O regente da apresentação de hoje sente a necessidade de fazer alguns comentários sobre a interpretação da Nona Sinfonia que, depois da mais recente experiência, não parecem ser supérfluos. Para começar, gostaria de apontar que Beethoven, através de sua perda auditiva que se tornaria surdez completa, tinha perdido o necessário contato próximo com a realidade. Isso aconteceu exatamente no período de sua vida criativa em que, através duma elevação sem precedentes de suas concepções, ele avançou na busca de meios de expressão e no sentido de um tratamento até então desconhecido e drástico da orquestra. Isso é tão bem sabido quanto o fato de que os metais daquela época não permitiam certas frequências de sons necessários para a formação da melodia. A necessidade trazida por essas carências ao longo do tempo levou a um aperfeiçoamento desses instrumentos e parece-nos quase um crime não lançar mão dessa vantagem.
Richard Wagner tentou apaixonadamente toda sua vida, em palavras e ações, tirar as interpretações das obras de Beethoven do estado de negligência realmente insuportável no qual caíram. Ele explicou suas experiências e esforços para uma interpretação dessa obra na monografia “A Propósito da Interpretação da Nona Sinfonia”, uma monografia que é aparentemente pouco conhecida e estudada. Todos regentes modernos apropriaram-se, essencialmente, de seus ensinamentos e orientação.
O regente da apresentação de hoje, em sua mais plena convicção, também seguiu esse caminho. Ele deve decididamente protestar contra a insinuação de que ele, de alguma maneira, fez mudanças arbitrárias na instrumentação. Ele, ao contrário, empenhou todo esforço para, no todo e nas individualidades, seguir até as minúcias de indicações e prescrições do mestre (Beethoven) e não deixar se perderem quaisquer de suas intenções que estão frequentemente ocultas ao olhar superficial. Ele [o regente], por outro lado, lançou mão de todas vantagens da orquestra moderna e especialmente de todos os meios de que dispomos até um grau muito mais maduro, de modo a não ocultar as intenções de Beethoven em uma massa confusa de som, e sim trazê-las à vida sonora com uma exatidão que segue o mestre até o mínimo detalhe.
Ele sente que é seu dever, considerando o conjunto dos instrumentos de corda que recentemente cresceu de modo tão tremendo, dobrar as madeiras e as trompas, mas de modo algum dar uma nova voz a esses auxiliares.
A propósito, ele pode apontar que, com isso, ele está tão só seguindo o costume de seu antecessor nessa posição. Ele rejeita de modo enfático a acusação de que agiu descuidadamente em sua interpretação e na explicação das notações de Beethoven, e ele se dispõe a provar através da partitura que com cada mais diminuto desvio da prática tradicional, ele agiu com necessidade premente e que, no todo, sua interpretação usou da moderação necessária exigida pela veneração pelo mestre e por suas vontades”.
Mahler foi tão execrado pelos seus “retoques” (“Retuschen”) na sacrossanta Nona do “imexível” Beethoven que, ainda de orelhas quentes pelo escândalo da primeira récita de sua versão editada, fez questão de redigir essa nota para que fosse impressa e entregue ao público antes da segunda. Não adiantou muito: os vienenses seguiram tiriricas e, por mais que tenham tolerado ou viessem a tolerar Retuschen em obras de Smetana e Schumann, não admitiam que se mudasse uma semifusa sequer de seu cidadão adotivo mais ilustre.
Naquele início de século XX, os regentes tomavam amplas liberdades com as partituras, sem que isso causasse muita comoção. Toscanini, por exemplo, adotava amplamente a prática, mas nunca recebeu sequer uma fração do reproche que jorrou em Mahler, que chegara ao cargo musical máximo do Império e ainda levava tomates por sua atuação como diretor da Hofoper. A tomatina não se devia ao nível artístico, certamente muito elevado, mas a celeumas entre o regente e seus músicos, por conta do perfeccionismo e ataques despóticos, e pela impaciência de Mahler com as negociações e a exigência de mesuras e bajulação inerentes ao cargo. Além disso, o antissemitismo não lhe dera trégua, mesmo que o judeu secular tivesse, ao antever o ódio com que o receberiam em Viena, se convertido ao catolicismo alguns meses antes de mudar-se para a capital imperial.
Eu acho que compreendo as intenções de Mahler. Ademais, com a carreira dividida entre a regência e seu grande xodó, a composição, ele achava natural ajustar as partituras para maximizar o efeito daquelas que, em sua nada desprezível posição de mais célebre maestro de seu tempo, pareciam subutilizar os recursos da orquestra. E, de fato, contando com algumas dúzias de instrumentistas de cordas em cada naipe, fazia sentido que ele aumentasse o número de sopristas e propusesse mais pareamentos, como é, por exemplo, muito perceptível no Scherzo da Nona. As indicações metronômicas às vezes implausíveis de Beethoven são abolidas, e os cantores – que não tiveram qualquer mudança em suas partituras – recebem algumas bem-vindas pausas para respirar, que o Mestre de Bonn, notoriamente nada empático em seu tratamento da voz humana, não achou necessário conceder-lhes.
Ouvindo essa gravação, mais de um século depois do escândalo em Viena, nada encontrei para me chocar. Muita coisa soa diferente – o que não quer dizer melhor -, mas o uso da orquestra sinfônica parece, de fato, mais efetivo. Se isso era necessário, bem, aí é outra história. Os Retuschen de Mahler, afinal, não tinham a pretensão de “corrigir” as sagradas partituras, e sim de proporcionar-lhes, como ele próprio afirmou, o pleno uso dos recursos das orquestras e salas de concerto modernas. O resultado é claramente mais volumoso, em detrimento de nuances. Se sacrílego ou louvável, deixo ao leitor-ouvinte decidir – enquanto encerro, com esta postagem, o annus horribilis em que fui arroz de festa aqui no PQP Bach, e que espero ter tornado um pouco menos medonho com o que tentei trazer a vocês.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Sinfonia no. 9 em Ré menor, Op. 125, “Coral” Retocada por Gustav Mahler (1860-1911)
1 – Allegro ma non troppo, un poco maestoso
2 – Molto vivace – Presto – Molto vivace – Presto
3 – Adagio molto e cantabile – Andante moderato – Andante moderato – Adagio -Lo stesso tempo
4 – Presto – Allegro assai – Presto (“O Freunde”) – Allegro assai (“Freude, schöner Götterfunken”) – Alla marcia; Allegro assai vivace (“Froh, wie seine Sonnen”) – Andante maestoso (“Seid umschlungen, Millionen!”) – Allegro energico, sempre ben marcato (“Freude, schöner Götterfunken” – “Seid umschlungen, Millionen!”) – Allegro ma non tanto (“Freude, Tochter aus Elysium!”) – Prestissimo (“Seid umschlungen, Millionen!”)
Gabriele Fontana, soprano Barbara Hölzl, contralto Arnold Bezuyen, tenor Reinhard Mayr, baixo Slovenský Filharmonický Zbor (Coro Filarmônico Eslovaco) Tonkünstler-Orchester Niederösterreich
Kristjan Järvi, regência
Nota de Gustav Mahler aos espectadores, escrita após a estreia de sua versão retocada da Nona de Beethoven, para ser lida antes da apresentação seguinte, e que lhes traduzi mais acima.
Há cinco anos, quando publiquei a “Hammerklavier” sob as fabulosas mãos de John O’Conor, perguntei ao respeitável público se ele tinha algum interesse em ouvi-la orquestrada. Apenas um leitor-ouvinte respondeu, e sua resposta foi não, então supus que – bem, que não.
É, assim, de maneira inteiramente não solicitada e gratuita que lhes venho oferecer essa curiosidade: a “Hammerklavier” orquestrada e regida por Felix Weingartner, numa gravação de 1930 que foi, pelo jeito, a única que se fez dela.
A empreitada de Weingartner, um dos regentes mais famosos da época, responsável pela primeira gravação integral das sinfonias de Ludwig, é hoje universalmente achincalhada. Poucas obras, afinal, clamam mais pelo teclado que esse complicadíssimo Leviatã da literatura pianística, que como alcunha, aliás, tem o próprio nome do instrumento para que Beethoven a imaginou. Lembro de ter lido, em livros antiquados, que a “Hammerklavier” seria tão transcendentalmente difícil que só uma orquestra sinfônica seria capaz de realizá-la a contento. Por trás de seus bigodes, Friedrich Nietzsche tascou algo semelhante:
Na vida de grandes artistas, existem contingências infelizes que, por exemplo, forçam o pintor a esboçar seu quadro mais significativo apenas num pensamento fugaz, ou que forçaram Beethoven a nos deixar apenas a insatisfatória redução para piano de uma sinfonia em certas grandes sonatas para piano (a “grande”, em Si bemol maior). Em tais casos, o artista que vem depois deve tentar corrigir a vida dos grandes homens depois desses fatos; por exemplo, um mestre de todos os efeitos orquestrais faria isso restaurando a sinfonia que sofreu uma aparente morte pianística (…)”
Por mais imaginativas que sejam, opiniões como essas desconsideram o imenso conhecimento que Ludwig tinha do teclado e, convenhamos, subestimam sua capacidade de escrever o que bem quisesse para a orquestra sinfônica. Ademais, não há qualquer registro de que o compositor pretendesse orquestrar a sonata e, por fim, basta ouvir a “Hammerklavier” um pouco além de seus portentosos acordes de abertura para encontrar temas e frases muito idiomáticas para o teclado, que a tornam pouquíssimo idiomática a quaisquer outros instrumentos, ou a conjuntos deles.
Por que, então, Weingartner “cometeu” essa orquestração?
A resposta passa, penso eu, por colocar essa gravação em sua devida perspectiva.
Por muito tempo, as reduções para piano de obras sinfônicas eram indispensáveis para que elas chegassem ao conhecimento das multidões que não tinham acesso a concertos sinfônicos. Foi com esse intuito que Liszt – que, em sua velhice, teve Weingartner como um de seus últimos alunos – transcreveu as sinfonias de Beethoven para o piano com uma fidelidade incomum a alguém com sua propensão a fazer firulas. Nas primeiras décadas do século XX, no entanto, o panorama era muito diferente: o número de orquestras sinfônicas aumentou muito, e a indústria fonográfica estava a registrar seu repertório a todo vapor. Em compensação, a “Hammerklavier” (que só foi estreada em público, e pelo próprio Liszt, mais de vinte anos após sua composição) seguia num limbo, respeitada como o produto talvez mais megalômano da imaginação do Beethoven maduro, mas considerada complicada demais para ser ouvida e insanamente difícil de ser tocada. Assim, ao orquestrar a obra para as mesmas forças que a Quinta Sinfonia e pressionar a Columbia a gravá-la e lançá-la no contexto de sua gravação integral das sinfonias do renano, Weingartner pretendeu divulgá-la a um público que, de outra forma, não a ouviria. E, de fato, mais alguns anos mais se passariam até que o pianista Artur Schnabel, que começou a tocar a “Hammerklavier” em recitais na década de 20, resolvesse trazê-la ao disco.
Por melhores que tenham sido suas intenções, e por maiores que sejam os descontos que concedamos às limitações técnicas das gravações dos 1930, o resultado não entusiasma. Diversos elementos marcantes da sonata, notadamente seus muitos trinados, que soam brilhantes ao teclado, perdem seu poder na orquestração. Os ataques das cordas nem de longe evocam a fúria prescrita por Beethoven nos ataques em fortissimo ao teclado, e mesmo no Adagio sostenuto, movimento em que a orquestração tem melhores resultados, o uso muito liberal do portamento, aparentemente um lugar-comum para as orquestras da época e muito natural para Weingartner, soa-nos estranho.
Ainda assim, e mesmo que não me tenha sido pedido, trago-lhes essa estranha sonata para piano sem piano para que os leitores-ouvintes a julguem e, se quiserem, a execrem com seus próprios ouvidos. Se não lhes for pedir demais, rogo-lhes que não se esqueçam de agradecer a Weingartner pela corajosa ousadia, tão própria aos grandes artistas, sem a qual – ainda que não se acerte sempre – a Música não seria a mesma.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Sonata para piano no. 29 em Si bemol maior, Op. 106, “Hammerklavier”
Orquestrada por Felix Weingartner (1863-1942)
1 – Allegro
2 – Scherzo: Assai vivace
3 – Adagio sostenuto
4 – Largo – Allegro risoluto
Royal Philharmonic Orchestra
Felix Weingartner, regência
Die Geschöpfe des Prometheus, música para o balé em dois atos de Salvatore Viganò, Op. 43
5 – Abertura
Sinfonia no. 5 em Dó menor, Op. 67
6 – Allegro con brio
7 – Andante con moto
8 – Allegro
9 – Allegro
London Philharmonic Orchestra Felix Weingartner, regência
Tinha separado essa gravação para publicá-la na série com a obra integral de Beethoven para, no fim, preteri-la. Gosto muito de Buchbinder, que há anos nos vem presenteando com gravações muito boas de Ludwig, de Wolfgang e de Franz Peter, mas sua nova leitura das “Diabelli”, que ocupa o primeiro disco desse álbum duplo, soou-me um tanto insossa: tecnicamente impecável, mas sem o colorido e os contrastes dinâmicos com que os grandes pianistas costumam tratar esse monumento da literatura para teclado.
O segundo disco, muito mais interessante, traz variações modernas sobre a valsa de Diabelli, dedicadas ao próprio pianista, somadas a algumas daquelas da Vaterländische Künstlerverein de que Buchbinder fez uma das primeiras gravações completas. A abordagem conservadora das variações de Beethoven, assim, acaba aumentando a surpresa com as frescas peças que abrem o segundo disco e trazem ao primeiro uma perspectiva diferente. Se isso foi ou não intencional, eu não lhes saberia dizer, mas recomendo a experiência, nem que seja só pelas obras modernas, e pela homenagem que o pianista faz ao compositor e à obra que mais marcaram sua vida.
Em suas próprias palavras,
“Nenhum compositor esteve ao meu lado com tanta intensidade quanto Ludwig van Beethoven, e nenhuma de suas obras se tornou um leitmotiv de minha vida como suas Variações Diabelli. Sessenta anos atrás, meu professor de piano Bruno Seidlhofer deu sua partitura a mim, seu aluno mais jovem na Academia de Música de Viena, a quem gostava de chamar de “Burli” (“rapazinho”). ‘Ao meu querido Rudolf Buchbinder, os melhores votos para o futuro’, escreveu ele com uma caneta esferográfica na primeira página. A ‘última valsa’ de Beethoven está comigo desde então.
Foi também Seidlhofer quem me deixou tocar as primeiras 25 de um total de 50 variações da chamada “Vaterländischer Künstlerverein” em um concerto de estudantes – variações feitas por contemporâneos de Beethoven que também haviam se baseado no tema da valsa de Diabelli. Entre eles estavam Carl Czerny, aluno de Beethoven, e seu aluno de 11 anos, Franz Liszt; o professor de Czerny, Johann Nepomuk Hummel; o filho de Mozart, Franz Xaver Wolfgang Mozart; e Franz Schubert, cuja variação em Dó menor deve ter parecido sobrenatural até para os ouvintes daquela época.
Quando, em 1973, fui aos estúdios Teldec de Berlim para gravar as Variações Diabelli de Beethoven pela primeira vez, foi-me natural registrar também as variações de seus contemporâneos. Afinal, suas peças eram um passeio musical pela Viena de Beethoven. Quando retomei o ciclo, apenas três anos depois, alguns colegas já me haviam apelidado de “Monsieur Diabelli”. Em 2007, eu, com muito gosto, contribuí com um concerto beneficente para ajudar a Beethovenhaus em Bonn a adquirir o manuscrito autógrafo desta peça, um documento que nos permite um vislumbre do meticuloso processo de trabalho de Beethoven: de ataques de raiva ilegíveis a correções cuidadosas. Tinta preta, verde e vermelha e lápis – música que Beethoven rabiscou parcialmente no papel.
E, de fato, até hoje, as Variações Diabelli continuam sendo uma das minhas peças mais executadas. Meu tio, que desde cedo reconheceu e cultivou meu talento musical, anotou minhas apresentações em uma pasta preta, um hábito que continuei, por curiosidade, após sua morte. É por isso que sei que executei o ciclo das Diabelli em público exatamente 99 vezes antes do aniversário de Beethoven em 2020. “Diabelli 2020” é, portanto, também um jubileu privado para mim e para minha relação com Beethoven.
Era, assim, natural que eu quisesse retomar o ciclo de variações no ano do jubileu, bem como minhas variações favoritas dos outros 50 compositores. Eles formam o contraste camerístico com minhas gravações dos concertos de piano de aniversário com Andris Nelsons e a Orquestra Gewandhaus, Mariss Jansons e a Symphonieorchester des Bayerischen Rundfunks, Valery Gergiev e a Filarmônica de Munique, Christian Thielemann e a Staatskapelle Dresden e com Riccardo Muti e a Filarmônica de Viena.
Anton Diabelli não era apenas um editor, mas também um empresário muito astuto. O volume com as 50 variações impressas de sua valsa era algo como as paradas de sucesso de seu tempo, obras de superestrelas musicais que podiam ser tocadas nos salões. Uma estratégia de marketing engenhosa, que Beethoven, entretanto, evitou. Isso se deveu, por um lado, ao grande número de suas 33 variações, que ultrapassaram todos os limites, e, por outro, à sua (naquela época) pura impossibilidade de serem tocadas! Somente 30 anos após sua publicação é que o Op. 120 foi executado pela primeira vez pelo pianista e maestro Hans von Bülow e, mesmo depois disso, as Variações Diabelli, que Bülow chamou de “microcosmo do gênio de Beethoven”, continuaram a serem vistas como dificuldades.
Para mim, as Variações Diabelli são talvez a obra mais emocionante de Beethoven. Eles são música sobre música. Beethoven foi evidentemente inspirado pelas “Variações Goldberg” de Bach, mas também cita outros “deuses”, como Haydn ou Mozart, a quem dedica a 22ª variação com o tema do “Don Giovanni”. No final, Beethoven volta a si mesmo, citando sua última sonata, Op.111, na 33ª variação, e revelando sua genialidade ao desmontar uma simples valsa em suas partes estruturais para remontá-las em toda a sua complexidade à sua própria imagem. Você também poderia dizer: Beethoven come a valsa de Diabelli e a digere ante nossos ouvidos.
Isso por si só já seria notável; o que é, em última análise, um golpe de gênio é que Beethoven não conduz esse processo só pelo processo em si, mas usa as etapas das variações individuais para levantar um compêndio de questões humanas fundamentais e, com base nas variações, explorar a diversidade da natureza humana. Beethoven coloca cada elemento da valsa de Diabelli contra a luz da história da Música e conscientemente o atribui ao ideal de seu presente. Para mim, a 33ª variação entra em um estado em que minhas associações sobre Beethoven, sobre tocar piano e sobre as Variações Diabelli também evanescem em outras esferas.
Ficou claro para mim: meu projeto “Diabelli 2020” iria transpor uma lacuna do tempo, e uma nova gravação do ciclo Diabelli só faria sentido se pedisse a compositores contemporâneos que contribuíssem com uma variação sobre a valsa. Claro, hoje não pensamos mais regionalmente ou nacionalmente como Diabelli, mas sabemos que, em 2020, Beethoven já chegou ao nosso mundo global.
Estou orgulhoso da gama de compositores envolvidos neste projeto: da maravilhosa Lera Auerbach a Max Richter. Também estou encantado com a participação de Tan Dun, que eu, como cinéfilo, naturalmente admiro por sua música vencedora do Oscar para o clássico de cinema de Ang Lee “O Tigre e o Dragão”. Toshio Hosokawa, provavelmente o mais importante compositor contemporâneo do Japão, apresentou-me sua partitura após um concerto em seu país: caracteres japoneses escritos a lápis na página de rosto.
O australiano Brett Dean dedicou sua variação, e essa é uma grande honra para mim, “para RB com admiração” e abre com um con fuoco louco; Toshio Hosokawa batizou sua obra de “Perda”, começa com um Adagio sostenuto e então – como é sua marca registrada – passeia pelas paisagens sonoras de Diabelli com serenidade japonesa. Não importa o quão casualmente o compositor austríaco Johannes Maria Staud intitulou sua variação “A propos … de Diabelli” e pediu ao intérprete para tocar “suavemente e obstinadamente”: ele certamente me desafiou com sua notação extremamente criativa. Já para o maestro e compositor alemão Christian Jost, a valsa de Diabelli é uma inspiração para uma performance alegre, como pode ser visto no título “Rock it, Rudi!“, que realmente me inspirou enquanto a estudava. Brad Lubman também traça um arco através da história da música em sua “Variação para RB“, assim como o compositor francês Philippe Manoury, que programaticamente chama sua peça de “Dois Séculos Depois” e prepara o palco para o metrônomo (uma ferramenta que se tornou popular no tempo de Beethoven). Ele prescreve pelo menos 12 indicações metronômicas diferentes. O compositor russo Rodion Shchedrin começa sua variação quase improvisato, e o compositor e clarinetista Jörg Widmann explora traços característicos de Beethoven em sua variação detalhada e com várias partes – fiquei particularmente encantado quando encontrei o subtítulo “Boogie Woogie“, porque é música que também gosto de associar a Beethoven.
Muitas vezes me perguntam o que se passa em minha mente enquanto toco uma obra como as Variações Diabelli. Minha resposta é simples: não muito! O processo de pensar e se envolver com Beethoven deve ser concluído muito antes de a primeira nota ser tocada. Durante um concerto, Beethoven convida o pianista a se deixar levar. Não quero dizer nadar sem rumo nas ondas de som. Deixar-se flutuar com Beethoven exige saber onde se está o tempo todo, conhecer a navegação musical, o céu estrelado, os ventos e os pontos cardeais do cosmos de Beethoven.
Qualquer pessoa que tenha estudado a música para piano de Beethoven intensamente sabe que Beethoven conhecia-nos, pianistas, assustadoramente bem, e nossas fraquezas e impaciência quando se trata de obter efeitos baratos, tomar o tempo em nossas próprias mãos ou impressionar o público com um design dinâmico idiossincrático. Vamos considerar a 10ª variação: ela começa com as palavras sempre staccato, ma leggiermente. Então, Beethoven quer ouvir um staccato leve. Com a indicação dinâmica pp, ou seja, pianíssimo, ele descreve o nada de que se origina essa variação. Apenas oito compassos depois, ele já parece não confiar mais em nós. Só assim se pode explicar porque levanta o dedo e volta a escrever na partitura: sempre staccato e pianissimo. Como Beethoven não forneceu nenhuma nova marcação dinâmica até este ponto, não deveria ser preciso dizer que ainda estamos em pianíssimo no oitavo compasso. Mas Beethoven suspeita que a velocidade da variação, associada ao staccato, pode nos seduzir a tocar mais alto. Ele poderia ter escrito: ‘Caro pianista, mesmo que você queira tocar mais alto aqui, controle-se e fique em pianíssimo um pouco mais!’
Tudo isso só é revelado quando você compara as edições individuais, porque absurdamente, algumas editoras eliminaram essas duplicações da impressão como erros. É importante se manter próximo ao texto original de Beethoven. Porque quanto mais alguém está preparado para curvar sua própria vontade ante a vontade do compositor, mais certo é que atingirá o tom que Beethoven pretendia. Para encurtar a história: é tarde demais para começar a pensar antes de tocar a primeira nota das Variações Diabelli. No momento do concerto, o que importa é confiar em Beethoven e deixar-se levar pela enorme criatividade de suas variações”
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Trinta e três variações em Dó maior para piano sobre uma valsa de Anton Diabelli, Op. 120 Compostas entre 1819–23 Publicadas em 1823 Dedicadas a Antonie Brentano
1 – Thema: Vivace
2 – Variation 1: Alla marcia maestoso
3 – Variation 2: Poco allegro
4 – Variation 3: L’istesso tempo
5 – Variation 4: Un poco più vivace
6 – Variation 5: Allegro vivace
7 – Variation 6: Allegro ma non troppo e serioso
8 – Variation 7: Un poco più allegro
9 – Variation 8: Poco vivace
10 – Variation 9: Allegro pesante e risoluto
11 – Variation 10: Presto
12 – Variation 11: Allegretto
13 – Variation 12: Un poco più moto
14 – Variation 13: Vivace
15 – Variation 14: Grave e maestoso
16 – Variation 15: Presto scherzando
17 – Variation 16: Allegro
18 – Variation 17: Allegro
19 – Variation 18: Poco moderato
20 – Variation 19: Presto
21 – Variation 20: Andante
22 – Variation 21: Allegro con brio – Meno allegro – Tempo primo
23 – Variation 22: Allegro molto, alla « Notte e giorno faticar » di Mozart
24 – Variation 23: Allegro assai
25 – Variation 24: Fughetta (Andante)
26 – Variation 25: Allegro
27 – Variation 26: (Piacevole)
28 – Variation 27: Vivace
29 – Variation 28: Allegro
30 – Variation 29: Adagio ma non troppo
31 – Variation 30: Andante, sempre cantabile
32 – Variation 31: Largo, molto espressivo
33 – Variation 32: Fuga: Allegro
34 – Variation 33: Tempo di Menuetto moderato
Lera AUERBACH (1973)
35 – Diabellical Waltz
Brett DEAN (1961)
36 – Variation For Rudi
Toshio HOSOKAWA (1955)
37 – Verlust
Christian JOST (1963)
38 – Rock It, Rudi!
