar que as duas pantagruélicas obras corais fossem finalizadas e estreadas para que os trabalhos nos quartetos começassem. Somente três anos depois, em 1825, Golitsyn receberia seu primeiro quarteto, o Op. 127, pelo qual pagaria a quantia prometida. As duas outras obras, Opp. 130 e 132, ser-lhe-iam também entregues, mas Ludwig não viveria para ver a cor do dinheiro delas. A dívida só foi saldada somente na década de 1850, quando Karl van Beethoven – sobrinho e único herdeiro do compositor – recebeu o pagamento devido.
Ao concluir o Op. 127, e evidentemente entusiasmado pela obra, Beethoven ditou a seu factotum Anton Schindler a seguinte carta aos membros do quarteto Schuppanzigh, todos eles seus amigos:
Meus melhores companheiros!
Cada um de vós está a receber aqui sua parte. E cada um de vós compromete-se a cumprir o seu dever e, o que é mais importante, compromete-se com palavra de honra a competir pela excelência com os outros. Cada um de vocês, participantes do referido empreendimento, deverá assinar este
papel.BEETHOVEN
Schindler secretarius”
Não sei se alguém chegou a assinar o papel, mas a estreia – sob Ignaz Schuppanzigh, Franz Weiss, Joseph Linke e Karl Holz – foi mal ensaiada e acabou por ser, como talvez Beethoven a definiria, uma verdammte Scheiße. Ludwig descarregou sua indignação em Schuppanzigh, um homem extremamente obeso e alvo recorrente de seu escárnio (chegou a escrever um cânone a chamá-lo de Falstafferel (“Falstaffinho”) que, humilhação suprema, foi publicado e gravado), e cujos lipídios acusava de fazerem “tudo ficar mais lento”.
Tiririca com o desastre da estreia, Beethoven repassou o Op. 127 aos cuidados de um outro quarteto, liderado por Joseph Michael Böhm. Dessa feita, entretanto, resolveu ficar de butuca. Böhm deixou-nos o seguinte relato:
Quando Beethoven soube da péssima apresentação [a de Schuppanzigh] – pois não estava presente na estreia – ele ficou furioso e não permitiu que os artistas tivessem paz até que a desgraça fosse lavada. Ele mandou chamar-me logo de manhã e, com o seu jeito brusco de sempre, disse-me: ‘Tens que tocar o meu quarteto’, e o assunto foi resolvido. Nem objeções, nem dúvidas poderiam prevalecer; o que Beethoven queria tinha que acontecer, então dediquei-me à difícil tarefa. [O quarteto] Foi estudado e ensaiado com frequência sob os próprios olhos de Beethoven. Eu digo ‘olhos’ intencionalmente, pois o infeliz era tão surdo que não conseguia mais ouvir o som celestial de suas composições… Com muita atenção, seus olhos seguiam os arcos e, assim, ele foi capaz de constatar as menores flutuações de tempo e ritmo e corrigi-los imediatamente. No final do último movimento do quarteto, ocorreu um ‘meno vivace’ que me pareceu enfraquecer o efeito geral. No ensaio, portanto, aconselhei que o ritmo original fosse mantido… Beethoven, agachado em um canto, não ouviu nada, mas assistiu com tensa atenção. Depois do último movimento do arco, ele disse, laconicamente, ‘deixe assim’ – e foi até as mesas e riscou o ‘meno vivace’ nas quatro partes”
Fazer o encanzinado Beethoven mudar de ideia seria por si só uma proeza, e isso só atesta o quanto Böhm e seu grupo deviam ser bons músicos. A reestreia, sob eles, foi um grande sucesso que não só alegrou o compositor, como também salvou a pele (embora Ludwig, em sua correspondência, preferisse mencionar “der Arsch”) de Schuppanzigh, que teve uma nova chance com o compositor, estrearia seus quartetos seguintes e continuaria a ser a vítima preferencial de sua mordaz gordofobia.
Quem vem do mundo intensamente concentrado dos quartetos Opp. 74 e 95. ou da impetuosidade às vezes agressiva dos “Razumovsky”, surpreende-se com o Op. 127, o primeiro dos chamados “quartetos de cordas tardios”. Trata-se duma obra muito expansiva, em que Beethoven toma o seu tempo para desenvolver seus temas e expor suas ideias duma maneira notavelmente desprovida de tensão. O resultado, claro, é que ela acabou bastante longa – seu movimento lento sozinho, por exemplo, dura mais que todo quarteto Op. 95. Nada, entretanto, soa enfadonho. A tônica, parece, é a da leveza, e a sonata-forma não está a premir o desenvolvimento, que o compositor permite que siga em várias direções, sem premências de tempo.
Os solenes acordes de abertura, que tão somente anunciam a tonalidade, levam a um tema surpreendentemente pungente, ao qual se segue uma seção com toques nostálgicos e, brevemente, dramáticos. Na descrição certeira da musicóloga alemã Birgit Lodes, “neste quarteto, Beethoven solapou as qualidades direcionais e dinâmicas de um Allegro em sonata-forma, que é uma forma adequada para contar uma história teleológica única; ao invés, ele procurou evocar o que poderíamos chamar ‘tempo mítico'”.
