Masterpieces of Portuguese Polyphony: Frei Manuel Cardoso & João Lourenço Rebelo & Dom Pedro de Cristo & Aires Fernández

Captura de Tela 2017-07-07 às 01.06.41Masterpieces of Portuguese Polyphony
The Choir of Westminster Cathedral

Até bem recentemente a música da Renascença Portuguesa jazia em quase completa obscuridade. Alguns compositores que haviam tido a sorte de ver suas obras publicadas em vida – caso de Manuel Cardoso, Duarte Lôbo e Filipe de Magalhães – já começaram a receber o reconhecimento que merecem, mas o mesmo não se aplica ao vasto corpus de música que permanece preservada apenas em manuscritos.

A maior coleção de tais manuscritos é de longe a que tem origem no mosteiro agostiniano da Santa Cruz, em Coimbra (Norte de Portugal). Esse mosteiro, casa materna da congregação agostiniana em Portugal, era um centro educacional e cultural de primeira categoria, com uma vida musical exuberante.

Mais importante dos compositores que trabalharam em Santa Cruz, Pedro de Cristo nasceu em Coimbra por volta de 1550 e tomou votos no mosteiro em 1571. Aí chegou ao posto de mestre de capela (isto é, de diretor do coro polifônico) na década de 1590. Dom Pedro também passou pelo menos dois períodos em Lisboa, como mestre de capela do Mosteiro de São Vicente. Um obituário que situa sua morte em 1618 menciona sua habilidade tanto como instrumentista quanto como compositor, e observa que seu talento musical o tornou requisitado por muitas das casas da congregação agostiniana.

As obras sacras de Pedro de Cristo – que passam de duzentas – dominam os manuscritos de Santa Cruz da década de 1580 à de 1620, sendo diversos deles da mão do próprio compositor. Muitos dos textos musicados refletem ênfases devocionais próprias de Santa Cruz. Um exemplo claro é o moteto Sanctissimi quinque martires, celebrando os “cinco mártires de Marrocos” – franciscanos que morreram em 1220 pregando aos muçulmanos ocidentais, cujas relíquias eram preservadas em Santa Cruz. Se essa peça apresenta de modo geral uma técnica contrapontística convencional, com frequência Dom Pedro empregava um estilo ritmicamente animado e de concepção mais vertical [em que as diferentes vozes se movem “nota contra nota”, prefigurando os conceitos mais tardios de “acorde” e “harmonia”] – o que se vê com especial clareza em suas musicalizações dos responsórios para as Matinas do Dia de Natal, bem como em obras para dois coros como o Magnificat no oitavo tom [faixa 15 nesta gravação] e a Ave Maria [faixa 14]. Nos responsórios de Natal cada unidade de sentido do texto é arranjada separadamente, com atenção meticulosa à acentuação correta, produzindo uma forma vívida de retórica musical.

Entre os outros compositores portugueses cujas obras estão preservadas nos manuscritos de Santa Cruz, um dos melhores é Airez Fernandez. Infelizmente ainda não se sabe nada de certo sobre a sua vida (embora seja provável que tenha atuado em Coimbra, possivelmente na Catedral), e não são muitas as obras atribuídas a ele que chegaram a nós. Sua musicalização da antífona mariana Alma redemptoris mater demonstra sua habilidade de produzir frases de maravilhosamente torneadas dentro de uma textura bem simples, sendo uma realização ainda maior pelo fato de que a voz do tenor segue quase estritamente a melodia gregoriana dessa antífona.
Owen Rees © 1991 Editions of the works by Pedro de Cristo and Aires Fernandez were made by Owen Rees.

Frei Manuel Cardoso nasceu em Fronteira, parte da diocese de Évora, em 1566 (embora antes se pensasse que em 1570). Fez votos de monge em Lisboa em 5 de julho de 1589. Segundo o Padre Manuel de Sá, foi “mandado a Évora para estudar gramática e a arte da música assim que teve idade para isso”, o que se julgou que fosse o caso aos nove anos, em 1575. Cardoso foi aluno aí dos padres Cosme Delgado e Manuel Mendes.

