.: interlúdio :. Carla Bley – the Lost Chords find Paolo Fresu – ao vivo em Köln, 2010

Carla Bley (1936-2023) foi pianista, compositora, arranjadora, além de fases mais ligadas ao fusion, quando tocou órgão hammond, piano elétrico e mais. Uma das poucas instrumentistas mulheres a liderar grupos de jazz – na verdade só consigo lembrar de uma outra, Alice Coltrane, e o fato de ambas terem precisado também do sobrenome dos ex-maridos para se estabelecerem comercialmente diz um pouco sobre a indústria musical… Aliás, um detalhe curioso de sua biografia: tendo estudado piano desde pequena, ela se enturmou junto a outros músicos em Nova York começando em um cargo de pouco prestígio, o de vendedora de cigarros na mítica casa de shows Birdland.

O jornalista alemão Wolfgang Sandner resumiu as qualidades de Carla Bley como: “uma grande estimuladora, musa, criadora de ideias e também alguém que recusava o virtuosismo, o perfeccionismo, convencionalismo e falso pathos”.

Vários dos seus discos já foram postados aqui e comentados por PQPBach (aqui eles todos), então não vou enrolar, apenas observar que também vale a pena conhecer mais sobre o trompetista italiano Paolo Fresu que, felizmente, segue vivo!

Ah sim, já ia esquecendo, neste show de 2010 em Colônia, Alemanha, as composições tocadas são todas de Carla Bley: quatro delas foram lançadas em um disco de 2007 (que pode ser conferido no link acima) e aqui aparecem em versões mais longas, com mais improvisos. O outro tema, Vashkar, é bem mais antigo, tendo sido gravado por Paul Bley na década de 1960 e por Jaco Pastorius na de 70.

Carla Bley – the Lost Chords find Paolo Fresu – Live – MusikTriennale Köln, 2010
1. Vashkar (Carla Bley) – 10:02
2. Radio Announcement – 01:31
3. Two Banana (Carla Bley) – 04:24
4. Three Banana (Carla Bley) – 09:15
5. Four (Carla Bley) – 09:49
6. Five Banana/One Banana more (Carla Bley) – 13:24

Carla Bley – piano, organ, arranger
Paolo Fresu – trumpet
Andy Sheppard – tenor sax
Steve Swallow – bass
Billy Drummond – drums
Stadtgarten, Köln, Germany – 26/4/2010

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A Deusa Carla Bley

Pleyel

Os sons delicados, frágeis, irreais e oníricos de Kaija Saariaho (1952-2023)

A compositora Kaija Saariaho morreu em sua própria cama na manhã de 2 de junho de 2023. O comunicado da família prossegue: os tumores cerebrais não afetaram suas capacidades cognitivas, exceto nos últimos momentos da doença. Eles atrapalhavam, porém, as capacidades motoras, causando dificuldades para andar e diversas quedas e, com isso, ossos quebrados. Suas aparições de cadeira de rodas geravam perguntas das quais ela desviava: seguindo conselhos de seu médico, ela manteve a doença como assunto privado, de família, para poder focar no seu trabalho sem ser vista como uma incapaz.

Essa postura discreta – e aqui falo eu, do Brasil, sem nunca tê-la visto de perto nem mesmo de longe – apenas deu seguimento ao estilo de Saariaho, pelo menos ao julgarmos por essa fala típica de tímidos famosos (famosos tímidos?) como Luís Fernando Verissimo: quando ela era jovem e estudava órgão antes de se dedicar inteiramente à composição,

Eu me sentia bem confortável [tocando órgão], porque eu podia tocar e ainda assim ficar escondida da plateia.

Saariaho no IRCAM, 1987

Apesar dessa personalidade tímida, discreta, ela queria compor e ser ouvida: para isso, saiu da sua Finlândia natal, onde, segundo ela, na época ninguém queria saber de música nova. Estranha mudança: hoje, é um dos países mais receptivos para a música clássica contemporânea. Mas estamos falando de mais de 40 anos atrás: ela se mudou para Paris, se casou com um francês e foi trabalhar no IRCAM (Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique; em português, Instituto de Pesquisa e Coordenação Acústica/Música).

Em 2005 Saariaho escreveu, se recordando: “Na década de 1980 eu me interessava pela questão de saber como podemos, ao amplificar ou modificar eletronicamente sons delicados e frágeis, criar uma música irreal e onírica. Como as pequenas coisas às quais dificilmente prestaríamos qualquer atenção podem subitamente tornar-se imensas e ocupar o espaço sonoro.”

Nessa preocupação mais com timbres do que com melodias e mais com o preenchimento do “espaço sonoro” do que com uma narrativa a exemplo da forma-sonata, ela se colocava como parte de uma tradição que incluía Debussy, Dutilleux e muitos de seus contemporâneos. Nos anos 90 ela compôs seu primeiro concerto para um instrumento solista com orquestra e sem artifícios eletrônicos: dedicado ao violinista Gidon Kremer, seria o primeiro de muitas obras do tipo. Concerto, para Saariaho, não é necessariamente uma obra em três movimentos no esquema típico da música clássica desde os tempos de Vivaldi… Na mesma entrevista em que admitia se sentir confortável escondida do público, ela dizia que a “ideia de pegar uma forma pré-definida e dizer ‘ok, vamos escrever uma sonata ou compor algo de acordo com uma forma clássica’ – simplesmente não é possível para a minha música.”