Brad LUBMAN
39 – Variation For RB
Philippe MANOURY (1952)
40 – Zwei Jahrhunderte Später…
Max RICHTER (1966)
41 – Diabelli
Rodion Konstantinovich SHCHEDRIN (1932)
42 – Variation On A Theme Of Diabelli
Johannes MariaSTAUD (1974)
43 – À propos de… Diabelli
Tan DUN (1957)
44 – Blue Orchid
Jörg WIDMANN (1973)
45 – Diabelli-Variation
Da parte II da Vaterländischer Künstlerverein (“Associação Patriótica de Artistas”)
Johann Nepomuk HUMMEL (1778–1837)
46 – Variação XVI [Sem indicação de andamento]
Friedrich KALKBRENNER (1785–1849)
47 – Variação XVIII: Allegro non troppo
Makar (plural: makaris): originalmente o nome dos bardos da corte real escocesa nos séculos XV e XVI, posteriormente atribuído aos gigantes literários do Iluminismo de Edinburgh no século XVIII, e hoje um termo para se referir a um menestrel ou poeta escocês”
A primeira viagem de Haydn a Londres, em 1791, rendeu-lhe um encontro com o editor William Napier, que tinha o plano de publicar coleções de canções escocesas arranjadas por grandes compositores do continente. Napier, claro, sonhava contar com Haydn, mas as dívidas em que chafurdava tornavam altamente improvável remunerar à altura o maior mestre vivo da nobre Arte. Ainda assim, devia ter a cara bastante dura, pois fez a proposta ao Mestre de Rohrau e, para sua surpresa, não só ela foi aceita, como Haydn declinou qualquer pagamento antecipado. Acabou por arranjar-lhe cento e cinquenta canções, que salvaram o editor da prisão por insolvência e abriram um rico filão.
Em Edinburgh, como já lhes contei noutra postagem, George Thomson resolveu explorar a vereda aberta por Napier, editando arranjos para voz e conjunto de câmara para numerosas canções de diversas nacionalidades. Para refinar as letras, em sua maioria em dialetos considerados chucros, Thomson contou com a valiosa assistência de seu amigo Robert Burns, o poeta nacional da Escócia. Para os arranjos, recrutou a crème de la crème da Música continental, incluindo o próprio Haydn e, como vimos há alguns meses, aquela fonte de enxaqueca de nome Beethoven. Entre bloqueios continentais napoleônicos e a genuína teimosia beethoveniana, o tráfico de música através da Mancha floresceu e rendeu algumas boas centenas de publicações, a maioria das quais hoje jaz em esquecimento.
Quando publiquei os arranjos de Beethoven, há alguns meses, vários leitores-ouvintes, ao manifestarem sua grata surpresa com o evidente zelo que o renano dedicou à tarefa, estranharam nas interpretações a falta de um sotaque mais apropriado às canções e suas origens que, se não de todo folclóricas, são por demais plebeias para que, na voz impostada de cantores líricos, não soem constritas.
Creio, pois, que esses leitores-ouvintes gostarão dessa gravação que ora lhes trago. Com exceção da primeira e da penúltima faixas, todas as outras foram adaptadas por notáveis compositores alemães e austríacos, e aqui aparecem em seus arranjos autênticos. O conjunto Makaris interpreta-as com um gracioso equilíbrio de precisão clássica e espontaneidade popular. A soprano Fiona Gillespie, que vem duma família com longa tradição em música celta, tem a voz sob medida para o repertório, e seu bonito timbre, aplicado a inflexões escocesas e livre de vibrato, garante o encanto do começo ao fim. Os demais músicos também são extraordinários, e o clima geral é de frescor e espontaneidade, como se estivéssemos a acompanhar o animado sarau de talentosos amigos. De lambujem, para alegria dos completistas compulsivos, duas premières mundiais (faixas 12 e 18), de versões preliminares de arranjos de Beethoven que nosso herói acabou por reescrever porque Thomson as achou difíceis demais para o seu público-alvo (o que o fez levar, como já lhes contei, um senhor sabão do mestre). Aos brasileiros, há a curiosidade do arranjo de Sigismund von Neukomm (faixa 11), que morou no Rio de Janeiro entre 1816 e 1821: por muitos anos atribuído a seu professor Haydn, sabe-se hoje que foi feito pelo então aluno.
Wisps in the Dell será um deleite aos ouvidos menos ortodoxos, e o belíssimo som dos Makaris fica fortemente recomendado para quem quiser começar o dia a sorrir – do que, sinceramente, estamos todos precisando demais.
MAKARIS: WISPS IN THE DELL
ANÔNIMO
1 – The Burning of Auchindoun (arranjo para vozes)
Carl Maria Friedrich Ernst Freiherr von WEBER (1786-1826)
2 – Canções populares escocesas – No. 4, True-hearted Was He, J. 298
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
3 – Canções irlandesas, WoO 152 – No. 14, Dermot & Shelah
Franz Joseph HAYDN (1732-1809)
4 – I Do Confess Thou Art Sae Fair, Hob.XXXIa:110
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
5 – Canções irlandesas, WoO 152 – No. 8, Come Draw We Round a Cheerful Ring
Franz Peter SCHUBERT (1797-1828)
6 – An Old Scottish Ballad, D. 923
Joseph HAYDN
7 – My Love She’s but a Lassie Yet, Hob.XXXIa:194
Ludwig van BEETHOVEN
8 – Vinte e cinco canções escocesas, Op. 108 – No. 2, Sunset
Ignaz Josef PLEYEL (1757-1831)
9 – Trinta e duas canções escocesas – No. 13, The Ewe Bughts, B. 719
Johann Nepomuk HUMMEL (1778-1837)
10 – Arranjos de canções escocesas para Thomson, S. 169: Jock o’ Hazeldean
Sigismund Ritter von NEUKOMM (1778-1858)
11 – Jenny Dang the Weaver, Hob.XXXIa:240 (atribuído anteriormente a Joseph Haydn)
Ludwig van BEETHOVEN 12 – On the Massacre of Glencoe, Hess 192 – PRIMEIRA GRAVAÇÃO
Carl Maria von WEBER 13 – Dez canções escocesas: No. 6, Pho Pox o’ This Nonsense, J. 300
Friedrich Daniel Rudolf KUHLAU (1786-1832)
Sete variações sobre uma canção escocesa, Op. 105
14 – Tema – Variação 1 – Variação 5 – Variação 6 – Variação 7
Joseph HAYDN 15 – My Boy Tammy, Hob.XXXIa:18
Ignaz PLEYEL
16 – Trinta e duas canções escocesas – No. 17, Sweet Annie, B. 723
Carl Maria von WEBER 17 – Dez canções escocesas: No. 1, The Soothing Shade of Gloaming, J. 295
Ludwig van BEETHOVEN
18 – Bonny Laddie, Highland Laddie, Hess 201 – PRIMEIRA GRAVAÇÃO
Ignaz PLEYEL
19 – Trinta e duas canções escocesas – No. 10, From Thee Eliza I Must Go, B. 716
Leopold KOŽELUH (1747-1818)
20 – Vinte canções escocesas, irlandesas e galesas, P. XXII:1 – Should Auld Acquaintance Be Forgot
Há exatos 212 anos [grato, Daniel!], acontecia em Viena um mastodôntico concerto de mais de quatro horas de duração, sob temperaturas polares e com resultado artístico pífio. A precariedade da execução das várias obras, quase todas inéditas, acabou amplamente execrada, a despeito da grande reputação do compositor de todas elas – que, aliás, também atuou como pianista e regente.
O compositor-pianista, claro, era Beethoven, e a compilação de tantas obras icônicas estreadas numa mesma ocasião fez com que o concerto, mesmo desastroso, seja lembrado até hoje. E, como estamos terminando o ano do jubileu de nosso herói, resolvi aproveitar o 22 de dezembro para apresentar-lhes o repertório do célebre naufrágio e relembrar as circunstâncias em que ele aconteceu.
ooOoo
Naquela Viena do começo do século XIX, Akademie era o nome dado ao que hoje chamamos de concerto sinfônico. As Akademien eram oferecidas a um público pagante e anônimo, e seu lucro revertia para um beneficiário específico, normalmente o próprio compositor. Apesar da ideia ser muito atraente aos músicos, essas ocasiões acabavam por ser infrequentes. Os ingressos eram caros e estavam ao alcance apenas da aristocracia e parte da pequena burguesia, mas o maior problema, pelo menos em Viena, era conseguir um teatro. A alta temporada artística, que correspondia ao outono e ao inverno, era preenchida pelas lucrativas encenações de óperas. No verão, o público em potencial fugia da escaldante capital para os Alpes, de modo que as poucas datas disponíveis para Akademien eram a Quaresma e o Advento, quando a encenação de óperas era proibida. Ainda assim, como eram poucos os teatros em condições de receber músicos e público bastantes para que o evento se pagasse, garantir uma data requeria uma boa dose de habilidade política. No caso de Beethoven, péssimo político e horroroso negociador, o processo era bem mais trabalhoso e normalmente envolvia a cessão de suas obras (muitas das quais, como sabemos, ele resgatava do passado e recauchutava às pressas) para concertos beneficentes.
Os problemas em organizar uma Akademie não paravam por aí: era necessário preparar o repertório, granjear músicos e conduzir os ensaios. Como as datas eram poucas, e as oportunidades, muito disputadas, acabava havendo um pregão encarniçado pelos músicos. Ao garantir o Theater an der Wien para sua Akademie em 22 de dezembro de 1808, Beethoven teve o azar de seus planos colidirem com a de outro músico famoso: o Kapellmeister Antonio Salieri, que fora seu professor e organizava os concertos da Tonkünstler-Societät (“Sociedade de Músicos”). O italiano faria uma Akademie beneficente naquela mesma data, em prol das viúvas e dos órfãos dos membros da Sociedade, e, pior ainda, ameaçou dela banir os músicos que tocassem para Beethoven.
É fácil imaginar que muitos dos músicos que Ludwig arregimentou não eram de primeira linha, o que, somado ao pouco tempo de ensaios, acarretava um risco considerável de que a qualidade artística fosse para o brejo. Para complicar ainda mais, Beethoven estrearia obras que são complexas mesmo para as orquestras estáveis e profissionais de nossos tempos, e traçara um ambicioso plano de apresentar orquestra, coro e pianista (ele próprio), para depois reuni-los todos num apoteótico grand finale.
Para variar, o sempre desorganizado gênio da Música e da Procrastinação atrapalhou-se com os prazos. As partituras para os músicos tiveram que ser copiadas às pressas, e uma boa parte delas ficou pronta só na tarde da apresentação. O maior problema estava no tal grand finale, que foi estreado inacabado, tendo o compositor-pianista que improvisar as partes que faltavam. Não obstante, e com a corda simbólica no pescoço apertando, fez publicar no Wiener Zeitung o seguinte anúncio:
GRANDE AKADEMIE NO THEATER AN DER WIEN
(…)
por Herr v. Beethoven
(…)
em benefício do próprio Herr v. Beethoven
(…)
Todas as peças são (…) inteiramente novas, e ainda não ouvidas em público.
Primeira parte:
1. Uma sinfonia, intitulada ‘Reminiscências da Vida no Campo’, em Fá maior
2. Ária.
3. Hino com texto latino, composto no estilo eclesiástico com coro e solos.
4. Concerto para piano tocado por ele mesmo.
Segunda parte:
1. Grande Sinfonia em Dó menor
2. Sanctus, com texto em latim, no estilo de igreja, com coro e solos.
3. Fantasia apenas para piano.
4. Fantasia para pianoforte que termina com a entrada gradual de toda a orquestra e a introdução de coros como finale”
A publicidade, como o leitor-ouvinte mais atento já percebeu, era ligeiramente enganosa. “Ah! perfido” já tinha sido estreada em Leipzig doze anos antes, e o “Hino” (Gloria) e o Sanctus, partes da Missa em Dó maior, tinham recebido sua primeira audição na propriedade de seu encomendante, o príncipe Esterházy, no ano anterior. A descrição um tanto elusiva das peças sacras foi provavelmente proposital, pois a execução de música litúrgica em contextos seculares era normalmente proibida na carolíssima Viena.
Os apressados ensaios, claro, foram permeados pelo caos. Consta que Beethoven enfezou-se de tal maneira com a soprano solista, Frau Milder, que esta lhe deu um adiós para siempre e o obrigou a recrutar à penúltima hora uma inexperiente jovem de 17 anos. Não que isso tivesse sido decisivo: nosso irascível herói brigou com diversos instrumentistas e cantores, e há relatos de que eles se recusaram a ensaiar sob seu comando. Se algum regente alternativo foi recrutado, não sabemos, embora isso seja improvável, tanto pela personalidade de Beethoven, que não admitiria comandos de outrem, quanto porque não era a praxe, na época, dispor de um músico exclusivamente dedicado à condução da obra durante as performances. Assim, podemos presumir que os ensaios duraram apenas o bastante para que a famosa cólera renana irrompesse e os músicos ficassem tiriricas com o cidadão cujas obras tentariam interpretar.
O concerto começou às 18h30 duma quinta-feira (thanks, Mr. Google), que foi provavelmente o dia mais frio do ano na capital imperial. Ela abriu com a sinfonia “Pastoral”, que curiosamente foi apresentada antes de sua gêmea bivitelina, a Quinta. Isso levou os contemporâneos, por muito tempo, a considerá-la como a quinta, e não a sexta sinfonia de Beethoven. Seguiram-se a ária e cena “Ah! perfido”, com a tal mocinha de 17 anos que, por todos relatos, estava apavorada e não conseguiu projetar a voz. Depois, o Gloria da Missa em Dó e, para arrematar a primeira parte, o concerto em Sol maior, com o compositor como solista.
Beethoven tinha, na época, firmemente consolidada a reputação de melhor pianista de seu tempo, seguido de perto talvez só por Hummel, então era natural que o público esperasse muito dele quando se sentou ao teclado. O longo rol de falhas, no entanto, logo descambaria para o pastelão. Segundo o compositor Ignaz von Seyfried, um dos que pagaram para congelar no An der Wien naquela noite, ocorreu o seguinte:
… esquecendo que era solista, [Beethoven] começou a pular para cima e para baixo e a reger de sua própria maneira peculiar. No primeiro sforzando, ele arremessou seus braços para os lados tão amplamente que derrubou ambas as lamparinas do piano. A plateia gargalhou, e Beethoven ficou tão descontrolado que parou a orquestra e a fez começar de novo. Dois meninos do coro seguravam as lâmpadas, dessa vez. Quando o sforzando fatal irrompeu, um dos meninos recebeu um tapa tão forte da mão direita de Beethoven que, aterrorizado, derrubou a lamparina no chão. O outro menino conseguiu evitar a pancada esquivando-se a tempo. Se a plateia rira da primeira vez, ela agora divertia-se numa verdadeira balbúrdia bacanalesca. Beethoven enfureceu-se de tal maneira que, quando tocou o primeiro acorde do solo, quebrou seis cordas do piano”
[sempre que leio essa descrição, imagino Beethoven regesse como Friedrich Gulda – sem, claro, o elaborado visual que foi carinhosamente descrito por um crítico como “um gigolô sérvio”]
Veio o intervalo, que deve ter permitido à plateia parar de rir e congelar em silêncio. Na volta, nada menos que a Quinta Sinfonia, uma obra icônica que, infelizmente, acabou oferecida a um público já em extremo desconforto. Apesar de conhecida, entre tantas outras coisas, por marcar a estreia dos trombones na orquestra sinfônica, quando ela foi de fato ouvida os trombones já tinham estreado… na sinfonia “Pastoral”, uma hora e meia antes! Após outro trecho – o Sanctus – da Missa em Dó, Beethoven voltou ao piano para improvisar. Sua capacidade de improvisação era ainda mais reconhecida do que a de pianista, então suponho que ela tenha ajudado a mitigar um pouco da pilha de papelões até então acumulados. Embora não se tenha certeza, a descrição de algumas testemunhas – que deram conta de uma melodia cantável entremeada por repetidas escalas descendentes – faz pensar que Beethoven tenha tocado algo parecido com a sua Fantasia para piano, Op. 77, que tem um caráter muito livre e improvisatório, e seria publicada três anos depois.
Como grand finale, e fechando com chave de papelão a gélida soirée, a tal Fantasia mal ensaiada para piano, orquestra e coro. Como já lhes contamos, ela não estava pronta quando de sua estreia, o que obrigou Beethoven a improvisar o solo de abertura. Apesar dos relatos diferirem, é certo que num dado momento a orquestra e o pianista se perderam completamente. Uma das fontes diz que um clarinetista se atrapalhou e foi imediatamente achincalhado pelo compositor, e em tão altos brados que todo o teatro o ouviu. Outra diz que Beethoven, que combinara tocar as variações sem repetições, acabou repetindo a primeira variação enquanto a orquestra acompanhava a segunda, o que o obrigou a interromper a execução e começar de novo. Qualquer que tenha sido a gafe, o final cometeu a proeza de ser o ponto mais baixo duma noite que, convenhamos, nada tinha para acabar bem.
A perspectiva de quatro horas de música com o mais famoso artista de Viena não deixou de atrair admiradores, muitos dos quais amigos de Beethoven. Ainda assim, ao descreverem sua experiência, eles usaram a mais pura forma da sinceridade: aquela que eu chamo de “sinceridade-sinceridade”, que muito difere da “sinceridade de amigo”. O compositor Johann Friedrich Reichart, que acompanhou a função do camarote príncipe Lobkowsky, bem perto do palco, tascou: “nós resistimos no frio mais cortante, das seis e meia às dez e meia, e confirmamos para nós mesmos a máxima de que se pode sofrer com o excesso duma coisa boa – e ainda mais se poderosa. Muitas falhas na execução testaram nossa paciência ao mais alto grau”. Um jornal deu veredito semelhante: “Julgar todas essas peças após uma e única audição, especialmente considerando a linguagem das obras de Beethoven, em que tantas foram executadas uma após a outra, e que a maioria delas são tão grandes e longas, é absolutamente impossível”. Ferdinand Ries, aluno e amigo de Beethoven, disse que os músicos estavam tão furiosos com o compositor que prometeram que “nunca mais tocariam se Beethoven estivesse na orquestra ”. Ludwig, ao que parece, pediu-lhes desculpas, sem saber que jamais voltaria a tocar com orquestra, e que aquela Akademie marcaria sua despedida dos palcos como solista de piano, graças à sua crescente surdez.
A audição que lhes proponho a seguir tenta reconstituir as condições daquela legendária noite de música. Quase todas as obras são executadas pelos mesmos intérpretes – Robert Levin ao piano, e John Eliot Gardiner conduzindo a Orchestre Révolutionnaire et Romantique e o coro Monteverdi -, com instrumentos de época. A única exceção é a Fantasia, Op. 77, da qual não há gravação de Levin, o que me obrigou a convocar para a seleção o ótimo Ronald Brautigam. Em compensação, Levin oferece, ao final, duas improvisações alternativas para a abertura da Fantasia Coral, num estilo que considera semelhante ao que Beethoven adotaria em suas próprias. Mesmo com interpretações tão competentes e redondinhas, a experiência pode atordoar, pela saturação sensorial envolvida. Ainda assim, considere-se privilegiado por escutá-la em temperaturas acima de zero, com a possibilidade de pausá-la e, principalmente, longe do alcance da ira do renano.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
GRANDE “AKADEMIE” DE 22 DE DEZEMBRO DE 1808 NO THEATER AN DER WIEN
Músicos na estreia: Josephine Schulz, soprano (Op. 65) Orquestra e coroad hoc Ludwig van Beethoven, piano e regência
PRIMEIRA PARTE
I – Sinfonia no. 6 em Fá maior, Op. 68, “Pastoral” (apresentada na ocasião como “no. 5”) Composta entre 1802-1808 Publicada em 1809 Dedicada ao príncipe Lobkowitz e ao conde Andreas Razumovsky
1 – Allegro ma non troppo – Erwachen heiterer Empfindungen bei der Ankunft auf dem Lande (“Despertar de sentimentos alegres com a chegada ao campo”)
2 – Andante molto mosso – Szene am Bach (“Cena à beira de um regato”)
3 – Allegro – Lustiges Zusammensein der Landleute (“Alegre reunião de camponeses”)
4 – Allegro – Gewitter, Sturm (“Trovões, tempestade”)
5 – Allegretto – Hirtengesang. Frohe und dankbare Gefühle nach dem Sturm (“Canção de pastores. Sentimentos alegres e gratos, após a tempestade”)
Orchestre Révolutionnaire et Romantique John Eliot Gardiner, regência
II – “Ah, perfido!“, recitativo e ária para soprano e orquestra, Op. 65 Compostos em 1796
Publicados em 1805
Dedicados a condessa Josephine von Clary-Aldringen 6 – Recitativo: “Ah, perfido!” (Dó maior) – Ária: “Per pietà, non dirmi addio” (Mi bemol maior)
Charlotte Margiono, soprano Orchestre Révolutionnaire et Romantique John Eliot Gardiner, regência
III – Da Missa em Dó maior para solistas, coro e orquestra, Op. 86: Composta em 1807 Publicada em 1812 Dedicada ao conde Ferdinand Kinsky
7 – Gloria
Charlotte Margiono, soprano Catherine Robbin, mezzo-soprano William Kendall, tenor Alastair Miles, baixo The Monteverdi Choir Orchestre Révolutionnaire et Romantique John Eliot Gardiner, regência
IV – Concerto para piano e orquestra no. 4 em Sol maior, Op. 58 Composto entre 1804-1807 Publicado em 1808 Dedicado ao arquiduque Rudolph da Áustria
I – Sinfonia no. 5 em Dó menor, Op. 67 (apresentada na ocasião como “no. 6”) Composta entre 1804-8 Publicada em 1809 Dedicada ao príncipe Lobkowitz e ao conde Andreas Razumovsky
1 – Allegro con brio
2 – Andante con moto
3 – Scherzo. Allegro
4 – Allegro
Orchestre Révolutionnaire et Romantique John Eliot Gardiner, regência
II – Da Missa em Dó maior, Op. 86:
5 – Sanctus
Charlotte Margiono, soprano Catherine Robbin, mezzo-soprano William Kendall, tenor Alastair Miles, baixo The Monteverdi Choir Orchestre Révolutionnaire et Romantique John Eliot Gardiner, regência
III – Uma fantasia improvisada ao piano por Herr van Beethoven, possivelmente a
Fantasia para piano, Op. 77 Composta em 1809 Publicada em 1810 Dedicada ao conde Franz von Brunsvik
6 – Allegro – Poco adagio
Ronald Brautigam, piano
IV – Fantasia em Dó menor para piano, coro e orquestra, Op. 80, “Fantasia Coral” Composta em 1808 Publicada em 1810 Dedicada a Maximilian Joseph, Rei da Baviera
7 – Adagio
8 – Finale: Allegro – Meno allegro (Allegretto) – Allegro molto – Adagio ma non troppo – Marcia, assai vivace – Allegro – Allegretto ma non troppo, quasi andante con moto (»Schmeichelnd hold und lieblich klingen«) – Presto
Ao longo de 2020, alguns conjuntos tentaram emular a experiência da Akademie de 1808. Aqui, Philippe Jordan (adoro a cara dele na imagem de capa) e a Wiener Symphoniker encaram o Leviatã, que requer capacidade, resistência e, convenhamos, bexigas de 10 L
Até tinha – mas não para os completistas compulsivos.
ooOoo
Fim de aniversário, pança cheia, ressaca (em vocês que bebem, claro). Chega a hora de arrumar os destroços deixados pelos convivas, a quem despachamos para suas casas com o que restou do festim pantagruélico, de catar, também, objetos aleatórios por eles esquecidos – e, para mim, de ouvir as queixas dos completistas.
