Incrível, mas já faz um ano que lhes alcancei o epílogo do imenso tributo que fiz a Ludwig em seu jubileu. Ainda mais impressionante, parece-me, é que tenhamos resistido a mais um ano de tanatocracia e que tudo o que nos reste para comemorar, talvez, seja tão só não estarmos no rol de suas centenas de milhares de vítimas fatais.
Quem for capaz de comemorar algo mais que esse extraordinário fenômeno que é estar vivo no Brasil de 2021 poderá celebrar, entre hoje e amanhã, mais um natalício do genial renano, que provavelmente nasceu num 16 de dezembro como hoje e foi batizado no dia seguinte, o 17 de dezembro que se convencionou considerar seu aniversário. E, já que suponho que ainda estejam a digerir a fartadela de postagens e gravações beethovenianas com que abarrotei este blogue no ano passado, em vez dum banquete pantagruélico, então, hei de oferecer-lhes somente um digestivo, um fino chocolatinho mentolado.
A despeito do enganoso título de “A Obra Completa de Ludwig van Beethoven”, nosso esforço de alcançar-lhes a integral do grande homem teve algumas desimportantes lacunas, quase todas por conta de obras fragmentárias, ou rascunhos, ou coisas que ele próprio houve por bem não levar à prensa. De significativo, sem dúvidas, faltou apenas a segunda versão de sua única ópera, lançada como “Leonore” e que viria a se tornar “Fidelio”, cuja gravação não encontrara em lugar algum…
… até que a encontrei.
Com um ano de atraso, alcanço-lhes a primeira e até agora única gravação comercial já realizada da segunda versão de “Leonore”. Composta por dois atos, foi estreada em 29 de março de 1806, meros quatro meses depois do naufrágio da versão original em três atos, muito por conta de que o público da première em Viena era composto de invasores franceses que provavelmente entendiam lhufas de alemão e, mesmo que entendessem, não aplaudiriam um libelo daquele naipe contra a opressão. Beethoven, como era seu hábito, tomou para si os engulhos do fracasso e, aconselhado por amigos e com a ajuda de um dos melhores deles, Stephan von Breuning, tratou de podar “Leonore” para deixá-la com um ato a menos.
Nem tudo foram cortes: foi adicionada uma marcha para a entrada do vilão Pizarro e, mais notavelmente, uma poderosa abertura, que se ouve amiúde, por si mesma, nas salas de concertos, e que depois se convencionou chamar de “Leonore no. 3”. Ela é uma adaptação daquela da versão original, transfigurada num portento sinfônico que contrasta, e alguns dirão que não favoravelmente, com o singelo número vocal inicial. Não só este, mas boa parte da tertúlia entre Marzelline e Jaquino por conta de Fidelio, que tomava praticamente todo o primeiro dos atos da versão de 1805, foi sumariamente decepada. Também foram tosadas uma ária inteira de Rocco e a discussão entre Don Fernando e a turba sobre a punição de Pizarro, no final da ópera. O maravilhoso dueto “O namenlose Freude” foi cortado pela metade, e o início da ária “Ach! brich noch nicht!” de Leonore (que se tornaria “Abscheulicher!” na versão de 1814) foi abreviado. As apressadas machetadas surtiram efeito, e a nova “Leonore” foi um sucesso em sua estreia, ainda que a temporada viesse a ter apenas mais uma récita, por conta de brigas (para variar) entre o compositor turrão e a direção do teatro.
Para todos que se interessam por “Leonore”/”Fidelio”, indiscutivelmente a maior fonte de gastura e cabelos brancos para Beethoven entre todas suas obras, essa gravação da versão de 1806 é um pitéu. Reconstruída pelos musicólogos dos Arquivos Beethoven de Bonn, torna-se especialmente fascinante quando cotejada com a versão anterior e a final da ópera. Dessa forma, ela nos mostra como funcionava o estaleiro musical do renano, ao coletar os restos dum naufrágio de bilheterias e transfigurá-lo num razoável, ainda que tardio, sucesso. Ademais, ela se sustenta por si só, em especial pela notável Leonore de Pamela Coburn – uma das melhores Leonores entre todos “Fidelios” e “Leonores” que há no mercado fonográfico -, pelo ótimo coro e pelo competente acompanhamento sob a regência de Marc Soustrot, muito bem gravados por uma orquestra e num teatro conterrâneos do aniversariante de amanhã. O ponto fraco, como sói acontecer em gravações deste Singspiel, são os diálogos, aqui gravados por atores, cujas vozes têm timbres completamente diferentes dos cantores, e cujas intervenções são separadas dos números musicais por pausas que destroem qualquer fluência na trama. Minha sugestão é a habitual: pular os diálogos, indicados abaixo por aspas simples, e ouvir só a grande música do renano.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Leonore, oder Der Triumph der ehelichen Liebe (“Leonore, ou O Triunfo do Amor Conjugal”), ópera em dois atos (versão de 1806, Hess 110)
Libreto de Joseph Sonnleithner, baseado na peça “Leonore, ou L’Amour Conjugal” de Jean-Nicolas Bouilly, editado por Stephan von Breuning
DISCO 1
1 – Abertura em Dó maior, Op. 72b (“Leonore III”)
PRIMEIRO ATO
2 – ‘Fidelio kommt noch nicht zurück!’