O concerto então, não é uma forma pré-definida e nem uma demonstração de virtuosismo de um instrumentista-estrela extrovertido: é sempre, para Saariaho, a oportunidade de confrontar os timbres da orquestra com os do solista, e ela dizia também que aprendia muito conversando com os solistas para quem os concertos eram dedicados. Vários concertos vieram: depois do violino de Kremer (que aliás foi padrinho de muita música nova, incluindo também o 1º concerto de Gubaidulina, e contribuiu para o reconhecimento mundial de ambas as compositoras) em 1994, vieram obras orquestrais tendo como solista a flauta (2001), o violoncelo (2006), o clarinete (2010), o órgão (2013), a harpa (2015) e várias peças vocais com orquestra. Sua última obra, composta quando doente, foi um concerto para trompete, a ser estreado em agosto próximo.

Teremos mais Saariaho aqui no blog ainda este mês. Trago hoje apenas dois bombons, duas gravações de rádio, uma em Paris e uma em Londres, em duas das principais salas de concerto da Europa, pois Saariaho, felizmente, foi reconhecida em vida.

A Dama e o Unicórnio – Flandres, circa 1500 – clique para aumentar

Em “D’om le vrai sens” (2010), Saariaho se inspira nas seis tapeçarias da série “A Dama e o Unicórnio”, feitas por volta de 1500, com cinco delas representando os cinco sentidos e a última com a inscrição “à mon seul désir”, que suscitou várias interpretações sobre se este sexto sentido seria o desejo, o amor ou algo do tipo. Na peça, o clarinetista anda pelo público e pelo meio da orquestra, como aqueles atores de teatro contemporâneo que vão conversar com a plateia, ao invés de ficar brilhando no alto do palco.

Em “Vers toi qui es si loin” (2018), na verdade uma adaptação da ária final de sua primeira ópera estreada em 2000, Saariaho novamente escreveu para violino e orquestra anos após o concerto de 1994. É uma curta peça que acaba de modo abrupto como os sonhos. Para nos aproximarmos do mundo dessa compositora que buscava a delicadeza e a imprevisibilidade da “Gramática dos sonhos” (nome de uma peça de 1988 para duas cantoras, harpa, viola e cello), entendo que os concertos para solista e orquestra oferecem uma certa moldura em que o ouvinte já conhece um mínimo do que vai encontrar, ao contrário das obras orquestrais sem solista e as da fase mais eletrônica de Saariaho, essas sim verdadeiramente imprevisíveis e podendo gerar uma certa confusão nos recém-chegados.

Kaija Saariaho (1952-2023):
D’om le vrai sens (2010) (34:00)

Kari Kriikku, clarinet
Orch. Philh. de Radio France, Esa-Pekka Salonen
Live, 19 feb 2011
Théâtre du Châtelet, Paris

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E-P. Salonen e K. Saariaho, 2005

Kaija Saariaho (1952-2023):
Vers toi qui es si loin (2018) (6:22)

Maria Włoszczowska, violin
Royal Northern Sinfonia, Dinis Sousa, conductor
Live, August 14, 2022
Royal Albert Hall, London
BBC Proms 2022, Prom 37

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Pleyel

In memoriam Ranulfus (1957-2023)

Nós – e o mundo – perdemos Ranulfus no último dia 9, e, após reverente silêncio, retomamos as atividades do PQP Bach.

Nossas homenagens, claro, continuarão – e a caixa de comentários, que tantas e tão significativas mensagens recebeu nos últimos dias, pelas quais muito agradecemos e que encaminhamos aos que lhe eram mais próximos, seguirá aberta às manifestações de seus colegas e leitores-ouvintes.

.: interlúdio :. Discografia completa de Alice Coltrane (1937-2007) com Pharoah Sanders (1940-2022)

O saxofonista Pharoah Sanders caminhou para uma outra dimensão ontem, na Califórnia, aos 81 anos, cercado de amigos e familiares. Além uma longa carreira solo dedicada ao jazz, ele também colaborou com muita gente, desde o último grupo de John Coltrane (de 1965 a 67) até um álbum que muitos consideraram o melhor de música instrumental de 2021, com a London Symphony Orchestra e o DJ/instrumentista/compositor Floating Points, álbum que você encontra no link abaixo ou no Spotify, Tidal e similares.

