.: interlúdio :. O Fino da Bossa : show Teatro Paramount, 1964 : noneto Oscar Castro Neves & outros

o-fino-da-bossa-1964 CAPA-LP-1989Dia desses, garimpeiros que encontraram no blog uma postagem antiga do colega Bluedog reabriram a conversa sobre a extraordinária música instrumental que tomou forma no Brasil na década de 1960 – o que nos motivou a revalidar aqui aquela postagem, do Quarteto Novo.

E a audição do Quarteto Novo me remeteu inevitavelmente a este outro disco, que eu já vinha planejando digitalizar e postar: ele contém um terço do que foi apresentado no histórico show de 25 de maio de 1964 no antigo Teatro Paramount em São Paulo (hoje Teatro Renault), inaugurando o nome “O Fino da Bossa”, que de 1965 a 67 seria aplicado ao programa comandado por Elis Regina e Jair Rodrigues, transmitido ao vivo desse mesmo teatro pela TV Record.

Como (quase) todo mundo sabe, a bossa nova emergiu entre 1957 e 59 (ao mesmo tempo que o rock’n’roll nos EUA, e este que vos escreve naquele faroeste que era então o Paraná) de todo o caldo de cultura dos anos 50, sobretudo por obra de um bruxo chamado João Gilberto, e foi imediatamente amplificada por uma juventude universitária antenada no que rolava “lá fora” mas suficientemente inteligente pra perceber a imensa riqueza e valor da herança cultural brasileira, e ater-se a ela como fundamento da sua criação, por multi-informada que fosse.

O famoso show no Carnegie Hall (NY, 21.11.1962) ficou como marco da explosão internacional da bossa, que se tornou um dos estilos mais ouvidos no mundo pelo resto da década. Complexados que somos, só depois disso a bossa ganhou um grande teatro no Brasil – ainda por meio de uma juventude universitária suficientemente abastada para abrir suas portas de cristal (Faculdade de Direito do Largo São Francisco – quem sabe um pouco sobre São Paulo entende).

O show aconteceu mês e meio depois do golpe de 64. O sucesso estrondoso fez a bossa ganhar espaço privilegiado na tevê pelos anos seguintes, virando trincheira de resistência nacionalista e de esquerda ao mesmo tempo em que tensionava sua base carioca-boa-vida com o influxo nordestino (vide faixa 8) – com surpreendente penetração e ressonância popular até nos interiores distantes (acreditem: eu vi), mesmo com a promoção paralela da Jovem Guarda como estratégia de despolitização da juventude – até que foi varrida da tevê por obra do golpe-dentro-do-golpe (1969), altura em que já tinha se transformado no campo multiforme e complexo que ganhou o rótulo MPB.

Foi no meio disso tudo que ainda floresceu uma espantosa safra de instrumentistas e arranjadores, como os que ouvimos no Quarteto Novo e ouviremos neste disco aqui, dominado por um sujeito chamado Oscar Castro Neves.

Pra mim essa riqueza é descoberta recente: em 1964 eu tinha só 7 anos; passei a adolescência pensando que bossa era música fútil de sala de espera – o que realmente chegou a ser na sua diluição internacional. Até hoje tendo a ver a bossa pura como uma espécie de piso Haydn-Mozart a partir dos qual se ergueria uma ousadia beethoveniana, no caso a da santíssima trindade Caetano-Chico-Mílton e outros deuses em torno… E talvez tenha sido justamente o encontro com os 10 minutos de timbres e texturas que este Oscar Castro Neves arranca com seu noneto de Berimbau, de Baden e Vinícius (faixa 9), o que me fez finalmente entender a declaração solene do próprio Caetano: “o Brasil ainda precisa merecer a Bossa Nova”.

Só que, estranhamente, pouco depois grande parte desses instrumentistas e arranjadores – como o Airto Moreira do Quarteto Novo, Eumir Deodato, Sérgio Mendes, o próprio Oscar Castro Neves – foram parar na Califórnia, onde vieram a fazer parte do clube dos arranjadores mais bem pagos dos EUA – mas aí sua produção musical logo deixou de ser convincente para ouvidos brasileiros. Suas tentativas de referência ao Brasil foram ficando constrangedoramente inautênticas.

O que no meu ver pode colocar em questão a tese do colega Bluedog naquela outra postagem: a de que o “jazz nordestino” poderia ter ganho o mundo: em certa medida ele até ganhou, mas… de repente pareço ouvir uma ressonância irônica e lúgubre da frase dos evangelhos: de que adianta ao homem ganhar o mundo e perder sua alma?