Os “gatos” do título são obras de Beethoven que, por vários motivos, não foram publicados no corpo principal de nossa finada série. São, primariamente, só bagatelas e curiosidades, e versões preteridas de peças publicadas. Há, volta e meia, algo de maior valor – como uma versão alternativa do extraordinário movimento de abertura do quarteto em Dó sustenido menor -, mas quase tudo é esquecível. Como sempre haverá o completista pronto a dizer que “ah, tem aquele cânone que Beethoven escreveu para o jornaleiro de Heiligenstadt” ou “ih, vocês esqueceram daquela bagatela que Beethoven deixou como promissória na bodega de Gneixendorf”, achei necessário reunir todas as sobras no mesmo saco, que aqui ficará para quem o quiser abrir.
Esta postagem restará, então, necessariamente inconclusa. Beethoven não era um Hindemith, que praticamente tossia sonatas, mas deixou muita coisa rabiscada e espalhada entre suas tralhas, mas sempre que descobrirem alguma nova obra, e dela houver alguma gravação – e nem que sejam duas notas largadas num papel de embrulho -, eu a colocarei aqui.
Pois bem: o balaio começa com alguns grupos de gatos, que não achei suficientemente importantes para entrarem na série, e termina com os gatos soltos, espremidos num só arquivo que, imaginamos, crescerá vagarosamente nas décadas vindouras.
BEETHOVEN – THE YOUNG PROMETHEUS
Esse LP contém doze estudos de contraponto que Beethoven escreveu durante seus estudos com Kapellmeister Albrechtsberger, alguns dos quais não tinham aparecido antes na série. Eles foram orquestrados por Alex Brott, que também rege a função. A ripagem não é minha, e não consegui as faixas separadamente, então vão os doze gatinhos num faixa só:
1 – Prelúdio e fuga em Fá maior, Hess 30
2 – Fuga em Lá menor, Hess 238 no. 6
3 – Prelúdio e fuga em Dó maior, Hess 31
4 – Prelúdio e fuga em Mi menor, Hess 29
5 – Fuga coral em Sol maior, Hess 239 no. 3
6 – Fugue em Si bemol maior, Hess 238 no. 5
7 – Fuga alla duodecima, em Ré menor, Hess 243 no. 5
8 – Fuga dupla com três temas em Fá maior, Hess 244 no. 2
9 – Fuga alla duodecima, em Dó maior, Hess 243 no. 4
10 – Fuga em Dó maior, Hess 238 no. 3, seguida por uma repetição de Hess 243 no. 4
11 – Fuga coral em Fá maior, Hess 239 no. 1
12 – Fuga dupla com três temas, em Ré menor, Hess 244 no. 1
The Canadian Broadcasting Corporation Festival Orchestra Alex Brott, regência
Essa gravação do alemão (difícil ser mais alemão que esse nome) Wilhelm Krumbach deveria chamar-se “Orgelwerke” (“Obras para órgão”), e não “Das Orgelwerk” (“A Obra para Órgão”), porque o disco deixa de fora mais da metade das composições de Beethoven para o instrumento. Em compensação, há o chamado “Ciclo de Fugas sobre Temas de Johann Sebastian Bach”, com algumas fugas que não achei em qualquer outro lugar. O nome é uma propaganda enganosa, pois trata-se duma série de exercícios de contraponto e fuga para Albrechtsberger que jamais se pretendeu que fosse ouvida como um ciclo. Os temas, também, não são de Bach – alguns são do próprio professor, e outros, de Johann Joseph Fux (ca. 1660-1741), autor do Gradus ad Parnassum, o tratado de composição do qual ninguém escapava na época.
“Suíte para órgão” (mais apropriadamente, Peças para um Flötenuhr, WoO 33)
1 – Adagio
2 – Scherzo
3 – Allegro
Prelúdio em Fá menor, WoO 55
4 – Prelúdio
Dois prelúdios em todas as tonalidades, Op. 39
5 – No. 1
Fuga em Dó maior, WoO 215
6 – Fuga
Trio-sonata em Mi menor
7 – Adagio
8 – Fuga
“Ciclo de fugas em Ré menor sobre temas de J. S. Bach”
9 – Fuga a três vozes
10 – Fuga a quatro vozes
11 – Fuga coral a quatro vozes
12 – Fuga dupla
13 – Fuga cromática a 4 vozes
14 – Fuga com três temas
Por fim, aqui vão os gatos soltos. As faixas não estão numeradas, e sim organizadas conforme a catalogação, a fim de facilitar reorganizações futuras, se houver adições ao arquivo. Prometo que em breve coloco o nome dos artistas.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
DER KATZENKORB (“O BALAIO DE GATOS”)
Hess 25 – Finale original do trio para violino, viola e violoncelo em Mi bemol maior, Op. 3 Hess 38 – Arranjo para quinteto de cordas da fuga em Si bemol menor, BWV 867, de “O Cravo bem Temperado” de J. S. Bach Hess 40 -Prelúdio e fuga para quinteto de cordas em Ré Menor Hess 41 – Quinteto para cordas em Dó maior (fragmento, arranjo para piano solo) – versão incompleta, diferente da antes publicada, que foi completada por Anton Diabelli Hess 201 – Bonny Laddie, Highland Laddie (versão com variante na parte de violino) Op. 108 – 25 canções escocesas, nº 4, The Maid of Isla [1ª versão] Op. 108 – 25 canções escocesas, nº 4, The Maid of Isla [2ª versão] Op. 108 – 25 canções escocesas, nº 7, Bonnie Laddie, Highland Laddie [1ª versão] Op. 108 – 25 canções escocesas, nº 7, Bonnie Laddie, Highland Laddie [2ª versão] Op. 108 – 25 canções escocesas, nº 11, O! Tu és o rapaz do meu coração [1ª versão] Op. 108 – 25 canções escocesas, nº 20, Faithfu ‘Johnie [1ª versão] Op. 131 – Quarteto para cordas nº 14 em Dó sustenido menor – I. Adagio ma non troppo e molto espressivo (versão alternativa) WoO 18 – Marcha em Fá maior, 2ª versão (Hess 6) WoO 18 – Marcha em Fá maior, 3ª versão (Hess 7) WoO 18 – Marcha em Fá maior, Yorkscher Marsch WoO 19 – Marcha em Fá Maior WoO 19 – Marcha em Fá maior, 2ª versão (Hess 8) WoO 19 – Marcha em Fá maior, 3ª versão (Hess 9) WoO 63 –Nove variações em uma marcha de Dressler – versão revisada em 1803 (fortepiano) WoO 63 – Nove variações em uma Marcha de Dressler – versão revisada em 1803 (piano) WoO 64 – Seis variações sobre uma canção suíça em Fá maior – versão para harpa WoO 116 – Que le temps me dure, WoO 116- 2ª versão (Hess 130) WoO 153 – 20 canções irlandesas, nº 13, ‘Tis Sunshine at Last WoO 153 – 20 canções irlandesas, nº 11, When Far from the Home [versão alternativa] WoO 153 – 20 canções irlandesas, nº 12, I’ll Praise the Saints [1ª versão] WoO 153 – 20 canções irlandesas, nº 15. ‘Tis But in Vain, for Nothing Thrives WoO 153 – 23 canções irlandesas, nº 5, I Dream’d I Lay Where Flow’rs Were Springing WoO 154 – 12 canções irlandesas, nº 9, Oh! Would I Were but That Sweet Linnet [1ª versão] WoO 155 – 26 canções galesas, nº 7, O Let the Night My Blushes Hide [2ª versão] WoO 155 – 26 canções galesas, nº 14, The Dream [1ª versão] WoO 155 – 26 canções galesas, No. 19, The Vale of Clwyd [1ª versão] WoO 155 – 26 canções galesas, nº 20, To the Blackbird [1ª versão] WoO 158a – 23 canções de várias nacionalidades, nº 19, Una paloma blanca [1ª versão] WoO 209 – Minueto em Lá Bemol Maior, para quarteto de cordas
Bem, para a saideira do BTHVN250 eu escolhi um disco que talvez ponha a perder todo crédito que possa ter ganhado junto a vocês em função de meu trabalhão de trazer-lhes a obra completa do renano.
O disco começa relativamente convencional, com um bom arranjo da sonata para violino, Op. 30 no. 2, reimaginada como peça orquestral pelo regente Yaniv Segal e por Garrett Schumann, que não tem relação com o saxão. Em seguida, uma engenhosa suíte de Fidelio que nos conduz em meia hora, e de modo muito eficiente, por toda narrativa da mais obra mais complicada que Beethoven pariu. Um Fidelio com restrições orçamentárias? É, talvez.
Por fim…
Ok, confesso que olhei a palavra remix e esperei o pior. Gabriel Prokofiev? “Compositor e DJ russo”, respondeu-me a googleada… Hmmmm, DJ com sobrenome de compositor? Fui ver, e constatei que Gabriel é filho de Oleg Sergeievich, que é filho de…
Sim: Sergei Sergeievich.
Acabou que Gabriel é neto do homem. Resolvi dar-lhe uma chance, nem que fosse pelo pedigree, e admito que me surpreendi. Seu Beethoven9 Symphonic Remix é uma manipulação eletrônica da Nona que, embora imagine que vá soar herética à maioria de vós outros, soou-me melhor que a expectativa. Não sei se a posso recomendar, mas, por via das dúvidas, eu a postarei às três da madrugada e… sairei correndo.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Sonata para violino e piano em Dó menor, Op. 30 no. 2 Orquestrada por Garrett Schumann (1987) e Yaniv Segal (1981)
Yaniv Segal (1981), sobre obra de Ludwig van BEETHOVEN
A Fidelio Symphony, para orquestra, baseada na ópera Fidelio de Ludwig van Beethoven
5 – I. Einleitung
6 – II. Aktion
7 – III. Apotheose
Gabriel PROKOFIEV (1975)
Beethoven9 Symphonic Remix
8 – I. Presto
9 – II. Allegro assai
10 – III. Freunde, haben wir ein neues Babel: Presto
11 – IV. Freude Schöner GötterFUNKen: Allegro assai
12 – V. Über Sternen (Beyond Stars): Andante Maestoso a mezzo tempo
13 – VI. Alla marcia
14 – VII. Ode finale: Molto vivace ma tranquillo
Gabriel Prokofiev, eletrônicos BBC National Orchestra of Wales Yaniv Segal, regência
Calma: estamos quase arrematando nossa homenagem a Beethoven pelo natalício. Como prometemos folga ao velho homem, deixaremos alguns de seus colegas contemporâneos aqui mostrarem a que vieram e o que fizeram com que Ludwig nos deixou.
Para começar, duas obras do australiano Brett Dean – que estudou na Alemanha e foi violista da Filarmônica de Berlim. Testament, naturalmente, refere-se ao Testamento de Heiligenstadt e aborda as sensações e sentimentos de Beethoven ante a inexorável surdez. A abertura, com sussurros do sopros e cordas tocadas com arcos sem breu, evoca a respiração do compositor e sua pena a singrar o papel. A irrupção de temas do primeiro dos quartetos “Razumovsky”, com o brilhante fugato, lembra a firme resolução com que, depois contemplar o suicídio, deixou Heiligenstadt para os vinte e cinco anos que lhe restaram de vida. Pastoral Symphony costuma, claro, ser pareada com a Sexta Sinfonia do renano. Após uma bucólica abertura festiva, surgem os sons que sugerem a devastação da Natureza que Beethoven evocou, e que o próprio Dean encontrou quando voltou para a Austrália. Em suas próprias palavras, “levem em conta nosso incansável e desrespeitoso saque das florestas e áreas selvagens do mundo, tudo em nome de mais consumo, autoestradas, estacionamentos e conveniência… Essa peça é sobre o glorioso canto dos pássaros, a ameaça que ele sofre, a perda, e o ruído sem alma que nos resta quando eles terminarem”.
O alemão Helmut Oehring, filho de surdos, cresceu com todos motivos para admirar e compreender Beethoven. Em GOYA I – Yo lo vi,ele lembra as trajetórias paralelas do renano e de seu contemporâneo espanhol, Francisco de Goya, cujas surdezes começaram na mesma época, levando-os ao isolamento. A atração inicial e posterior rejeição aos ideais napoleônicos também é abordada na obra, bem como os testemunhos oculares que ambos foram dos horrores da guerra (Yo lo vi refere-se a uma famosa gravura de Goya, que representa uma dramática cena com vítimas civis). Há citações da Eroica e da Vitória de Wellington – representativas da desilusão com Napoleão e da celebração de sua derrota -, bem como de concertos para piano e do sublime quarteto Op. 132. Os Two Episodes do finlandês Magnus Lindberg, por sua vez, servem como prelúdio para a Nona Sinfonia. Escritos para as mesmas forças orquestrais da obra mais velha, eles evocam, em ordem, o poderoso tutti do primeiro movimento e o Adagio molto e cantabile, numa homenagem ao compositor que, para Lindberg, “sempre representou o que significa ser um compositor contemporâneo”.
A provocativa The nine symphonies of Beethoven, de Louis Andriessen, foi composta para “orquestra e sineta de sorveteiro”. Estreada em 1970, durante o bicentenário do compositor, ela não manifesta qualquer objeção a Beethoven, e sim acerca da predominância de suas sinfonias no repertório, em detrimento de música contemporânea. Ela é, grosso modo, um mexidão das nove sinfonias em ordem cronológica, com intervenções de outros gêneros mais modernos (alguns ultramodernos), das onipresentes Pour Elise e Sonata ao Luar, uma participação especial do Barbeiro de Sevilha e, claro, da sineta do sorveteiro.
Nossa compilação se encerra com duas obras de maior escopo. A primeira, a Sinfonia no. 5 do estadunidense Christopher Rouse, serve como homenagem explícita ao renano, que primeiro o impressionou aos tenros seis anos, justamente com sua Quinta Sinfonia. Quando chegou a sua vez de escrever sua Quinta, Rouse resolveu abri-la com a mesma famosa célula rítmica da contraparte, seguindo um plano semelhante ao dela, embora com linguagens completamente diferentes. Por fim, Frieze,de Mark-Anthony Turnage, cujo nome se refere ao “Friso Beethoven” de Gustav Klimt, obra fundamental do Palácio da Secessão em Viena, foi composta para servir de prelúdio à Nona Sinfonia a pedido da mesma Royal Philharmonic Society que primeiramente a encomendou ao renano, e segue em seus quatro movimentos os mesmos estados de ânimo da obra icônica.
Brett Dean (1961)
1 – Testament, para orquestra de câmara (2008)
Tasmanian Symphony Orchestra Sebastian Lang-Lessing, regência
2 – Pastoral Symphony,para orquestra de câmara (2000)
Svenska Kammarorkestern H. K. Gruber, regência
Helmut OEHRING (1961)
3 – GOYA I – Yo lo vi, para orquestra (2006)
SWR Symphonieorchester Rupert Huber, regência
Magnus LINDBERG (1958) Two Episodes (2016)
4 – No. 1
5 – No. 2
Finnish Radio Symphony Orchestra (Radion sinfoniaorkesteri) Hannu Lintu, regência
Louis ANDRIESSEN (1939)
6 – The nine symphonies of Beethoven, para orquestra e sineta de sorveteiro (1970)
Holland Festival Orchestra Louis Andriessen, regência
John Adams (1947) é um dos mais interessantes compositores de nossa época. Sua devoção pela obra de Beethoven (seu compositor favorito, junto com Bartók) despertou muito cedo, e iniciou por onde os fãs de Ludwig costumam terminar: os quartetos de cordas, principalmente as cinco obras-primas da maturidade (seis, se contarmos a Grande Fuga). Os dois quartetos de cordas de Adams refletem essa forte influência, sem tentar emulá-la – até porque ele, enfim, sabe do que Beethoven é feito.
Entre suas obras recentes, Absolute Jest (2011) é uma das que se baseiam literalmente em obras de Beethoven. Este scherzo para quarteto de cordas e orquestra usa fragmentos – às vezes, meros gestos – dos grandes quartetos Opp. 131 e 135 e da Grande Fuga supracitada. A quase meia hora de composição é uma jornada frenética, à altura das melhores obras de Adams, em que as partículas beethovenianas surgem, espalham-se e reagrupam-se das maneiras mais surpreendentes. O compositor sempre admirou a “energia extática” de Beethoven e como ele era “mestre em tomar a mínima quantidade de informação e transformá-la em estruturas fantásticas, expressivas e energizadas”. A julgar por esta gravação, capitaneada por alguém que conhece muito bem os quartetos do renano – Peter Oundjian, o primeiro violino do Tokyo String Quartet em sua melhor formação -, Adams segue com dedicação os passos do mestre, que, não duvido, aprovaria o resultado.
A outra obra de Adams que lhes trago, Roll over Beethoven (2012), apesar do nome, nada tem de chuckberryano, além da energia. Baseado no Second Quartet, a partir do qual foi habilmente transcrito por Preben Antonsen para dois pianos, ele devolve aos teclados os fragmentos de temas tomados à sonata Op. 110 e às Variações Diabelli para desenvolvimento no quarteto de cordas. Adams pretendia levar “esses pequenos fractais musicais para um grand tour duma sala de espelhos harmônica e rítmica”. Cheia de dinamismo e muito transparente, parece-me mais bem-sucedida que o próprio Second Quartet e é uma adição formidável ao repertório para a formação.
John ADAMS (1947)
Absolute Jest, para quarteto de cordas e orquestra (2011)
1 – Beginning
2 – Presto
3 – Lo stesso tempo
4 – Meno mosso
5 – Vivacissimo
6 – Prestissimo
Doric String Quartet Royal Scottish Symphony Orchestra Peter Oundjian, regência
No jubileu do grande homem, deixemo-lo descansar – e que ele receba homenagens dos compositores, cujo ofício foi revolucionado pela marcante passagem do renano por esse mundo.
Ao gravar sua integral das sinfonias de Beethoven com os bávaros da rádio, ocorreu ao maravilhoso Mariss Jansons encomendar a compositores contemporâneos algumas reflexões sobre o Mestre. As respostas, que ouvirão no disco a seguir, não só comentam as sinfonias, como também tentam evocar sentimentos e sensações associadas a Beethoven. Não à toa, o Testamento de Heiligenstadt e a surdez lhes são temas recorrentes.
Maniai (“Fúrias), de Johannes Maria Staud, por exemplo, evoca a espiral descendente de cólera em que Beethoven mergulhou ao constatar a surdez, entre a composição da Primeira e da Segunda sinfonias. Rodion Shchedrin, em contrapartida, oferece uma peça que se projeta das trevas para a luz, como se o desespero e a contemplação suicida de Heiligenstadt se transfigurassem na resolução de viver (e sobreviver) através da Arte. Fires, da lituana Raminta Šerkšnytė, conjura sons associados à própria perda auditiva, enquanto Dixi (“Eu disse”), do georgiano Giya Kancheli, serve como eloquente comentário à Nona Sinfonia.
Ainda que as obras sustentem-se bem por si sós, elas foram concebidas para serem ouvidas em determinados lugares dentro da série de sinfonias de Beethoven. Assim, sugiro que, depois de baixarem o disco, aproveitem os links que disponibilizarei logo abaixo para as gravações das sinfonias, a fim de que possam desfrutar dessas instigantes reflexões dentro dos contextos pretendidos por seus compositores.
Ao longo de seus quarenta e cinco anos de carreira, Beethoven tomou emprestados dezenas de temas a seus colegas compositores. No começo, ele o fazia simplesmente porque a forma do tema com variações era muito popular entre os compositores-pianistas, e era praxe lucrativa compor sobre árias e canções em voga. Ao estabelecer-se como o melhor pianista de Viena, ele acostumou-se a usar temas alheios – às vezes já conhecidos, outras vezes ditados pelo público ou mesmo por rivais – para exibir seu talento como improvisador, pelo qual foi por um bom tempo até mais famoso do que como compositor. Por fim, e principalmente nas Variações “Diabelli”, ele mostrava a sua incomparável capacidade de transformar o mais frugal dos temas ao decompô-lo, parodiá-lo e reinventá-lo, enquanto exibia seu enciclopédico conhecimento das capacidades do teclado.
O bicho era tão bom nisso que não surpreende que poucos compositores depois dele tenham tomado seus temas para comporem variações – ninguém, enfim, quer mostrar seus pés pequenos sambando dentro de tão grandes chinelas. Um dos poucos insensatos a fazê-lo foi Max Reger…
… que, só pela cara, a gente já vê que manjava de todos os paranauê.
De fato, sua vasta e mormente desconhecida obra demonstra duma forma quase fanfarronística seu domínio das técnicas de composição. Escrever fugas, por exemplo, parecia-lhe um passatempo. Compor variações E fuga sobre um tema de Beethoven, então, jamais o intimidaria – foi ele, enfim, o homem responsável pela transcrição de muito da obra de J. S. Bach para duo pianístico, o que fez com muita competência e resistindo firme à tomatina que lhe jogaram.
As “Variações e Fuga sobre um Tema de Beethoven” (1904) são uma obra fundamental do repertório para duo, e aliás uma das poucas composições de Reger que, infelizmente, aparecem com alguma frequência em qualquer repertório. O tema que escolheu foi o da breve bagatela para piano em Si bemol maior, Op. 119, no. 11, que ele passa por um rigoroso corredor-polonês contrapontístico que culmina – como era seu costume em obras com variações – com uma assertiva fuga final. Anos mais tarde, ele orquestraria oito das doze variações, mas a roupagem sinfônica não conquistou a relativa popularidade do original.
Neste álbum duplo que lhes apresento, a obra ganha um ótimo tratamento por dois artistas de primeiríssima. András Schiff e Peter Serkin apresentaram o repertório do disco numa série de recitais ao longo de 1999, para enfim gravá-lo em New York, e é evidente que se deram muito bem no processo. Tenho pena, só, das duas singelas obras de Mozart, eclipsadas pelas variações de Reger e pela tonitruante Fantasia Contrappuntistica de Busoni que, apesar de inicialmente intitulada Grosse Fuge, homenageia a “Arte da Fuga” de J. S. Bach. Talvez seja demais para uma quinta-feira à tarde, então compreenderia se, para prevenirem a saturação sensorial (se é que eu já não os saturei para sempre com tanto Beethoven), vocês salvassem o álbum para ouvi-lo depois dum bom tempo longe de mim.
Wolfgang Amadeus MOZART (1756-1791)
Fuga em Dó menor para dois pianos, K. 426
1 – Allegro Moderato
Johann Baptist Joseph Maximilian REGER (1873-1916)
Variações e fuga sobre um tema de Beethoven para dois pianos, Op. 86
2 – Thema: Andante
3 – Un poco più lento
4 – Agitato
5 – Andantino grazioso
6 – Andante sostenuto
7 – Appassionato
8 – Andante sostenuto
9 – Vivace
10 – Sostenuto
11 – Vivace
12 – Poco vivace
13 – Andante con grazia
14 – Allegro pomposo
15 – Fuge: Allegro con spirito
Depois que publiquei o epílogo de nossa travessia da integral da obra beethoveniana, um querido colega procurou-me aqui em minha jaulinha no subsolo da PQP Tower. Ele me agradeceu pelas postagens e comentou que eu adotara uma abordagem à Benjamin Button, descrevendo, às portas do aniversário de Beethoven e com toda riqueza de excretas e coágulos, as miseráveis semanas finais de nosso herói.
O colega, que tem toda razão no comentário, completou, com seu habitual bom humor, que esperava “sangue e pústulas” na descrição do nascimento de Ludwig, que aconteceu em algum dia próximo ao 17 de dezembro em que foi batizado.
Temia decepcioná-lo, pois Ludovicus van Beethoven era um Zé-Ninguém (ou, talvez, uns “Niemand-Hans”) quando nasceu na casinha da Bonngasse, no. 20. Assim, diferentemente de sua morte, cinquenta e seis anos depois, quando era amplamente reconhecido como o maior músico da Europa, não há qualquer registro preciso nem da data, nem das circunstâncias em que ocorreu seu nascimento. Suponho que não houvesse pústulas, pois elas costumam surgir em infecções, e naquela época elas costumavam matar os recém-nascidos. O sangue, no entanto, me parece assegurado: o parto, afinal, sempre foi uma cena poderosa, talvez bela, e invariavelmente brutal.
Assegurado, também, era que Ludwig se tornaria músico – ou, pelo menos, que tentariam transformá-lo num. Afinal, seu avô e padrinho, nascido Lodewijk na flamenga Mechelen, mas que adorarei chamar de Ludwig van Beethoven, o Velho, chegara a Bonn para ser baixo e galgara a hierarquia musical da corte do Eleitor de Colônia até chegar ao cargo de Kapellmeister. Seu único filho que sobreviveu à infância, Johann, seria tenor na mesma corte e, após casar-se com a cozinheira Maria Magdalena Keverich, deu ao mundo nosso herói daqueles meados de dezembro de 1770.