No decurso de sua carreira Cardoso viria a desfrutar do favor da Casa Real espanhola. Seu livro de missas sobre o tema Ab initio, de 1631, foi dedicado a Felipe IV. Esteve também ligado à família Bragança durante o tempo em que esteve no Convento Carmelita em Lisboa, e é provável que o futuro rei Dom João IV tenha sido seu aluno e patrono. Cardoso desfrutou de grande estima ao longo de sua vida tanto por sua vida piedosa quando por seus dons musicais excepcionais; foi frequentemente mencionado por seus contemporâneos de renome, tanto do campo musical quanto do literário, e era querido e respeitado por todos quando morreu em 1650.

Sobrevivem cinco coleções publicadas de obras de Cardoso: três livros de missas e dois volumes contendo Magnificats e motetos – porém dois dos motetos gravados aqui (Sitivit anima mea [faixa 2] e Non mortui [faixa 1]) foram publicados na verdade em uma das coleções de missas: a de 1625, que contém a Missa pro Defunctis. Os dois têm textos associados a ritos funerários. As outras obras gravadas procedem do volume de 1648, que foi a última publicação de Cardoso.

É característico de todas essas peças a combinação da escrita contrapontística ao modo de Palestrina (inclusive, as missas paródicas contidas no volume de 1625 de Cardoso são todas baseadas em Palestrina) com um modo muito pessoal de conduzir a harmonia. Os abundantes intervalos aumentados,  entradas e progressões inesperadas e falsas relações, embora não exclusivos de Cardoso, são certamente mais evidentes na sua obra que na dos seus contemporâneos em Portugal, como Duarte Lôbo. Cardoso também escreveu música policoral – o que seria um meio mais óbvio para a aplicação de tais caracteríticas “barrocas” – mas essa foi toda perdida no terremoto de 1755, em Lisboa.

É a combinação dessas características com seu excelente conhecimento do contraponto palestriniano clássico que dá à música de Cardoso o seu caráter individual. Nos autem gloriae [faixa 5] ilustra bem o prodimento típico nesses motetos, que começam com um processo de imitação conscienciosamente elaborado (frequentemente a partir de três pontos, sendo a segunda entrada uma inversão da primeira), e então prosseguem de uma mandeira menos rigorosa, porém sempre com o máximo respeito na adaptação musical da palavra. No moteto Mulier quae erat [faixa 3] as inflexões cromáticas da elaboração imitativa inicial são tais, que não parece haver nenhuma tonalidade específica até que todas as entradas tenham acontecido e, por assim dizer, confirmado sua tonalidade uma com a outra.

Curiosamente, tais torções cromáticas não contradizem a serenidade transmitida por grande parte da música de Cardoso, trate-se de motetos ou de missas – e isso, poder-se-ia sentir, é de fato uma característica do barroco.

Além da Missa pro Defunctis, o exemplo mais resplandescente dessa “serenidade cromática” é provavelmente a que se encontra nas Lamentações. As destinadas à Quinta-Feira Santa [faixas 6 a 9] estão repletas de todas essas características encontradas nos motetos, e no entanto Cardoso nunca peca com algum exagero impróprio. A adequação litúrgica é respeitada sempre.

João Lourenço Rebelo nasceu em Caminha, na província do Minho, no Norte de Portugal, em 1610, 44 anos depois de Manuel Cardoso, embora tenha morrido apenas 11 anos depois deste. São desconhecidas as razões de haver mudado seu nome, pois era irmão de Marcos Soares Pereira, capelão-cantor na capela ducal [dos Bragança] em Vila Viçosa, o qual, quando aceitou tal nomeação, levou Rebelo consigo para que lá recebesse instrução musical. O patrocínio ducal (que mais tarde se tornou real) foi um elemento fundamental na vida de Rebelo, e ao que parece o próprio Dom João IV teria escrito dois motetos a seis vozes para completar uma das publicações de Rebelo (motetos dos quais resta somente a parte de uma das vozes).