Enfim: o disco que vocês vão ouvir tem meninas que cantavam com charme mas com vozes pequenas e pouco seguras – como muitas que surgiram na última década, me fazendo pensar se isso pode ser característico de momentos de transição estilística… Tem Paulinho Nogueira mostrando impecavelmente que a geração bossa não necessariamente rejeitava a tradição… Tem Jorge Ben(jor) ainda lutando pra cantar com o R de língua, não carioca, que era exigido pelo rádio (!) até começo dos anos 60 (herança do estado Novo?). E tem Rosinha de Valença extraindo tamanha ginga e intensidade de seu violão, que eu tendo a considerar a faixa 5 o ponto alto do disco – mais ainda que os já mencionados dez minutos do Oscar.

E por falar no Oscar (Castro Neves), por mais que tenha procurado, não consegui encontrar os nomes dos integrantes do seu noneto. Será que algum dos leitores pode ajudar a matar a charada?

O FINO DA BOSSA
LP de 1964, contendo cerca de 1/3 da gravação ao vivo do show
“O Fino da Bossa”, promovido pelo Centro Acadêmico XI de Agosto (da faculdade de direito da USP) no Teatro Paramount de São Paulo, na noite de 25 de maio de 1964.

  • 01 Onde Está Você? (Luvercy Fiorini / Oscar Castro Neves)
    Alaíde Costa, voz; Oscar Castro Neves Noneto – 03’51
  • 02 Garota De Ipanema (Tom Jobim / Vinicius de Moraes)
    Zimbo Trio = Amilton Godoy, piano;
    Luiz Chaves, contrabaixo; Rubens Barsotti, bateria – 04’18
  • 03 Pot-pourri:
    – Gosto Que Me Enrosco (Sinhô = José Barbosa da Silva)
    – Agora É Cinza (Bide = Alcebíades Maia Barcellos /
    Marçal = Armando Vieira Marçal)
    – Duas Contas (Garoto = Aníbal Augusto Sardinha)
    – Bossa Na Praia (Geraldo Cunha / Pery Ribeiro)
    Paulinho Nogueira, violão – 04’07
  • 04 Tem Dó (Baden Powell / Vinicius de Moraes)
    Ana Lúcia, voz; Oscar Castro Neves Noneto – 02’57
  • 05 Consolação (Baden Powell / Vinicius de Moraes)
    Rosinha de Valença, violão; Oscar Castro Neves Noneto? – 06’26
  • 06 Chove Chuva (Jorge Ben / Benjor)
    Jorge Ben (Benjor) – 03’39
  • 07 Desafinado (Newton Mendonça / Tom Jobim)
    Wanda Sá, voz; Oscar Castro Neves Noneto – 03’38
  • 08 Maria Moita (Carlos Lyra / Vinicius de Moraes)
    Nara Leão – 01’59
  • 09 Berimbau (Baden Powell / Vinicius de Moraes)
    Oscar Castro Neves Noneto – 10’18

Lançamento original em vinil: 1964.
Digitalizado em 2016 por Ranulfus & Daniel the Prophet
a partir do relançamento de 1989 em vinil,
comemorativo de 30 anos de Bossa Nova

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Ranulfus

.: interlúdio :. Baden Powell (1937-2000) e Vinicius de Moraes (1913-1980): os Afro-Sambas em 5 versões integrais – revalidado em homenagem ao centenário do poeta

A primeira versão desta postagem se deu em 10/11/2010, durante os 40 dias que o monge Ranulfus viveu em Salvador, e incluía apenas a 2ª e 3ª das realizações dos Afro-Sambas apresentadas agora. Em 13/05/2011 veio a segunda versão, enriquecida com mais três realizações, inclusive a primeira de todas, cantada pelo próprio Vinicius de Moraes em 1966.

E o conjunto todo volta a cena hoje, 19/10/2013, centenário de nascimento de Vinicius de Moraes – o que, os senhores hão de convir, não é pouca razão, não é mesmo?

Por razões afetivas, o monge optou por reproduzir logo adiante o texto produzido em Salvador em 2010, antecedido apenas de umas rápidas observações sobre as três versões acrescentadas posteriormente,

… antes de mais nada, a primeira gravação, de 1966, com o próprio Vinicius de Moraes no vocal solo, e preciosos arranjos instrumentais de Guerra Peixe. Na nossa modesta opinião, Vinicius se sai surpreendentemente bem: ao contrário de Baden na versão de 1990, jamais desafina – mas para “compensar”, infelizmente o back vocal desafina sistematicamente, do começo ao fim. Pena, pois é uma versão encantadora! É bom notar que contém só 8 faixas; foi na versão de 1990 que Baden incluiu mais dois Afro-Sambas – creio que já integrantes da produção original, apenas não gravados na ocasião – mais uma impressionante introdução instrumental.

A quarta versão, lançada pela Deutsche Grammophon (!) em 2003, é a da baiana Virgínia Rodrigues, descoberta por Caetano Veloso nos anos 90. Dona de um belíssimo vozeirão negro de tessitura grave, às vezes acho que Virgínia compartilha um pouco com Mônica Salmaso aquela famosa questão da interpretação meio plana, igual demais (observação que tantas pedradas já me rendeu). Um pouco. Pois no fundo ela sabe muito mais do que é que está falando… Além disso, achei os belíssimos os arranjos instrumentais e de vozes, onde há. Detalhe: este CD atinge 12 faixas pela inclusão do samba Lapinha, que eu nunca havia visto antes relacionado aos Afro-Sambas – mas, enfim, já o seu título não é Afro-Sambas e sim “Mares Profundos”.