Digo 1770, mas se o dissesse a Ludwig, o Jovem, ele não acreditaria em mim, pois jurou de pés juntos uma boa parte da vida que nascera em 1772. Quando lhe apresentaram um certificado baseado no registro de batismo, dando conta de que um Ludwig van Beethoven nascido em 1770, ele escreveu no verso dele o seguinte:
“Es scheint der Taufschein nicht richtig, da noch ein Ludwig vor mir. Eine Baumgarten war glaube mein Pathe”
(“A certidão de batismo não parece correta, há outro [ou é um outro] Ludwig antes de mim. Eu acho que uma Baumgarten era minha madrinha”)
E assinava:
“1772. Ludwig van Beethoven”
Teimosia? Certamente, e muita – e legendária! -, mas Ludwig tinha seus motivos para acreditar no engano. Seu pai, Johann, era um sujeito avaro e truculento (e deixo barato ao assim chamá-lo), que enxergou na óbvia aptidão do primogênito uma potencial mina de ouro, ao torná-lo um menino-prodígio. Sob muita violência física e psíquica, tentou forjar um Wunderkind e, quando o apresentou em público pela primeira vez em Colônia, em 1778, alegava que ele tinha seis anos. Quando o garoto publicou sua primeira obra, em 1772, o frontispício atribuía-lhe apenas dez.
Ludwig teve vários professores na infância – incluindo o próprio pai, Johann; Gilles van den Eeden, organista da corte; Tobias Friedrich Pfeiffer, professor de piano; e Franz Rovantini, que lhe ensinou violino e viola. A pedagogia era incorporada aos maus tratos. Sem nem mencionar os do pai, a quem Ludwig odiaria por toda a vida, o tal Pfeiffer tinha insônia e tirava o menino da cama de madrugada para obrigá-lo a estudar. O primeiro professor de quem guardou boas lembranças foi Christian Gottlob Neefe, um saxão luterano que só foi empregado na corte católica de Bonn porque o novo Eleitor de Colônia, Maximilian Franz, era razoavelmente liberal e aberto a todas artes e artistas. Neefe certamente não era um músico brilhante, mas era culto e amável com o menino, para quem arranjou o cargo de seu assistente como organista da corte e também a publicação das variações “Dressler” em Mannheim. O competente moleque não se tornaria um menino-prodígio, apesar de sua grande capacidade, e só atrairia alguma atenção quando adolescente. A morte da querida mãe piorou a situação doméstica, que só afundava com o alcoolismo de Johann. Em 1792, como já lhes contei em outra postagem, Ludwig deixou Bonn para nunca mais retornar. Seus destinos eram Viena e Haydn, o maior compositor europeu vivo, com quem estudaria sob o patrocínio do Eleitor de Colônia. Os estudos com Papa foram erráticos e, a seu ver, insatisfatórios. Depois de causar uma saia-justa ao velho mestre, a quem mentiu sobre composições novas que tinham sido compostas em Bonn, e que deve ter ficado com cara de tacho quando escreveu ao Eleitor de Colônia citando-as como obras novas, terminaram de comum acordo a relação pedagógica. Embora nunca poupasse acidez ao falar dos estudos com o Mestre de Rohrau, Beethoven admitiria paulatinamente que os estudos com ele lhe foram importantes. Mais tarde, como também já lhes contamos, Ludwig tomaria lições de contraponto com Albrechtsberger, o organista e Kapellmeister da Stephansdom, na capital imperial – um sujeito que eu, confesso, escolheria só pelo sobrenome para ter aulas de contraponto.
[e acharam que eu não mencionaria aqueles hilariantes concertos para marranzano? Pois se enganaram]
Vocês já devem ter deduzido que eles meus chalalás sobre os professores de Beethoven tinham só a finalidade de introduzir-lhes estas gravações. Pois bem: além da integral de Ludwig para piano a quatro mãos, na qual somente a transcrição da Grande Fuga é digna de nota, este ótimo álbum duplo traz obras dos ditos-cujos – o que é ótimo, pois é sempre uma dureza apresentar o repertório beethoveniano para duo pianístico. Não que estas sejam lá coisas inesquecíveis, mas os arranjos de Neefe para trechos da “Flauta Mágica” são muito simpáticos, e a fuga de Albrechtsberger pareceu a primeira obra do homem a merecer algum lugar no repertório. O ponto alto, para mim, é o divertimento de Haydn. Baseado no tema do “Ferreiro Harmonioso” e alcunhado “‘Il Maestro e lo Scolare” (“O Mestre e o Aluno”), descreve a relação de ambos. A obra foi composta antes de Haydn conhecer o aluno mais famoso, e fico imaginando, se ele a compusesse depois disso, se o “tema com variações” e o “minuetto” não seriam substituídos com um “Grave con furia” e um “Andante con molta malinconia”. E me redimo da infeliz piada de tiozão comentando que a escolha de fortepianos para executar as obras foi muito feliz, e que a Grande Fuga, em particular, soa muito satisfatória no timbre dos instrumentos anciões.
Em tempo: apesar do que alega a ademais cuidadosa Naxos na capa do disco, o conde Waldstein não foi professor de Beethoven. Ele foi, sim, seu patrono e empregador – Beethoven foi o ghost writer do Ritterballet que Waldstein estreou num baile como seu próprio – e lhe forneceu o tema para as variações para piano a quatro mãos que está no disco, além de dedicatário da brilhante sonata “Waldstein” e autor do profético bilhete que adornou o livro de despedida de Ludwig, quando este partiu para Viena:
Lieber Beethowen!
Sie reisen itzt nach Wien zur Erfüllung ihrer so lange bestrittenen Wünsche. Mozart’s Genius trauert noch und beweinet den Tod seines Zöglinges. Bey dem unerschöpflichem Hayden fand er Zuflucht, aber keine Beschäftigung; durch ihn wünscht er noch einmal mit jemanden vereinigt zu werden. Durch ununterbrochenen Fleiß erhalten Sie: Mozart’s Geist aus Haydens Händen.
Bonn d 29t. Oct. 792. Ihr warer Freund Waldstein”
“Caro Beethowen!
Você viaja agora para Viena para realizar suas vontades tão longamente constritas. O gênio de Mozart ainda está de luto
e chorando pela morte de seu pupilo. Ele encontrou refúgio no inesgotável Hayden, mas não tinha emprego; através deste, ele deseja unir-se uma vez mais a alguém. Por meio de diligência ininterrupta você obtém: o espírito de Mozart das mãos de Hayden.
Bonn, 29 de outubro de [1]792. Seu querido amigo Waldstein”
Ludwig van BEETHOVEN (1770–1827)
Sonata para piano a quatro mãos em Ré maior, Op. 6 (1797)
1- Allegro molto
2 – Rondo: Moderato
Christian Gottlob NEEFE (1748–1798)
Seis peças fáceis para piano a quatro mãos, baseadas em trechos da ópera Die Zauberflöte, de Mozart (1793)
3 – No. 1: Der Vogelfänger bin ich ja
4 – No. 2: Bei Männern, welche Liebe fühlen
5 – No. 3: Soll ich dich, Teurer, nicht mehr seh’n
6 – No. 4: Das klinget so herrlich
7 – No. 5: Ein Mädchen oder Weibchen
8 – No. 6: Klinget, Glockchen, klinget
Ludwig van BEETHOVEN
Oito variações em Dó maior sobre um tema do conde Waldstein, para piano a quatro mãos, WoO 67 (1794)
9 – Thema – Variationen I-VIII
Johann Georg ALBRECHTSBERGER (1736–1809)
Prelúdio e fuga em Si bemol maior (1796)
10 – Sem indicação de andamento
Ludwig van BEETHOVEN
Três marchas para piano a quatro mãos, Op. 45 (1804)
11 – No. 1 em Dó maior
12 – No. 2 em Mi bemol maior
13 – No. 3 em Ré maior
Ninguém sabe ao certo quando Beethoven nasceu – e nem ele sabia. Seu registro de batismo data de 17 de dezembro de 1770, e era a praxe no Eleitorado de Colônia que os bebês fossem registrados até o primeiro dia de vida. Assim, era muito provável que ele tivesse nascido mesmo em 16 de dezembro, dia que ele considerava seu natalício. Em sua Bonn natal, entretanto, a grande celebração anual de Beethoven sempre aconteceu no dia 17, no chamado “Dia Batismal”.
Os alemães acreditam que dar os parabéns antes do aniversário dá má sorte, mas eles próprios adoram o costume de reinfeiern, que consiste em iniciar as comemorações do natalício na véspera, antes da meia-noite. Os convivas chegam, cumprimentam o em-breve aniversariante sem dar-lhe os parabéns e, tão logo chega a meia-noite, cantam a inescapável musiquinha:
Como nosso herói era alemão, e ele não precisa de mais má sorte do que aquela tanta que teve durante sua passagem terrena, resolvi parabenizá-lo um minuto depois da meia-noite.
Os presentes, mundo afora, serão alcançados em todo lugar em que houver um seu fã, onde houver um músico, onde existir uma sala de concertos. Aqui, como já sabem, preferimos preparar nosso presente ao longo do ano, para que ele culminasse justamente nesses 16 e 17 de dezembro. E conseguimos: toda a obra publicada de Beethoven foi aqui apresentada, comentada e compartilhada em gravações até então inéditas no PQP Bach.
Para ajudá-los na navegação desse acervo, bem como a encontrar os textos que se referem as obras, preparamos este índice em que as composições estão listadas na ordem crescente dos principais catálogos dedicados a Beethoven: seu catálogo pessoal de obras (indicadas pelo número de Opus), o Kinsky-Halm (Werke ohne Opuszahl, WoO), o de Willy Hess (Hess) e o de Giovanni Biamonti (Bia).
Cabe lembrar que, embora a maioria das obras apareça em todos os catálogos, algumas são específicas àqueles mais recentemente atualizados (caso do Biamonti, o único a organizar todas as composições e fragmentos numa só relação cronológica). Notem também que, na medida do possível, evitamos publicar as composições erroneamente atribuídas a Beethoven (indicadas na lista como “espúrias”) ou de atribuição duvidosa (que aparecem nos apêndices – Anhang, Anh.) dos catálogos Kinsky-Halm e Hess.
Ainda que esta lista abranja todas as obras publicadas de Beethoven que tenham sido gravadas, é evidente que ela terá omissões. Todas obras importantes, bem como todas aquelas que alguma vez pretendeu que se tornassem públicas, aqui estão. Entre os inúmeros esboços e fragmentos espalhados em desordem por seus cadernos de anotações mundo afora, há muitos que ainda não foram publicados e gravados. Assim, esta lista seguirá aberta, e será completada à medida que novos itens, por mais curtos que sejam, vierem a ser acrescentados à discografia de Beethoven.
Na relação abaixo, o link que acompanha o título da obra leva à publicação em que ela é comentada, enquanto os números entre colchetes indicam interpretações alternativas das obras – o que não significa, claro, que elas sejam piores.
Por fim, ressalvo que a lista inclui somente as publicações feitas dentro da série “A Obra Completa de Ludwig van Beethoven”. Houve muitas outras, com preciosas contribuições de meus colegas de blog, e que vós outros poderão encontrar ao clicarem no “BTHVN” abaixo, escrito pelo próprio punho de Beethoven (porque, sim, além de gênio da Música, ele também bolou o logo de seu 250º aniversário!)
RELAÇÃO DAS OBRAS PUBLICADAS NA SÉRIE “BTHVN 250 – A OBRA COMPLETA DE LUDWIG VAN BEETHOVEN”
Esses incríveis retratos digitais de Beethoven basearam-se em sua máscara feita em vida e em pinturas contemporâneas consideradas fidedignas por pessoas que o conheceram, e são obras do fantástico artista iraniano Hadi Karimi (www.hadikarimi.com)
Este é um lançamento recentíssimo que me apresso a postar antes da data máxima. Ouvi-o rapidamente e fiquei muito feliz com ele. Duas excelentes Sonatas executadas pela incrível competência e elegância de Ehnes, acompanhado por seu fiel escudeiro Armstrong. Este disco, que finaliza a integral das Sonatas de Beethoven da dupla, confirma as qualidades especiais dos lançamentos anteriores: conjunto imaculado, equilíbrio, uma sensação da estrutura da música estar se desdobrando perfeitamente e com espontaneidade, criando a impressão de que os músicos vão descobrindo as qualidades especiais da música como se fosse a primeira vez. Ehnes não é um bobão, faz música sem o menor indício de ser um “solista em ação”. Alguns podem achar que a personalidade criativa de Beethoven é um pouco subprojetada aqui. No entanto, a perfeição de Ehnes — cada nota possui especial brilho — é uma fonte constante de admiração. O mesmo ocorre com a habilidade fantástica de Armstrong de fazer parceria com o violino de uma forma que sutilmente disfarça a disparidade entre o potencial de sonoro dos dois instrumentos (da qual Beethoven estava bem ciente).
Ludwig van Beethoven (1770-1827): Sonatas para Violino Nos. 7 & 10 (Ehnes / Armstrong)
01. Violin Sonata No. 7 in C Minor, Op. 30 No. 2: I. Allegro con brio
02. Violin Sonata No. 7 in C Minor, Op. 30 No. 2: II. Adagio cantabile
03. Violin Sonata No. 7 in C Minor, Op. 30 No. 2: III. Scherzo (Allegro)
04. Violin Sonata No. 7 in C Minor, Op. 30 No. 2: IV. Finale (Allegro)
05. Violin Sonata No. 10 in G Major, Op. 96: I. Allegro moderato
06. Violin Sonata No. 10 in G Major, Op. 96: II. Adagio espressivo
07. Violin Sonata No. 10 in G Major, Op. 96: III. Scherzo (Allegro)
08. Violin Sonata No. 10 in G Major, Op. 96: IV. Poco allegretto
A dor nos flancos que recebeu Beethoven no retorno de Gneixendorf agravou-se, e em alguns dias ele estava a afogar-se no sangue que cuspia. Após alguns dias de aparente melhora, passou a vomitar incoercivelmente. Sua pele ficou amarelada, e as pernas e abdome tornaram-se grotescamente inchados. Um médico realizou uma punção para retirar líquido e aliviar-lhe o abdome, depois da qual piorou muito. Propuseram-lhe várias medicações, e a única que lhe adiantou alguma coisa foi um ponche de ervas que Schindler arranjou e, goró que era, ele adorou. Sob o efeito do remédio, que talvez tão só lhe saciasse a sede por álcool, Beethoven melhorou e voltou a contar piadas. Quando ficou óbvio que ele estava a abusar da panaceia, os médicos cortaram seu barato. Ele piorou, ficando ainda mais inchado, alternando períodos de lucidez com desorientação. Outras punções do abdome – paracenteses, no jargão médico – foram realizadas. Logo ficou óbvio que ele não melhoraria, e arranjaram um padre para administrar-lhe a Extrema Unção. Beethoven, que sempre fora um anticlerical, aceitou os ritos com aparente serenidade. Ao se espalhar a notícia de que ele estava em angústias de morte, amigos e parentes começaram a chegar a seu caótico apartamento na Schwarzspanierhaus – o último de seus sessenta e sete endereços em Viena. Vinham, também, presentes. Quando lhe mostraram uma caixa de vinho Riesling enviada pelo seu editor Schott, de Mainz, Ludwig lamentou:
Pena, pena: tarde demais!
Seriam suas últimas palavras.
Em seguida ele mergulharia em obnubilação e coma. A julgar pelos relatos dos contemporâneos, teriam sido necessárias arquibancadas para acomodar todos aqueles que afirmaram estarem do seu lado no seu leito de morte. Seu irmão Johann e o fiel amigo e secretário Karl Holz estavam próximos, mas apenas o amigo Hüttenbrenner e a cunhada Therese testemunharam o momento em que, na tarde de 26 de março de 1827, durante uma brutal tormenta, Ludwig revirou-se na cama e, fazendo um brusco gesto com um dos braços, expirou.
Tinha cinquenta e seis anos.
ooOoo
Ninguém tem certeza, mas é bastante provável que a detalhada autópsia que se realizou no famélico cadáver tenha sido encomendada pelo próprio Beethoven, que vinte e cinco anos antes manifestara, no chamado “Testamento de Heiligenstadt”, a vontade de que o mundo soubesse o que o levara à surdez:
Peço-vos, meus irmãos, assim que eu fechar os olhos, se o professor Schmidt [seu então médico] ainda for vivo, fazer-lhe em meu nome o pedido de descrever a minha moléstia e juntai a isto que aqui escrevo para que o mundo, depois de minha morte, se reconcilie comigo”
Para alguns mórbido, para outros (eu incluso) fascinante, o laudo da autópsia de Beethoven, escrito em latim, foi encontrado em 1970, ano do bicentenário do Mestre. Entre os achados, cirrose do fígado e uma imensa quantidade de líquido dentro do abdome, que levam o profissional de saúde que sou nas horas vagas a concluir que Ludwig morreu de insuficiência hepática, provavelmente decorrente do alcoolismo, para qual a gota d’água foi a pneumonia que ele contraiu ao brigar com o irmão em Gneixendorf e voltar para Viena numa carroça de leite. Sobre seus ouvidos, lamentavelmente, nada se pôde concluir: apesar da autópsia mostrar que eles estavam gravemente comprometidos, não se chegou a um diagnóstico definitivo. Beethoven, esteja onde estiver, segue sem saber a causa da surdez que o desgraçou, embora haja – como em quase tudo que lhe diz respeito à vida – muitas suposições e anedotas.
[há muito mais para comentar, e muito ainda se escreve e se pesquisa acerca das pestes que assolaram Ludwig a vida toda e a doença que acabaria por matá-lo. Encerro o plantão médico por aqui, mas convido os interessados a continuarmos o assunto, que envolve chumbo mas provavelmente não mencionará sífilis, na caixa de comentários]
Dois dias depois da morte, o corpo de Beethoven foi preparado para o funeral. Tomaram-lhe um molde para a máscara mortuária, vestiram-no com uma túnica e um gorro – ao estilo de Dante – e coroaram-no com rosas. Já no caixão, as mãos de Ludwig receberam uma cruz (que ele certamente estranharia) e um lírio – sua flor favorita.
O cortejo fúnebre reuniu dezenas de milhares de pessoas. Entre os que se revezaram na condução do caixão, naturalmente predominavam os músicos. Os mais notáveis eram Seyfried, Weigl, Gyrowetz, e Hummel, dos quais apenas este último ainda é ouvido nos dias de hoje. Junto a eles estava alguém que bem que poderia ser eu, um introspecto rapaz de óculos que idolatrava Beethoven. Diferentemente de mim, no entanto, Franz Schubert era um gênio. Dentro de um ano, por ocasião do primeiro aniversário da morte de Ludwig, ele teria, com o primeiro concerto público de suas obras, o único gosto de sucesso em sua breve vida. Não veria o final daquele 1828, pois morreria em novembro. De acordo com Hüttenbrenner, ao retornar do funeral de Beethoven, Schubert fez um brinde ao venerado mestre, acrescentando um outro “àquele que enterraremos a seguir” – sem imaginar que brindava a si mesmo.
Claro que houve música no funeral: além do Réquiem de Cherubini (hoje esquecido, mas muito admirado por Beethoven), foram ouvidas três peças do mestre. Uma delas foi a “Marcha Fúnebre” da sonata Op. 26, na orquestração que ele preparara para a música de cena de “Leonore Prohaska”. As outras foram dois de seus três “equali” para trombone, num arranjo vocal de Ignaz Seyfried que, apesar de publicado, eu nunca soube se foi gravado.
De acordo com a praxe da época, uma ode fúnebre foi declamada à turba na entrada do cemitério. Escrita pelo então famoso dramaturgo Franz Grillparzer, ela foi assim lida pelo ator Heinrich Anschütz:
Nós, que estamos aqui junto ao túmulo do falecido, somos, em certo sentido, os representantes de uma nação inteira, todo o povo alemão, vindo para lamentar o falecimento de uma metade célebre daquilo que nos restou do brilho desaparecido da Pátria. O herói da poesia na língua e na língua alemã [Goethe] ainda vive – e que viva muito! Mas o último mestre da canção retumbante, a boca graciosa pela qual a música falava, o homem que herdou e aumentou a fama imortal de Händel e Bach, de Haydn e Mozart, deixou de existir; e ficamos chorando pelas cordas partidas de um instrumento agora calado.
Um instrumento agora calado – deixem-me chamá-lo assim! Pois ele era um artista, e o que era, o era apenas por meio da arte. Os espinhos da vida o feriram profundamente, e, tal qual o náufrago que se agarra à costa salvadora, voou para os teus braços, ó maravilhosa irmã dos bons e verdadeiros, consoladora na aflição, a Arte que vem do alto! Ele se agarrou a você, e, mesmo quando o portão pelo qual você entrou foi fechado, você falou por um ouvido surdo àquele que não mais a podia discernir; e ele carregou sua imagem em seu coração e, quando ele morreu, ela ainda estava em seu peito.
Ele era um artista – e quem ficará ao lado dele? Tal qual o gigante varre os mares, ele trespassou os limites de sua arte. Do arrulhar da pomba ao ruído do trovão, do mais engenhoso entrelaçamento de artifícios intencionais até aquele ponto terrível em que o tecido pressiona para a desordem das forças naturais em choque – ele atravessou tudo, ele compreendeu tudo. Quem o segue não pode continuar; ele deve começar de novo, pois seu predecessor terminou onde a Arte termina.
Adelaide e Leonore! Celebrações dos heróis de Vittoria e humílimos tons da Missa! Prole de três e quatro vozes. Sinfonia retumbante, “Freude, schöner Götterfunken” – o Canto do Cisne. Musas de canto e de cordas, reúnam-se em seu túmulo e cubram-no com louros!
Ele era um artista, mas também um homem, um homem em todos os sentidos, no mais elevado dos sentidos. Porque ele se isolou do mundo, eles o chamaram de hostil; e insensível, porque evitava sentimentos. Oh, quem sabe que está empedernido não foge! (é o ponto mais delicado que mais facilmente se cega, que se dobra, que parte).
O excesso de sentimento evita sentimentos. Ele fugiu do mundo porque não encontrou, em todo o âmbito de sua natureza amorosa, uma arma para resistir a ela. Ele se afastou de seus semelhantes depois de dar tudo a eles e não receber nada em troca. Ele permaneceu sozinho porque não encontrou um segundo eu. Mas, até sua morte, ele preservou um coração humano para todos os homens, um coração de pai para seu próprio povo: o mundo inteiro.
Assim ele foi, assim ele morreu, assim ele viverá para sempre!
E você, que seguiu seu cortejo até este lugar, mantenha sua tristeza sob controle. Você não o perdeu, mas o ganhou. Nenhum homem vivo entra nos corredores da imortalidade. O corpo deve morrer antes que os portões sejam abertos. Aquele por quem você lamenta está agora entre os maiores homens de todos os tempos, para sempre inexpugnável. Voltem para suas casas, então, angustiados, mas recompostos. E sempre que, durante suas vidas, o poder de suas obras os oprimir como uma tempestade que se aproxima; quando o seu arrebatamento se derramar no meio de uma geração ainda não nascida; então, lembre-se desta hora e pense: nós estávamos lá quando o sepultaram, e quando ele morreu nós choramos!
E vocês me achavam prolixo…
ooOoo
O sossego de Beethoven foi interrompido em duas ocasiões. Na primeira, em 1863, quando seus restos mortais (e os de Schubert) foram exumados e estudados pela Sociedade de Amigos da Música de Viena. Na ocasião, foi tomada uma fotografia de seu crânio que, juntamente com várias mechas de cabelo espalhadas pelo mundo, são as únicas relíquias que restaram da combalida carcaça do Mestre. A segunda exumação, em 1888, ocorreu por causa da desativação do velho cemitério de Währing, e seguiu-se duma pomposa procissão de honra que levou os despojos de Beethoven e Schubert até o distante Cemitério Central de Viena que, apesar do nome, está a uma eternidade do centro da cidade. Ali, Ludwig repousa próximo a vários de seus fãs – Schubert (que segue a seu lado), Brahms (dobrando a esquina) e até Schoenberg (um pouco mais adiante) – e é anualmente visitado por milhares de outros que asseguram, mesmo nos mais bicudos invernos, que o Mestre sempre receba flores frescas.
Termino de contar-lhes, aqui, as desventuras terrenas de Ludwig van Beethoven.
Admiti desde o começo desta série – quando eu e Beethoven éramos meninos de seis anos – que esse meu tributo composto ao longo de mais de dez meses seria completamente parcial. Sou fã de Beethoven e, assim como o mundo, não me consigo imaginar sem suas criações. E, ainda que sua improvável trajetória da provinciana Bonn à imperial Viena, através duma existência infeliz e quase todas agruras possíveis à saúde de um homem, esteja ligada de modo inexorável à sua produção artística, a apreciação de seu gênio prescinde completamente de nossa compaixão por ele. Basta-nos a contemplação do espetáculo: de seus burilados trios dos vinte e poucos anos ao quarteto que escreveu a poucos meses da morte; das ingênuas Variações “Dressler” à visionária Grande Fuga; do Op. 1 ao Op. 135, não há na História da Arte evolução mais coerente e impressionante que a deste homem que nasceu há exatos duzentos e cinquenta anos, num 16 de dezembro, para ser batizado no dia seguinte, que celebraria como seu aniversário.
ooOoo
Ao Mestre, com carinho.
