Rued Langgaard (1893-1952): Música de Verão e Música do Abismo – Obras para piano vol. 2 (Tange)

O gosto de tantos de nós pelo exótico tem servido de inspiração para muita música boa para todo tipo de instrumentos, mas especialmente para o piano com sua ampla gama de timbres possíveis. Claude Debussy, provavelmente o mais original compositor para piano da virada do século XIX para o XX, criou muitos sons novos inspirado em coisas como o gamelão da Indonésia e pinturas japonesas. Aliás, na casa onde Debussy nasceu, em Saint Germain en Laye – a poucos minutos de trem de Paris – é possível ver muitos dos objetos que pertenciam ao compositor, como o quadro japonês que inspirou “Poissons d’or” – peixes dourados – mas nenhum quadro dos pintores impressionistas, com os quais sua música é tão comparada. O exótico lhe interessava mais, santo de casa não faz milagre…

Heitor Villa-Lobos, nascido na então capital do Brasil, compôs vários choros e prelúdios para violão que eram bem no idioma de seus vizinhos e amigos, mas também escreveu Danças Africanas, Lenda do Caboclo, Saudades das selvas brasileiras… É claro que seu conhecimento sobre caboclos e africanos devia ser um tanto limitado, mas os temas exóticos eram pontos de partida para sua fértil imaginação. Antes dele, Henrique Oswald teve seu maior sucesso com a curta e bela peça para piano “Il neige” (“está nevando”, em francês), escrita em 1902 quando ele vivia na Europa. Como tantos outros brasileiros, Oswald deve ter se encantado com a poética imagem da neve caindo.

Mas para Rued Langgaard, compositor nascido na Dinamarca, a neve devia ser algo bastante comum, até tedioso. Conhecendo o frio a maior parte do ano, Langgaard parece ter tido uma grande atração pelas imagens poéticas associadas ao verão, ao menos é o que ele dá a entender nas duas longas obras dessa coletânea, 2º disco de uma coleção de suas obras completas para piano pela pianista Berit Johansen Tange. Ela estudou no conservatório de Copenhagen, cidade natal de Langgaard. O pai do compositor, também pianista, tinha sido um pupilo de Liszt, mas a influência principal nas obras de Rued Langgaard parece ser quase sempre Robert Schumann, com suas obras compostas de miniaturas pianísticas em formas livres, sempre com um pezinho no romantismo ou às vezes o corpo inteiro.

O ciclo que fecha o álbum, Sommerferie I Blekinge (Férias de Verão em Blekinge), faz referência a uma localidade no sul da Suécia: confira a foto um pouco mais abaixo. Anos depois, Langgard compôs Smaa Sommerminder (Pequenas memórias de verão). Em ambos, a atmosfera é leve, despreocupada, com alguns graves profundos que se assemelham a sinos de igreja mas logo dão lugar às melodias agudas e tranquilas, com subtítulos que fazem referência a sinos de vacas, pinheiros e danças.

O outro ciclo longo deste álbum é bem diferente daquela tranquilidade ensolarada: na sua Música do Abismo (Afgrundsmusik) composta em 1921, Langgaard mostra uma profunda preocupação com o estado do mundo pós-Primeira-Guerra. Naquele ano ele começou a compor uma ópera chamada Anticristo, sobre o declínio da civilização ocidental moderna com sua mentalidade egoísta e materialista. A mensagem da ópera era que a sociedade europeia moderna estava cavando seu próprio túmulo. Embora esse ponto de vista do compositor, visto com a distância dos anos, não pareça tão absurdo, ele não foi bem aceito por seus contemporâneos e a ópera nunca foi montada, tendo pedidos negados mais de uma vez pelo Real Teatro Dinamarquês. Essa foi uma constante na vida de Langgaard no pós-1918: se em 1913 sua 1ª sinfonia tinha sido estreada pela Filarmônica de Berlim, depois da guerra ninguém parecia se importar com as várias sinfonias que ele compôs. Suas obras para piano também não circularam pelo mundo, ficando restritas ao seu país natal, no qual Langgaard também era mais odiado que amado desde que começou a se opor à estética de Nielsen (1865-1931), que tinha status de intocável na época. Só em 1940 Langgaard conseguiria um cargo estável: o de organista na catedral de uma cidade pequena. É claro que, com menos ideias próprias e mais habilidades como puxa-saco, ele alcançaria cargos mais altos, dada sua competência, mas a posição de isolamento parece ter sido o que lhe permitiu manter a liberdade de pensamento.

Langgaard, em suma, tinha certeza de que as promessas de progresso e paz do pós-guerra eram ilusórias, um tipo de desconfiança do progresso que é característica de outros autores românticos. Esse tema foi muito estudado e discutido por Michael Löwy (nasc. 1938), pensador brasileiro radicado na França, por exemplo no seu livro “Revolta e melancolia – o romantismo na contramão da modernidade”.