Já a quinta, de 2008, parte para uma formação supostamente mais “clássica”: o coro a vozes. O pessoal do Coral UNIFESP (da Universidade Federal de São Paulo) convidou nada menos que sete arranjadores, alguns que chegaram a resultados belíssimos, outros bons porém mais dentro do já convencional em termos de coralização da MPB. O trabalho é perfeito em termos de afinação, precisão… mas, engraçado, não sinto que essa música ganhe mais “classicidade” por isso. Para ser honesto, sinto que os Afro-Sambas são mais grande música que nunca justo nas duas gravações iniciais, com a participação de Baden, apesar de todos os desafinos. Ainda assim, este CD do Coral UNIFESP é um trabalho que ouço com frequência e prazer, e não deixo de recomendar que vocês baixem e ouçam!

E AGORA O TEXTO ORIGINAL DA POSTAGEM:
De repente o monge Ranulfus se encontra na muy barroca & ainda mais africana cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos. Querendo fazer uma postagem que de um modo ou de outro tivesse relação com esse fato, lembrou imediatamente dos Afro Sambas – só que… paradoxo: essas peças que fazem inevitavelmente pensar em Bahia foram compostas por um fluminense (BADEN POWELL de Aquino, 1937-2000) e um carioca (Marcus VINICIUS DE Mello MORAES, 1913-1980).

E daí? Tem a ver, sim, com o universo imaginário e estético afro-brasileiro que tem em Salvador sua capital – e sobretudo é música da grande, não tenho dúvida que da mais importante já composta no Brasil. Não segue os procedimentos construtivos do ‘clássico’ de origem europeia? Não parei para analisar e, sinceramente, pouco se me dá: seja como for, não vejo nem ouço razões para não entendê-los como um ciclo de lieder, tanto quanto os de, digamos, Schubert ou Brahms.

Os lieder em questão foram lançados em disco em 1966, com o tremendo violonista que era Baden, e na voz o poeta Vinicius, que definitivamente não era cantor. Não sei se é verdade ou folclore, mas em seus livros de história da bossa nova o jornalista Ruy Castro sacramenta a história de que em 1962 os dois se haveriam trancado em um apartamento por um três meses com várias caixas de cachaça, e saído de lá com 25 obras primas, mas cada um para uma diferente clínica de desintoxicação…

Embora várias das peças tenham se tornado standards em vozes como a de Elis Regina, o conceito do ciclo ficou esquecido por muito tempo. Três décadas depois (1995) o violonista Paulo Belinatti se juntou à recém-surgida cantora Mônica Salmaso, e fizeram a gravação de que muitos podem dizer: “essa é clássica”: virtuosismo instrumental constante, voz cristalina pairando límpida sobre isso o tempo todo… mas… sim, é uma gravação notável, porém… honestamente, não sinto que tenha alma. A voz límpida de Salmaso me parece atravessar tudo com a indiferença de uma beldade gélida e morta. Tudo igual, igual, igual.

Por outro lado o próprio Baden – que viveu a maior parte da vida na Europa, inquestionado como um mestre maior do seu instrumento – já havia feito uma segunda gravação integral em 1990, com o Quarteto em Cy e mais alguns instrumentistas. Esquisitíssima por outras razões: Baden também não era cantor. Tem momentos em que sustenta uma nota longa a quase meio tom de distância de onde deveria estar… e, no entanto, é artista até o fundo dos ossos e com essa mesma nota desafinada me faz correr lágrimas contínuas – não porque esteja doendo no ouvido, mas de beleza pura mesmo. Estado de graça. Vá-se entender!!

Em resumo: a gravação Belinatti-Salmaso é tecnicamente a melhor, mas sinto a do próprio Baden como musicalmente muito superior – seja lá o que queira dizer esse “musicalmente”. Mas talvez nem todos concordem – e por isso mesmo vão aí as duas versões. Bom proveito!

Baden Powell e Vinicius de Moraes: OS AFRO-SAMBAS – em 5 versões integrais
As listagens de faixas e fichas técnicas se encontram em suas respectivas pastas.

1. Versão original com Vinicius e Baden (1966)
com arranjos corais e instrumentais e regência de Guerra Peixe
2. Versão de Baden Powell (1990)
com Quarteto em Cy, Paulo Guimarães, Ernesto Gonçalves e outros (1990)
3. Versão de Paulo Belinatti e Mônica Salmaso (1995)
4. Versão de Virgínia Rodrigues (2003) (“Mares Profundos”)
5. Versão do Coral UNIFESP (2008)

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