Nosso foco aqui hoje, porém, se volta para uma grande, imensa dupla de instrumentistas, aquela formada por Alice Coltrane e Pharoah Sanders, dois seres humanos que parecem ter canalizado as mesmas energias musicais enraizadas em referências pan-africanas pinçadas com muito ecletismo – com espaço para antigo Egito, yoga, hinduismo… – e sobretudo preocupadas com um tipo de expressão musical que desafia os rótulos, talvez porque o tipo de união mística que eles buscavam vai além das divisões nossas de cada dia… aliás, Expression (1967) é o nome do último álbum gravado por John Coltrane com seu último quinteto, que incluía Alice e Pharoah. Após o sucesso do álbum Karma (1969) com a longa e mística gravação The Creator has a master plan, o nome de Sanders aparece na capa do álbum Journey In Satchidananda que já postamos aqui:

https://pqpbach.ars.blog.br/2022/03/26/interludio-alice-coltrane-1937-2007-journey-in-satchidananda-1970/

Mas, mesmo sem o nome na capa, Pharoah tem uma participação importantíssima também em dois outros álbuns de estúdio de Alice Coltrane, além de uma gravação de rádio ao vivo no Carnegie Hall. Sua tendência a explorar o limite dos agudos do sax (tenor?) permite identificá-lo facilmente quando ele toca com outros saxofonistas como Joe Henderson e Archie Shepp. Na biografia de Sun Ra – pioneiro do afrofuturismo, corrente que aliás se aplicaria a Sanders se este fosse do tipo que se encaixa em qualquer rótulo – consta que foi aquele pianista que convenceu o jovem Farrell Sanders a usar o nome Pharoah. E mais não digo, porque o importante mesmo é ouvir essa música que vai muito além dos conceitos e definições. Deixo apenas as palavras de mais algumas pessoas que também foram profundamente impactadas pelo respirar tão especial de Pharoah Sanders:

“What I like about him is the strength of his playing, the conviction with which he plays. He has will and spirit, and those are the qualities I like most in a man.” – John Coltrane
(“O que eu gosto nele é a força, a convicção com que ele toca…” – John Coltrane)

“Pharoah Sanders, Whose Saxophone Was a Force of Nature, Dies at 81” – The New York Times

“Even at his most beatific, Pharoah Sanders brings a sense of holy destruction to his playing. The Creator has a master plan, but the journey isn’t always gentle.” – Jason P. Woodbury
(“Mesmo no seu momento mais espiritual, Pharoah Sanders traz um elemento de destruição sagrada quando toca. ‘The Creator has a master plan’, mas a jornada não é sempre tranquila.” – Jason P. Woodbury)

“Pharoah is more abstract, more transcendental.” – Alice Coltrane
(“Pharoah é mais abstrato, mais transcendental.” – Alice Coltrane)

“Em suas obras com Alice Coltrane e Phyllis Hyman, ele tocou com mulheres negras por décadas. Como um par e colaborador. Não são todos que veem as mãos de Alice Coltrane no desenvolvimento do free jazz, jazz cósmico/espiritual, fusion… ela era um par perfeito para os ouvidos de Pharoah e John. Eles ouviam Alice.” – Lynnée Denise (@lynneedenise)

Alice Coltrane – A Monastic Trio (1968, 1998 remaster)
1. Lord, Help Me to Be
2. The Sun
3. Ohnedaruth
4. Gospel Trane
5. I Want to See You
6. Lovely Sky Boat
7. Oceanic Beloved
8. Atomic Peace
9. Altruvista

Tracks 1-3: Ben Riley — drums, Jimmy Garrison — bass, Pharoah Sanders — tenor saxophone, bass clarinet, flute, Alice Coltrane — piano
Tracks 4-9: Rashied Ali — drums, Jimmy Garrison — bass, Alice Coltrane — piano, harp
Recorded at the Coltrane home studio, Dix Hills, New York, 1968

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Alice Coltrane – Ptah – The El Daoud (1970)
1. Ptah, the El Daoud
2. Turiya and Ramakrishna
3. Blue Nile
4. Mantra

Alice Coltrane — harp (track 3), piano
Pharoah Sanders — tenor sax (right channel), alto flute (track 3), bells
Joe Henderson — tenor sax (left channel), alto flute (track 3)
Ron Carter — bass
Ben Riley — drums
Recorded at the Coltrane home studio in Dix Hills, New York on 26 January 1970

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Pharoah Sanders e Joe Henderson

Alice Coltrane – Carnegie Hall ’71
1. Africa (28:35)

Live at the Carnegie Hall, New York, February 21, 1971
FM radio soundboard

Alice Coltrane – piano, harp
Pharoah Sanders – ts, ss, fl, perc, fife
Archie Shepp – ts, ss, perc
Jimmy Garrison – b
Cecil McBee – b
Clifford Jarvis – d
Ed Blackwell – d
Tulsi – tamboura
Kumar Kramer – harmonium

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Pharoah Sanders, Frankfurt, 2013

Pleyel

Lars Vogt (1970-2022)

Uma triste e inesperada notícia: o falecimento do pianista Lars Vogt, aos 51 anos, diagnosticado com um câncer em 2021. Há alguns anos PQP Bach tinha dito sobre ele: “O pianista Lars Vogt tem o rosto desenhado a facão, mas tem a alma e emite sons de um anjo. Ao menos quando senta no piano e usa os dedos.”

