BTHVN250 – A Obra Completa de Ludwig van Beethoven (1770-1827) – Missa Solemnis, Op. 123 – Gardiner

O dia em que uma missa solene composta por mim for apresentada durante as cerimônias solenizadas para Vossa Alteza Imperial será o dia mais glorioso da minha vida; e Deus me iluminará para que meus pobres talentos possam contribuir para a glorificação desse dia solene.

Ao prometer a seu pupilo e arquiamigo imperial, Rudolph da Áustria, uma composição para marcar sua entrada solene como arcebispo da cidade morávia de Olmütz (hoje Olomouc, República Checa), Beethoven embarcava naquela que seria uma de suas maiores contendas criativas. Fora a campeoníssima Leonore/Fidelio – sua maior usina de desgostos e gastrites -, nenhuma outra obra tomou-lhe tanto tempo e lhe deu tanto trabalho.  É bem verdade que a Quinta Sinfonia, e em especial seu primeiro movimento, lhe foi uma obsessão por quatro anos, mas seu empenho nela foi no sentido de reelaborá-la e refiná-la para buscar aquela qualidade tipicamente beethoveniana de que cada nota pareça seguir-se da única possível. Os quatro anos dedicados à Missa, no entanto, viram a obra expandir constantemente seu escopo e ambição. Quando Rudolph foi investido do cargo, em 1820, Beethoven ainda trabalhava no Credo. Ao enfim dar por encerrados os trabalhos, em 1823 – depois de deixá-los de lado por um bom tempo para escrever as três últimas sonatas para piano e variar a marota valsinha de Diabelli -, enviou ao arquiduque uma composição imensa, repleta de grandes dificuldades técnicas, e totalmente incapaz de ser absorvida por qualquer cerimônia eclesiástica. Beethoven, ademais surdo, nunca testemunharia uma apresentação completa da obra, que foi estreada na distante corte russa em São Petersburgo por instigação de Nikolai Galitsyn – o encomendante dos últimos quartetos de cordas. Viena ouviria três de seus movimentos – o Kyrie, Credo e o Agnus Dei – no mesmo concerto em que a Nona Sinfonia foi estreada com êxito colossal, em 7 de maio de 1824, na presença do compositor.

Ei-los, compositor e missa (Joseph Karl Stieler, óleo sobre tela, 1820)

A Missa Solemnis marcou, assim como a sonata “Hammerklavier” e as Variações Diabelli, as tendências típicas da maturidade artística de Beethoven: abordar formas musicais consolidadas dum modo radicalmente novo e expansivo, quase a ponto de romper-lhes as costuras, sem ter qualquer pudor em propor dificuldades transcendentais a seus intérpretes, e com um inovador uso de formas contrapontísticas, especialmente da fuga. De fato, e exceto pelo Kyrie relativamente convencional, os demais movimentos não têm precedentes em música litúrgica; as exigências da partitura só atestam a total falta de empatia do renano para com seus intérpretes, principalmente os cantores (façam uma enquete para saber qual o compositor mais citado no Livro do Ódio dos coristas, e não se surpreenderão com o resultado); e imensas fugas corais que fazem picadinho das traqueias do coral, em especial na reprise de Et vitam venturi saeculi que conclui o credo, em que o já apressado andamento é retomado com o dobro da velocidade.

Não tenho dúvidas de que a Missa Solemnis seja, com folgas, a menos apreciada das grandes composições da maturidade de Beethoven. Muitos são os que a tratam com respeito, e poucos os que lhe têm devoção. Para mim, ela foi um gosto adquirido. Sempre gostei do Kyrie – que, como já mencionamos, é quase convencional em seu equilíbrio e no que se chamou de “serenidade bizantina” -, mas experimentava uma estranha inquietude ao escutar o restante. Quando percebi que inquietar e provocar talvez fossem exatamente a intenção de Beethoven, consegui apreciá-la melhor.

