Grieg por noruegueses! Claro que as revelações são muitas e boas. Há a excelente Orquestra Sinfónica de Gotemburgo, sob Neeme Järvi na DG, que é e continua a ser excelente. Ainda assim, aqui temos variedade na interpretação. Ole Kristian Ruud, ele próprio um norueguês, regendo a Orquestra Filarmônica de Bergen, gravando no Grieg Hall, em Bergen, Noruega!! É isso! Este é um dos registros mais bonitos que ouvi da música para cordas de Grieg, da qual gosto muito. Aqui temos a Suíte Holberg, talvez a peça orquestral mais conhecida de Grieg. Originalmente escrita para piano (o compositor era pianista), sua versão para orquestra de cordas é mais conhecida. Complementando, há as Duas Melodias Elegíacas, Op. 34, as Duas Melodias Op. 53, as Duas Melodias Nórdicas Op. 63, e as Duas Peças Líricas que ele orquestrou (das cinco compostas) Op. 68. Tudo em dupla. Este é um excelente programa de Grieg, tão bem executado quanto se poderia desejar e a introdução perfeita à música deste compositor, bem como uma importante adição a qualquer coleção de música de Grieg.
Edvard Grieg (1843-1907): Holberg Suite / Music For Strings
Holberg Suite, Op. 40 (19:52)
1 I. Prelude 2:43
2 II. Sarabande 4:00
3 III. Gavotte 3:48
4 IV. Air 5:35
5 V. Rigaudon 3:52
Two Elegiac Melodies, Op. 34 (8:58)
6 I. The Wounded Heart 3:14
7 II. Last Spring 5:36
Two Melodies, Op. 53 (9:09)
8 I. Norwegian 4:26
9 II. The First Meeting 4:37
Two Nordic Melodies, Op. 63 (12:00)
10 I. Popular Song 7:24
11 II. Cow Keepers’ Tune And Country Dance 4:28
Two Lyric Pieces, Op. 68 (7:47)
12 I. Evening In The Mountains 3:55
13 II. At The Cradle 3:47
‘For the use and profit of the musical youth desirous of learning, as well as for the pastime of those already skilled in this study’.
‘Para o uso e proveito do jovem músico desejoso de aprender, assim como para o deleite daqueles já avançados nos estudos’.
Trevor Pinnock
Trevor Pinnock é regente, mas também é excelente cravista. Sua segunda gravação das Partitas de Bach é maravilhosa e quando ele gravou o CBT I eu adorei, ouvi um montão de vezes e postei logo em seguida. Não poderia ser diferente agora que ele gravou o segundo livro.
O Primeiro Livro de Cravo Bem Temperado veio a luz em 1722, trezentos anos atrás. Em um artigo escrito por Harold C. Schoenberg, cinquenta anos atrás, para o jornal The New York Times, comemorando os primeiros 250 anos, há uma explicação do problema da afinação de instrumentos de tecla e a solução proposta por Bach – uma afinação temperada. “O que Bach fez foi dividir a oitava em intervalos aproximadamente iguais. Era um ajuste e nenhuma chave ficava perfeita, mas as imperfeições eram suficientemente pequenas para que o ouvido se ajustasse”. A genialidade de Bach estava a serviço da praticidade.
Bach trabalhou muito tempo em seu CBT I e o concluiu em 1722. Sempre genial, mas também por isso, bem prático, usou composições anteriores, algumas que figuravam no Clavier-Büchlein de Friedemann Bach, seu filho mais velho. Havia tratados deste tipo anteriores, para alaúdes e instrumentos do tipo, por exemplo, mas o CBT I foi a primeira coleção a explorar completamente todas as chaves, na forma de Prelúdios e Fugas, tão valorizada por Bach. O que poderia ter se tornado um tratado de estudos, interessante apenas para estudantes, tornou-se pelas mãos de Johann Sebastian num tesouro musical que delicia também aos ouvintes amantes da música.