Já Vassily havia listado sua gravação das sonatas para violino e piano de Schumann, com Christian Tetzlaff, como uma das melhores gravações junto com a de Argerich/Kremer. E René elogiou as gravações dos concertos 1 e 2 de Beethoven com Simon Rattle, lá em 1994 no início da carreira de Vogt: um jovem pianista com um jovem maestro tocando os concertos do jovem Beethoven.

Avicenna foi ouvir os anjinhos in loco…

É muito difícil fazer uma nota como esta…
Hoje mais um membro deste irretocável blog infelizmente nos deixou. O Mestre Avicenna já tinha uma saúde bastante debilitada e não vinha postando há uns anos por conta até mesmo da própria dificuldade em fazê-lo.
Achava o Mestre que escrevia mal, e preferia transcrever o texto dos álbuns que postava. Isso fazia aos usuários-ouvintes do PQPBach imaginarem que era sério. Ah! Pura fachada! Eu (Bisnaga) o conheci pessoalmente em São Paulo e posso dizer que era uma das pessoas mais divertidas, irradiantes e inabaláveis com quem topei na minha vida. Não havia tempo ruim para ele.
Era absolutamente apaixonado pela Música Colonial e Imperial Brasileira – até criou essa categoria aqui – e postou quase tudo dessa linha, que o PQPBach hoje orgulhosamente ostenta como o maior acervo de música colonial do Brasil.  Tenho a total certeza que muitas pesquisas sobre esse tema nasceram aqui no blog e, para mim, o Mestre Avis tem um pezinho em todas elas.

Salve, véio! Vai fazer falta, viu…

Bisnaga e os amigos da equipe do PQPBach

.: interlúdio :. Elza Soares pertinho do céu

Em uma entrevista ao Pasquim em 1969, Tom Jobim teve de dar notas a alguns artistas. É claro que Millôr, Ziraldo e cia. queriam gerar intriga. Ele respondeu: Nara Leão, 10. Elis Regina, 10. Elza Soares, 9. Moreira da Silva, 10. Jorge Ben, 10. Villa-Lobos, 1500. Dercy Gonçalves, 7. Nelson Rodrigues, não digo.

Elza Soares foi muita coisa, vocês sabem e lembrarão esses dias. Mas ela não era bossa-nova. Não era um doce balanço a caminho do mar. Talvez por isso a nota 9 acima. Cala a boca, Jobim!

Nos despedimos dessa cantora nada bossa-nova com um medley de Opinião (Zé Keti) com O Morro não tem vez (Tom Jobim/Vinicius)

Homenagem a Nelson Freire (1944-2021)

O mineiro de Boa Esperança, que foi muito jovem estudar piano no Rio de Janeiro e depois em Viena, nos deixou hoje aos 77 anos. Uma grande perda para a música brasileira e mundial.

Hoje não teremos postagens de Nelson Freire. Já foram muitas as homenagens em vida. Apenas remetemos a três janelas para o vasto mundo online lá fora, janelas que têm em comum a figura de Villa-Lobos, de quem Nelson foi um dos maiores intérpretes. O primeiro vídeo, de 1965 e postado pelo incansável Instituto Piano Brasileiro, mostra Nelson muito jovem na Alemanha tocando várias miniaturas para piano de Debussy, Scriabin e outros, incluindo a Dança (Miudinho), 4º mov. das Bachianas brasileiras No.4.

Nelson aprendeu com grandes mestres como Novaes, Rubinstein e Horowitz a arte de montar recitais de piano com pequenas peças que vão se encaixando, arte na qual o bis é essencial. Aliás, o seu disco mais recente é todo dedicado aos bises (Encores, pela Decca em 2019).

Passando para os anos 1970, um blog europeu publicou recentemente o maravilhoso álbum que Nelson gravou, também na Alemanha, pela Telefunken/Teldec. O repertório é só Villa-Lobos:

https://susato.blogspot.com/2020/11/heitor-villa-lobos-klavierwerke-nelson.html

E o segundo vídeo mostra Nelson no auge da fama, tocando o Momoprecoce, composição carnavalesca de 1929 na qual Villa-Lobos utiliza percussões que nós brasileiros conhecemos bem: chocalhos, reco-reco, tamborim… Que essa homenagem seja uma celebração alegre, se é que é possível.

Como tocava…

Bernard Haitink (1929-2021), o maestro que não se comportava como uma estrela

Bernard Haitink, o famoso maestro holandês, morreu em paz em casa com sua família, aos 92 anos.

Essa notícia discreta dada ontem por seu agente coroou uma vida discreta, sempre marcada por mais preocupação com a música do que com manchetes de jornal.

Como relata o obituário do New York Times, ele deixava a música falar por si própria. Em 1967, a revista Time destacou que “em uma profissão onde a extravagância e a arrogância são frequentemente as marcas do talento, o tímido Haitink é uma anomalia.” Um artigo do New York Times em 1976 trazia a manchete “Por que Bernard Haitink não age como um superstar?”