A maior parte da música de Rebelo foi publicada em 1657, um ano depois da morte do seu patrono real, que deixou em seu testamento a ordem de que fosse impressa. Essa edição contém catorze musicalizações de Salmos (sendo duas séries de sete, cada texto musicado duas vezes), quatro Magnificats, música para as Completas [última das horas canônicas], duas Lamentações e um Miserere. O estilo policoral [então] moderno dessas obras fazem de Rebelo uma figura de considerável significação na história da música portuguesa. Há também um pequeno grupo de obras não publicadas para grupos menores, entre as quais se encontra o Panis angelicum [faixa 10].

Embora não possa ser descrita como policoral, Panis angelicum ilustra bem a música de Rebelo quanto a outros aspectos, ao usar um estilo melódico distintivo, às vezes fragmentário, com trechos de escrita homofônica ou perto disso. Talvez possamos ver aqui os últimos limites a que poderia chegar uma combinação de uma escrita contrapontística conduzida de modo genuíno com elementos de estilos mais novos. Nesse sentido, pode bem figurar como um emblema de Portugal nesse período, situado no último limite do continente e recebendo aí os ventos de mudança dos outros lugares da Europa da época.

Ivan Moody © 1991 Editions of the works by Cardoso (except the Lamentations) were made by Ivan Moody. The Rebelo piece was edited by Fr José Augusto Alegria and is published by Vanderbeek & Imrie Ltd, 15 Marvig, Lochs, Isle of Lewis, Scotland HS2 9QP

(Extraído do encarte. Traduzido do inglês pelo Prof. Ralf Rickli <[email protected]> especialmente para esta postagem. Obrigado!)

Masterpieces of Portuguese Polyphony: The Choir of Westminster Cathedral
Frei Manuel Cardoso (Portugal, 1566-1650)
01. Non mortui
02. Sitivit anima mea
03. Mulier quae erat
04. Tulerunt lapides
05. Nos autem gloriari
Lamentations for Maundy Thursday ‘Feria quinta in Coena Domini’
06. – Responsory 1: In monte Oliveti oravit ad Patrem
07. – Lectio 2: Vau. Et egressus est a filia Sion omnis decor eius
08. – Responsory 2: Tristis est anima mea
09. – Lectio 3: Jod. Manum suam misit hostis ad omnia desiderabilia eius

João Lourenço Rebelo (Portugal, 1610-1661)
10. Panis angelicus
Dom Pedro de Cristo (Coimbra, c1550-1618)
11. Hodie nobis de caelo
12. O magnum mysterium
13. Beata viscera Mariae
14. Ave Maria
15. Magnificat
16. Sanctissimi quinque martires

Aires Fernández (fl.c.1590/1600 )
17. Alma redemptoris mater

2lxgrqgMasterpieces of Portuguese Polyphony: The Choir of Westminster Cathedral
Director: James O’Donnell
Iain Somcock, organ
Celia Harper, harp
Sally Jackson, dulcian (11 – 15)
Recorded in Westminster Cathedral on 13, 14, 20, 21 June 1991

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MP3 320 kbps – 161,8 MB – 1,1 h
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Boa audição.

Avicenna

Music from Renaissance, Coimbra: A Capella Portugvesa

secegnMúsica de Coimbra renascentista

A Capella Portugvesa
Director: Owen Rees

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Dia do bemaventurado martyr sam Sebastiani que he dos vinte dias do mes de Ianeiro, polla menha vem a cidade de Coimbra cam a cabida, collegios, e mais clerezia em procissam solenne a este masteiro de santa cruz, em memoria de grande merce & beneficio que recebeo o Reino de Portugal de Deus nosso senhor, por intercessam deste saneto martyr, em Ihe dar em elle el Rey dam Sebastião nosso Senhor.

