Enviado gentilmente a nós pelo amigo Raul Boeira. Publicado no Digestivo Cultural em 10/04/2008.
É preciso entender de música para resenhar um disco? É anti-ético para um jornalista musical ser amigo de artistas? Criticar é sempre “falar mal”? Essas e outras muitas dúvidas foram esclarecidas no curso de Crítica Musical promovido pelo Espaço da Revista Cult, voltado para jornalistas e estudantes de comunicação. Foram recrutados profissionais do mais alto escalão para discutir, avaliar e (por quê não?) criticar essa área do jornalismo cultural.
Uma das melhores (e mais subjetivas) definições sobre a atividade de um crítico musical foi dada pelo jornalista Pedro Alexandre Sanches, crítico da Folha de S. Paulo por 10 anos e hoje sub-editor de cultura da revista Carta Capital. “Um dia você se vê à frente de um rio com uma tina de roupa suja, um punhado de sabão e aí você vai descobrir que misturando esses ingredientes talvez a roupa fique limpa, talvez não. Pode até descobrir que se você cantar enquanto lava o tempo passe mais rápido”. A metáfora, apesar de ter sido definida por ele como “viagens na maionese”, representa muito bem o exercício de analisar uma obra musical. Não tem manual nem cartilha para esse profissional: é ao longo do tempo, pesquisando e conhecendo este universo que o jornalista encontra seu estilo e o caminho que vai percorrer.
Os jornalistas que deram início a esta atividade na imprensa brasileira foram Nelson Motta e Ezequiel Neves, nos anos 70. Segundo o crítico musical do jornal O Estado de S. Paulo, Jotabê Medeiros, a marca dessa geração era o grande envolvimento com os artistas e com o meio musical, que ia muito além da relação jornalista-artista. “Houve uma confusão de papéis nessa época. O crítico de música também produzia festivais, produzia artistas, às vezes tinha uma banda e não raro escrevia sobre o que fazia”, explica Jotabê. Nelson Motta compôs com Dori Caymmi, Lulu Santos, produziu vários artistas e eventos, como o Saquarema 76 e Hollywood Rock, enquanto também escrevia sobre música no jornal O Globo. Ezequiel Neves, por sua vez, foi produtor do Barão Vermelho e escrevia em revistas de música, como as extintas POP, Música e Som Três. “[Ezequiel] foi também um dos primeiros paradigmas de uma crítica de rock e pop essencialmente brasileira”, avalia.
Nos anos 80, os críticos mais influentes foram Pepe Escobar, Fernando Naporano e Alex Antunes que, ao contrário dos jornalistas da década passada, foram mais influenciados pelo que se fazia nas revistas americanas e inglesas. “A abordagem era agressiva, mas era necessária, pois foi uma época em que a indústria musical se formatava, com novas gravadoras se instalando no país. Então os jornais precisavam de profissionais para suprir essa demanda”, conta Jotabê.
Ao expor um pouco da biografia de cada crítico que teve uma atuação importante na história da música brasileira, Jotabê pôde também traçar o perfil da crítica musical atual. “Hoje você tem pouco tempo para decidir se gosta ou não de alguma coisa. Tem tido muito gossip, apesar das abordagens em bons blogs como o do Lúcio Ribeiro e do Alexandre Matias. Não sei se é a morte da crítica, mas hoje a existência dela está em xeque”, observa.
O pouco tempo que um crítico musical tem para ouvir novos álbuns e artistas, analisar e ainda escrever sobre o assunto é, de fato, um dos grandes problemas que o profissional encontra atualmente. Principalmente porque para escrever sobre música, é preciso se aprofundar, até para mostrar que tem um certo conhecimento sobre o assunto. “Para escrever sobre música, é preciso ter referências, saber que tipo de música o compositor ouve, o que ele quer dizer com a obra”, opina Sérgio Martins, crítico da revista Veja.
A aula com o jornalista foi baseada em uma seleção musical de dez álbuns de estilos bem variados, como Back to Black (Amy Winehouse), River: The Joni Letters (Herbie Hancock), Nashville Skyline (Bob Dylan) e outros artistas que não estavam na lista inicial, como Siba e a Fuloresta, Nelson Cavaquinho e Cat Power. A partir deste material, Sérgio promoveu com os alunos um debate sobre os diversos aspectos de cada estilo, gênero e artista. O exercício praticado na aula foi bem similar à atividade diária de um crítico musical: tentar encontrar referências, influências, originalidade, avaliar a interpretação, a dinâmica da canção e, por fim, dar o toque opinativo, contanto, é claro, que este seja fundamentado em todos os outros itens.
Outra questão importante, que muitas vezes passa despercebida por muitos leitores, é a associação entre o “criticar” e o “falar mal”. O assunto foi abordado por Pedro Alexandre, que assumiu ter sido “cruel” na época em que trabalhou na Folha de S. Paulo. “Lá eu falava mal mesmo. Aí cansei, entrei em crise. Quem sou eu para falar mal, julgar, condenar alguém assim?”, revela. Para ele, a crítica de jornal hoje é “fast-food”, pois informa pouco e acabam informando mais sobre “as coisas feias” de uma obra do que os aspectos “bonitos”. “O que me influencia a escrever atualmente é a emoção que determinada música causa em mim”, respondeu inspirado a um dos alunos do curso.