Lowy diz: “O romantismo não é apenas uma escola literária do século XIX (…). Enquanto estrutura sensível e visão do mundo, manifesta-se em todas as esferas da vida cultural – literatura, poesia, arte, música, religião, filosofia, idéias políticas, antropologia, historiografia e outras ciências sociais. Pode-se defini-lo como uma revolta contra a sociedade capitalista moderna, em nome de valores sociais e culturais do passado, pré-modernos, e como um protesto contra o desencantamento moderno do mundo, a dissolução individualista-competitiva das comunidades humanas e o triunfo da mecanização, da mercantilização, da reificação e da quantificação. Dividido entre a nostalgia do passado e os sonhos de futuro, ele pode assumir formas regressivas e reacionárias, propondo um retorno às formas de vida pré-capitalistas, ou uma forma revolucionária utópica, que não prega um retorno, mas um desvio pelo passado em direção ao futuro: nesse caso, a nostalgia do paraíso perdido está contida na esperança de uma nova sociedade.”

O que Lowy aponta é que não se pode fazer uma oposição simples entre progressistas modernos e românticos nostálgicos do passado. O romantismo, com sua carga de crítica do desencantamento do mundo, permitiria assim a construção de algo diferente desse mundo cheio de guerras e de fumaça de carros.

Voltemos para Langgaard: na sua “Música do abismo”, além de usar temas que remetem aos momentos faustianos do piano de Liszt, ele traz repetições que causam um desconforto nos ouvidos, bem ao contrário da leveza da música de verão que abre e fecha o álbum. Iniciando a obra com a indicação inflessibile mostruoso, ele deixa implícito que a flexibilidade e a dança seriam antídotos às características do abismo: inflexível, majestoso e repetitivo.

Nas obras de Ligeti esse tipo de repetição mecânica também aparece mas, sinceramente, não sei dizer se o húngaro aniversariante deste mês via esse som das máquinas com o pessimismo de Langgaard, com um ponto de vista neutro ou com um entusiasmo como o de um Terry Riley que, a partir de repetições, construiu belas paisagens sonoras (A rainbow in curved air…) Seria preciso estudar mais sobre a vida e obra de Ligeti para afirmar algo. Mas para Langgaard, sem sombra de dúvida, o mecânico é feio, doentio e se opõe à beleza e tranquilidade das paisagens de sua música de verão, seja aquela composta em 1916 quando o compositor tinha 23 anos, seja aquela de 1940 quando ele via sua Europa suicidar-se pela 2ª vez.

A pianista Berit J. Tange

Rued Langgaard (1893-1952): Piano Works vol. 2
1-4. Smaa Sommerminder, BVN 254
i. Engang (Once): Allegretto leggiero
ii. Allegretto
iii. [No Title]
iv. Sang (Song): Tranquillo
5-6. Afgrundsmusik (Music Of The Abyss), BVN 169
i. Inflessibile mostruoso (Inflexible, monstrous) – Solenne misterioso (Solemn, mysterious) – Ignominioso e lusingando (Shameful and tempting) – Preciso marcato – Sempre marziale – Maestoso rigoglioso (Majestic, exuberant)
ii. Frenetico, quasi rondo – Più animato frenetico – Agitato con irritazione sempre – Più frenetico – Più tranquillo lusingando – Capriccioso grazio[so] – Sempre frenetico
7 Albumsblad (Album Leaf), BVN 3 – Andantino con moto
8 Paa En Kirkegaard Ved Nat (In A Churchyard At Night), BVN 22 – Largo grave
9 Adorazione, BVN 223 – Poco mosso – Con moto – Presto – Poco moto – Postludium: Con poco moto – Maestoso
10 Klaverstykke E-Dur (Piano Piece E Major), BVN 426 – Not fast
11-20. Sommerferie I Blekinge (Summer Holiday In Blekinge), BVN 123
i. Paa Rejse (Travelling)
ii. Møde (Meeting)
iii. Søndag paa Kirkebakken (By the village church on a Sunday): Agitated
iv.  Kobjælder i Granskoven (Cowbells in the pinewood): Calm, mysterious – Più lento – [Tempo I] – Più lento – Più con moto – A tempo [I]
v. Kafferep og Resignation (Kafferep and resignation): Presto (as if everyone is talking at once) – Lento
vi. Svensk (Swedish): Not too slow – (Lively)
vii. Ærteblomster (Sweet peas): Fervently emotive – Più con moto
viii. Paa Tur (On tour): Good-humoured – Più con moto – A tempo
ix. Afsked (Farewell): With an expression of hidden pain – Appassionata – Con moto – Appassionata
x.  Aften med Dans (Evening with dancing): Waltz tempo – Allegretto tranquillo

Berit Johansen Tange – piano
Recorded: 2010

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE (MP3 320kbps)

Paisagem em Blekinge, região da Suécia onde Langgaard passou férias de verão

Pleyel

Rued Langgaard (1893-1952): Gitanjali-Hymner, Fantasi-Sonate e outras obras para piano

Nascido em Copenhagen e filho de dois pianistas, Rued Langgaard foi um compositor solitário, idealista, que não pertenceu a nenhum grupo como por exemplo os seus contemporâneos franceses “Les Six” ou os que se juntaram em Viena ao redor de Schoenberg. Langgaard teve lições de contraponto com o compositor Carl Nielsen (1865-1931) por cerca de um mês, mas aparentemente os dois não se entenderam bem e seus caminhos não se cruzariam mais.