Esse foi apenas um dos muitos dias do ano em que o Mosteiro agostiniano da Santa Cruz se tornava o ponto focal da cidade de Coimbra, no Norte de Portugal. Entre as mais esplêndidas dessas celebrações estavam aquelas – como a que acabamos de descrever – que refletiam o estreito relacionamento entre o mosteiro e a Casa Real portuguesa. Em junho, por exemplo, os membros da Universidade de Coimbra participavam no Mosteiro da Santa Cruz de uma série de elaborados eventos litúrgicos que celebravam o Rei Dom João III, que havia refundado e transferido a universidade portuguesa de Lisboa para Coimbra na década de 1530, inicialmente sob a jurisdição direta desse mosteiro. Esse arranjo havia sido um passo natural, já que Santa Cruz já era um dos estabelecimentos educacionais de maior destaque em Portugal, atraindo os filhos da nobreza para as suas faculdades que, desde fins da década de 1520, tinham entre os seus professores eminentes mestres recrutados de Paris. O clima intelectual de Santa Cruz é vividamente retratado em uma passagem de 1541, que descreve assim a área em frente ao mosteiro:

Em este tavoleiro ha grande concurso de estudantes que continuamente confìrem entre sy, hums em gramatica outros em Logica, outros em Rectorica e em as outras artes Liberáis, outros em a santa Theologia, outros em a medicina … E a tados he oprobrio falar salvo em a lingoa romana our grega.

Entre os cônegos de Santa Cruz nesse período estava Heliodoro de Paiva (~1500-1552), que tinha crescido na corte como irmão adotivo do jovem rei Dom João. Seu obituário relaciona uma série notável de habilidades intelectuais e artísticas, observando que era muito bom theologo, muito bom ebraico, grego, latino, philosopho musico, muito perfeito universal em toda a musica, em compor muitas, e boas obras . . . sendas missas, magnificas, motetos, muito bom tangedor, e contrapontista, escrivão perfeito.

As poucas peças vinculadas ao nome de Heliodoro nas fontes musicais de Santa Cruz são as peças mais antigas atribuídas a um músico em atividade no mosteiro. A seção do versículo do seu Aleluia, deixado sem texto no manuscrito para permitir que a obra fosse executada em diferentes festas, é cantada nesta gravação com um texto adequado à festa de São João Batista; a estreita associação entre esse santo e o rei Dom João refletia-se nas liturgias comemorativas mencionadas acima, de modo que, por exemplo, a missa de 7 de junho em Santa Cruz, assistida todos os anos pela universidade, era uma Missa de São João.

Da mesma forma, a dedicação do mosteiro à Santa Cruz era naturalmente refletida na sua liturgia: as duas Festas da Cruz (a Descoberta e a Exaltação da Santa Cruz) tinham prioridade máxima no calendário do Mosteiro, e dentro de várias das elaboradas cerimônias públicas já mencionadas apareciam antífonas relativas à cruz. Vexilla regis prodeunt (cujos primeiro e último versos são executados aqui) é um hino para a festa da Descoberta da Santa Cruz, enquanto Salvator mundi era utilizada regularmente no mosteiro como antífona votiva. Uma das mais intrigantes obras polifônicas dedicadas à cruz preservadas nos manuscritos de Santa Cruz é O crux benedicta, deixada sem atribuição de compositor na fonte. Partes desse moteto correspondem de forma mais ou menos exata a passagens do moteto Domine meus et Deus meus, atribuído a Pedro Guerrero, o irmão mais velho do mais famoso Francisco. O modo com que essas as obras estão relacionadas e o estilo de O crux benedicta sugerem que este tenha sido inspirado por Dominus meus, e não o contrário, e que não tenha sido Pedro Guerrero o responsável pelo moteto anônimo. O remodelamento foi feito com grande habilidade, introduzindo dissonâncias ácidas, adequadas ao tema do texto, no modelo bastante insípido utilizado. A ideia de adaptar a peça de Guerrero pode ter sido inspirada pelo fato de seu texto incluir as palavras de Cristo na cruz: ‘In manus tuas Domine commendo spiritum meum’ (‘Em tuas mãos, Senhor, entrego meu espírito’), o que o relaciona tematicamente a O crux benedicta.