The Pitch and Bach’s obsession with the keys
Schoenberg conta uma história que revela todo o carinho que Bach tinha por esta obra. Ele teve, por volta de 1724, um aluno chamado Heinrich Gerber, que deixou um relato de seus encontros com o professor. Primeiro ele teve que estudar as Invenções e depois o CBT I. Pois em pelo menos três encontros, Johann Sebastian, com a desculpa que estava sem vontade de dar aulas, escolhia algum de seus magníficos instrumentos e interpretava todos os prelúdios e fugas, do começo ao fim. Heinrich conta que estas foram as melhores horas que passou com o professor.
On Bach’s footsteps –the Well Tempered Clavier
Uma segunda coleção foi terminada em 1742, quando também foram concluídas as Variações Goldberg. Novamente composições anteriores foram adaptadas e muitas peças do novo volume têm conexões com as correspondentes peças do primeiro. É preciso lembrar que nestes 20 anos que se passaram os gostos musicais vigentes mudaram bastante e Bach certamente não estava alheio a isso. A fuga era uma forma musical rapidamente caminhando para se tornar arcaica, mas ainda encontrava grande interesse especialmente em estudantes de música.
O que você não pode deixar de ouvir aqui no livro II? Eu diria que não deve deixar de ouvir uma só nota que seja, mas considerando a vida moderna e que você tem pouco tempo de ócio e muitas coisas para ouvir, não deixe de ouvir os Prelúdios e Fugas de números 5, 9 e 22. Estes são (talvez como quaisquer outros) um bom lugar para começar. A Fuga No. 5 é do tipo stretto. (Falamos em stretto quando o sujeito é apresentado em uma voz e imitado em uma ou mais vozes, com a imitação iniciando-se antes que o sujeito inicial tenha terminado de soar.) Na Fuga No. 9 Bach retoma o espírito da antiga polifonia vocal, quase uma redução para teclado de um moteto a capella. A Fuga No. 22 é uma das mais imponentes de todas as escritas por Bach. É como se ele soubesse que haveria um tempo em que sua música soaria cada vez melhor, mesmo em novos e diferentes instrumentos. Em algum destes filmezinhos do videoblog do Pinnock ele menciona a diferença entre os dois livros. Ele diz que este segundo volume foi escrito em parte para o próprio autor, para seu prazer. Ele também menciona que em alguns momentos, Bach flerta com a ‘nova música’, que estava sendo feita por seus filhos e os novos compositores.
Nenhum dos dois livros foi publicado durante a vida de Bach e as primeiras edições surgiram em 1800. No entanto, cópias deles circulavam entre os músicos e aspirantes. Mozart arranjou algumas das fugas para conjuntos de câmara. Beethoven, que estudou com Gottlob Neefe, sabia os dois livros de cor. Joseph Haydn tinha cópias dos dois livros.
Há gravações completas dos dois livros feitas por cravistas e pianistas desde os tempos jurássicos. Wanda Landowska, Gustav Leonhardt e Ralph Kirkpatrick, ao cravo, Edwin Fischer, Walter Gieseking e Friedrich Gulda, ao piano, são alguns exemplos. Há muitas gravações memoráveis (e algumas nem tanto) e mesmo os selos menos famosos fazem lançamentos destas obras. Algumas gravações despertam paixões tanto pró como contra: Glenn Gould, Daniel Barenboim, Sviatoslav Richter… Ainda bem que há tantas possibilidades, basta ouvir e julgar por si mesmo, sem se preocupar tanto com o número de críticas encontradas neste ou naquele site…
Schoenberg segue mencionando que Heinrich não especificou qual tipo de instrumento Bach escolheu. Há inclusive gravações feitas tendo um órgão como o instrumento de tecla, como a de Robert Costin. A escolha de cravo ou piano é a mais comum e se você está procurando uma gravação moderna, com excelente som, em uma versão para cravo, está a um passo da felicidade.