In memoriam Ludwig van Beethoven – gênio da Música e herói de minha vida inteira – por ocasião de seu ducentésimo quinquagésimo aniversário
CONSVMMATVM EST 29-1-2020 – 16-12-2020
Vassily Genrikhovich
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Quarteto em Mi bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 127 Composto entre 1824-25 Publicado em 1826 Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1 – Maestoso – Allegro
2 – Adagio, ma non troppo e molto cantabile – Andante con moto – Adagio molto espressivo – Tempo I
3 – Scherzando vivace
4 – Allegro
Quarteto em Dó sustenido menor para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 131 Composto entre 1825-26 Publicado em 1827 Dedicado ao barão Joseph von Stutterheim
5 – Adagio ma non troppo e molto espressivo
6 – Allegro molto vivace
7 – Allegro moderato – Adagio
8 – Andante ma non troppo e molto cantabile – Andante moderato e lusinghiero – Adagio – Allegretto – Adagio, ma non troppo e semplice – Allegretto
9 – Presto
10 – Adagio quasi un poco andante
11 – Allegro BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Quarteto em Si bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 130 Composto entre 1824-25 Publicado em 1827 Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1- Adagio, ma non troppo – Allegro
2 – Presto
3 – Andante con moto, ma non troppo. Poco scherzoso
4 – Alla danza tedesca. Allegro assai
5 – Cavatina. Adagio molto espressivo
Grande Fuga em Si bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 133 6 – Overtura – Fuga – Meno mosso e moderato – Fuga – Coda
Quarteto em Lá menor para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 132 Composto em 1825 Publicado em 1826 Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1 – Assai sostenuto – Allegro
2 – Allegro ma non tanto
3 – Heiliger Dankgesang eines Genesenen an die Gottheit, in der Lydischen Tonart: Molto adagio – Andante
4 – Alla marcia, assai vivace – attacca:
5 – Allegro appassionato
Quarteto em Fá maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 135 Composto em 1826 Publicado em 1827 Dedicado a Johann Wolfmayer
6 – Allegretto
7 – Vivace
8 – Lento assai, cantante e tranquillo
9 – Der schwer gefaßte Entschluß. Grave, ma non troppo tratto (“Muss es sein?“) – Allegro (“Es muss sein!“) – Grave, ma non troppo tratto – Allegro
Depois da expansividade dos complexos quartetos Opp. 130 a 132, que redefiniram o gênero, e da visionária Grande Fuga, a aparente simplicidade do Op. 135 pode causar estranheza. Tanto em tamanho quanto em transparência das partes, ele é mais afeito aos primeiros quartetos do Op. 18 do que a qualquer um que Beethoven tenha escrito com grisalhos. Além disso, ele tem tão só os tradicionais quatro movimentos, na ordem em que ele os preferia na maturidade, com o Scherzo antes do movimento lento. As aparências, no entanto, são somente superficiais, pois só um consumado e experiente mestre poderia criá-lo – como se, depois de ousadas jornadas de expansão, Ludwig se voltasse agora para a concentração.
Transparência é quase tudo o que se ouve no melífluo primeiro movimento, repleto de delicadas filigranas e que, apesar da riqueza de detalhes das partes, desenvolve-se com leveza, sem a menor sugestão de prolixidade. Ele nos faz baixar a guarda completamente, a fim de que o enérgico e sincopado Scherzo – num gesto beethoveniano bem típico – nos surpreenda com sua energia crua, particularmente no alvoroçado solo de violino no Trio. Segue-se um belíssimo movimento lento, na distante tonalidade de Ré bemol maior, à guisa da Cavatina do Op. 130 ou do Cântico do Op. 132. Não há aqui, entretanto, nada de caloroso ou consolador: o tema e as variações são constritos, como se tentassem manter-se sob controle após a explosão temperamental do Scherzo.
Nenhum desses movimentos, no entanto, deu tanto pano para manga quanto o finale. Não é à toa: além de colocar-lhe o críptico título Der schwer gefasste Entschluss (“A decisão tomada com dificuldade”), Beethoven escreveu sobre a partitura as frases Muss es sein?/Es muss sein! (“Tem que ser?”/”Tem que ser!”), atribuindo-lhes fragmentos melódicos ouvidos no início do movimento – a pergunta enunciada em Grave por viola e violoncelo, e a resposta estridentemente dada em Allegro pelos violinos.
Muito – mas muito mesmo – se conjecturou sobre o que levou Beethoven a fazer isso no encerramento da derradeira obra de seu catálogo. Da aceitação da morte iminente até uma piada interna a um amigo para o qual perdera uma aposta, o cardápio de achismos e anedotas é vasto. Há quem afirme que as inscrições são uma referência a um certo Dembscher, um músico amador que queria tomar emprestada de Ludwig a partitura do Op. 130. Como ele não tinha comparecido à estreia do quarteto, o compositor recusou-se, e só cederia as partes da obra até então inédita se o rapaz pagasse retroativamente o ingresso do concerto do Quarteto Schuppanzigh. Dembscher, então, perguntou-lhe se assim tinha que ser, e Beethoven lhe respondeu com um cânone:
“Tem que ser! Sim, sim, sim, sim: pegue sua carteira!”
Pitoresco? Sem dúvidas, mas também por demais prosaico para aparecer com tanto destaque numa partitura duma obra importante. Muitos biógrafos, assim, preferiram levar a sério o que escreveu o editor Schlesinger, trinta anos depois:
Em relação à frase enigmática Muss es sein? que surge no último quarteto, acho que posso explicar seu significado melhor do que a maioria das pessoas, pois possuo o manuscrito original com as palavras escritas por sua própria mão, e quando ele as enviou, ele também escreveu o seguinte; ‘Você pode traduzir o Muss es sein como uma demonstração de que tive azar, não só porque foi extremamente difícil escrever isso quando eu tinha algo muito maior em minha mente, e porque eu só o escrevi de acordo com minha promessa a você, e porque estou precisando desesperadamente de dinheiro – o que é difícil de conseguir; ocorreu também que estava ansioso para enviar-lhe a obra em partes, para facilitar a gravação, e em toda Mödling (onde ele vivia) não consegui encontrar um único copista, por isso tive de copiá-la eu próprio, e você pode imaginar que função foi isso!”
Imagino que alguma lágrima deva ter escapado a Schlesinger ao receber as partes passadas a limpo nos hieróglifos de Beethoven, mas o que ele alegava (e que não podia provar materialmente, pois o bilhete do compositor se perdera num incêndio) realmente tinha fundamento. Que Ludwig precisava desesperadamente de dinheiro, isso nunca foi qualquer novidade (e foram poucas as postagens em nossa série em que não mencionamos suas aperturas financeiras); e o algo “muito maior” em sua mente bem que poderia ser a tentativa de suicídio de seu sobrinho Karl, que continha mais um pedido de socorro do que uma verdadeira intenção de matar-se, e que certamente carcomeu qualquer improvável reserva monetária que tivesse. No entanto, Beethoven não estava em Mödling, e sim em Gneixendorf, o que indica que, talvez, Schlesinger tenha tomado algumas licenças poéticas para com sua memória.
Qualquer que fosse a difícil decisão, ela também envolveu alguma indecisão sobre como intitulá-la: Beethoven hesitou entre der gezwungene Entschluss (“a decisão forçada”) e der harte Entschluss (“a dura decisão”) antes de chegar ao título definitivo. E parece mesmo que ela não foi firme, pois – após a introdução com a pergunta lenta e a resposta exultante – o movimento segue lépido até que, surpreendentemente, o tema da pergunta retorna, como uma soturna nota de advertência. Por fim, ele parece repelido por um episódio à maneira de dança e uma coda imensamente assertiva.
Um dos primeiros biógrafos de Beethoven encontrou a seguinte nota, com a medonha letra do compositor:
Aqui, meu caro amigo, está o meu último quarteto. Será o último; e de fato me deu muitos problemas, pois não consegui compor o último movimento. Mas como as suas cartas estavam a lembrar disso, no final decidi compô-lo. E é por isso que escrevi o lema: “A difícil resolução – Deve ser? – Deve ser, deve ser!”
Embora alguns estudiosos afirmem que Beethoven pretendesse inaugurar com o Op. 135 uma nova série de quartetos, ele não deixou qualquer anotação legível para algum outro. O enigmático movimento “Tem que ser?” acabou por encerrar a última obra que completaria. Depois dela, ainda escreveria o “Pequeno Finale” do Op. 130 – aquele que substituiu a Grande Fuga, extirpada para publicação separada – e faria outros esboços na tranquilidade de Gneixendorf, a uns 60 km de Viena, onde seu irmão Johann tinha uma propriedade rural. A bucólica estadia, no entanto, chegou a fim num tradicional acesso de cólera beethoveniana – e, no caso, envolvendo não apenas um, mais dois Beethovens – que o levou a deixar Gneixendorf intempestivamente. Conta-se que, por questão de orgulho, Ludwig se recusou a tomar emprestada a carruagem de Johann, e voltou numa carroça de leite aberta, em passos de formiga, no gelado inverno austríaco. Como a carroça não o levaria até Viena – talvez porque o carroceiro tenha se cansado dele -, passou uma noite numa espelunca sem aquecimento. Quando enfim chegou em casa, seus cinquenta e seis explodidos anos e a exposição insensata ao frio apresentaram-lhe a conta: uma dor aguda nos flancos e muita tosse.
A morte, com que sua carcaça flertara por toda a vida, fora finalmente convidada a entrar.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Quarteto em Mi bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 127 Composto entre 1824-25 Publicado em 1826 Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1 – Maestoso – Allegro
2 – Adagio, ma non troppo e molto cantabile – Andante con moto – Adagio molto espressivo – Tempo I
3 – Scherzando vivace
4 – Allegro
Quarteto em Fá maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 135 Composto em 1826 Publicado em 1827 Dedicado a Johann Wolfmayer
5 – Allegretto
6 – Vivace
7 – Lento assai, cantante e tranquillo
8 – Der schwer gefaßte Entschluß. Grave, ma non troppo tratto (“Muss es sein?“) – Allegro (“Es muss sein!“) – Grave, ma non troppo tratto – Allegro
Quarteto em Si bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 130 Composto entre 1824-25 Publicado em 1827 Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1- Adagio, ma non troppo – Allegro
2 – Presto
3 – Andante con moto, ma non troppo. Poco scherzoso
4 – Alla danza tedesca. Allegro assai
5 – Cavatina. Adagio molto espressivo
6 – Finale: Allegro
Grande Fuga em Si bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 133 Composto entre 1825-26 Publicado em 1827 Dedicado ao arquiduque Rudolph da Áustria 7 – Overtura – Fuga – Meno mosso e moderato – Fuga – Coda BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Quarteto em Dó sustenido menor para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 131 Composto entre 1825-26 Publicado em 1827 Dedicado ao barão Joseph von Stutterheim
1 – Adagio ma non troppo e molto espressivo
2 – Allegro molto vivace
3 – Allegro moderato – Adagio
4 – Andante ma non troppo e molto cantabile – Andante moderato e lusinghiero – Adagio – Allegretto – Adagio, ma non troppo e semplice – Allegretto
5 – Presto
6 – Adagio quasi un poco andante
7 – Allegro
Quarteto em Lá menor para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 132 Composto em 1825 Publicado em 1826 Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
8 – Assai sostenuto – Allegro
9 – Allegro ma non tanto
10 – Heiliger Dankgesang eines Genesenen an die Gottheit, in der Lydischen Tonart: Molto adagio – Andante
11 – Alla marcia, assai vivace – attacca:
12 – Allegro appassionato
Varíola, asma, diarreia; melancolia, hemorroidas, tifo; febres intermitentes, abscessos na mão e na mandíbula, mais diarreia; zumbido e surdez progressiva; reumatismos, icterícia, e sempre diarreia; gota, bronquites, pneumonias; por fim, ascite, peritonite e óbito.
Estar vivo, para Beethoven, sempre foi um fenômeno, e qualquer um que leia a lista abreviada de suas agruras de saúde – às quais se somava o notório alcoolismo – surpreende-se com que ele tenha chegado aos cinquenta e seis anos. A morte, aliás, sempre foi um tema recorrente em sua existência. Perdera irmãos recém-nascidos; perdera Maria Magdalena, sua querida mãe, para a tuberculose; morreu-lhe o pai, Johann, um alcoolista violento, deixando-o responsável pelos irmãos; mais tarde, a constatação da surdez leva-o a contemplar o suicídio, conforme contou-nos pelo Testamento de Heiligenstadt; anos depois, morre seu irmão Caspar Karl, também vítima de tuberculose, legando-lhe o cuidado de Karl, seu sobrinho; após encarniçada batalha judicial com a mãe de Karl, por fim, este tenta se matar. Para alguém de existência e derredores tão mórbidos, até que o resiliente Beethoven se saiu admiravelmente bem em manter-se vivo.
No inverno de 1824, no entanto, a morte chamou-o para conversar. Passou vários meses gravemente enfermo, com uma violenta inflamação intestinal, e a sangrar por todos os orifícios. Seu médico mandou-o para um spa onde, muito a contragosto, manteve-se longe do goró e de sua comida favorita, a sopa alemã de bolinhos de fígado (Leberknödelsuppe). Passou quase a estação toda acamado, excretando pestilências, enquanto escrevia aos amigos em tom de despedida, na certeza de que não veria a primavera.
Contrariando as expectativas, a primavera lhe chegou. Retornou ao trabalho e aos quartetos que prometera ao príncipe Golitsyn. Para o segundo deles, escreveu um dos cumes de toda Música: o autoexplicativo Heiliger Dankgesang eines Genesenen an die Gottheit, in der lydischen Tonart (“Cânticode Agradecimento à Divindade por um Convalescente, no Modo Lídio”), coração cálido do mais ossudo de seus quartetos da maturidade. Escrito no modo lídio – que aqui corresponde às teclas brancas do piano, de um Fá a outro -, o “Cântico” é uma obra francamente devocional que remete à música sacra de Palestrina, interrompida por momentos jubilosos, na radiante tonalidade de Ré maior, aos quais Beethoven apôs a descrição Neue Kraft fühlend (“Sentindo nova força”). Volto a ele sempre que posso – afinal de contas, as moléstias incuráveis do mundo assim me exigem – e ele nunca deixa de me impressionar. É daqueles momentos que justificam toda Arte, todos os ouvidos, e a própria existência do som.
Admito que, muitas vezes, revisito o Cântico sem passar por seus movimentos vizinhos. Naturalmente, ele soa muito diferente fora de seu contexto original. Antecedem-no um constrito e turbulento movimento de abertura, e um minueto com scherzo que pouco fazem por aliviar a sensação opressiva. Vem o Cântico, que soa libertador, e parece não se extinguir, e sim dirigir-se ao espaço – e nenhuma surpresa poderia ser maior que a impetuosa, crua marcha que o segue imediatamente. Ela logo desemboca um tenso recitativo, muito evocativo dos recitativos para cordas que abrem o Finale da Nona Sinfonia, e que se resolve num Allegro que foi esboçado exatamente para o Finale da Nona. Tenso e turbulento como o movimento de abertura, ele só alivia a opressão nos compassos finais, que soam incrivelmente parecidos com os que encerram a Grande Fuga, terminando em tonalidade maior.
Lembro que, numa conversa online, enquanto discutíamos no grupo de autores aqui do blog a beleza avassaladora do Cântico, ocorreu a nosso patrão PQP perguntar que tipo de doença tão terrível seria capaz de prostrar um homem a ponto de fazê-lo agradecer de maneira tão maravilhosa por sua recuperação. Eu, que nas minhas horas vagas tento ajudar as pessoas a se manterem vivas, tentei dar-lhe uma descrição detalhada do mal de Ludwig, com todos dissabores e fedores. Acredito tê-lo traumatizado para sempre, e aposto que até hoje suas narinas evocam memórias do que lhe descrevi cada vez que escuta o Cântico. Já eu, ao ouvi-lo, e acostumado pela profissão a não me impressionar com a podridão de que nossa sarx é capaz, não canso de reverenciar o mestre renano que carregou seu saco de tripas até onde pôde e, em angústias de morte, soube elevar seu canto à Música das Esferas.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Quarteto em Lá menor para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 132 Composto em 1825 Publicado em 1826 Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1 – Assai sostenuto – Allegro
2 – Allegro ma non tanto
3 – Heiliger Dankgesang eines Genesenen an die Gottheit, in der Lydischen Tonart: Molto adagio – Andante
4 – Alla marcia, assai vivace – attacca:
5 – Allegro appassionato
Quarteto em Fá maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 135 Composto em 1826 Publicado em 1827 Dedicado a Johann Wolfmayer
6 – Allegretto
7 – Vivace
8 – Lento assai, cantante e tranquillo
9 – Der schwer gefaßte Entschluß. Grave, ma non troppo tratto (“Muss es sein?“) – Allegro (“Es muss sein!“) – Grave, ma non troppo tratto – Allegro
Quarteto em Mi bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 127 Composto entre 1824-25 Publicado em 1826 Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1 – Maestoso – Allegro
2 – Adagio, ma non troppo e molto cantabile – Andante con moto – Adagio molto espressivo – Tempo I
3 – Scherzando vivace
4 – Allegro
Quarteto em Dó sustenido menor para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 131 Composto entre 1825-26 Publicado em 1827 Dedicado ao barão Joseph von Stutterheim
5 – Adagio ma non troppo e molto espressivo
6 – Allegro molto vivace
7 – Allegro moderato – Adagio
8 – Andante ma non troppo e molto cantabile – Andante moderato e lusinghiero – Adagio – Allegretto – Adagio, ma non troppo e semplice – Allegretto
9 – Presto
10 – Adagio quasi un poco andante
11 – Allegro BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Quarteto em Si bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 130 Composto entre 1824-25 Publicado em 1827 Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1- Adagio, ma non troppo – Allegro
2 – Presto
3 – Andante con moto, ma non troppo. Poco scherzoso
4 – Alla danza tedesca. Allegro assai
5 – Cavatina. Adagio molto espressivo
6 – Finale: Allegro
Grande Fuga em Si bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 133 Composto entre 1825-26 Publicado em 1827 Dedicado ao arquiduque Rudolph da Áustria 7 – Overtura – Fuga – Meno mosso e moderato – Fuga – Coda BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
The Juilliard Quartet:
Robert Mann e Earl Carlyss, violinos
Samuel Rhodes, viola
Joel Krosnick, violoncelo
Assim começa a carinhosa homenagem que Beethoven fez a seu amigo de longa data, o violinista Ignaz Schuppanzigh, no curto cânone lisonjeiramente intitulado Lob auf den Dicken (“Louvor ao Gordo”). Nenhum dos dois imaginaria que, duzentos e tantos anos depois, suas piadas de quinta série tivessem não só sido publicadas como disponíveis a zilhões de pessoas através de gravações e redes sociais.
Em magros tempos, bem antes daqueles em que Beethoven se divertia ao vê-lo chegar a seu bagunçado apartamento em estado pré-óbito, depois de subir quatro lances de escadas, Schuppanzigh ensinou violino ao boçal amigo, que já aprendera violino e tocara viola profissionalmente em Bonn – e, sim, admito que gostaria de viajar no tempo não só para conhecer Beethoven, mas abastecer Schuppanzigh com piadas de violistas e ajudá-lo a ir à forra.
Não sei lhes dizer para que as lições de violino serviram a Ludwig, mas a amizade entre eles sustentou-se, entre raios e trovões, até o final da vida de nosso herói. Mais ainda: afora as piadas e incursões trêbadas por tavernas e zonas de baixo meretrício, Schuppanzigh foi fundamental para que Beethoven revolucionasse o quarteto de cordas. Até então, as obras do gêneros eram executadas por amadores hábeis ou profissionais esporadicamente reunidos. O “patife” liderou o que foi provavelmente primeiro quarteto de cordas estável e profissional, que serviu ao príncipe Lichnowsky e, posteriormente, ao conde Razumovsky, que encomendara a Beethoven os três quartetos que eternizariam seu nome. A determinação de Ludwig em expandir os então quadradinhos limites do gênero agradeceu a oportunidade de dispor de um quarteto permanente de grandes músicos disponíveis para ensaiar e apresentar as desafiadores obras que lhes escreveria e, a partir daí, não parou de abastecê-los com obras-primas.
O quarteto do conde terminou juntamente com seu palácio vienense, que pegou fogo, o que fez Schuppanzigh mudar-se para São Petersburgo. Quando voltou, a tempo de servir de spalla na estreia da Nona Sinfonia, reestabeleceu seu quarteto com músicos mais jovens, com os quais passou a apresentar-se num inédito sistema de assinaturas. Beethoven, que aceitara a encomenda de três quartetos pelo príncipe Golitsyn, naturalmente confiou ao velho amigo suas estreias. A primeira delas foi a do Op. 127, que, como vimos, acabou num fiasco creditado por Ludwig – a quem mais? – à corpulência do violinista, tanto pela alegada lentidão da performance quanto pelos problemas de entonação de seus gordos dedos. Numa prova sem precedentes de amizade, Beethoven – que não era exatamente conhecido por praticar o perdão – acabou livrando a barra de Schuppanzigh e mantendo sob suas responsabilidade as demais estreias.
Fico imaginando o que passou pela cabeça do Dicke, que já tinha queimado sua cota de tolerância com o compositor, quando ele recebeu a partitura do Op. 130 e viu seu último movimento. Em lugar dum finale espirituoso, consonante com leveza da maioria dos cinco movimentos precedentes, lá estava uma assim intitulada “Overtura” que começava com um violento Sol em uníssono e, após alguma hesitação murmurante, redundava em algo chamado “Fuga” que, evidentemente, era muito diferente de qualquer coisa que já existira. Além de modulações inusitadas, os temas angulosos a provocarem incontáveis dissonâncias, a completa falta de empatia com os músicos, tanto individualmente (com as partes dificílimas) quanto para o conjunto… Meu palpite é que, ao folhear as páginas, Schuppanzigh – que já achara complicado ensaiar os sinfônicos quartetos para Razumovsky – tenha sido invadido por um misto de horror e desespero. Acima de tudo, devia morder-lhe a inevitável pergunta: como tocar aquela criatura transcendentalmente difícil, e tão completamente sem precedentes e concessões?
Certamente não o perguntaria a Beethoven, que tinha por aquela fuga tanta consideração que, como já lhes escrevi antes, chamou de jegues e vacuns aqueles que não pediram para bisá-la na estreia. Com o passar do tempo, o gado falante começou a espalhar a notícia de que talvez ele ficara louco, e de aplicar epítetos que iam de “incompreensível” a “horrendo” o movimento final do quarteto, que só poderia ser produto de surdez e desatino. O compositor sempre defendia com ferocidade suas convicções e não agiu diferentemente: ainda que várias vezes na carreira demonstrasse insegurança a respeito da aceitação de suas obras, e tenha muitas vezes substituído movimentos inteiros nesse sentido – como, por exemplo, Andante favori que limou da “Waldstein” e o finale original da sonata “Kreutzer, que acabou migrando para a Op. 30, no. 1 -, afirmou que nada mudaria em sua Grande Fuga.
Ao editor Artaria, que já tinha pago a Beethoven o valor estipulado para publicação, só cabia a resignação. Enquanto preparava os clichês, no entanto, ocorreu-lhe que talvez pudesse mudar a posição do legendário turrão ao tocar-lhe nos infalíveis pontos fracos: a vaidade, o bolso e os amigos.
Artaria começou pela vaidade, e perguntou a Beethoven se ele se disporia a fazer uma transcrição da Grande Fuga para duo pianístico. A oferta foi recusada, pois Ludwig já se via envolto nos trabalhos do monumental quarteto seguinte (Op. 131), que prometera a outro editor, mas resolveu depois ele próprio fazê-la, porque odiou a transcrição feita por outro compositor contratado por Artaria. O resultado desse trabalho (publicado após sua morte sob o Op. 134) foram alguns tostões e a firme consideração de que a Grande Fuga, que agora revisitava, tinha plenas condições de manter-se como uma obra independente.
Artaria, então, resolveu acariciar-lhe o bolso. Como não era louco nem nada, não tratou diretamente com a fera, e sim acionar um amigo de Beethoven para convencê-lo a substituir o final. E, nessa guerrilha negociatória, o editor tocou em seu terceiro ponto sensível: a opinião dos amigos mais próximos, que sempre levava em conta para todas decisões que tomava, exceto em sua falida vida amorosa.