A celebração da liturgia em Santa Cruz alcançava a sua mais alta elaboração na Semana Santa, começando com o Domingo de Ramos. Foi para esse dia que, Pedro de Cristo, mestre de capela do mosteiro por mais de um período entre 1590 e1610, providenciou sua versão dramática para cinco vozes de Osanna filio David, antífona cantada antes da benção dos ramos e de sua distribuição ao povo. Após a abertura homofônica, a textura da peça fragmenta-se, representando em seu denso contraponto e dissonâncias ásperas os gritos da multidão à entrada de Cristo em Jerusalém.

Posuerunt super caput eius fazia parte do repertório da Semana Santa da Capela Real dos Duques de Bragança, que governaram Portugal a partir de 1640. A partir de um manuscrito do século XVIII copiado para essa capela, podemos deduzir que era cantada como um moteto para o Ofertório na Missa da Quarta-feira da Semana Santa. Essa fonte atribui a peça ao compositor português Aires Fernandez, cujas obras, em sua quase totalidade, estão preservadas em manuscritos de Santa Cruz de Coimbra. Entretanto, essa atribuição pode estar errada; mais de uma fonte espanhola atribuí a obra a Rodrigo de Ceballos (c.1530-1591), mestre de capela em Córdoba e na Capela Real em Granada, e de fato há paralelos estilísticos próximos com outras obras de Ceballos.

O grupo de obras relacionadas com a cruz ou adequadas à Semana Santa conclui com uma versão das Lamentações para a Quinta-Feira Santa (a primeira leitura das Matinas – ou Tenebrae – nesse dia), que é preservada sem atribuição num manuscrito compilado em Santa Cruz na década de 1570. Em contraste com muitas versões dessa leitura (incluindo as de Vitoria, Palestrina e Lassus), todos os cinco primeiros versos do texto estão incluídos, cada um deles precedido por uma letra hebraica. O compositor inspirou-se no texto para fazer novas subdivisões, reintroduzindo o conjunto de vozes completo em ‘omnes amici eius‘ (todos os amigos dela) e ‘omnes portae eius‘ (todos os seus portões) depois de passagens a três vozes. A obra inicia-se com uma proeminente referência ao tema utilizado nas Lamentações no cantochão espanhol, e referências semelhantes ocorrem no início de diversos versículos.

O estilo policoral, que era um elemento importante na música sagrada ibérica no final do século XVI, foi cultivado de uma forma altamente individual em Santa Cruz por Pedro de Cristo, conforme demonstrado pelas suas versões de Sanctorum meritis e de Salva nos Domine. O começo da primeira, uma paráfrase da melodia gregoriana desse hino, é típica de sua técnica de empregar notas rápidas ao colocar o texto em música, prática que proporciona grande parte da animação rítmica que caracteriza a antifonia entre os dois coros em ambas as peças. Por que terá Pedro de Cristo produzido uma composição tão grandiosa para esse hino (que faz parte das Vésperas em festas de um ou mais mártires)? A explicação pode residir em ela ter sido composta para a festa dos Cinco Mártires do Marrocos, cujas relíquias se contavam entre as mais preciosas posses do mosteiro. Um Ordinário impresso datado de 1579 diz-nos que no dia dessa festividade ‘aas cinco horas de manhão se abriram da igreja‘ para receber as pessoas que desejavam frequentar a Missa e tocar as relíquias, e – excepcionalmente – que ‘se não fecham as portas de igreja em fim da missa, por o muito concurso da gente, mas ficaram abertas até o fim das Completas.’