Fora do campo (minado) dos jornais diários e revistas semanais, há também a crítica feita por veículos voltados à música e cultura em geral, tais como a revista Bravo!, a própria Cult, a extinta Bizz e a Rolling Stone Brasil, lançada há pouco mais de um ano no mercado, entre outras que já vieram e não sobreviveram. Os editores da RS Brasil Pablo Miyazawa e Ademir Correa contribuíram também com o curso expondo aos participantes como foi a adaptação da revista para o Brasil e as diferenças editoriais entre as publicações internacionais e a publicação brasileira.
Ao contrário do que parece, a Rolling Stone não é uma revista de música ― ou só de música. Os editores a definem como uma revista de mercado, sobre cultura pop. De fato, a publicação tem textos sobre política, cinema, games e televisão. E apesar da extrema preocupação com a imagem, principalmente com a capa, é uma revista que aposta nos textos longos. “É um rompimento com a atitude derrotista das revistas que parecem um blog impresso. A gente faz texto longo e vê que as pessoas lêem sim!”, explica Ademar.
O curso trouxe também profissionais que têm uma relação direta com a crítica, mas não atuam como críticos, como o maestro Abel Rocha e a assessora de imprensa Mariana “Piky” Levy Candeias. Rocha, diretor artístico e regente titular da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo há 4 anos, deu aos alunos noções básicas sobre música erudita e mostrou alguns dos trabalhos da orquestra e suas experiências em misturar música clássica com popular. Piky expôs aos participantes algumas histórias inusitadas que viveu ao longo de sua carreira (já trabalhou na MTV e nas gravadoras Warner, Abril Music e Trama), tomando-as como exemplo de que o jogo de cintura é fundamental para ser um bom assessor de imprensa. Outro fator importante é a sinceridade do assessor, mesmo em situações que podem comprometer a publicação de uma matéria sobre o artista para quem trabalha. “Tem que criar uma relação de confiança com o repórter, senão você vira um mala, fica taxado e perde a credibilidade”, alerta.
Complementando as experiências e informações fornecidas pelos palestrantes, o músico, produtor musical e presidente da gravadora Trama, João Marcelo Bôscoli, fez um retrospecto sobre a evolução tecnológica das mídias (disco, CD, MP3), a mudança de interesses das gravadoras e, finalmente, sobre o declínio do império das majors com a internet e a possibilidade de se consumir música de graça. “O problema da indústria com o MP3 é que as gravadoras pensam que vendem o CD, o físico, o material. Mas se faz música em MP3, disco, pen drive…Não importa! Música é ar vibrando, não é tangível. Tudo isso é mídia, é apenas um suporte para a obra”, explica Bôscoli.
Entre brincadeiras e histórias pitorescas sobre grandes nomes da MPB, como a própria Elis Regina, sua mãe, Bôscoli também conversou com os alunos sobre produção musical, cuja atividade, para ele, não tem regra. “A produção se baseia na atmosfera do estúdio, é um mergulho dentro do sentimento das pessoas. No mais, qualquer metodologia é inútil”, opina. Por fim, falou um pouco sobre as atividades e novidades da Trama, que hoje conta mais cerca de 56 mil bandas cadastradas em seu portal.
Entrevistas
O momento mais esperado do curso pela maioria dos alunos, creio eu, foi a chegada de Sérgio Dias e Zeca Baleiro para uma entrevista coletiva na Cult. Ministrados pelo jornalista Filipe Luna, editor da revista Cult, os músicos contaram histórias, falaram sobre trabalhos antigos, futuros projetos e, claro, comentaram a relação deles com a crítica musical. Ambos os músicos já viveram maus momentos por conta do julgamento de suas músicas. Na opinião de Zeca, falta boa vontade e preparo dos jornalistas. “Rola um deslumbramento com as bandas gringas, parece que não se interessam pela música brasileira”, critica. Sérgio concorda e é ainda mais radical: acredita que para ser um bom crítico musical, tem que ser um bom músico também.
O mutante comentou ainda sobre o processo de criação do grupo e afirmou que não havia nada pré-determinado ou alguma intenção de passar mensagens, nada disso. “Não existiu nada pré-pensado na banda. Se a gente fosse pensar tudo aquilo, em fazer algo revolucionário, nada do que foi feito teria acontecido”, conta. Algo que deixa os alunos inquietos é o fato de não haver mais movimentos musicais ou algo “revolucionário” na atual geração, o que para Sérgio só se explica de um jeito: “AI-6”. “Vivemos o AI-6, é a maneira mais eficiente de calar a boca dos outros: o medo. Na minha época, tínhamos medo da polícia, do governo e hoje temos medo de tudo! Vocês são produto de uma devastação cultural”, protesta.
Na coletiva de Zeca Baleiro, o assunto que mais gerou discussões foi a internet. Ele acredita que disponibilizar suas músicas em um site é uma forma de demonstrar respeito com o público. “A internet não pode ser vista como uma inimiga. A vida do CD está realmente comprometida, mas ainda temos que contemplar as duas rotas: quem gosta da estética do álbum e quem prefere baixar uma música de graça. Mas todas as saídas que vejo para este momento do mercado estão na internet”, conclui. O assunto, aliás, foi o que dominou boa parte do curso, seja por conta das facilidades de acesso à música quanto à informação ― e tudo o que a revolução digital tem promovido, alterado e transformado na crítica musical.
Débora Costa e Silva
São Paulo, 10/4/2008