Ao contrário de maestros famosos por seus ataques de pelanca, Haitink dizia que sua função era dar confiança aos músicos, mesmo quando as coisas não estavam funcionando perfeitamente. Com essa atitude no-nonsense, ele ajudou a forjar entre 1961 e 88 o famoso som da Orquestra do Concertgebouw de Amsterdam. Depois, regeu muito em Londres, Munique, Dresden, Viena, etc. Não aderiu à corrente dos instrumentos antigos, mas parece ter aprendido muito – como Abbado – com os maestros historicamente informados.

Aqui no PQPBach, Haitink já foi muito homenageado em vida. Recentemente, tivemos sua integral de Beethoven (LSO, 2005-2006) e de Shostakovich (Concertgebouw, LPO, 1977-1983).

Também não dá pra não mencionar as suas gravações de Brahms, de Bruckner (aqui e aqui) e de Mahler (aqui e aqui no blog do amigo Carlinus). Provavelmente virão outras gravações desses últimos no PQPBach em breve. Fiquem de olho.

Uma Nota Triste

Como comunicar um fato desses? Nosso querido amigo Ammiratore faleceu hoje, em consequência de complicações advindas do Covid-19. Esse foi sempre um espaço bem-humorado, mas hoje estamos absolutamente tristes, chocados e indignados. Era um jovem amigo, um culto e tranquilo amante da ópera que deixa esposa e dois filhos. Estamos sem palavras.

Para os próximos dias, temos ainda três postagens que foram agendadas por ele. Todas de óperas de Verdi. Vai ser difícil.

Assinado por todos os colaboradores do PQPBach.

 

.: interlúdio :. McCoy Tyner with Stanley Clarke and Al Foster

O ano está acabando e quem não perdeu uma tia, um professor, uma cunhada ou um irmão querido, de sangue ou não, em 2020? Para homenagear tantos idosos e idosas que se foram, eu dedico uma segunda postagem ao pianista McCoy Tyner (11 de dezembro de 1938 – 6 de março de 2020).

McCoy Tyner ganhou três prêmios Grammy de melhor álbum de jazz instrumental, em 1988, 1995 e 2004, em cada um desses álbuns ele estava acompanhado de grandes músicos, como o trompetista Terence Blanchard e os saxofonistas Pharoah Sanders e Michael Brecker. Mas na opinião do aspirante a pianista que escreve essas linhas, os mais importantes álbuns de McCoy Tyner como líder são na formação de trios. Sem instrumentos de sopro, a imensa ausência de John Coltrane não pesa tanto e podemos ouvir com mais atenção um dos pianistas mais originais do último século.

Na década de 1970, McCoy gravou alguns excelentes álbuns no formato de trio, incluindo um grande disco ao vivo no Japão com o onipresente baixista Ron Carter (parceiro de Miles Davis, Chet Baker, Wayne Shorter, aliás díficil é citar alguém que não tocou com ele!) e o quase onipresente baterista Tony Williams. Há também um, chamado Supertrios por incluir duas duplas diferentes de baixistas/bateristas (Ron e Tony estão lá, é claro), com uma bela interpretação de Wave (Tom Jobim) e de outros standards. Esses dois álbuns podem ser encontrados na homenagem que McCoy recebeu logo após sua morte no blog jazz-rock-fusion-guitar, que assim como o PQP Bach, existe desde os tempos da internet discada, com algumas mudanças de endereço porque ninguém é de ferro.

No ano 2000, já com mais de 60 anos, McCoy lançou um CD em trio com dois grandes nomes um pouco mais jovens: Stanley Clarke se revezando entre o baixo acústico e o elétrico, Al Foster na bateria. Eles começam com um tema em homanegam a Coltrane (Trane-like), com os acordes um tanto percussivos de McCoy Tyner fazendo progressões harmônicas mais ou menos no estilo dos álbuns My Favorite Things e Olé Coltrane. Mas após essa homenagem o trio percorre muitos outros caminhos: um flerte animado com a música latino-americana (Carriba), momentos em que o baixo de Stanley Clarke flerta com o fusion e o funk (I want to tell you ‘bout that) e momentos mais calmos, em que o pianista, mais do que na década de 1960, se sente à vontade para improvisar em um clima mais intimista, suave, de quem não precisa mais provar nada pra ninguém e pode calmamente valorizar o swing das melodias do standard Never let me go e da autoral Memories.

Também em 2000, McCoy Tyner explicou em uma entrevista que Stanley e Al já tinham tocado com ele algumas vezes desde os anos 70, e que cada vez que se encontravam novamente a conexão era muito forte. Ele prossegue: “gosto de fornecer espaço suficiente para que a pessoa se sinta confortável para fazer o que faz. Eu não gosto de algemar pessoas. Mas, ao mesmo tempo, ele precisa entender que, quando está tocando comigo, ele também precisa ouvir. Ouvir e responder são coisas muito importantes.”