Santa Cruz também possuía uma relíquia de São Vicente, que talvez explique a existência do moteto de Pedro de Cristo Beate martir, em comemoração desse mártir. Alternativamente, a explicação pode residir no fato de Pedro de Cristo ter sido, durante vários períodos, mestre de capela da casa-irmã de Santa Cruz, o mosteiro de São Vicente da Fora, em Lisboa (que domina o horizonte do bairro da Alfama). A versão do mesmo Pedro de Cristo do hino Ave maris stella é um excelente exemplo da arte da paráfrase – a construção de polifonia imitativa a partir dos motivos de uma peça de cantochão.

Circumdederunt me, composto por Aires Fernandez, é uma das grandes obras primas expressivas da polifonia ibérica do século XVI, uma maestria evidenciada no controle do clímax na primeira seção do moteto. A simplicidade deliberada do começo, com suas sonoridades escassas e preservação cuidadosa da consonância, torna ainda mais surpreendente o emprego súbito de uma tríade aumentada após oito breves; a homofonia dá ênfase às palavras ‘dolores inferni‘, após as quais uma passagem intensamente dissonante em ‘circumdederunt me‘ contrasta de forma aguda com o tratamento dessas palavras no início da peça. Entretanto, o cerne expressivo da obra reside na sua última seção, em ‘laquei mortis‘, quando as vozes repetem sem cessar o seu motivo cadente numa sequência harmônica que não desce muito nas suas duas primeiras aparições, mas na terceira bemoliza-se vertiginosamente. Circumdederunt me pode ter sido escrito para serviços pro defunctis, embora no século XVIII tenha sido, como Posuerunt super caput eius, executado pela Capela Real durante a Semana Santa (para ser preciso, como um moteto de Ofertório na Missa da segunda-feira daquela semana). Ao contrário de Posuerunt, entretanto, o seu estilo não deixa dúvidas quanto ao fato de ser Aires Fernandez o seu compositor.

Heu mihi, Domine é, da mesma forma, um moteto pro defunctis, tendo o seu texto sido tirado de um responsório de Matinas dos Mortos. Infelizmente, o nome do compositor, Antonio Lopez, é comum demais para permitir que o identifiquemos com segurança, embora um homem com esse nome tenha sido mestre de claustro na Catedral de Coimbra em 1604. Entretanto, a peça em si revela um fato interessante a respeito do compositor: o de que ele conhecia a versão do Salmo 50 de Josquin des Près, Miserere mei Deus. Quando Lopez alcançou essas palavras do começo do salmo no seu próprio texto, ele (como muitos outros compositores do século XVI) fez referência ao motivo que se repete em ostinato por todo o moteto de Josquin. Na verdade, Lopez chama a atenção para esse motivo – que coloca as palavras ‘miserere mei Deus‘ em um tom invariável exceto por uma subida e queda em ‘Deus‘ – colocando-o na voz mais alta em uma textura homofônica, e imediatamente repetindo a frase numa forma rearmonizada, permitindo que o motivo penetre na frase seguinte, ‘dum veneris in novissimo die‘.