Ouçamos o Gloria, por exemplo. Depois do Kyrie, esperar-se-ia a habitual expressão de júbilo quase infeccioso com que o Gloria é tratado por outros compositores de missas.  Em seu lugar, Beethoven oferece um furioso fortíssimo do tímpano e instala uma massa sonora maníaca, que parece se resolver com o relaxamento à menção ao Cordeiro de Deus (Agnus Dei, qui tollis peccata mundi), só para, após os sis bemóis mais odiados pelas sopranos dos corais mundo afora (qui sedes ad dexteram patris), encerrar tudo com o verdadeiro clímax: uma gigantesca fuga coral. Tensão, relaxamento, preparação, resolução: tudo o que há habitualmente nas melhores sonatas, e no entanto inédito em música litúrgica.

Também escuto na Missa Solemnis expressões do ambicioso compositor que quis enriquecer com a ópera, mas abandonou-a para sempre após as agruras que viveu com Leonore/Fidelio. Momentos altamente dramáticos, como a constrita prece dos solistas (com a indicação ängstlich, “assustado”) após as distantes fanfarras militares do Agnus Dei, não seriam inapropriados às cenas finais no cárcere de Fidelio. Da mesma maneira, a maravilhosa exclamação Et… Et homo factus est, feita pelo tenor solista durante o Credo, nunca deixa de me emocionar ao prorromper, luminosa, após o idílico Et incarnatus: outra vez o drama, e não a liturgia, levando este homem cínico às genuínas lágrimas.

A abordagem do Credo expressa mais sobre a religiosidade de Beethoven do que qualquer coisa que ele tenha escrito. Alguns dos mais importantes dogmas cristãos são apressadamente escorraçados (trinta e sete palavras em vinte e dois compassos, para ser mais exato), para que a confissão de fé – a própria palavra Credo – se repita muitíssimas vezes: difícil haver maneira mais efetiva de nos contar que a fé, para ele, valia mais que dogmas eclesiásticos. Apesar de ser o mais heterodoxo dos movimentos da Missa, o Credo não suscitou nem uma fração das críticas que a parte seguinte, o Sanctus. Nada no Sanctus propriamente dito, aliás – que aqui começa de maneira pouco convencional, quase em sussurros, até que a esperada exaltação enfim surja em Pleni sunt coeli e no Osanna in excelsis. As críticas recaíram sobre o Benedictus, que Beethoven resolveu unir ao Sanctus através de uma ponte instrumental que imita lindamente o prelúdio habitualmente improvisado pelo organista durante esta transição. Após a referida ponte, um violino, acompanhado de duas flautas, entoa uma frase descendente que representa, explicitamente, a descida do Espírito Santo, para depois acompanhar solistas e coro num elaborado solo concertante. As sensibilidades da época, que conseguiram aturar o Gloria maníaco e o Credo quase alijado de dogmas, não aturaram tanta secularidade e acusaram Ludwig de anticlerical (o que ele de fato era, com orgulho) e pueril. Azar deles: eu acho o Benedictus e seu violino maravilhosos, e volto a eles sempre que posso.

Admito, mesmo com todo meu apreço pela Missa Solemnis, que seu Agnus Dei sempre me inspira sentimentos mistos. Aos movimentos anteriores, com todas suas idiossincrasias, nunca falta o senso de coesão. O Agnus me parece uma colagem e, com suas transições bruscas e o acorde final que parece nada resolver, deixa uma esquisita sensação de incompletude. Mas pode ser que, uma vez mais – desta feita, depois duma citação à Missa In Tempore Belli, do mestre Haydn, e outra, ainda mais explícita, ao He shall reign forever do Messiah de seu ídolo Händel -, Beethoven desejasse isso mesmo. Não tenho dúvidas de que ele fosse um homem em constantes buscas espirituais, capaz de repetir por várias vezes a indicação Mit Andacht (“Com devoção”) e colocar uma outra, Bitte um innern und äussern Frieden (“Rogue pela paz interior e exterior”) na sua mais importante obra de música sacra. Sua maior busca, no entanto, sempre foi a de que sua arte provocasse uma reação significativa em seu ouvinte – e a maior pista nesse sentido, para mim, foi a inscrição que ele quase publicou no frontispício dessa partitura:


Von Herzen – möge es wieder zu Herzen gehen”
(“De coração – que possa voltar ao coração”)


Ludwig, parece, acertou-me em cheio.

ooOoo

Encontrar uma interpretação satisfatória dessa obra desafiadora foi, realmente, muito difícil. A Missa Solemnis é, assim como a Sinfonia “Pastoral”, um calcanhar de Aquiles de muitos bons regentes. Poderia fazer aqui um enfadonho relato de quanto tempo perdi ouvindo gravações ruminativas que, talvez para facilitar a execução, reduziam a marcha dos frenéticos andamentos prescritos por Beethoven e delongavam a já imensa composição até o limiar do soporífero. Há outras tantas que, pouco atentas ao turbilhão de contrastes da partitura, acabam com um nada atraente jeitão rapsódico.

Em 2012, no entanto, John Eliot Gardiner voltou à Missa Solemnis, que já gravara em 1989, e meus problemas acabaram. Os ótimos solistas têm o brilho e a potência vocal para vencerem a imensa massa sonora que Beethoven tantas vezes os manda enfrentarem. É difícil imaginar um coro melhor que o Monteverdi, que não aparenta estrebuchar com as torturas prescritas pelo malvado alemão, e a Orchestre Révolutionnaire et Romantique, apesar do nome esdrúxulo, acerta tudo. Como acertar tudo não é o bastante, Gardiner guia suas forças musicais com segurança ao longo da armadilhada partitura, e a Missa Solemnis soa sanguínea e fresca como aquela madrugada que raiou para as pombas. Baixem agora que, em uma hora e meia, estarão a aplaudi-los de pé.


Ludwig van BEETHOVEN
 (1770-1827)

Missa Solemnis em Ré maior, para solistas, coro e orquestra com órgão, Op. 123
Composta entre 1819-1823
Publicada em 1826
Dedicada ao arquiduque Rudolph da Áustria

1 – Kyrie (Assai sostenuto – Mit Andacht – Andante assai bem marcato – Tempo I)
2 – Gloria (Allegro vivace – Meno Allegro – Tempo I – Larghetto – Allegro maestoso – Allegro, ma non troppo e ben marcato – Poco più Allegro – Presto)
3 – Credo (Allegro na non troppo – Adagio – Andante – Adagio expressivo – Allegro – Allegro molto  – Allegro ma non troppo – Allegro ma non troppo- Allegro con moto – Grave)
4 – Sanctus (Adagio. Mit Andacht – Allegro pesante  – Presto) – Praeludium (Sostenuto ma non troppo) – Benedictus (Andante molto cantabile e non troppo mosso)
5 – Agnus Dei (Adagio – Allegretto vivace (Bitte um innern und äussern Frieden) – Allegro assai  – Tempo I –  Presto – Tempo I)

Lucy Crowe, soprano
Jennifer Johnston, contralto
James Gilchrist, tenor
Matthew Rose, baixo
The Monteverdi Choir
Orchestre Révolutionnaire et Romantique
Peter Hanson,
spalla
James Johnstone, órgão
Sir John Eliot Gardiner, regência

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BTHVN250, por René Denon

Vassily

1 comment / Add your comment below

  1. Amo essa obra (talvez a minha preferida de Beethoven?). E desconheço essa gravação.
    Quero dizer, sabia da existência dela, mas nunca ouvi.
    Recomendado por quem é, deve ser um discasso. Baixando imediatamente.
    Eu tive o privilégio de ver e ouvir essa obra ao vivo, com a OEA e o Bach Choir. Confesso que chorei de emoção em vários momentos, com menos de 1 minuto do Kyrie as lágrimas já rolavam. O cara do meu lado, num certo momento perguntou se eu estava bem, eu respondi que raras vezes tinha me sentido melhor.
    Isso é música de muita estatura.
    Belo jeito de terminar o domingo.
    Vassily, o que me diz da primeira versão do Herreweghe? Acho quer já foi postado aqui e acho que ele também já gravou mais de uma vez. A primeira, da Harmonia Mundi deve ser a que melhor conheço/gosto.
    Obrigado por mais esse deleite.

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