O maestro Marriss Jansons tem uma ampla discografia, sobretudo à frente de duas orquestras renomadas: a do Concertgebouw de Amsterdam e a da Rádio Bávara de Munique. Ambas as orquestras têm, já há alguns anos, seus próprios selos que lançam seus CDs (uma tendência neste século XXI), e por motivos comerciais privilegiaram pesos-pesados do repertório sinfônico sob a regência de Jansons: Sinfonias de Brahms e de Mahler, Balés de Stravinsky, etc.
Nessa coleção de gravações de rádio da Orquestra do Concertgebouw, Brahms, Mahler e Stravinsky também aparecem, mas o que mais me interessa aqui é a presença de outros nomes que mostram a diversidade da música orquestral do século XX: o polonês Lutoslawski, o tcheco Martinů, os franceses Messiaen, Poulenc e Varèse, o russo Prokofiev… Poderíamos desejar também música brasileira, mexicana, um pouco mais dos poloneses… enfim, não se pode ter tudo.
A coleção, aos meus ouvidos, começa muito bem, com uma envolvente interpretação da Sinfonia Fantástica em que se nota a concentração absoluta de toda a orquestra nos pizzicati, tremolos, valsa com harpas, marcha com tutti de metais e outras formas expressivas do genial orquestrador que foi Berlioz. Depois o nível cai em uma La Valse de Ravel quase no piloto automático, com bem menos espírito dançante do que as gravações de Haitink/Concertgebouw ou Munch/Boston. Mas o nível melhora muito com uma interpretação de tirar o fôlego do Concerto para Orquestra de Lutoslawski. Estreado em Varsóvia em 1954 e logo alcançando notoriedade dos dois lados da Cortina de Ferro, esse Concerto encerrou em grande estilo a primeira fase de Lutoslawski como compositor. Nessa fase, ele se inspirava bastante em melodias folclóricas polonesas. Após obras mais curtas, de câmara ou para voz e orquestra, ele resolveu fazer esse Concerto de maior fôlego, antes de se aventurar por caminhos mais vanguardistas. Obviamente está presente o tempo todo a inspiração de Bartók, aliás este último aparece também nessa caixa de Jansons com seu Concerto para Orquestra, de 1943, em uma interpretação sem defeitos, mas menos espetacular que este Bartók aqui e este aqui.
E então chegamos às grandes Sinfonias, com destaque para uma 6ª de Tchaikovsky e uma 7ª de Mahler com a sonoridade marcante do Concertgebouw e a energia das apresentações ao vivo. Há também Strauss, Hindemith, uma obra juvenil e romântica de Webern… um programa com um pouco para cada gosto, como é de bom tom para a temporada anual de uma grande orquestra.
Mariss Jansons / Concertgebouw Orchestra – The Radio Recordings 1990-2014
CD 1:
Hector BERLIOZ
Symphonie fantastique, Op. 14 (1830)
É claro que estou postando este disco em razão da guerra — absurda como todas. Mas saibam que é um lindo disco. Boris Lyatoshynsky foi um dos principais membros de uma nova geração de compositores ucranianos que surgiram na década de 1920. Seu Quinteto Ucraniano é emocionante, com um belíssimo segundo movimento Lento e tranquillo. A linguagem é firmemente enraizada na tradição romântica tardia. Todo o quinteto, em seus quatro movimentos, é muito bonito. Dedicado a Lyatoshynsky, o Quinteto para Piano de Valentin Silvestrov data de seus primórdios como compositor. Silvestrov tinha 24 anos e ainda não era bem Silvestrov, Aliás, seu professor, Lyatoshynsky, não gostou muito da coisa, que tem uma retórica meio soviética. Já o Simurgh de Victoria Poleva faz parte de um estilo que abraça temas espirituais e uma simplicidade musical definida como “minimalismo sacro”. Pivnenko e seus colegas são intensos e cheios de sangue, além de tecnicamente magistrais.