Sobre a presença do jazz no dia a dia dos EUA, ele compara:

Minha mãe sabia quem eram Billie Holiday, Count Basie e Duke Ellington. Ela sabia quem eles eram porque faziam parte da comunidade e tínhamos orgulho dessas pessoas. Esse tipo de acessibilidade não parece mais existir nesse nível – o nível em que a dona de casa, encanador ou carpinteiro comum conhece dessa música. Lembro de entrar em um ônibus em Chicago uma vez e o motorista do ônibus disse “Ah, você toca com Coltrane! Vocês estão por aqui? Eu vou assistir!” Era o motorista do ônibus! A música era acessível. Tínhamos nosso quinhão de tempo de rádio. Mas agora está tão inundado de coisas que não estão no mesmo nível de qualidade, mas vendem. Isso dá uma ideia geral do estado de espírito do público. Eu não estou descartando isso, a música comercial tem seu lugar. Naquela época havia gospel, jazz, blues, rock e pop. O jazz não era promovido como as estrelas do pop, mas o público tinha mais acesso do que hoje.

McCoy Tyner with Stanley Clarke and Al Foster (2000)
1. Trane-Like – 9:12
2. Once Upon a Time – 5:31
3. Never Let Me Go (Evans, Livingston) – 4:19
4. I Want to Tell You ‘Bout That – 5:19
5. Will You Still Be Mine? (Adair, Dennis) – 6:46
6. Goin’ ‘Way Blues – 6:31
7. In the Tradition Of (Clarke) – 7:38
8. The Night has a Thousand Eyes” (Bernier, Brainin) – 4:53
9. Carriba – 5:41
10. Memories – 3:43
11. I Want to Tell You ‘Bout That [alternate take] – 5:57
All compositions by McCoy Tyner except as indicated

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“This lovely album seems to have a little bit of everything – ballads and blues, standards and originals, subtle swing and funky dance rhythms.” – Donald Elfman

McCoy Tyner em 2005
(Foto: Joe Mabel, wikipedia)

Pleyel

Quadro Cervantes: Música Medieval, Renascentista & Barroca

Música Medieval, Renascentista & Barroca

Quadro Cervantes: Música Medieval, Renascentista & Barroca

1979

O Conjunto “Quadro Cervantes” possui um verbete na Wikipedia contando muito brevemente sua história.

Trilha extraída da internet e aqui postada, a pedido do Matheus. (Algumas faixas não estão boas.)

Esta postagem é dedicada a Helder Parente, membro do Quadro Cervantes, que mudou para o céu em 2017. Conheça mais sobre Helder Parente neste artigo da revista Concerto.

Vai Helder, tocar, cantar e dançar com os anjos, enquanto aqui choramos a sua perda. (Rosana Lanzelotte)

Quadro Cervantes
Música Medieval, Renascentista & Barroca – 1979

Anônimo séc. XVIII
01. Cuando El Rey Nimrod
Alfonso X, El Sabio (1221-1284)
02. Maravillosos Et Piadosos
03. Des Oge Mais
John Dowland (Inglaterra, 1563 – 1626)
04. Fine Knacks For Ladies
Henry Purcell (Inglaterra, 1659-1695)
05. Music For A While
Georg Philipp Telemann (Alemanha, 1681-1767)
06. Triosonata Em Fá Maior a. Vivace
07. Triosonata Em Fá Maior b. Mesto
08. Triosonata Em Fá Maior c. Allegro
Johann Sebastian Bach (Alemanha, 1685-1750)
09. Schafe Können Sicher Weiden
John Bartlet (Inglaterra, ca. 1580 – ca. 1620)
10. Whither Runneth, My Sweetheart
François Couperin (França, 1668 – 1733)
11. Les Barricades Mystérieuses
Anônimo
12. Corten Espadas Afiladas
13. Mariam Matrem
Jean Hotteterre (França, 1677 – 1720)
14. Les Noces Champétres a. Premiere Marche
15. Les Noces Champétres b. Appel De Rassemblement
16. Les Noces Champétres c. Sarabande
17. Les Noces Champétres d. Air I & II
18. Les Noces Champétres e. Marche Du Retour

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MP3 | 256 kbps | 74 MB

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Boa audição.

Avicenna

.: interlúdio :. Milton Nascimento – Milagre dos Peixes Ao Vivo (1974)

Esse post é uma homenagem à vereadora Marielle Franco, que lutou pelos Direitos Humanos e foi silenciada ontem.