Imagino que tenha conversado com Schuppanzigh e que este tenha refugado, com medo de se queimar outra vez com o amigo. A opção mais óbvia, no entanto, era Karl Holz, também amigo de Beethoven e, mais importante, seu secretário desde que o velho factotum Schindler fora demitido. Nas palavras de Holz:
Artaria encarregou-me da terrível e difícil tarefa de convencer Beethoven a compor um novo finale, mais acessível aos ouvintes e também aos instrumentistas, para substituir a fuga tão difícil de compreender. Afirmei a Beethoven que essa fuga, que se afastou do ordinário e ultrapassou até os últimos quartetos em originalidade, deveria ser publicada como uma obra separada e que também merecia uma designação separada. Comuniquei-lhe que a Artaria estava disposto a pagar-lhe honorários suplementares pelo novo final. Beethoven disse-me que iria refletir sobre isso, mas já no dia seguinte recebi uma carta dando sua anuência.
Vencido pela vaidade, pelo bolso e pelos amigos, Beethoven preparou rapidamente o finale alternativo – a última peça que completaria, e que, assim como a Grande Fuga e os últimos quartetos, não veria publicada.
ooOoo
Analisar a Grande Fuga é tarefa, talvez, tão árdua quanto tocá-la. Claro que não o farei aqui, até porque como obra sui generis e criação mais radical de Beethoven, talvez nunca haja uma análise formal que lhe faça jus. Já mencionamos, em postagem anterior, a permanente discussão sobre se deve ou não tocar como final do Op. 130. Hoje, nós a oferecemos como peça independente, bem de acordo com alguns comentadores que a consideram uma obra de vários movimentos embrulhados no mesmo saco rosnante. Não acredito que ela seja, como sugerem outros, uma paródia da fuga barroca. Prefiro pensá-la como um paralelo fugal ao que as “Variações Diabelli” foram para seu gênero: uma reverência a uma forma tradicional, feita de maneira que sua premissa fundamental – no caso da fuga, a repetição do tema e do contratema em diferentes vozes – acaba expandida, contraída, dilacerada e transformada de modo a oferecer algo totalmente novo. E a dedicatória ao arquiduque Rudolph, cujo nome já adornava as capas das edições do trio “Arquiduque”, da sonata “Hammerklavier”, da Missa Solemnis e das próprias “Diabelli”, confirma a prática de Beethoven de consagrar aqueles que considerava seus pináculos, seus testamentos nos gêneros que tanto ajudara a expandir, a seu amigo e mais generoso patrono.
Depois do rechaço inicial, que perdurou até meados do século passado, a Grande Fuga passou a ter o merecido reconhecimento como a mais visionária das obras de Beethoven. Deixo que o atestem pessoas mais capazes do que eu. Igor Stravinsky, por exemplo, que trouxe Paris abaixo com a “Sagração da Primavera”, disse sobre ela o seguinte:
A Grande Fuga agora me parece o milagre mais perfeito da música (…) É também a peça musical mais absolutamente contemporânea que conheço, e será contemporânea para sempre… Quase nada datada por sua idade, a Grande Fuga é, só no ritmo, mais astuta do que qualquer música do meu século … Eu a amo acima de tudo”
Glenn Gould, apesar das grandes e controversas gravações que nos legou das obras do renano, tinha a pior opinião possível sobre o Beethoven tardio, também era fã confesso do Leviatã fugal:
Para mim, a Grande Fuga não é tão só a maior obra que Beethoven jamais compôs, mas também a mais surpreendente peça da literatura musical
A Segunda Escola de Viena, claro, não deixaria de amá-la, tampouco. Oskar Kokoschka chamou-a de “berço” de Arnold Schoenberg, que foi um dos mais ferrenhos opositores que se tem registro à prática de substituir, na execução do Op. 130, a Grande Fuga pelo chamado “pequeno final”. Essa afinidade óbvia com a linguagem musical dum movimento que só teria voz mais de oitenta anos depois da morte de Beethoven ajuda a explicar por que os registros que ora lhes apresento nasceram clássicos e assim sempre se manterão. O quarteto LaSalle, afinal, criou sua reputação justamente sobre o repertório da Segunda Escola de Viena e não é à toa, portanto, que a Grande Fuga apareça como o final do Op. 130. Esse recuo às raízes mais remotas do movimento vienense dá aos registros do LaSalle o corte afiado e o sotaque moderno que levaram os derradeiros quartetos de Beethoven a permanecerem por tanto tempo na ilha dos visionários epígonos. Ainda que tenda a preferir, para cada quarteto, interpretações de outros conjuntos, o LaSalle me é insuperável em sua qualidade de tratar os quartetos como um coerente conjunto e, em particular, a Grande Fuga como a pua radical da obra de Beethoven.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Quarteto em Si bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 130 Composto entre 1824-25 Publicado em 1827 Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1- Adagio, ma non troppo – Allegro
2 – Presto
3 – Andante con moto, ma non troppo. Poco scherzoso
4 – Alla danza tedesca. Allegro assai
5 – Cavatina. Adagio molto espressivo 6 – Grande Fuga em Si bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 133: Overtura – Fuga – Meno mosso e moderato – Fuga – Coda
7 – Finale: Allegro BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Quarteto em Mi bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 127 Composto entre 1824-25 Publicado em 1826 Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1 – Maestoso – Allegro
2 – Adagio, ma non troppo e molto cantabile – Andante con moto – Adagio molto espressivo – Tempo I
3 – Scherzando vivace
4 – Allegro
Quarteto em Dó sustenido menor para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 131 Composto entre 1825-26 Publicado em 1827 Dedicado ao barão Joseph von Stutterheim
5 – Adagio ma non troppo e molto espressivo
6 – Allegro molto vivace
7 – Allegro moderato – Adagio
8 – Andante ma non troppo e molto cantabile – Andante moderato e lusinghiero – Adagio – Allegretto – Adagio, ma non troppo e semplice – Allegretto
9 – Presto
10 – Adagio quasi un poco andante
11 – Allegro BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Quarteto em Lá menor para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 132 Composto em 1825 Publicado em 1826 Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1 – Assai sostenuto – Allegro
2 – Allegro ma non tanto
3 – Heiliger Dankgesang eines Genesenen an die Gottheit, in der Lydischen Tonart: Molto adagio – Andante
4 – Alla marcia, assai vivace – attacca:
5 – Allegro appassionato
Quarteto em Fá maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 135 Composto em 1826 Publicado em 1827 Dedicado a Johann Wolfmayer
6 – Allegretto
7 – Vivace
8 – Lento assai, cantante e tranquillo
9 – Der schwer gefaßte Entschluß. Grave, ma non troppo tratto (“Muss es sein?“) – Allegro (“Es muss sein!“) – Grave, ma non troppo tratto – Allegro
Um dos mais curiosos subprodutos da treta envolvendo o finale original do Quarteto Op. 130, doravante denominado “Grande Fuga”, foi esta transcrição para piano feita, no que a tornaria por si só muito especial, pelo próprio Beethoven.
No início de 1826, o editor Artaria preparava em suas oficinas a publicação do Op. 130, estreado no ano anterior com boa acolhida para cinco de seus seis movimentos, exceto a gigantesca e largamente incompreendida fuga final. A ideia de substituí-la por um final mais convencional não tinha sequer sido trazida à tona quando Artaria perguntou a Beethoven se poderia fazer-lhe um arranjo da fuga para piano a quatro mãos. Arranjos assim eram de praxe para a divulgação de música orquestral e de câmara, que assim poderia ser ouvida em qualquer lugar onde houvesse um piano e dois pianistas, e eram lançados pouco depois das obras de referência. A alegação do editor era de lhe tinham manifestado interesse, mas a proposta não veio acompanhada de remuneração interessante, então Beethoven lhe deu de ombros e Artaria solicitou pediu a outro compositor que lhe fizesse a empreitada. Quando a transcrição foi mostrada a Beethoven, este indignou-se com o que considerou simplificações e concessões a amadores e resolveu ele próprio fazer, em tempo recorde, sua transcrição bastante literal da obra, que acabou publicada após sua morte sob o Op.134 e com o mesmo dedicatário da “Grande Fuga” para quarteto de cordas – o arquiduque Rudolph.
Essa história toda é muito esquisita, pois seria improvável que uma obra tão unanimemente detestada por seus contemporâneos fosse suscitar solicitações de seus arranjos ao editor, se nem hoje, em tempos que veem a “Grande Fuga” ser considerada um dos pináculos da Música de concerto do Ocidente, nós ouvimos o Op. 134 executado com frequência, e muito menos neste ano de jubileu de Beethoven. Houve sugestões de que essa fosse tão só a estratégia de Artaria para, comendo pelas bordas e evitando confrontos diretos com o irascível compositor, tentar convencê-lo a publicar a “Grande Fuga” em separado.
Se foi isso mesmo, funcionou: Beethoven fez seu arranjo com evidente zelo, sem nada facilitar para os executantes (e ele não poderia se preocupar menos com isso) e, pelo jeito, constatou que aquele finale monumental poderia ter, sim, vida própria. Não se sabe ao certo quem estreou o arranjo, nem quando isso aconteceu. O fato é que ele é pouquíssimo tocado e gravado, salvo na proximidade de jubileus como o de agora. Entre o punhado de gravações novas que ouvi do Op. 134, uma das que mais me atraiu foi a do duo húngaro Izabella Simon-Denes Várjon. Neste álbum, a “Grande Fuga” encerra uma procissão de obras bem diversas para duo pianístico, começando pelos estudos que Schumann escreveu para o piano com pedaleira, no surpreendente arranjo de Debussy, passando pelo grande duo “Lebenssturme” de Schubert e por um dos mais óbvios frutos do devotado estudo que Mozart fez da obra de Bach, a Fuga K. 401. Embora prefira a versão original, com seus ataques furiosos às cordas e todo colorido tonal de quatro instrumentos incandescentes, reconheço que o arranjo de Beethoven lhe dá mais clareza e transparência. Simon e Várjon – que, a julgar pela pose arrulhante na capa do álbum, devem dividir além do teclado também os lençóis – saem-se muito bem, quase a ponto de agradecermos a Artaria por sua convoluta tentativa de manipulação.
Ponto para Artaria, e parabéns aos músicos. Merecem os lençóis.
Robert Alexander SCHUMANN (1810-1856) Seis estudos canônicos para piano de pedaleira, Op. 56 Arranjo para dois pianos por Claude-Achille DEBUSSY (1862-1918)
1 – Pas trop vite
2 – Avec beaucoup d’expression
3 – Andantino
4 – Espressivo
5 – Pas trop vite
6 – Adagio
Franz Peter SCHUBERT (1797-1828)
Allegro em Lá menor para piano a quatro mãos, Op. Posth. 144, D. 947, ‘Lebenssturme’
7 – Allegro
Wolfgang Amadeus MOZART (1756-1791)
Fuga em Sol menor, K. 401 (375e) para piano a quatro mãos
8 – [sem indicação de andamento]
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Grande Fuga em Si bemol maior, para piano a quatro mãos, Op. 134 Composta em 1826 Publicada em 1827 Dedicada ao arquiduque Rudolph da Áustria 8 – Overtura. Allegro – Fuga. Allegro – Meno mosso e moderato – Allegro – Allegro molto e con brio – Allegro molto e con brio
“A peça mais sobre-humana de música que Beethoven escreveu”.
“Inefável”.
“Pináculo”.
“Inexaurível”.
“Zênite”.
“Santo Graal”.
Mesmo num mundo de superlativos como é o dos últimos quartetos de Beethoven, o quarteto em Dó sustenido menor parece conjurar todos eles. Ainda que cada ouvinte tenha seu par de quartetos preferidos, há razoável consenso de que o Op. 131 seja o maior deles em termos de escopo, ousadia e experimentação. Richard Wagner, que não era exatamente uma pessoa afeita a elogios (que não fossem, claro, à sua própria pessoa), assim descreveu a obra-prima, em seu tradicional estilo über-enfático, por ocasião do centenário de Beethoven, em 1870:
Esta é a dança do mundo inteiro: a alegria selvagem, o lamento da dor, o veículo do amor, felicidade suprema, tristeza, frenesi, tumulto, sofrimento, os relâmpagos bruxuleantes, o rugido dos trovões: e, acima disso, o estupendo violinista que tudo carrega e une, que o conduz com altivez de redemoinho em redemoinho, à beira do abismo – ele sorri para si mesmo, pois para ele essa feitiçaria era uma mera brincadeira – e a noite lhe acena. Seu dia acabou.
Talvez o melhor veredito seja o de Franz Schubert, outro gênio da Música, que em seus derradeiros dias pediu para escutar este quarteto – que, ao que tudo indica, foi a última música que ouviu – e comentou:
Depois disso, o que nos resta mais escrever?
Talvez nem Beethoven soubesse.
Depois duma vida toda a compor quartetos sob os estritos conformes legados por Haydn – quatro movimentos, um Allegro em sonata-forma, um movimento lento seguido dum Scherzo, etc. -, ele passou a romper com as convenções para expandir seus quartetos e permitir-se experimentações. A mudança mais óbvia nesse sentido foi no número de movimentos. Se levarmos em conta a ordem cronológica da composição dos últimos quartetos, percebemos um aumento gradativo do número de movimentos: o Op. 127 tem quatro; o Op. 132, cinco; no Op. 130, são seis, e o Op. 131 tem sete. Mais ainda: Beethoven pretendia que o Op. 131 fosse tocado sem interrupções, mas numerou os sete episódios na partitura, para que fossem tratados com individualidade dentro do fluxo contínuo dos quase quarenta minutos de música.
Essa experimentação desenfreada tem explicação nas circunstâncias da composição. Depois de finalmente completar a encomenda dos quartetos dedicados ao príncipe Golitsyn (Opp. 127, 130 e 132), Beethoven viu-se livre e, como sempre, precisando de dinheiro. Estava muito contente em compor quartetos de cordas, e satisfeito com a acolhida que tivera a “Trilogia Golitsyn”, mesmo com sua profundidade e complexidade sem precedentes. Planejava assim, e com entusiasmo, escrever novas séries no gênero. Enquanto não chegavam novas encomendas, buscou produções independentes, e o Op. 131 foi vendido ainda nos planos para o editor Schott, de Mainz, que publicara a Nona Sinfonia. Durante a composição, uma anunciada desgraça surgiu: Karl, o sobrinho de Beethoven, tentou suicidar-se. Enquanto era socorrido, o rapaz alegou que o tio o perturbara muito, e insinuou que fora ele que o levara a dar-se um tiro na têmpora. De fato, Ludwig não largava do seu pé desde que vencera a feia batalha por sua custódia e, por mais que se esmerasse em pagar-lhe educação privada e prover-lhe o melhor que tinha, realmente o oprimia incessantemente. A gota d’água foi a descoberta de que Karl, para quem seu tio já traçara uma carreira acadêmica – que lhe era uma questão de honra, posto que tivera tão pouca educação formal -, desejava seguir a carreira militar, o que desencadeou uma nova onda de cólera e manipulação. O embate entre o turrão legendário e o jovem oprimido teve um vencedor surpreendente: depois de recuperar-se, Karl foi servir num regimento na Boêmia. Beethoven, pelo jeito, resignou-se com incomum facilidade, pois não só retomou os trabalhos no Op. 131, como acabou por dedicá-lo ao barão Joseph von Stutterheim, um marechal austríaco que o ajudou a colocar o garoto na caserna.
Esta obra-prima demonstra a incomparável capacidade de Beethoven de integrar seus múltiplos episódios e diversas tonalidades num só melífluo fluxo de música. É evidente que a análise formal pormenorizada duma composição como essa vai muito além do que cabe numa desimportante postagem de blog, mas os músicos entre vós outros certamente compreenderão o tamanho da proeza ao verem que a obra abre em Dó sustenido menor, e daí modula para Ré maior, Si menor, Lá maior, Mi maior e Sol sustenido menor, até voltar à tonalidade inicial.
Pela primeira vez desde a sonata Op. 27 no. 2, dita “Ao Luar”, de 1801 -coincidentemente, na mesma e incomum tonalidade de Dó sustenido menor -, Beethoven escolhe abrir uma obra com um movimento lento. Mais incomum ainda é ele fazer dele uma fuga solene e constrita, uma contrapartida austera às angulares selvagerias da Grande Fuga que originalmente finalizara o quarteto de cordas anterior. Entre todas suas composições fugais, talvez seja este Adagio ma non troppo e molto espressivo o que melhor reflita seu devotado estudo do Cravo bem Temperado daquele que chamava, com muito respeito, de Sebastian Bach, e cujas fugas copiara meticulosamente em seus cadernos de esboços. Ainda que ela evoque a fuga na mesma tonalidade do Primeiro Livro do Cravo, a obra de Beethoven parece conjurar muito mais a Arte da Fuga, com sua inabalável adesão às regrasdo contraponto e aos ditames da forma. Há quem escute nesse movimento ecos da conturbada religiosidade do compositor, ou mesmo a preocupação com sua morte próxima.
Eu nada disso escuto, e só consigo me comover enquanto a fuga, em vez de se resolver, vai se esvaindo no episódio seguinte que, na luminosa tonalidade de Ré maior e com a indicação de Allegro molto vivace, parece uma abertura convencional dum quarteto de cordas. Ele desemboca num brevíssimo episódio, em Si menor, que serve tão só de prelúdio ao cerne da obra, um tema em Lá maior com sete intrincadas variações, cada uma num andamento diferente e repletas do mais engenhoso uso das cordas que se poderia conceber, encerradas por uma coda que evanesce lindamente. Segue-se um scherzo cheio de humor demoníaco, com uma notável passagem sul ponticellopara os quatro instrumentos que intrigou os primeiros comentadores: teriam os ouvidos de Beethoven realmente escutado algo parecido antes, ou ele simplesmente inventara tudo lá do fundo do seu mundo de silêncio?
O scherzo é impetuoso e, comparativamente, convencional, e quase não permite conjeturas: logo vem um Adagio, hã, quase un poco andante, ainda mais curto, e que é notório pela citação de Kol Nidrei, a sentida prece judaica do Yom Kippur:
Muito já se discutiu sobre o que teria levado Beethoven, um cristão nada devoto que jamais demonstrara interesse pelo judaísmo, a citar uma melodia judaica de modo tão explícito. Há quem diga que ele chegou a Kol Nidrei por interesses correlatos depois de estudar o Saul de Händel, a quem idolatrava, aliás mais que Bach. O mais provável, entretanto, é que ele tenha citado a melodia porque a ouvira e gostara dela – e o mais comovente, que suas memórias de Kol Nidrei certamente não eram vienenses, posto que as sinagogas na capital imperial só foram permitidas quando ele já estava surdo, esim de sua distante Bonn natal, e de sua pequena sinagoga, não muito longe da casa em que nasceu.
O final retorna a Dó sustenido menor, com muita aspereza, que logo se dilui num tema sombrio, a que se seguem outros, decididamente tristes e melancólicos. O material temático dos episódios anteriores ressurge, num precedente visionário da forma cíclica que Liszt e, principalmente, Franck consolidariam décadas depois. A música encaminha-se quase para a sonata-forma, até que o desenrolar da coda (eu adoro as escalas descendentes!) muda completamente seu caráter e a leva para uma assertiva conclusão com acordes em maior, à maneira do surpreendente final do “Quarteto Serioso”, Op. 95.
Beethoven, ao que tudo indica, considerava o Op. 131 como seu quarteto preferido. Ainda que o tenha descrito a um amigo como “feito com coisas roubadas daqui e dali”, também lhe afirmou que “encontrou um novo caminho na escrita de partes e, graças a Deus, menos falta de imaginação que antes”.
Além de gênio da Música, um rei da Comédia.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Quarteto em Mi bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 127 Composto entre 1824-25 Publicado em 1826 Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1 – Maestoso – Allegro
2 – Adagio, ma non troppo e molto cantabile – Andante con moto – Adagio molto espressivo – Tempo I
3 – Scherzando vivace
4 – Allegro
Quarteto em Dó sustenido menor para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 131 Composto entre 1825-26 Publicado em 1827 Dedicado ao barão Joseph von Stutterheim
5 – Adagio ma non troppo e molto espressivo
6 – Allegro molto vivace
7 – Allegro moderato – Adagio
8 – Andante ma non troppo e molto cantabile – Andante moderato e lusinghiero – Adagio – Allegretto – Adagio, ma non troppo e semplice – Allegretto
9 – Presto
10 – Adagio quasi un poco andante
11 – Allegro BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Quarteto em Si bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 130 Composto entre 1824-25 Publicado em 1827 Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1- Adagio, ma non troppo – Allegro
2 – Presto
3 – Andante con moto, ma non troppo. Poco scherzoso
4 – Alla danza tedesca. Allegro assai
5 – Cavatina. Adagio molto espressivo
6 – Finale: Allegro
Grande Fuga em Si bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 133 Composto entre 1825-26 Publicado em 1827 Dedicado ao arquiduque Rudolph da Áustria 7 – Overtura – Fuga – Meno mosso e moderato – Fuga – Coda BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Quarteto em Lá menor para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 132 Composto em 1825 Publicado em 1826 Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1 – Assai sostenuto – Allegro
2 – Allegro ma non tanto
3 – Heiliger Dankgesang eines Genesenen an die Gottheit, in der Lydischen Tonart: Molto adagio – Andante
4 – Alla marcia, assai vivace – attacca:
5 – Allegro appassionato
Quarteto em Fá maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 135 Composto em 1826 Publicado em 1827 Dedicado a Johann Wolfmayer
6 – Allegretto
7 – Vivace
8 – Lento assai, cantante e tranquillo
9 – Der schwer gefaßte Entschluß. Grave, ma non troppo tratto (“Muss es sein?“) – Allegro (“Es muss sein!“) – Grave, ma non troppo tratto – Allegro
Dos três quartetos “Golitsyn”, o Op. 130 foi o último a ser concluído, e é curioso que, mesmo ao completar com ele a encomenda do russo, Beethoven o tenha concebido numa escala tão vasta. Com o Op. 130 em sua forma original, ele ofereceu a Golitsyn uma obra duas vezes mais longa que a maioria dos quartetos contemporâneos – praticamente dois quartetos pelo preço de um.
Ludwig, entretanto, parecia àquela altura mais preocupado com o conteúdo do que com o dinheiro – a cor do qual, como vimos ontem, ele não veria em vida, posto que Golitsyn só o pagaria a seu sobrinho Karl, mais de vinte anos depois de sua morte. Depois de compor os dois primeiros movimentos com rapidez, empacou em indecisões quanto ao que fazer em seguida. Sua escolha foi sem precedentes: compôs mais três movimentos e, depois de ruminar quase um ano sobre como arrematá-lo, decidiu fazê-lo com uma imensa fuga e dar o quarteto por completo com inéditos seis movimentos.
O Op. 130 foi estreado em sua versão original pelo Quarteto Schuppanzigh, num recital privado, em março de 1826. Beethoven não se fez presente, escolhendo – como quase sempre fazia, se lhe fosse dada a opção – a companhia do goró barato. Lá mesmo, na espelunca mais próxima, um dos membros do quarteto foi prestar-lhe contas da estreia. Não sei se lhe perguntou se preferia receber as boas novas primeiro, mas o violinista Karl Holz – um dos amigos que estaria do seu lado no momento de sua morte – começou por lhe falar que a obra tinha sido mormente bem acolhida, e que dois dos movimentos (provavelmente a Danza Tedesca e o Presto) tiveram que ser repetidos. Quando Beethoven perguntou sobre a fuga final e Holz lhe respondeu que a plateia não pedira sua repetição, o embriagado veredito foi imediato:
– Bois! Jumentos!
A reação dos bovinos e asininos presentes à estreia espalhou-se à boca miúda e logo Viena soube que seu maior músico escrevera algo “muito difícil”, “incompreensível como o chinês”, “dissonante” e “amedrontador”. Referiam-se, claro, à transcendente fuga que, pelo menos assim se conta, foi substituída a pedido do editor. Beethoven, assim, comporia um final alternativo, mais convencional e palatável, ao qual atribuiu a lacônica indicação Allegro e que seria a última coisa que completaria antes de morrer, no março seguinte.
No entanto, há chapas de impressão que provam que o editor, Mattias Artaria, preparou a primeira publicação do Op. 130 com a fuga a encerrá-lo. Assim, parece que a opção por um final diferente recaiu totalmente sobre o compositor. Ademais, é óbvio que ele tinha a fuga em grande consideração, tanto que preparou ele próprio sua versão para piano a quatro mãos (Op. 134), e dedicou o original para quarteto de cordas, quando publicado separadamente sob o Op. 133, ao arquiduque Rudolph da Áustria – seu dedicatário favorito e um amigo e benfeitor cujo nome jamais associaria a um mero refugo musical.