Boris Lyatoshynsky / Valentin Silvestrov / Victoria Poleva: Ukrainian Piano Quintets
Lyatoshinsky, Boris Mikolayovich
Ukrainian Quintet, Op. 42
1. I. Allegro e poco agitato 00:11:40
2. II. Lento e tranquillo 00:12:34
3. III. Allegro 00:05:56
4. IV. Allegro risoluto 00:09:58
Silvestrov, Valentin
Piano Quintet
5. I. Prelude: Andante 00:07:39
6. II. Fugue: Allegro 00:06:31
7. III. Aria: Andante 00:05:18
Poleva, Victoria Vita
Simurgh-quintet
8. Simurgh – quintet 00:17:45
Minha admiração pela música espanhola vem de longe, de minha mais tenra infância, quando ouvia as suítes da opera Carmen, que minha mãe deixava tocando enquanto cuidava dos afazeres domésticos. Eu deveria ter uns três ou quatro anos de idade, mas lembro de longas tarde de verão ouvindo de fundo a ‘Habanera’, a “Canção do Toreador”, entre outras. E aquela abertura fantástica, que nunca saiu de minha cabeça. Mais tarde conheci o imortal ‘Concierto de Aranjuez’, que minha mãe adorava, principalmente seu Adagio, que cantarolava constantemente. Mais tarde comprei o LP em que Paco de Lucia tocava Manuel de Falla, aí minha admiração pela música espanhola mais que aumentou. Alicia de Larrocha também me foi apresentada quando já adulto, então essa música é uma constante em minha vida.
O que mais eu poderia falar da obra de Albéniz que já não tenha sido exposto por aqui? Neste belíssimo CD da Chandos, o maestro nascido no País Basco Juanjo Mena em 1965 (mesmo ano de nascimento do responsável por estas mal traçadas linhas) nos apresenta a obra orquestral do genial compositor espanhol, fazendo um panorama de sua obra.
O disco abre com a “Rapsodia Española”, em arranjo para Piano e Orquestra de George Enescu. O pianista experiente Martin Roscoe é o solista. A atmosfera da música espanhola preenche o espaço, e somos embalados e transportados para os tempos da dominação árabe da península ibérica.
O Concerto para Piano nº1, intitulado ‘Concierto Fantastico’, é a única obra deste formato do compositor, que até tinha planos de compor outro, mas como faleceu precocemente, meros 49 anos, então o projeto nunca vingou.
Rafael Frühbeck de Burgos, conhecido maestro e compositor espanhol, foi o responsável pelo arranjo das ‘Suites Españolas’, com peças conhecidas originalmente em suas versões para Piano, e divinamente interpretados pela maravilhosa Alicia de Larrocha, discos estes que já apareceram por aqui.
Resumindo, creio que se a proposta de Juanjo Mena era de apresentar um panorama da obra deste grande compositor, seus objetivos se cumpriram. A BBC Philarmonic é uma grande orquestra, e não teme enveredar pelas ásperas e por vezes desérticas paisagens espanholas. Pretendo trazer outros discos que a Chandos gravou com essa mesma turma.
Espero que apreciem.