3 – No. 1, ária: ‘O war ich schon mit dir vereint’
4 – ‘Wenn ich diese Thüre heute nicht schön’
5 – No. 2, dueto: ‘Jetzt, schatzchen, jetzt sind wir allein’
6 – ‘Es ist hein anderes Mittel übrig’
7 – No. 3, quarteto: ‘Mir ist so wunderbar’
8 – ‘Höre, Fidelio, wenn ich auch nicht weiß’
9 – No. 4, trio: ‘Gut, Sohnchen, gut’
10 – ‘Aber nun es Zeit, daß ich’
11 – No. 5: Marcha
12 – ‘Drey Schildwachen auf den Wall’
13 – No. 6, ária com coro: ‘Ha! Welch ein Augenblick!’
14 – ‘Ich darf keinen Augenblick säumen’
15 – No. 7, dueto: ‘Jetzt, Alter, hat es Eile!’
16 – ‘Ha! Rocco spricht noch immer mit dem Gouverneur!”
17 – No. 8, recitativo e ária: ‘Ach, brich noch nicht, du mattes Herz!…’
18 – ‘Sieh’ doch, da bist du schon wieder allein’
19 – No. 9 dueto: ‘Um in der Ehe froh zu leben’
20 – ‘Sieh’ lieber Fidelio, so anhänglich’
DISCO 2
1 – ‘Ha! so habe ich dich endlich ertappt’ – ‘Was habt ihr beyde dann wieder mit einander zu zanken?’
2 – No. 10, trio: ‘Ein Mann ist bald genommen’
3 – ‘Immer erregt es in mir wohlthätige Empfindung’
4 – No. 11, finale: ‘O welche Lust, in freier Luft’ – ‘Nun sprecht, wie ging’s?’ – ‘Wir müssen gleich zum Werke schreiten’ – ‘Auf euch nur will ich bauen’
SEGUNDO ATO
5 – No. 12: Introdução em Ré maior – Recitativo e ária: ‘Gott! Welch Dunkel hier!…’ – ‘In des Lebens Frühlingstagen’
6 – ‘Wie kalt ist es in diesen unterrdischen Gewölbe!’
7 – No. 13, dueto: ‘Nur hurtig Fort, nur frisch Gegraben’
8 – ‘Er erwacht!’
9 – No. 14, trio: ‘Euch werde Lohn in bessern Welten’
10 – ‘Alles ist bereit; ich gehe das Signal geben!’
11 – No. 15, quarteto: ‘Er sterbe! Doch er soll erst wissen’
12 – ‘Verlaß uns nicht! O hilf – ‘
13 – No. 16, recitativo e dueto: ‘Ich kann mich noch nicht fassen’ – ‘O namenlose Freude!’
14 – ‘O Leonore, sprich! durch welches Wunder’
15 – No. 17, finale: ‘Zur Rache! Zur Rache!’ – ‘Hinweg mit diesem Bösewicht’
Pamela Coburn, soprano (Leonore)
Christine Neithardt-Barbaux, soprano (Marzelline)
Mark Baker, tenor (Florestan)
Jean-Philippe Lafont, tenor (Pizarro)
Benedikt Kobel, tenor (Jaquino)
Eric Martin-Bonnet, baixo (Don Fernando)
Victor von Halem, baixo (Rocco)
Kölner Rundfunkchor
Orchester der Beethovenhalle Bonn
Marc Soustrot, regência
Leonore de 1805/Leonore de 1806
Vassily
O projeto de publicação da obra toda atravessou um terrível momento, e então o que já era insuportável se agravou ainda mais, de uma maneira absurda. Bom, é incrível podermos ter uma espécie de incremento ao colossal tributo.
Obrigado, Vassily!! Embora eu não seja apreciador de ópera, é Beethoven e o completista aqui (que completou muitas coisas que nem sabia que existiam graças a você!!) não iria desprezar essa raridade!! Abraços!!