Isto posto, o que enfim levou Beethoven a substituir o final? E qual dos finais devemos preferir?
Essas são questões cujas respostas – se é que existem – fogem ao escopo duma postagem de blog. O leitor-ouvinte deve já ter sua preferência, e pode mesmo admitir que as duas opções tenham seus fundamentos (e menciono duas enquanto lembro que há uma terceira – ouvir os dois finales). Nós outros, nessa mole vida de espectadores, não precisamos nos comprometer com escolhas – e que sorte, essa nossa!
Os intérpretes, por sua vez, veem-se premidos por escolhas mais difíceis, que envolvem o equilíbrio entre os movimentos e a intensidade com que são tocados, dependendo do final que escolham para o quarteto.
Isso porque o Op. 130 tem, como já mencionamos, uma estrutura sui generis. Ele abre com um movimento longo, com uma pesada introdução lenta que se repete ao longo da exposição e da recapitulação. Seguem-se quatro movimentos bem mais curtos: um breve e lépido Presto, cheio de contrastes; um Andante com a curiosa indicação Poco scherzoso (“Pouco brincalhão”); uma esquisitíssima Danza Tedesca, que não se parece com qualquer dança alemã, antes ou depois dela, e que sugere uma valsa transfigurada por alguém da Segunda Escola de Viena; e, por fim, a sublime Cavatina, talvez o mais belo movimento que Beethoven escreveu, que foi capaz de fazerem suar, de acordo com testemunhas, os duros olhos de Ludwig, e que parece, mais que qualquer outra composição que eu conheça, um eco da Música das Esferas.
Concluir essa sequência de curtas entidades, praticamente uma suíte, com uma fuga imensa e radical acaba por dar alguma contrapartida ao substancial primeiro movimento; por outro lado, ela assim acaba por eclipsar os movimentos mais curtos. Dessa forma, a Cavatina – o cerne emocional da obra – ganha em gravitas e aumenta o contraste da sem-cerimoniosa transição entre a delicada nota Sol que a encerra e o violento Sol em uníssono que abre a fuga.
Por outro lado, o Finale alternativo, muito leve e despretensioso, soa mais apropriado como encerramento dessa neo-suíte de peças breves, embora a obra muito perca, claro, em impacto e contundência. A maior parte das gravações modernas dos quartetos tardios de Beethoven oferece-nos a Grande Fuga e o singelo Allegro no mesmo disco, o que nos torna muito fácil a escolha que é tão difícil para os intérpretes. O que sempre me pergunto ao escutar o Op. 130, e agora estimulo o leitor-ouvinte a também se perguntar, é qual dos dois finais os intérpretes tinham em mente ao executarem os cinco movimentos anteriores.
A gravação que ora lhes alcanço, com o distinto sotaque russo do Quarteto Borodin, é talvez a que melhor prepare o ouvinte para o final alternativo. Os movimentos iniciais são tocados com precisão e frescor, e a celeste Cavatina eleva-se a grandes alturas, tratado pelo Borodin como o caloroso e também oprimido (pois é isso que significa a indicação beklemmt que nela aparece) coração da obra. Talvez haja interpretações tecnicamente mais perfeitas, mas nenhuma outra soube me agradar mais – nem há, tampouco, uma Cavatina que me faça suarem tanto os já tão secos olhos. Ouçam-na com cuidado, e – desde já aviso – preparem-se para suarem os seus.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Quarteto em Si bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 130 Composto entre 1824-25 Publicado em 1827 Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1- Adagio, ma non troppo – Allegro
2 – Presto
3 – Andante con moto, ma non troppo. Poco scherzoso
4 – Alla danza tedesca. Allegro assai
5 – Cavatina. Adagio molto espressivo
6 – Finale: Allegro
Grande Fuga em Si bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 133 Composto entre 1825-26 Publicado em 1827 Dedicado ao arquiduque Rudolph da Áustria 7 – Overtura – Fuga – Meno mosso e moderato – Fuga – Coda BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Quarteto em Mi bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 127 Composto entre 1824-25 Publicado em 1826 Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1 – Maestoso – Allegro
2 – Adagio, ma non troppo e molto cantabile – Andante con moto – Adagio molto espressivo – Tempo I
3 – Scherzando vivace
4 – Allegro
Quarteto em Dó sustenido menor para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 131 Composto entre 1825-26 Publicado em 1827 Dedicado ao barão Joseph von Stutterheim
5 – Adagio ma non troppo e molto espressivo
6 – Allegro molto vivace
7 – Allegro moderato – Adagio
8 – Andante ma non troppo e molto cantabile – Andante moderato e lusinghiero – Adagio – Allegretto – Adagio, ma non troppo e semplice – Allegretto
9 – Presto
10 – Adagio quasi un poco andante
11 – Allegro BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Quarteto em Lá menor para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 132 Composto em 1825 Publicado em 1826 Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1 – Assai sostenuto – Allegro
2 – Allegro ma non tanto
3 – Heiliger Dankgesang eines Genesenen an die Gottheit, in der Lydischen Tonart: Molto adagio – Andante
4 – Alla marcia, assai vivace – attacca:
5 – Allegro appassionato
Quarteto em Fá maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 135 Composto em 1826 Publicado em 1827 Dedicado a Johann Wolfmayer
6 – Allegretto
7 – Vivace
8 – Lento assai, cantante e tranquillo
9 – Der schwer gefaßte Entschluß. Grave, ma non troppo tratto (“Muss es sein?“) – Allegro (“Es muss sein!“) – Grave, ma non troppo tratto – Allegro
Sendo um amador tão apaixonado quanto um admirador do seu talento, tomo a liberdade de lhe escrever para lhe perguntar se estaria disposto a compor um, dois ou três novos quartetos. Terei o maior prazer em pagar-lhe, pelo trabalho, qualquer quantia que considere adequada.
Assim Nikolay Borisovich Golitsyn escreveu de sua São Petersburgo natal a Beethoven, a quem conhecera durante os anos que passara em Viena.
Se o sobrenome de Golitsyn não é tão famoso quanto o de Andrey Kirillovich Razumovsky, é porque qualquer encomenda feita a Beethoven nos oitocentos e vintes entrava numa fila de espera da qual nada tinha qualquer previsão de saída. Assim, quando o conde (e depois príncipe) Razumovsky pediu a Ludwig três quartetos com temas russos, em 1806, a trinca de novas obras ficou pronta no mesmo ano e, mais ainda, acabou publicada sob o mesmo número de Opus, e alcunhada com o sobrenome que imortalizariam. Já em 1822, quando o príncipe russo seguinte, cujo sobrenome vocês também encontrarão transliterado como “Galitzin”, pediu três novos quartetos ao renano, talvez tenha se deixado levar pelo entusiasmo com que o compositor aceitou a proposta. Beethoven já tinha em seus planos dedicar-se só a quartetos de cordas, e um estipêndio generoso como o que pediu a Golitsyn viria bem a calhar para tapar as crateras de suas finanças. O que ele não contou ao príncipe é que, naquele momento, ele nadava no turbilhão composicional da Missa Solemnis e da Nona Sinfonia, alimentava a conta-gotas sua obsessão sobre uma valsa de Diabelli e dava os retoques em duas das três sonatas que prometera a Maurice Schlesinger – em outras palavras, que o príncipe não veria a cor de suas encomendas por um bom tempo. Assim, o russo teve que esperar que as duas pantagruélicas obras corais fossem finalizadas e estreadas para que os trabalhos nos quartetos começassem. Somente três anos depois, em 1825, Golitsyn receberia seu primeiro quarteto, o Op. 127, pelo qual pagaria a quantia prometida. As duas outras obras, Opp. 130 e 132, ser-lhe-iam também entregues, mas Ludwig não viveria para ver a cor do dinheiro delas. A dívida só foi saldada somente na década de 1850, quando Karl van Beethoven – sobrinho e único herdeiro do compositor – recebeu o pagamento devido.
Ao concluir o Op. 127, e evidentemente entusiasmado pela obra, Beethoven ditou a seu factotum Anton Schindler a seguinte carta aos membros do quarteto Schuppanzigh, todos eles seus amigos:
Meus melhores companheiros!
Cada um de vós está a receber aqui sua parte. E cada um de vós compromete-se a cumprir o seu dever e, o que é mais importante, compromete-se com palavra de honra a competir pela excelência com os outros. Cada um de vocês, participantes do referido empreendimento, deverá assinar este
papel.
BEETHOVEN
Schindler secretarius”
Não sei se alguém chegou a assinar o papel, mas a estreia – sob Ignaz Schuppanzigh, Franz Weiss, Joseph Linke e Karl Holz – foi mal ensaiada e acabou por ser, como talvez Beethoven a definiria, uma verdammte Scheiße. Ludwig descarregou sua indignação em Schuppanzigh, um homem extremamente obeso e alvo recorrente de seu escárnio (chegou a escrever um cânone a chamá-lo de Falstafferel (“Falstaffinho”) que, humilhação suprema, foi publicado e gravado), e cujos lipídios acusava de fazerem “tudo ficar mais lento”.
Tiririca com o desastre da estreia, Beethoven repassou o Op. 127 aos cuidados de um outro quarteto, liderado por Joseph Michael Böhm. Dessa feita, entretanto, resolveu ficar de butuca. Böhm deixou-nos o seguinte relato:
Quando Beethoven soube da péssima apresentação [a de Schuppanzigh] – pois não estava presente na estreia – ele ficou furioso e não permitiu que os artistas tivessem paz até que a desgraça fosse lavada. Ele mandou chamar-me logo de manhã e, com o seu jeito brusco de sempre, disse-me: ‘Tens que tocar o meu quarteto’, e o assunto foi resolvido. Nem objeções, nem dúvidas poderiam prevalecer; o que Beethoven queria tinha que acontecer, então dediquei-me à difícil tarefa. [O quarteto] Foi estudado e ensaiado com frequência sob os próprios olhos de Beethoven. Eu digo ‘olhos’ intencionalmente, pois o infeliz era tão surdo que não conseguia mais ouvir o som celestial de suas composições… Com muita atenção, seus olhos seguiam os arcos e, assim, ele foi capaz de constatar as menores flutuações de tempo e ritmo e corrigi-los imediatamente. No final do último movimento do quarteto, ocorreu um ‘meno vivace’ que me pareceu enfraquecer o efeito geral. No ensaio, portanto, aconselhei que o ritmo original fosse mantido… Beethoven, agachado em um canto, não ouviu nada, mas assistiu com tensa atenção. Depois do último movimento do arco, ele disse, laconicamente, ‘deixe assim’ – e foi até as mesas e riscou o ‘meno vivace’ nas quatro partes”
Fazer o encanzinado Beethoven mudar de ideia seria por si só uma proeza, e isso só atesta o quanto Böhm e seu grupo deviam ser bons músicos. A reestreia, sob eles, foi um grande sucesso que não só alegrou o compositor, como também salvou a pele (embora Ludwig, em sua correspondência, preferisse mencionar “der Arsch”) de Schuppanzigh, que teve uma nova chance com o compositor, estrearia seus quartetos seguintes e continuaria a ser a vítima preferencial de sua mordaz gordofobia.
Quem vem do mundo intensamente concentrado dos quartetos Opp. 74 e 95. ou da impetuosidade às vezes agressiva dos “Razumovsky”, surpreende-se com o Op. 127, o primeiro dos chamados “quartetos de cordas tardios”. Trata-se duma obra muito expansiva, em que Beethoven toma o seu tempo para desenvolver seus temas e expor suas ideias duma maneira notavelmente desprovida de tensão. O resultado, claro, é que ela acabou bastante longa – seu movimento lento sozinho, por exemplo, dura mais que todo quarteto Op. 95. Nada, entretanto, soa enfadonho. A tônica, parece, é a da leveza, e a sonata-forma não está a premir o desenvolvimento, que o compositor permite que siga em várias direções, sem premências de tempo.
Os solenes acordes de abertura, que tão somente anunciam a tonalidade, levam a um tema surpreendentemente pungente, ao qual se segue uma seção com toques nostálgicos e, brevemente, dramáticos. Na descrição certeira da musicóloga alemã Birgit Lodes, “neste quarteto, Beethoven solapou as qualidades direcionais e dinâmicas de um Allegro em sonata-forma, que é uma forma adequada para contar uma história teleológica única; ao invés, ele procurou evocar o que poderíamos chamar ‘tempo mítico'”.
É no mesmo “tempo mítico” que se desenvolve o terno segundo movimento. Baseado na forma de tema com variações, em que a imaginação de Beethoven – afinal de contas, o compositor das “Diabelli” – voa longe na modificação do singelo tema, oferecendo-lhe variações sucessivamente mais elaboradas e criativas. No Scherzando vivace, os instrumentos dialogam, às vezes retrucam, mas não há qualquer tensão, e tampouco ela faz falta. Há momentos geniais nas transições e cromatismo ousado no Trio, e tudo se arremata com uma linda coda. O Finale soa enganosamente simples, porque foi criado por um consumado mestre: com forte tom folclórico, desenvolve-se como se jamais fosse acabar, até que isso acontece de maneira engenhosa e pouco abrupta.
Segundo William Kinderman, autor já mencionado anteriormente, o Op. 127 é “uma composição fundamental entre as obras-primas de seu último período criativo, uma em que aspectos estruturais e simbólicos de suas duas grandes obras corais-orquestrais são absorvidos pela esfera da música de câmara”, e nisso estamos de completo acordo. Acrescento que, diferentemente da Nona e da Missa Solemnis, que graças às gravações podemos ouvir quantas vezes quisermos, o Op. 127 não causa qualquer saturação sensorial. Sua leveza e fluidez levam-no a transcorrer sem que quase o percebamos. Quando enfim o percebemos, e tudo acabou, sentimo-nos prontos a repeti-lo.
Antes de conhecê-lo pela reputação, conheci o Quartetto Italiano pela imagem que está logo abaixo: quatro fleumáticos músicos de perfil, encarando mediterraneamente a luz solar – avis rara, convenhamos, na iconografia de conjuntos de câmara -, como se acompanhassem uma passeggiata. Quando tive, enfim, a oportunidade de escutá-los, foi como se essa imagem se transportasse ao universo sonoro do Quarteto: o som do Italiano é, talvez, o mais belo entre os conjuntos de sua época. Nós outros, no século XXI, tivemos a grata sorte de tê-lo maravilhosamente gravado pela Philips para que hoje, cinquenta anos depois, ele nos chegue assim, tão fresco. O registro privilegia a naturalidade: ouvimos o virar das páginas, a respiração dos instrumentistas, os miados das cadeiras, e o eventual golpe em falso de algum arco. Nada disso, entretanto, há de lhes importar: o Italiano faz o luminoso Mi bemol maior do Op. 127 cintilar e, mais que qualquer outro conjunto, leva o Adagio nos tragar para aquele estado meditativo tão próprio a quem ouve o Beethoven tardio em seu “tempo mítico”.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Quarteto em Mi bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 127 Composto entre 1824-25 Publicado em 1826 Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1 – Maestoso – Allegro
2 – Adagio, ma non troppo e molto cantabile – Andante con moto – Adagio molto espressivo – Tempo I
3 – Scherzando vivace
4 – Allegro
Quarteto em Dó sustenido menor para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 131 Composto entre 1825-26 Publicado em 1827 Dedicado ao barão Joseph von Stutterheim
5 – Adagio ma non troppo e molto espressivo
6 – Allegro molto vivace
7 – Allegro moderato – Adagio
8 – Andante ma non troppo e molto cantabile – Andante moderato e lusinghiero – Adagio – Allegretto – Adagio, ma non troppo e semplice – Allegretto
9 – Presto
10 – Adagio quasi un poco andante
11 – Allegro BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Quarteto em Si bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 130 Composto entre 1824-25 Publicado em 1827 Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1- Adagio, ma non troppo – Allegro
2 – Presto
3 – Andante con moto, ma non troppo. Poco scherzoso
4 – Alla danza tedesca. Allegro assai
5 – Cavatina. Adagio molto espressivo
6 – Finale: Allegro
Grande Fuga em Si bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 133 Composto entre 1825-26 Publicado em 1827 Dedicado ao arquiduque Rudolph da Áustria 7 – Overtura – Fuga – Meno mosso e moderato – Fuga – Coda BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Quarteto em Lá menor para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 132 Composto em 1825 Publicado em 1826 Dedicado ao príncipe Nikolay von Golitsyn
1 – Assai sostenuto – Allegro
2 – Allegro ma non tanto
3 – Heiliger Dankgesang eines Genesenen an die Gottheit, in der Lydischen Tonart: Molto adagio – Andante
4 – Alla marcia, assai vivace – attacca:
5 – Allegro appassionato
Quarteto em Fá maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 135 Composto em 1826 Publicado em 1827 Dedicado a Johann Wolfmayer
6 – Allegretto
7 – Vivace
8 – Lento assai, cantante e tranquillo
9 – Der schwer gefaßte Entschluß. Grave, ma non troppo tratto (“Muss es sein?“) – Allegro (“Es muss sein!“) – Grave, ma non troppo tratto – Allegro
O fato é que Beethoven começou a esboçar uma sinfonia em Mi bemol maior mesmo antes de completar a Nona, assim como iniciou a “Pastoral” durante o obsessivo trabalho na Quinta. No início do mesmo 1827 em que morreria, ele ofereceu o que seria sua Décima Sinfonia à mesma Sociedade Filarmônica de Londres que lhe encomendara a sinfonia anterior. Há relatos de seu sempre inconfiável factotum Schindler – alguém que lhe foi indiscutivelmente próximo, mas que frequentemente falsificava documentos para dar a impressão de ser mais íntimo do compositor do que de fato era – dando conta de queBeethoven esboçava temas em Mi bemol maior e Dó menor alguns dias antes de cair no leito de morte. Uma outra fonte menos atochadora, o amigo Karl Holz, afirma que Beethoven lhe tocou os esboços duma nova sinfonia naquele mesmo ano cujo fim não chegaria a ver.
Ainda assim, quando o musicólogo e estudioso beethoveniano Barry Cooper surgiu com esquetes da alegada Décima Sinfonia e os planos de publicar uma versão passível de apresentação, houve frenesi e algum escândalo. Segundo Cooper, o material legado pelo renano, mesmo que espalhado por diversos cadernos de esboços e criptografados pela medonha caligrafia do compositor, fazia sentido o bastante para se perceber que à mesma obra. Ademais, organizavam-se em torno dum Andante em Mi bemol maior e dum Allegro em Dó menor e, assim, correspondiam à descrição daquilo que Beethoven tocara para Holz.
Nas palavras de Cooper,
Como a maioria dos esboços de Beethoven para outras obras, aqueles da Décima sinfonia estão espalhados em vários conjuntos de manuscritos diferentes (quatro principais, e mais alguns acessórios, foram identificados até agora). Como de costume, eles não têm rótulos e são quase ilegíveis para quem não conhece bem a caligrafia idiossincrática de Beethoven. Consequentemente, foi somente na década de 1980 que os primeiros deles foram identificados com alguma certeza. Nesse ínterim, rumores sobre a Décima Sinfonia, iniciados principalmente por Holz e Anton Schindler, alimentaram especulações de que poderia haver um manuscrito completo escondido em algum lugar ou, alternativamente, que a sinfonia nunca havia sido iniciada e que os rumores eram infundados. Agora, porém, temos clareza e mais de 50 esboços são conhecidos, embora muitas perguntas ainda permaneçam sem resposta e seja bastante possível que mais esboços ainda sejam descobertos. Todos os esboços são muito fragmentários, nenhum contendo mais do que cerca de 30 compassos de música contínua; mas, para alguém familiarizado com os métodos normais de rascunho de Beethoven, eles dão uma ideia clara do tipo de movimento que ele tinha em mente. Além disso, eles contêm um material muito bom. Portanto, parece muito valioso tentar torná-los disponíveis para apresentações, preenchendo-os em uma versão de concerto, em vez de deixá-los em arquivos onde podem ser úteis apenas a alguns especialistas. Afinal, os esboços representam sons em vez de formas no papel e não podem ser avaliados completamente até que sejam ouvidos – e de preferência ouvidos num ambiente orquestral apropriado. O presente autor [Cooper] já estudara os esboços de Beethoven para inúmeras outras obras, em conexão com um livro que ele estava a escrever [Beethoven and the Creative Process, Oxford University Press] e, portanto, sentiu que estava em uma posição melhor do que a maioria dos estudiosos para tentar completar o primeiro movimento, embora a tarefa a princípio parecesse impossivelmente assustadora. Ao todo são cerca de 250 compassos de esquetes para o primeiro movimento. Alguns se duplicam ou se contradizem, deixando menos de 200 utilizáveis; mas muitos deles podem ser usados mais de uma vez, por meio de repetições e reprises, como ocorre em todas as sinfonias de Beethoven (por exemplo, um tema esboçado para a exposição recorrerá na recapitulação). Os esboços, portanto, nos fornecem bem mais de 300 compassos, enquanto os 200 ou mais compassos restantes (dum total de 531) tiveram que ser adaptados dos mesmos temas básicos por vários meios (por exemplo, por transposição e sequência) e desenvolvidos da maneira normalmente própria a Beethoven. Assim, todo o material temático básico é de Beethoven; mas a harmonia apropriada teve que ser adicionada em lugares onde estava a faltar, e o movimento teve que ser orquestrado no estilo de Beethoven (com a ajuda de apenas algumas pistas dadas nos esboços), e passagens de ligação baseadas nos temas de Beethoven foram inseridas onde necessário.
O resultado, obviamente, não é o que Beethoven teria escrito e, em certos lugares em particular, ele provavelmente teria sido mais criativo. Também soa mais típico do período intermediário do que o Beethoven tardio, embora isso possa ser devido às conexões estreitas com as primeiros sonatas para piano. Não obstante, minha realização fornece pelo menos uma impressão aproximada do movimento que ele tinha em mente na época dos esboços e certamente está muito mais próxima da Décima Sinfonia de Beethoven do que qualquer coisa ouvida anteriormente. Portanto, é provável que ela seja extremamente interessante para qualquer pessoa que queira saber o que ele planejou para a sinfonia que viria após a Nona; além disso, também pode ser apreciada como uma peça musical, de uma forma que os esquetes fragmentários por si próprios nunca poderiam ser.”
Muito convincente, não?
O trabalho de Cooper foi publicado em 1988 e estreado por Walter Weller e a Royal Liverpool Philharmonic Orchestra, num evento organizado pela Sociedade Filarmônica de Londres que, 161 anos após a oferta de Beethoven, recebia a encomenda que lhe foi proposta. A primeira gravação foi feita por Wyn Morris à frente da London Symphony, acompanhada da gravação duma palestra de Cooper explicando o seu trabalho, e que pode ser encontrada no vídeo mais abaixo. Eu a escutei sem muito entusiasmo: parecia uma coleção de retalhos (o que, enfim, é verdade) com alguns meros gestos que permitiam reconhecer seu compositor, um balão semivazio que não ia a lugar algum.
No começo deste 2020, no entanto, descobri esta gravação do escocês Walter Weller, que teve distinta carreira em Viena antes de assumir a direção de orquestras em sua ilha natal. Weller parece resgatar aquilo de Beethoven que há no considerável esforço feito por Cooper, e chega muitas vezes até a convencer. Esse coto da Décima surge, ainda que sem o desenvolvimento coeso tão próprio do compositor, tanto com acenos para o passado, quanto com cromatismos que flertam com o futuro remoto, como se o Beethoven da “Eroica” e da “Quinta”, e principalmente o da “Pastoral” e da Nona – cujas citações são bastante óbvias nesse movimento – dialogasse com o Beethoven da “Grande Fuga” e o “proto-jazz” da Sonata Op. 111, e ambos tentassem um consenso para seguirem adiante. Se não é uma audição imperdível, parece-me pelo menos recomendável aos beethovemaníacos entre vós outros.
Completando o disco, mais uma gravação – inda outra – do Concerto Triplo, que acabou por ser o “arroz de festa” de nossa série, na qual faz sua quinta e (esperamos!) última aparição.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Concerto em Dó maior para violino, violoncelo, piano e orquestra, Op. 56 Composto entre 1803-05 Publicado em 1807 Dedicado a Joseph Franz Maximilian, príncipe Lobkowitz
1 – Allegro
2 – Largo (attacca)
3 – Rondo alla polacca
Kalichstein–Laredo–Robinson Trio: Joseph Kalichstein, piano Jaime Laredo, violino Sharon Robinson, violoncelo English Chamber Orchestra Sir Alexander Gibson, regência
Sinfonia no. 10 em Mi bemol maior, Unv. 3 Completada e orquestrada por Barry Cooper (1949)
4 – Andante – Allegro – Andante
City of Birmingham Symphony Orchestra Walter Weller, regência
O destemido Cooper, que certamente não tem medo de tomates, descreve aqui
(em inglês) o processo de estudo de esboços de Beethoven e da organização de
sua versão da Sinfonia no. 10
Ao contrário da Missa Solemnis, uma obra-prima que pouca gente sabe amar, a Nona Sinfonia foi ensandecidamente querida desde sua estreia, em 7 de maio de 1824 – no mesmo concerto em que, curiosamente, algumas fatias da Missa foram pela primeira vez ouvidas em Viena.