Rapsodia española, Op. 70 (1887)* for Piano and Orchestra
Orchestrated 1911 by George Enescu (1881 – 1955)
1 Allegretto – Andantino – Adagio – Lento – Allegretto non troppo –
Allegretto – Andantino molto ritenuto – Allegro –
Andantino ma non troppo – Animando –
Allegretto ma non troppo – Lento – Andante – Vivace – Adagio –
Andantino – Vivace – Allegro – Presto
Suite from ‘The Magic Opal’ (1892)
Comic Opera in Two Acts
2 Overture. Allegro ma non troppo – Grandioso – Tempo I – Più mosso – Tempo I
3 Prelude to Act II. Allegretto – Più mosso
4 Ballet, Act II. Allegro vivace – Vivace – Allegro
Concerto No. 1, Op. 78 ‘Concierto fantástico’ (1887)* in A minor for Piano and Orchestra
Orchestrated 1887 by J. Trayter (Tomás Bretón y Hernández) (1850– 1923)
A mi buen amigo José Tragó recuerdo de admiración y cariño
5 I Allegro ma non troppo – Andante – Andante – [Tempo I] – Andante – Andante – [Tempo I] – Presto – Prestissimo
6 II Rêverie et Scherzo. Andante – Presto
7 III Allegro – Allegro – Poco meno – Meno mosso – Meno – Tempo I – Poco meno – Presto – Presto – Vivace – Più vivace
Suite española (1886–98)
Arranged 1964–65 by Rafael Frühbeck de Burgos (1933–2014)
8 Castilla (Seguidillas). Allegro molto
9 Granada (Serenata). Allegretto – Meno mosso – Più mosso –
Meno mosso – Tempo I
10 Sevilla (Sevillanas). Allegro moderato – Meno mosso – Meno –
Meno mosso – [Tempo I]
11 Asturias (Leyenda). Allegro ma non troppo – Lento – Andante
12 Aragón (Fantasía). Allegro – Meno mosso – Tempo I – Meno mosso –
Tempo I – Più mosso
Martin Roscoe piano*
BBC Philharmonic
Helena Wood leader
Juanjo Mena
Gostaram do primeiro CD com os Concertos para Cello? Pois agora tem mais três dos concertos além de três sonatas para violoncelo, interpretados magistralmente pelo ótimo cellista francês Christophe Coin.
Já comentei na postagem anterior o quanto esta série da L´Oiseau Lyre, um selo da poderosa gravadora DECCA, fazia sucesso nos anos oitenta. Começando pelas belíssimas capas, as gravações eram sinônimo de qualidade, sempre contando com excepcionais músicos, liderados por Christopher Hogwood e sua The Academy of Ancient Music, tendo Jaap Schröeder como spalla, e acompanhando solistas do nível do próprio Coin e a musa do blog, Dame Emma Kirkby. Claro que outros músicos de altíssimo nível também realizaram gravações por aquele selo, mas era essa turma que se destacava.
01. Concerto in D minor, RV 406 – I. (Allegro)
02. Concerto in D minor, RV 406 – II. Adagio
03. Concerto in D minor, RV 406 – III. Allegro
04. Sonata No.7 in A minor, RV 44 – I. Largo
05. Sonata No.7 in A minor, RV 44 – II. Allegro poco
06. Sonata No.7 in A minor, RV 44 – III. Largo
07. Sonata No.7 in A minor, RV 44 – IV. Allegro
08. Concerto in C minor, RV 402 – I. Allegro
09. Concerto in C minor, RV 402 – II. Adagio
10. Concerto in C minor, RV 402 – III. Allegro
11. Sonata No. 8 in E flat major, RV 39 – I. Larghetto
12. Sonata No. 8 in E flat major, RV 39 – II. Allegro
13. Sonata No. 8 in E flat major, RV 39 – II. Andante
14. Sonata No. 8 in E flat major, RV 39 – IV. Allegro
15. Sonata No. 9 in G major, RV 42 – I. Preludio. Largo
16. Sonata No. 9 in G major, RV 42 – II. Andante
17. Sonata No. 9 in G major, RV 42 – III. Sarabanda. Largo
18. Sonata No. 9 in G major, RV 42 – IV. Gigue. Allegro
19. Concerto in G major, RV 414 – I. Allegro molto
20. Concerto in G major, RV 414 – II. Largo
21. Concerto in G major, RV 414 – III. Allegro
Christophe Coin – Cello
The Academy of Ancient Music
Christopher Hogwood – Conductor
Este repertório sempre lembra meu pai, falecido em 1993. Ele amava os Concertos para Piano de Mozart e, mesmo que não saiba qual é qual, conheço cada nota de todos eles e, quando acaba um movimento, a jukebox do meu cérebro já começa a antecipar os primeiros compassos do próximo. Esta gravação de Grimaud é um tremendo acerto. Sou um pouco avesso à pianista, às vezes ela me parece padecer de falta de expressividade. Talvez ela precise do calor do público para render mais, sei lá — e este registro é ao vivo. O que sei é que ela dá um show neste CD. Os dois concertos, ambos em ensolaradas tonalidades maiores, não estão entre os mais gravados da produção do compositor. E há uma adição substancial na forma de uma ária de concerto, originária de Idomeneo, para soprano e orquestra, com piano obbligato. Este não é o gentil e acariciante Mozart de Maria João Pires. Grimaud encontra força e profundidade no movimento Adagio do Concerto Nº 23, tornado mais devagar do que o habitual, e uma vivacidade borbulhante no Allegro final. Da mesma forma, ela vai muto bem no Concerto Nº 19, onde transmite a natureza despreocupada de uma das obras mais brilhantes e alegres de Mozart. Erdmann canta belamente a ária. E, nestas peça, novamente o piano de Grimaud é um trunfo.
Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791): Concertos para Piano Nº 19 & 23 (Grimaud, Erdmann)
Piano Concerto No.19 in F, K.459
Cadenzas: W.A. Mozart
1. Allegro [11:58]
2. Allegretto [7:59]
3. Allegro assai – Cadenza: Wolfgang Amadeus Mozart [7:53]
Ch’io mi scordi di te… Non temer, amato bene, K.505
(Varesco)
4. Ch’io mi scordi di te? [1:53]
5. Non temer, amato bene [3:15]
6. Alme belle, che vedete [5:07]
Piano Concerto No.23 in A, K.488
Cadenza: Ferruccio Busoni
7. Allegro [10:42]
8. Adagio [7:38]
9. Allegro assai [7:56]
Hélène Grimaud – Piano
Mojca Erdmann – Soprano
Kammerochester des Bayerischen Rundfunk
Hoje, quando lembramos que faz um ano que o Ammiratore nos deixou, vítima de uma Covid-19 que já era uma doença prevenível em nações não negacionistas e da necropolítica que matou outros 661.000 brasileiros, nada tenho de muito inteligente para lhes dizer, pois nada há que possa aplacar a tristeza e a revolta com a perda de nosso querido amigo e o morticínio promovido por tão dolosas negligências.
Por isso, hei de lhes oferecer música.
Pensei, primeiramente, em alcançar-lhes alguma gravação do portentoso Requiem de Giuseppe Verdi, até me dar conta de que suas tonitruâncias apocalípticas ornam melhor com meu ódio a todos perpetradores desse hediondo crime sanitário contra os brasileiros do que com a índole de nosso pacato Ammiratore. Ele amava Verdi, sim, e certamente haveria de nos proporcionar uma entusiasmada aula sobre o Requiem dentro de seu projeto de aqui publicar a obra completa do mestre de Roncole. Por isso mesmo – em respeito a nosso amigo, à sua devoção ao Progetto Verdi, e ao colega Alex DeLarge, que tanta dedicação enciclopédica tem empenhado em sua continuidade – resolvi deixar que o Requiem de Giuseppe aqui apareça no devido momento, provavelmente entre Aida e Otello, dessa longa travessia.
Em lugar da tonitruância, oferecer-lhes-ei uma obra muito mais afeita à suavidade do homenageado: o Requiem que Gabriel Fauré escreveu entre 1887 e 1890 e revisou algumas vezes. Nessa obra-prima, a sequência Dies Irae, que costuma proporcionar aos compositores os melhores pretextos para derramar magma nos ouvintes, é substituída pela mui branda Pie Jesu, e o sublime In Paradisum que a encerra atesta quão bem-sucedido foi o compositor em suas intenções, aqui expressas em suas próprias palavras:
Tudo o que consegui acalentar por meio de ilusão religiosa coloquei no meu Réquiem, que, além disso, é dominado do começo ao fim pelo sentimento muito humano de fé no descanso eterno.”
E nada mais lhes contarei, além das saudades que tenho de meu amigo, e da vontade de que, em seu eterno descanso, haja muita música.