(Diálogo com um estrangeiro)
– Não sei se você sabe mas por muitos anos o Brasil teve censura prévia para proibir canções consideradas subversivas.
– Como em vários outros países…
– Cortavam qualquer coisa que, na lógica dos militares, fosse contra a moral e os bons costumes.
– Na França isso aconteceu no governo do marechal Pétain, que colaborou com Hitler. Censuraram até o lema “liberdade, igualdade e fraternidade” e trocaram por “trabalho, família e pátria”.
– Por exemplo nessa música do Milton, Hoje é dia de El-Rey, as palavras subversivas tiveram que ser substituídas por laralara e ahê-lala. Ouve só.
-Essa era bem pesada hein!
– De uma letra gigante sobrou apenas “Filho meu…”
– Família, isso pode. Trabalho, família e pátria.
– É claro que era uma forma de dizer nas entrelinhas: Fui silenciado. Tinha uma letra aqui, que a censura mandou cortar.
– Mas por que entregavam letras assim se sabiam que não ia passar pela censura?
– Porque às vezes passava. Como explicar que Milagre dos Peixes tenha sido aprovada com versos como “eu apenas sou um a mais, um a mais / a falar dessa dor, a nossa dor”, isso na época em que os ditadores falavam em ‘milagre econômico’ industrial?
– Não perceberam. Nunca vi um censor ganhar o prêmio Nobel…
– O poeta Ferreira Gullar costumava contar sobre o dia em que militares invadiram sua casa e lá encontraram um livro intitulado Do cubismo à arte neoconcreta. Os militares leram a palavra cubismo e apreenderam o livro achando que tinha relação com Cuba.
– É como diz aquela antiga frase, a inteligência militar está para a inteligência como a música militar está para a música…
– E logo depois dessa canção censurada, Milton canta uma música de Vinícius de Moraes e Carlos Lyra, de belíssima letra, e o recado fica dado: a minha poesia você não rouba não.

Milton Nascimento – Milagre dos Peixes Ao Vivo (1974)
1 – A Matança do Porco
2 – Bodas
3 – Milagre dos Peixes
4 – Outubro
5 – Sacramento
6 – Nada Será Como Antes
7 – Hoje é Dia de El Rey
8 – Sabe Você
9 – Viola Violar
10 – Cais
11 – Clube da Esquina
12 – Tema dos Deuses
13 – A Última Sessão de Música
14 – San Vicente
15 – Chove Lá Fora
16 – Pablo

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Pleyel

Muito obrigado, Nikolaus Harnoncourt

Muito obrigado, Nikolaus Harnoncourt

maestroharnoncourtRetirado do blog de Milton Ribeiro

Poucas vezes eu fico triste quando um sujeito muito produtivo morre aos 86 anos. Teve longa vida, fez muito, foi reconhecido, morreu. Foi assim com Eco. Mas lamentei muitíssimo a morte de Nikolaus Harnoncourt (1929 – 2016) no último sábado. Conheci-o de forma contrária à maioria. Primeiro, li seus livros O Discurso dos Sons e O Diálogo Musical, depois fui ouvir seus discos, como por exemplo, a integral de Cantatas de Bach que ele gravou em parceria com Gustav Leonhardt. O incrível é que o músico era ainda maior do que o autor que me ensinara tanta coisa. A leitura de seus livros abriu minha cabeça para muita música que desprezava por limitação ou preconceito. Ele mudou totalmente minha forma de ouvir música, deu sentido a muita coisa que me parecia arbitrária. Suas explicações sobre a grandeza da Bach são absolutamente convincentes e brilhantes.

https://youtu.be/Vr5cKdC3v3E

Antes de se tornar maestro, foi excelente violoncelista. As gravações demonstram. Sua integral das Suítes para Violoncelo Solo de Bach são magníficas. Foi pioneiro na música historicamente informada, mas não era intolerante como alguns que não aceitam que cada época dê sua versão de um autor. Só que ele, Harnoncourt, preferia a recriação rigorosa daquilo que o compositor compôs e fora ouvido pelo próprio. Ele também trouxe à tona um repertório riquíssimo de compositores negligenciados, talvez pela preguiça dos intérpretes. Investiu sobre o classicismo e o romantismo, dirigindo orquestras como a Filarmônica de Berlim e a de Viena, a Ópera de Viena, a Orquestra de Câmara da Europa, o Concertgebouw de Amsterdã, entre muitos outros. Mas sua existência sempre ficará associada à orquestra que fundou em 1953 e com quem mais gravou: o Concentus Musicus Wien.

Alguns engoliam com dificuldade suas interpretações históricas, outros não suportavam suas decisões estilísticas. Mas a abordagem histórica de Harnoncourt às sinfonias de Beethoven abriu os ouvidos e corações do grande público. Sua influência foi sentida em toda a Europa. Na área da música de concerto, foi o mais importante músico dos últimos 50 anos.

Os depoimentos são inequívocos. Todos amavam Harnoncourt no invejoso e complicado mundo musical. Norman Lebrecht diz que poucas vezes conheceu uma pessoa mais benigna. Quando se conheceram, Harnoncourt apontou um pequeno erro no livro de Lebracht The Maestro Myth. Segundo Lebrecht, aquilo foi dito com tal simplicidade e interesse que não parecia vir de um músico. E o maestro respondia a seus próprios triunfos com humildade e indiferença. Apenas encolhia os ombros e sorria. Achava estranho que o chamassem de maestro. Nos ensaios, era muito sério, focado, recusando-se a deixar passar um trecho antes de ficar satisfeito com ele.