Embora Beethoven tenha se dedicado à sua composição entre 1822 e 1824, os primeiros gérmens duma sinfonia em Ré menor datam de 1812. Sua obsessão com a “Ode à Alegria” de Friedrich von Schiller, no entanto, era ainda mais antiga: colocá-la em música já estava em seus planos desde 1793, meros oito anos depois da composição do poema. Não é difícil entender por que o texto calou tão fundo no jovem idealista e universalista, que idolatrava tanto a “Ode” e seu poeta que acabou por afogar-se em reticências e inseguranças cada vez que tirava da gaveta os planos de musicá-la.
Tais reticências começaram elas próprias a afogar-se quando, em 1817, a Sociedade Filarmônica de Londres encomendou-lhe uma nova sinfonia. Em verdade, fora Ferdinand Ries, seu aluno e conterrâneo, que o convidara para visitar a cidade com promessas de lucrativas turnês e exibições ao feitio das que enriqueceram o professor de Ludwig, o velho Haydn. Sabendo o quão baixo era o apreço de Beethoven pelas ilhas britânicas e seus músicos, não fica difícil imaginar que a ideia de visitá-las, mesmo para ganhar uma boa grana, o repelia. O contexto geral também não o ajudava: desilusões amorosas, desesperos gerais com a vida, a surdez completa que o afastara das salas de concertos e sepultara sua reputação de melhor pianista de seu tempo – e, acima de tudo, a amarga briga pessoal e judicial com a ex-cunhada Johanna pela custódia de seu sobrinho Karl, filho de seu falecido irmão homônimo. Tudo isso lhe quebrara os nervos e os bolsos, e as preocupações com o sobrinho só cresciam, de maneira que não deixou de ser um alívio abrir mão da turnê para aceitar a encomenda da nova sinfonia.
Ludwig, no entanto, resolvera encerrar seu hiato composicional com a imensa sonata “Hammerklavier”, praticamente uma sinfonia para piano solo, e logo em seguida enrolou-se com outras duas promessas: as três sonatas para piano encomendadas pelo editor Schlesinger (que viriam a ser suas últimas) e, enrolação máxima, a enorme missa para a entrada solene do arquiduque Rudolph como arcebispo de Olomouc. Isso tudo significou que apenas em 1822 – cinco anos após a encomenda da Sociedade Filarmônica – os trabalhos na sinfonia de fato começaram, com dedicação febril e integral a ela entre abril de 1823 e fevereiro de 1824, quando enfim a deu por completa.
Apesar de instigada por londrinos, Beethoven pretendia apresentar sua nova obra em Berlim, por pensar que naquela corte teria melhor acolhida do que em Viena, onde achava-se um tanto demodé, tamanho era o frenesi causado pelas óperas de Rossini, um compositor pelo qual não tinha qualquer apreço. A notícia da nova obra e dos planos berlinenses se espalhou. Em breve, amigos e patronos organizavam-se para demovê-lo da ideia, no que, surpreendemente, tiveram sucesso. A legendária teimosia de Beethoven fora vencida pelo apreço que ele percebeu em seu público, ansioso por ouvir uma sinfonia nova do maior compositor da Europa, depois de mais de doze anos. O hype foi tamanho que, na estreia da obra, o Kärntnertortheater estava abarrotado a ponto de precisarem colocar cadeiras no palco, além de várias pessoas que ficaram de pé. Beethoven fez questão de reger a première e oficialmente conseguiu, embora o combinado com os músicos fosse que eles seguissem as indicações de Michael Umlauf – que acompanhara, anos antes, o patético desastre de um ensaio geral de Fidelio sob o compositor surdo, e decidira conduzir a obra longe de seu campo de visão. Aplausos irromperam ainda durante o scherzo, durante as intervenções dos tímpanos, que caíram no gosto do público. Ao final do terceiro movimento, ainda mais aplausos – e no fim, enquanto Beethoven ainda julgava estar a reger sua obra, a contralto solista tomou sua mão e mostrou-lhe a plateia que vinha abaixo em aclamação. O maior sucesso de sua vida, que o deixou irreconhecivelmente alegre, acabaria sendo sua última aparição pública ante uma plateia anônima.
Tanto se ama a Nona Sinfonia, e principalmente seu finale coral sem precedentes na história do gênero, que é difícil de imaginar que foi justamente ele o maior alvo de críticas. Muitos críticos e alguns colegas compositores não compartilharam o entusiasmo do público da estreia, e disseram (como Verdi, por exemplo) que Beethoven estragara a forte impressão dos três primeiros movimentos com um dantesco espetáculo de “partes mal escritas para vozes”. Outros, simplesmente, tascavam que, além de surdo, Beethoven ficara gagá e louco.
Não quererei ser eu a concordar com eles, inda mais quando se fala dum patrimônio universalmente amado da Humanidade, mas eu acho que compreendo os reproches. Os três primeiros movimentos, ainda que cheios de radicalidade, comportam-se como uma sinfonia tradicional – com o scherzo adiantado em relação ao movimento lento, como era costumeiro para o Beethoven maduro. Já o movimento coral parece inorgânico, alheio a tudo o que antecedera, rejeitando-o explicitamente, como mostram as breves recapitulações dos três primeiros movimentos – novamente algo sem precedentes – que parecem enxotadas pelos recitativos das cordas, ou a explícita afirmação do barítono, logo em sua entrada, com palavras escritas pelo próprio compositor, a conclamar os amigos a desprezarem “esses sons” entoarem algo mais agradável e alegre. Sem dúvidas, essa apoteose da alegria é uma conclusão convincente para uma obra que parece, no primeiro movimento, surgir dum vazio opressor. Por outro lado, o finale parece ter vida própria – e tanta que muitos que o conhecem de cor não têm ideia dos movimentos que o precederam. Ele funcionaria bem, inclusive, como uma sinfonia independente, pois ele dura mais que muitas das co da época, e não é impossível imaginá-lo com quatro movimentos: uma abertura (da introdução instrumental até “steht vor Gott”); um scherzo (da “música turca” de “Froh, wie seine Sonnen fliegen” até o final da estrofe com o coro, em “Wo dein sanfter Flügel weilt“); um movimento lento (de “Seid umschlungen, Millionen” até o início da fuga dupla); e a própria fuga dupla sobre “Seid umschlungen” e “Freude, schöner Götterfunken”, e tudo que se segue a ela, arrematando a “sinfonia dentro da sinfonia”.
O público de hoje parece não se importar essas picuinhas. Pelo contrário, parece haver uma tendência a supervalorizar o popularíssimo finale, com seu tema da “Alegria” que até meus gatos conhecem, em detrimento dos movimentos precedentes, principalmente o Adagio, um singelo tema com maravilhosas variações, que é o cerne da obra. Lembro duma senhora que, na saída duma récita da Nona, comentava com a filha que “o começo estava chato, mas depois que entraram os cantores ficou bonito”. Com a “Ode à Alegria” em toda parte, usada e abusada como um lugar-comum de tudo que é apoteótico, eu acho que a consigo compreender essa senhora, a buscar esperar o conforto do que lhe era familiar após longos minutos de grande, mas desconhecida música.
É preciso ouvir a Nona com tímpanos frescos, como se fosse a primeira vez – e preferencialmente, claro, desde o começo. Para facilitar-lhes esta experiência, resolvi alcançar-lhes não só as doze gravações que encerram as integrais paralelas que iniciamos há alguns meses, mas também algumas outras, das quais não dispunha quando publiquei a Primeira Sinfonia, lá em abril. Algumas foram pedidas – caso das versões de George Szell e aquela, extraordinária, de Hans Schmidt-Isserstedt. Outras, como as de Hermann Scherchen e René Leibowitz, porque são pioneiras nas tentativas de interpretação historicamente informada, mesmo antes desse movimento se consolidar como tal, com instrumentos originais, Lás diferentes de 440 Hz, e por aí vai. Há também a versão de Christopher Hogwood, que serve como contraponto às duas versões com instrumentos de época que já vínhamos publicando – as de Gardiner e aquelas da Hanover Band. E, por fim, a bonita série daquele discreto mestre da batuta, o versátil e eficiente Carlo Maria Giulini. Como não as imaginava postar por aqui num futuro próximo, tamanha a superdosagem de Beethoven que lhes propusemos neste ano, decidi que elas não trariam mais exagero a este nosso já tão esdrúxulo exagero de apresentar-lhe uma dúzia de versões.
Pretendo completar retrospectivamente a série com as novas-velhas versões em muito breve. Por ora, sugiro começarem pela especialíssima, ainda que jurássica, versão de Furtwängler gravada no Festival de Bayreuth. O legendário maestro nunca gravou a Nona em estúdio, por considerá-la digna tão só dos mais importantes eventos. Por isso, achou apropriado apresentá-la na reabertura do Festival de Bayreuth, em 1951, ocasião que marcava tanto a reestreia da Alemanha como um dínamo cultural, depois da infâmia da guerra, quanto sua própria reabilitação, depois de ter sido (e injustamente, que é o que nos dizem todas evidências razoáveis) considerado colaborador dos nazistas. Ao conduzir a obra no Festspielhaus, Furtwängler seguia o precedente do fundador do Festival: Richard Wagner adorava a Nona, muito por considerá-la uma precursora de sua própria concepção de Arte Total, e a regeu na inauguração da primeira edição, tradição que se manteve em todas edições subsequentes.
Espero que alguma dessas agora dezoito versões consiga lhes entregar o beijo que Schiller e Beethoven mandaram para o mundo inteiro.
Seid umschlungen, Millionen! Tschüss!
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Sinfonia no. 9 em Ré menor, Op. 125, “Coral” Composta entre 1822-1824 Publicada em 1826 Dedicada ao rei Friedrich Wilhelm III da Prússia
1 – Allegro ma non troppo, un poco maestoso
2 – Molto vivace – Presto – Molto vivace – Presto
3 – Adagio molto e cantabile – Andante moderato – Andante moderato – Adagio -Lo stesso tempo
4 – Presto – Allegro assai – Presto (“O Freunde”) – Allegro assai (“Freude, schöner Götterfunken”) – Alla marcia; Allegro assai vivace (“Froh, wie seine Sonnen”) – Andante maestoso (“Seid umschlungen, Millionen!”) – Allegro energico, sempre ben marcato (“Freude, schöner Götterfunken” – “Seid umschlungen, Millionen!”) – Allegro ma non tanto (“Freude, Tochter aus Elysium!”) – Prestissimo (“Seid umschlungen, Millionen!”)
Elisabeth Schwarzkopf, soprano
Elisabeth Höngen, mezzo-soprano
Hans Hopf, tenor
Otto Edelmann, baixo Bayreuther Festspielorchester und Chor Wilhelm Furtwängler, regência
Inge Borkh, soprano Ruth Siewert, contralto Richard Lewis, tenor Ludwig Weber, baixo The Beecham Choral Society Royal Philharmonic Orchestra René Leibowitz, regência
Magda Laszló, soprano
Hilde Rössel-Majdan, contralto
Petre Munteanu, tenor Richard Standen, baixo Orchester der Wiener Staatsoper Hermann Scherchen, regência
Phyllis Curtin, soprano Florence Kopleff, contralto
John McCollum, tenor
Donald Gramm, baixo
Chicago Symphony Orchestra and Chorus Fritz Reiner, regência
Gundula Janowitz, soprano
Hilde Rössel-Majdan, contralto
Waldemar Kmentt, tenor
Walter Berry, baixo
Wiener Singverein
Berliner Philharmoniker
Herbert von Karajan, regência
Jessye Norman, soprano
Reinhild Runkel, mezzo-soprano
Hans Sotin, tenor
Robert Schunk, baixo
Chicago Symphony Orchestra and Chorus Sir Georg Solti, regência BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Joan Sutherland, soprano Marilyn Horne, contralto James King, tenor Martti Talvela, baixo Wiener Staatsopernchor
Wiener Philharmoniker Hans Schmidt-Isserstedt, regência
Edith Wiens, soprano
Hildegard Hartwig, contralto
Keith Lewis, tenor
Roland Hermann, baixo
Chor der Hamburgischen Staatsoper
Sinfonieorchester des Norddeutschen Rundfunks Günter Wand, regência BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Lucia Popp, soprano
Carolyn Watkinson, contralto
Peter Schreier, tenor
Robert Holl, baixo
Groot Omroepkoor
Koninklijk Concertgebouworkest Bernard Haitink, regência BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Arleen Augér, soprano
Catherine Robbin, contralto Anthony Rolfe Johnson, tenor
Gregory Reinhart, baixo
London Symphony Chorus
The Academy of Ancient Music
Christopher Hogwood, regência
Eiddwen Harrhy, soprano
Jean Bailey, contralto
Andrew Murgatroyd, tenor
Michael George, baixo
Oslo Domchor
The Hanover Band Roy Goodman, regência BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Ľuba Orgonášová, soprano
Anne Sofie von Otter, contralto
Anthony Rolfe Johnson, tenor
Gilles Cachemaille, baixo
Monteverdi Choir
Orchestre Révolutionnaire et Romantique John Eliot Gardiner, regência BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Krassimira Stoyanová, soprano
Lioba Braun, contralto
Michael Schade, tenor
Michael Volle, barítono
Chor des Bayerischen Rundfunks
Symphonieorchester des Bayerischen Rundfunks Mariss Jansons, regência BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Kateřina Beranová, soprano
Lilli Paasikivi, mezzo-soprano
Robert Dean Smith, tenor
Hanno Müller-Brachmann, baixo
GewandhausKinderchor GewandhausChor
MDR Rundfunkchor
Gewandhausorchester Leipzig Riccardo Chailly, regência BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Annette Dasch, soprano
Eva Vogel, mezzo-soprano
Christian Elsner, tenor
Dimitry Ivashchenko, baixo
Rundfunkchor Berlin
Berliner Philharmoniker Sir Simon Rattle, regência BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
O dia em que uma missa solene composta por mim for apresentada durante as cerimônias solenizadas para Vossa Alteza Imperial será o dia mais glorioso da minha vida; e Deus me iluminará para que meus pobres talentos possam contribuir para a glorificação desse dia solene.
Ao prometer a seu pupilo e arquiamigo imperial, Rudolph da Áustria, uma composição para marcar sua entrada solene como arcebispo da cidade morávia de Olmütz (hoje Olomouc, República Checa), Beethoven embarcava naquela que seria uma de suas maiores contendas criativas. Fora a campeoníssima Leonore/Fidelio – sua maior usina de desgostos e gastrites -, nenhuma outra obra tomou-lhe tanto tempo e lhe deu tanto trabalho. É bem verdade que a Quinta Sinfonia, e em especial seu primeiro movimento, lhe foi uma obsessão por quatro anos, mas seu empenho nela foi no sentido de reelaborá-la e refiná-la para buscar aquela qualidade tipicamente beethoveniana de que cada nota pareça seguir-se da única possível. Os quatro anos dedicados à Missa, no entanto, viram a obra expandir constantemente seu escopo e ambição. Quando Rudolph foi investido do cargo, em 1820, Beethoven ainda trabalhava no Credo. Ao enfim dar por encerrados os trabalhos, em 1823 – depois de deixá-los de lado por um bom tempo para escrever as três últimas sonatas para piano e variar a marota valsinha de Diabelli -, enviou ao arquiduque uma composição imensa, repleta de grandes dificuldades técnicas, e totalmente incapaz de ser absorvida por qualquer cerimônia eclesiástica. Beethoven, ademais surdo, nunca testemunharia uma apresentação completa da obra, que foi estreada na distante corte russa em São Petersburgo por instigação de Nikolai Galitsyn – o encomendante dos últimos quartetos de cordas. Viena ouviria três de seus movimentos – o Kyrie, o Credo e o Agnus Dei – no mesmo concerto em que a Nona Sinfonia foi estreada com êxito colossal, em 7 de maio de 1824, na presença do compositor.
A Missa Solemnis marcou, assim como a sonata “Hammerklavier” e as Variações Diabelli, as tendências típicas da maturidade artística de Beethoven: abordar formas musicais consolidadas dum modo radicalmente novo e expansivo, quase a ponto de romper-lhes as costuras, sem ter qualquer pudor em propor dificuldades transcendentais a seus intérpretes, e com um inovador uso de formas contrapontísticas, especialmente da fuga. De fato, e exceto pelo Kyrie relativamente convencional, os demais movimentos não têm precedentes em música litúrgica; as exigências da partitura só atestam a total falta de empatia do renano para com seus intérpretes, principalmente os cantores (façam uma enquete para saber qual o compositor mais citado no Livro do Ódio dos coristas, e não se surpreenderão com o resultado); e imensas fugas corais que fazem picadinho das traqueias do coral, em especial na reprise de Et vitam venturi saeculi que conclui o credo, em que o já apressado andamento é retomado com o dobro da velocidade.
Não tenho dúvidas de que a Missa Solemnis seja, com folgas, a menos apreciada das grandes composições da maturidade de Beethoven. Muitos são os que a tratam com respeito, e poucos os que lhe têm devoção. Para mim, ela foi um gosto adquirido. Sempre gostei do Kyrie – que, como já mencionamos, é quase convencional em seu equilíbrio e no que se chamou de “serenidade bizantina” -, mas experimentava uma estranha inquietude ao escutar o restante. Quando percebi que inquietar e provocar talvez fossem exatamente a intenção de Beethoven, consegui apreciá-la melhor.
Ouçamos o Gloria, por exemplo. Depois do Kyrie, esperar-se-ia a habitual expressão de júbilo quase infeccioso com que o Gloria é tratado por outros compositores de missas. Em seu lugar, Beethoven oferece um furioso fortíssimo do tímpano e instala uma massa sonora maníaca, que parece se resolver com o relaxamento à menção ao Cordeiro de Deus (Agnus Dei, qui tollis peccata mundi), só para, após os sis bemóis mais odiados pelas sopranos dos corais mundo afora (qui sedes ad dexteram patris), encerrar tudo com o verdadeiro clímax: uma gigantesca fuga coral. Tensão, relaxamento, preparação, resolução: tudo o que há habitualmente nas melhores sonatas, e no entanto inédito em música litúrgica.
Também escuto na Missa Solemnis expressões do ambicioso compositor que quis enriquecer com a ópera, mas abandonou-a para sempre após as agruras que viveu com Leonore/Fidelio. Momentos altamente dramáticos, como a constrita prece dos solistas (com a indicação ängstlich, “assustado”) após as distantes fanfarras militares do Agnus Dei, não seriam inapropriados às cenas finais no cárcere de Fidelio. Da mesma maneira, a maravilhosa exclamação Et… Et homo factus est, feita pelo tenor solista durante o Credo, nunca deixa de me emocionar ao prorromper, luminosa, após o idílico Et incarnatus: outra vez o drama, e não a liturgia, levando este homem cínico às genuínas lágrimas.
A abordagem do Credo expressa mais sobre a religiosidade de Beethoven do que qualquer coisa que ele tenha escrito. Alguns dos mais importantes dogmas cristãos são apressadamente escorraçados (trinta e sete palavras em vinte e dois compassos, para ser mais exato), para que a confissão de fé – a própria palavra Credo – se repita muitíssimas vezes: difícil haver maneira mais efetiva de nos contar que a fé, para ele, valia mais que dogmas eclesiásticos. Apesar de ser o mais heterodoxo dos movimentos da Missa, o Credo não suscitou nem uma fração das críticas que a parte seguinte, o Sanctus. Nada no Sanctus propriamente dito, aliás – que aqui começa de maneira pouco convencional, quase em sussurros, até que a esperada exaltação enfim surja em Pleni sunt coeli e no Osanna in excelsis. As críticas recaíram sobre o Benedictus, que Beethoven resolveu unir ao Sanctusatravés de uma ponte instrumental que imita lindamente o prelúdio habitualmente improvisado pelo organista durante esta transição. Após a referida ponte, um violino, acompanhado de duas flautas, entoa uma frase descendente que representa, explicitamente, a descida do Espírito Santo, para depois acompanhar solistas e coro num elaborado solo concertante. As sensibilidades da época, que conseguiram aturar o Gloria maníaco e o Credo quase alijado de dogmas, não aturaram tanta secularidade e acusaram Ludwig de anticlerical (o que ele de fato era, com orgulho) e pueril. Azar deles: eu acho o Benedictus e seu violino maravilhosos, e volto a eles sempre que posso.
Admito, mesmo com todo meu apreço pela Missa Solemnis, que seu Agnus Dei sempre me inspira sentimentos mistos. Aos movimentos anteriores, com todas suas idiossincrasias, nunca falta o senso de coesão. O Agnus me parece uma colagem e, com suas transições bruscas e o acorde final que parece nada resolver, deixa uma esquisita sensação de incompletude. Mas pode ser que, uma vez mais – desta feita, depois duma citação à Missa In Tempore Belli, do mestre Haydn, e outra, ainda mais explícita, ao He shall reign forever do Messiah de seu ídolo Händel -, Beethoven desejasse isso mesmo. Não tenho dúvidas de que ele fosse um homem em constantes buscas espirituais, capaz de repetir por várias vezes a indicação Mit Andacht (“Com devoção”) e colocar uma outra, Bitte um innern und äussern Frieden (“Rogue pela paz interior e exterior”) na sua mais importante obra de música sacra. Sua maior busca, no entanto, sempre foi a de que sua arte provocasse uma reação significativa em seu ouvinte – e a maior pista nesse sentido, para mim, foi a inscrição que ele quase publicou no frontispício dessa partitura:
Von Herzen – möge es wieder zu Herzen gehen”
(“De coração – que possa voltar ao coração”)
Ludwig, parece, acertou-me em cheio.
ooOoo
Encontrar uma interpretação satisfatória dessa obra desafiadora foi, realmente, muito difícil. A Missa Solemnis é, assim como a Sinfonia “Pastoral”, um calcanhar de Aquiles de muitos bons regentes. Poderia fazer aqui um enfadonho relato de quanto tempo perdi ouvindo gravações ruminativas que, talvez para facilitar a execução, reduziam a marcha dos frenéticos andamentos prescritos por Beethoven e delongavam a já imensa composição até o limiar do soporífero. Há outras tantas que, pouco atentas ao turbilhão de contrastes da partitura, acabam com um nada atraente jeitão rapsódico.
Em 2012, no entanto, John Eliot Gardiner voltou à Missa Solemnis, que já gravara em 1989, e meus problemas acabaram. Os ótimos solistas têm o brilho e a potência vocal para vencerem a imensa massa sonora que Beethoven tantas vezes os manda enfrentarem. É difícil imaginar um coro melhor que o Monteverdi, que não aparenta estrebuchar com as torturas prescritas pelo malvado alemão, e a Orchestre Révolutionnaire et Romantique, apesar do nome esdrúxulo, acerta tudo. Como acertar tudo não é o bastante, Gardiner guia suas forças musicais com segurança ao longo da armadilhada partitura, e a Missa Solemnis soa sanguínea e fresca como aquela madrugada que raiou para as pombas. Baixem agora que, em uma hora e meia, estarão a aplaudi-los de pé.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Missa Solemnis em Ré maior, para solistas, coro e orquestra com órgão, Op. 123 Composta entre 1819-1823 Publicada em 1826 Dedicada ao arquiduque Rudolph da Áustria
1 – Kyrie (Assai sostenuto – Mit Andacht – Andante assai bem marcato – Tempo I)
2 – Gloria (Allegro vivace – Meno Allegro – Tempo I – Larghetto – Allegro maestoso – Allegro, ma non troppo e ben marcato – Poco più Allegro – Presto)
3 – Credo (Allegro na non troppo – Adagio – Andante – Adagio expressivo – Allegro – Allegro molto – Allegro ma non troppo – Allegro ma non troppo- Allegro con moto – Grave)
4 – Sanctus (Adagio. Mit Andacht – Allegro pesante – Presto) – Praeludium (Sostenuto ma non troppo) – Benedictus (Andante molto cantabile e non troppo mosso)
5 – Agnus Dei (Adagio – Allegretto vivace (Bitte um innern und äussern Frieden) – Allegro assai – Tempo I – Presto – Tempo I)
Lucy Crowe, soprano Jennifer Johnston, contralto James Gilchrist, tenor Matthew Rose, baixo The Monteverdi Choir Orchestre Révolutionnaire et Romantique
Peter Hanson, spalla James Johnstone, órgão Sir John Eliot Gardiner, regência