Gabriel Urbain FAURÉ (1845-1924)
Requiem em Ré menor, para solistas, coro e orquestra, Op. 48
Versão original, publicada em 1893
1 – Introït
2 – Kyrie
3 – Offertoire
4 – Sanctus
5 – Pie Jesu
6 – Agnus Dei
7 – Libera Me
8 – In Paradisum
9 – Cantique de Jean Racine, Op. 11
Sandrine Piau, soprano Stéphane Degout, barítono Maîtrise de Paris
Membros da Orchestre National de France
Luc Héry, violino solo Christophe Henry, órgão Laurence Equilbey, regência
Um esplêndido disco! Harlekin (1975) é uma das mais apreciadas obras de Karlheinz Stockhausen pela originalidade de sua mise-en-scène e modo de composição: o clarinetista, de fato, toca, faz mímica e dança. Por isso, há bastante sons de marcenaria no CD, tanto do clarinete quanto dos passos de dança de Marelli. Uma maravilha de ouvir. O Arlequim de Stockhausen já não possui quase nada da commedia dell’arte: o personagem que vemos no palco não se expressa pela palavra, mas pela música e linguagem corporal. A pantomima, em sua totalidade, torna-se uma representação abstrata de sua vida. Stockhausen usa sua Formula. A Formula é uma coleção de notas, dinâmicas, ritmos e fraseados conectados por laços internos e equilibrados por cálculos matemáticos precisos. Entenderam? Pois é. A Formula de Harlekin consiste em 13 sons que evoluem e são modificados, no espaço de 43 minutos, através de nove seções.
Michele Marelli (1978) é reconhecido internacionalmente como um dos melhores músicos contemporâneos de sua geração. Colaborou com Karlheinz Stockhausen por mais de 10 anos, dando estreias sob sua regência e gravando 2 CDs com o próprio compositor. Stockhausen foi colega de Pierre Boulez, Edgar Varése e Iannis Xenakis. Todos estudaram com o compositor e organista Olivier Messiaen. Críticos do seu trabalho apontam-no como “um dos grandes visionários do século XX no contexto da música pós-moderna”. É conhecido, entre outras coisas, por um trabalho durante a gênese da música eletroacústica e do indeterminismo musical. Músicos de jazz como Miles Davis, Cecil Taylor, Charles Mingus, Herbie Hancock, Yusef Lateef e Anthony Braxton citaram Stockhausen como influência, assim como artistas do rock como Frank Zappa.
1. Der Traumbote [5:49]
2. Der spielerische Konstrukteur [6:41]
3. Der verlebte Lyriker [3:22]
4. Der pedantische Lehrer [7:42]
5. Der spitzbübische Joker [3:40]
6. Der leidenschaftliche Tänzer [3:22]
7. Dialog mit einem Fuss [2:10]
8. Harlekin’s Tanz [2:35]
9. Der exaltierte Kreiselgeist [7:24]
Nestes dias de notícias tão alarmantes, de tantas preocupações, verdadeiras atribulações, encontrar uns pedacinhos de alegria ao se reunir com amigos, em receber notícias pessoais que podem ao mesmo tempo alarmar e alegrar, servem como um refrigério.
Nesta lista de coisas que têm me ajudado a sorrir estão a visita da neta, uma ou outra reunião com amigos e familiares e, é claro, a música.
Este disco poderia muito bem ter me escapado entre as muitas tentações que abarrotam minha pasta de música. O selo e o pianista são ingleses e a música, mais francesa impossível. Mas foi amor à primeira audição e quando isso acontece, a postagem acaba acontecendo.
Um disco inteiramente dedicado a peças de Francis Poulenc. E vejam que ele mesmo não as tinha em alta estima. No entanto, esta coleção de peças curtas revela aspectos típicos de sua música, como um que de nostalgia, bastante leveza e muita elegância. Para que essa magia possa ser totalmente revelada é preciso um intérprete sensível, além de competente. Veja que beleza são as Trois Novelettes, passando por diferentes tipos de humor. Outra preciosidade é a suíte Napoli, com uma barcarolle, um noturno e um capricho italiano. Segundo o próprio Charles Owen: “Uma das grandes alegrias ao tocar este repertório é a necessidade de recapturar a joie de vivre inerente nestas composições”.