A terceira e última seção da gravação é uma sequência de música (cantochão e polifonia) para a última das Horas Canônicas – as Completas. As fontes musicais de Santa Cruz sugerem que essas Horas cresceram consideravelmente em importância musical (em que mais itens eram executados polifonicamente) no final do século XVI. Tipicamente, essas peças polifônicas eram derivadas do cantochão que substituem, como demonstram as três obras de Aires Fernandez incluidas aqui: a sua versão do cântico Nunc dimittis retém o tema empregado para o recitativo do texto, colocando-o sucessivamente na voz superior, no contralto e no tenor nos três versos polifônicos, e empregando uma textura essencialmente homofônica; o tratamento do hino Te lucis ante terminum é mais elaborado, apresentando o cantochão na parte superior, mas permitindo que seus motivos também penetrem as outras três vozes. A belamente estruturada versão de Benedicamus Domino coloca o cantochão no tenor e, mais uma vez (embora de uma forma mais sutil), faz com que seus motivos penetrem nas vozes circundantes. A versão do responsório das Completas In manus tuas, de Pedro de Cristo, é para a Época da Páscoa, conforme demonstrado pela adição da palavra ‘alleluia’ ao fim de cada seção de texto. A peça baseia-se, como a composição de Nunc dimittis de Aires Fernandez, em texturas homofônicas simples que são essencialmente uma elaboração harmonizada do cantochão (aqui encaixadas numa parte interna na primeira seção polifônica da peça). Essa técnica é apenas levemente mais sofisticada do que a empregada aqui para o salmo Ecce nunc benedicite (apenas um dos vários salmos das Completas): versos em cantochão alternam-se com aqueles em que o cantochão é utilizado como a base de uma harmonização a quatro vozes, um método conhecido como fabordão. Um única fórmula, memorável devido às suas figuras cadenciais sincopadas, é empregada para cada verso polifônico.

No final das Completas vinha a última devoção do dia, dedicada à Santa Virgem e contendo como item principal uma antífona que com frequência era cantada polifonicamente. Na Páscoa o texto selecionado era Regina caeli laetare que exorta Maria a rejubilar-se com a ressurreição do seu Filho. A composição a quatro vozes executada aqui, utilizada em Santa Cruz na década de 1570, soa como se fosse composta livremente, porém, mais uma vez, é fortemente tributária do cantochão correspondente.

(Owen Rees, 1994 – extraído do encarte. Traduzido do inglês e do alemão pelo Prof. Ralf Rickli <[email protected]> especialmente para esta postagem)

Music from Renaissance, Coimbra
Anonymous
01. O crux benedicta
02. Salvator mundi

Aires Fernandez (Portugal, ?-?) & Rodrigo de Ceballos (Spain, c1530-1591)
03. Posuerunt super caput eius
Anonymouss
04. Vexilla regis prodeunt
Dom Pedro de Cristo (Coimbra, c1550-1618)
05. Osanna filio David
Anonymous
06. Lamentation for Maundy Thursday, ‘Incipit lamentatio Hieremiae prophetae’
Dom Pedro de Cristo (Coimbra, c1550-1618)
07. Sanctorum meritis
Aires Fernandez (Portugal, ?-?)
08. Circumdederunt me
Antonio Lopez, (?-?)
09. Heu mihi, Domine
Dom Pedro de Cristo (Coimbra, c1550-1618)
10. Ave maris stella
11. Beate martir

Heliodoro de Paiva (Portugal, 1502-1552)
12. Alleluia

Sequence of music for Compline (Sequência de músicas para as Completas)

Anonymous
13. Iube, Domine, benedicere
14. Converte nos, Deus
15. Psalm 133 ‘Ecce nunc benedicite’, with antiphon, ‘Ignatus est super nos lumen vultus tui Domine’

Aires Fernandez (Portugal, ?-?)
16. Te lucis ante terminum
Anonymous
17. Tu autem in nobis
Dom Pedro de Cristo (Coimbra, c1550-1618)
18. In manus tuas
19. Salva nos, Domine

Aires Fernandez (Portugal, ?-?)
20. Nunc dimittis
Dom Pedro de Cristo (Coimbra, c1550-1618)
21. Salva nos, Domine
Aires Fernandez (Portugal, ?-?)
22. Benedicamus Domino
Anonymous
23. Regina caeli

Music from Renaissance, Coimbra – 1994
A Capella Portugvesa
Director: Owen Rees
Recording details: February 1994
The Church of St John the Evangelist, Oxford, United Kingdom

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE (com encarte)
MP3 320 kbps – 167,7 MB -1,1 h
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Boa audição.

swa9vo-1

 

 

 

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Avicenna