Langgaard em Ribe (1951); Abaixo, o órgão da catedral

Aos 18 anos, foi organista assistente em uma igreja em Copenhage e, apenas aos 46, conseguiu um emprego fixo em uma importante e antiga catedral, mas em uma cidade pequena do interior da Dinamarca, onde ele era considerado um músico excêntrico, introvertido, com roupas estranhas e descabelado.

Não que ele necessariamente tenha se importado com o que os dinamarqueses achavam dele. Sua música foi razoavelmente bem recebida na Alemanha, com várias apresentações em Berlim e Karlshue. A principal influência na música para piano de Langgaard parece ser o também alemão Robert Schumann (1810-1856), especialmente em aspectos rítmicos e nas obras compostas de várias miniaturas pianísticas em sequência.

Harmonicamente, porém, a linguagem tonal expandida de Langgaard está mais próxima daquela que utilizavam, no início do século XX, os grandes pianistas-compositores Alexander Scriabin (1872-1915) e Ferruccio Busoni (1866-1924). Ainda assim, a influência do piano de Schumann parece predominar, e falo aqui apenas da música para piano, pois Langgaard compôs 16 sinfonias que pouca gente ouviu, e ainda uma “Música das Esferas” para coro e orquestra. Esta última (Sfærernes Musik), estreada na Alemanha em 1921 e esquecida pouco depois, foi redescoberta em 1968 pelo compositor György Ligeti, então no auge de sua fama como vanguardista inovador. Impressionado com o fato de que várias técnicas da sua própria música microtonal tinham sido utilizadas por Langgaard 50 anos antes, Ligeti disse: “Então, sou um seguidor de Langgaard”. E foi assim que, 16 anos depois de sua morte, o organista da pequena cidade de Ribe (8 mil habitantes) tornou-se um dos grandes compositores dinamarqueses, talvez hoje o segundo mais famoso depois de Carl Nielsen.

Assim como o fazia Schumann, Langgaard nomeou suas obras para piano com títulos poéticos e bastante românticos, como Vanvidsfantasi (Imaginação insana) ou Hél-Sfærernes Musik (Música das esferas do inferno, composta 30 anos após a outra obra orquestral que seria apreciada por Ligeti).

No caso dos Gitanjali-Hymner, Gitanjali – que em Bengali significa “Oferenda Lírica” – é uma coleção de poemas publicados em 1910 pelo poeta indiano Rabindranath Tagore, Prêmio Nobel de Literatura de 1913. Também foi Tagore quem deu a Gandhi o apelido Mahatma (“grande alma” em sânscrito), que muitos hoje supõem ter sido seu nome de batismo. Os títulos dos movimentos dessa obra de Langgaard, como “canção distante” e “silêncio de verão”, são inspirados no poeta indiano.

Rued Langgaard (1893-1952): Gitanjali-Hymner, Fantasi-Sonate, etc.

1-10. Gitanjali-Hymner, efter Tagore [Hinos de Gitanjali, por Tagore] (1918-1920)
I. Din Musiks Glands [Luz da música]
II. Himlen sukker [Estrondos do céu]
III. Den fjerne Sang [Canção Distante]
IV. Sejlfærd [Navegando à vela]
V. Sommerhvisken [Silêncio de verão]
VI. Himmel-Ensomhed [Solidão do céu]
VII. Den hvileløse Vind [Vento sem repouso]
VIII. Tavshedens Hav [O Mar do Silêncio]
IX. Regnfulde Blade [Chuva de folhas]
X. Gyldne Strømme [Córregos Dourados]

11. Fantasi-Sonate [Sonata-Fantasia] (1916)
Molto agitato e con passione

Langgaard tocou órgão desde jovem

12. Nat paa Sundet [Noite sobre o som] (1907)

13. Hél-Sfærernes Musik [Música das esferas do inferno] (1948) Mouvement unique : Efterhaanden vanvittigt Tempo

14-16. Vanvidsfantasi [Fantasia insana] (1914-16, rev. 1947-49)
I. Vanvidsefteraarsnat, II.Efteraarsengel, III. Vanvidsgang

Berit Johansen Tange, piano

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Catedral de Ribe, edifício medieval e provavelmente o mais alto da cidade

Pleyel