Foi um idealista e como concordo com ele! Queria e queria que as pessoas tivessem acesso à música. Não dar acesso à música era um erro completo de educação. E, como brasileiro consciente de nosso IDH rasante, falo simplesmente em dar acesso, em dar contato. Já faria uma enorme diferença na vida de muita gente. Ninguém vai descobrir na primeira audição todo o ódio de Shostakovich por Stalin contido em sua 10ª Sinfonia, mas, tocado de alguma forma, poderia adquirir vivência com uma das formas mais sofisticadas e inteligentes de arte. Dar acesso, simples assim. Como diz Harnoncourt no vídeo abaixo:

Muito obrigado pela de lições, Nikolaus Harnoncourt. Foste um enorme e compreensivo mestre!

.oOo.

Es ist vollbracht significa Está consumado. A regência é de Nikolaus Harnoncourt, a orquestra é o Concentus Musicus Wien, o solista de gamba é Christophe Coin, o coro — que se ergue mais não canta… — é o Tölzer Knabenchor e o menino é o desconhecido, genial e efêmero (refiro-me à voz, claro) Panito Iconomou. Ah, quem me apresentou a gravação foi o Gilberto Agostinho. É inacreditável.

Almeida Prado

Por John Neschling

Acordei ontem tão chocado com a notícia do falecimento de José Antonio Almeida Prado que não tive coragem de sentar e escrever nada a respeito. Achei que tudo o que pudesse dizer não espelharia a enorme perda que teve a nossa música.

É difícil reconhecer os gênios, principalmente quando fazem parte do nosso cotidiano. Eles convivem conosco como pessoas comuns, e nós as tratamos assim, como pessoas comuns. Dizemos alô e ciao como se estivéssemos tratando com simples mortais como nós. São alguns lampejos de consciência, quando somos confrontados com a sua obra, que nos indicam a importância de sua criação e a singularidade de sua existência.

Tantas vezes a grandeza da obra não condiz com a pessoa do criador. Quase sempre prefiro manter distância das pessoas que admiro muito. Tenho medo de confundir a sua imperfeição humana com a perfeição de sua obra.

Conheci José Antonio nos anos 70, quando, ainda pouco experiente com a música de nossos dias, tive a oportunidade de dirigir um concerto na Semana de Musica Contemporânea de Graz, na Austria. Do concerto fazia parte a “Exoflora” de Almeida Prado, da qual ele mesmo foi solista ao piano.

Passamos aquela semana andando pelas ruas, ensaiando e assistindo a concertos, conversando sobre música contemporânea, rindo às gargalhadas de nós mesmos e da importância que tantos compositores davam a si mesmos.

José Antonio era de uma modéstia comovente, espiritualizada até.

Tinha já naqueles dias a noção de transcendência da música e de seu caráter inefável. Compunha e ouvia a sua própria música assim como a dos outros como se estivesse orando. Aprendi muito com ele, ao me concentrar no som dos pássaros, do vento, da chuva e ao reencontrar na sua música esse seu amor pela natureza e pela criação divina.

Nunca mais nos separamos. De tempos em tempos nos falávamos e quando assumi a OSESP, foi um dos compositores brasileiros que mais procurei executar. Em Campos de Jordão ouvi a Sonata para Violoncelo que José Antonio compôs para Antonio Menezes e saí do Auditório certo de que tinha ouvido uma obra da grandeza de uma sonata de Brahms.

Andava doente há tempos. Sofria muito com sua diabetes, mas nunca o ouvi proferindo uma palavra de queixa. Pelo contrário, conversar com ele era sempre uma celebração da vida e dos planos futuros. Nossas conversas eram tão simples e despojadas que eu, vez ou outra, nem me dava conta de que estava falando com um gênio de nossa cultura, um ser abençoado, capaz de criar obras que dão ao nosso cotidiano um outro sentido.

Sei que a obra do gênio perdurará. E os gênios, por isso mesmo, são imortais. A minha imensa tristeza é pela perda do Zé Antonio. Essa é difícil de enfrentar.

PQP

José Antônio de Almeida Prado morre em São Paulo aos 67 anos

Acabo de ler a notícia da morte do Almeida Prado (AQUI). Acho que muito cedo: 67 anos. Não sou um grande conhecedor da sua obra, mas do que conheci sempre me agradou seu empenho em unir as técnicas de composição contemporâneas com uma postura poética, até lírica (no sentido poético da palavra, não no do canto).

Vi Almeida Prado ao vivo uma única vez: num concerto da Orquestra Sinfônica de Santos, sua cidade natal, em comemoração aos seus 60 anos. Foram tocados o seu Concerto para Violino, solado por sua própria filha – que privilégio mais lindo! – e além disso a Sétima de Beethoven, obra indicada por ele, a pedido da orquestra, como sua favorita de Beethoven. Não há como não me emocionar ao lembrar disso agora e… sim, sete anos depois disso foi pouco, muito pouco.

Mas agora começa a NOSSA parte: não deixar esquecer. Goste-se mais, goste-se menos, não importa: trata-se, sim, de um criador cultural brasileiro de primeira linha, e não acho que seria digno da nossa parte deixar de investir no conhecimento da sua obra por questões de gosto pessoal. Mas infelizmente as poucas coisas dele que tenho estão em vinil: alguém da nossa turma terá opções mais fáceis de postar?

 

Ranulfus