É no mesmo “tempo mítico” que se desenvolve o terno segundo movimento. Baseado na forma de tema com variações, em que a imaginação de Beethoven – afinal de contas, o compositor das “Diabelli” – voa longe na modificação do singelo tema, oferecendo-lhe variações sucessivamente mais elaboradas e criativas. No Scherzando vivace, os instrumentos dialogam, às vezes retrucam, mas não há qualquer tensão, e tampouco ela faz falta. Há momentos geniais nas transições e cromatismo ousado no Trio, e tudo se arremata com uma linda coda. O Finale soa enganosamente simples, porque foi criado por um consumado mestre: com forte tom folclórico, desenvolve-se como se jamais fosse acabar, até que isso acontece de maneira engenhosa e pouco abrupta.
Segundo William Kinderman, autor já mencionado anteriormente, o Op. 127 é “uma composição fundamental entre as obras-primas de seu último período criativo, uma em que aspectos estruturais e simbólicos de suas duas grandes obras corais-orquestrais são absorvidos pela esfera da música de câmara”, e nisso estamos de completo acordo. Acrescento que, diferentemente da Nona e da Missa Solemnis, que graças às gravações podemos ouvir quantas vezes quisermos, o Op. 127 não causa qualquer saturação sensorial. Sua leveza e fluidez levam-no a transcorrer sem que quase o percebamos. Quando enfim o percebemos, e tudo acabou, sentimo-nos prontos a repeti-lo.
Antes de conhecê-lo pela reputação, conheci o Quartetto Italiano pela imagem que está logo abaixo: quatro fleumáticos músicos de perfil, encarando mediterraneamente a luz solar – avis rara, convenhamos, na iconografia de conjuntos de câmara -, como se acompanhassem uma passeggiata. Quando tive, enfim, a oportunidade de escutá-los, foi como se essa imagem se transportasse ao universo sonoro do Quarteto: o som do Italiano é, talvez, o mais belo entre os conjuntos de sua época. Nós outros, no século XXI, tivemos a grata sorte de tê-lo maravilhosamente gravado pela Philips para que hoje, cinquenta anos depois, ele nos chegue assim, tão fresco. O registro privilegia a naturalidade: ouvimos o virar das páginas, a respiração dos instrumentistas, os miados das cadeiras, e o eventual golpe em falso de algum arco. Nada disso, entretanto, há de lhes importar: o Italiano faz o luminoso Mi bemol maior do Op. 127 cintilar e, mais que qualquer outro conjunto, leva o Adagio nos tragar para aquele estado meditativo tão próprio a quem ouve o Beethoven tardio em seu “tempo mítico”.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Quarteto em Mi bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 127
Composto entre 1824-25
Publicado em 1826
Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1 – Maestoso – Allegro
2 – Adagio, ma non troppo e molto cantabile – Andante con moto – Adagio molto espressivo – Tempo I
3 – Scherzando vivace
4 – Allegro
Quarteto em Dó sustenido menor para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 131
Composto entre 1825-26
Publicado em 1827
Dedicado ao barão Joseph von Stutterheim
5 – Adagio ma non troppo e molto espressivo
6 – Allegro molto vivace
7 – Allegro moderato – Adagio
8 – Andante ma non troppo e molto cantabile – Andante moderato e lusinghiero – Adagio – Allegretto – Adagio, ma non troppo e semplice – Allegretto
9 – Presto
10 – Adagio quasi un poco andante
11 – Allegro
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Quarteto em Si bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 130
Composto entre 1824-25
Publicado em 1827
Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1- Adagio, ma non troppo – Allegro
2 – Presto
3 – Andante con moto, ma non troppo. Poco scherzoso
4 – Alla danza tedesca. Allegro assai
5 – Cavatina. Adagio molto espressivo
6 – Finale: Allegro
Grande Fuga em Si bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 133
Composto entre 1825-26
Publicado em 1827
Dedicado ao arquiduque Rudolph da Áustria
7 – Overtura – Fuga – Meno mosso e moderato – Fuga – Coda
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Quarteto em Lá menor para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 132
Composto em 1825
Publicado em 1826
Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1 – Assai sostenuto – Allegro
2 – Allegro ma non tanto
3 – Heiliger Dankgesang eines Genesenen an die Gottheit, in der Lydischen Tonart: Molto adagio – Andante
4 – Alla marcia, assai vivace – attacca:
5 – Allegro appassionato
Quarteto em Fá maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 135
Composto em 1826
Publicado em 1827
Dedicado a Johann Wolfmayer
6 – Allegretto
7 – Vivace
8 – Lento assai, cantante e tranquillo
9 – Der schwer gefaßte Entschluß. Grave, ma non troppo tratto (“Muss es sein?“) – Allegro (“Es muss sein!“) – Grave, ma non troppo tratto – Allegro
Quartetto Italiano:
Paolo Borciani e Elisa Pegreffi, violinos
Piero Farulli, viola
Franco Rossi, violoncelo
Vassily