Charles Owen owns a piano…
Em uma pequena entrevista na BBC Music Magazine, ele revelou algumas peças musicais de que gosta por razões especiais. A Sonata para Piano em lá menor, D 845, de Schubert, o Concerto para Violino de Elgar, o ciclo de Lieder Frauenliebe und -leben, de Schumann, além da ode pastoral L’Allegro, il Peseroso ed il Moderato, de Handel, finalizando com a ópera A Raposinha Esperta, de Janáček.
Estas escolhas se devem a momentos especiais em sua vida, como foi o caso da sonata de Schubert. Aos 13 anos, quando era aluno da Menuhin School, assistiu a um concerto da pianista Imogen Cooper que interpretou esta sonata, deixando-o muito impressionado. Posteriormente Charles tornou-se aluno de Imogen. Você pode já imaginar que a conexão com o Concerto de Elgar se deu através do violinista Yehudi Menuhin. Mas, chega de spoilers, vá em busca da entrevista para descobrir o resto. Além disso, não quero tomar mais de seu tempo, ande, vá logo em busca do download. Tenho certeza que, mesmo ao ouvir este disco uma só vez, vai lembra-se dele com um sorriso.
Francis Poulenc (1899 – 1963)
Les Soirées de Nazelles
Preambule
Cadence
Variation 1: Le comble de la distinction
Variation 2: Le coer sur la main
Variation 3: La desinvoltue et la discretion
Variation 4: La suite dans les idees
Variation 5: Le charme enjoleur
Variation 6: Le contentement de soi
Variation 7: Le gout du malheur
Variation 8: L’alerte vieillesse
Cadence
Finale
Napoli – suite for piano
Barcarolle
Nocturne
Caprice Italien
Mélancolie
Mélancolie
Novelettes
Novelette No. 1 em dó maior: Modere sans lenteur
Novelette No. 2 em si bemol menor: Tres rapide et rythme
Novelette No. 3 em mi menor: Andantino tranquillo
Improvisations
Improvisation No. 1 em si menor
Improvisation No. 2 em lá bemol maior
Improvisation No. 3 em si menor
Improvisation No. 4 em lá bemol maior
Improvisation No. 5 em lá menor
Improvisation No. 6 em si bemol maior
Improvisation No. 7 em dó maior
Improvisation No. 8 em lá menor
Improvisation No. 9 em ré maior
Improvisation No. 10 em fá mior, “Eloge des gammes”
Improvisation No. 11 em sol menor
Improvisation No. 12 em mi bemol maior, “Hommage a Schubert”
Improvisation No. 13 em lá menor
Improvisation No. 14 em ré bemol maior
Improvisation No. 15 em dó menor, “Hommage a Edith Piaf”
Charles Owen esperando o pessoal do PQP Bach para uma entrevista,certo de que terá a última palavra…
A magical album. Charles Owen empathises closely with Poulenc’s elusive idiom catching its delicacy and insouciance brilliantly. An album to cherish and one that will undoubtedly figure highly in my recital discs of 2005. [MusicWeb International]
Owen’s playing is marvellously alive. Where there are nuances, he finds them; where Poulenc plays the vulgarian (oh so aristocratically!), there too Owen is on the mark. Add to that a lovely ear for balance and fingers that are more than capable of these twisting exercises, and you have enjoyment at a high level. [Gramophone 2004]
Despojada da maioria dos gostos do final do século 19 e início do século 20, aqui temos uma interpretação clara, nítida e comovente. Sob Harnoncourt, a maravilhosa Royal Concertgebouw Orchestra soa sombria e tempestuosa com um toque da inclinação de menos vibrato aqui e ali. Rudolf Buchbinder e Nikolaus Harnoncourt essencialmente tentam fazer pelas duas obras-primas de Brahms o que Krystian Zimerman conseguiu com tanto sucesso com os dois concertos para piano de Chopin. Eles propõem performances livres de qualquer traço de convenção, nunca dando nada como certo, questionando as partituras e recolocando a música no contexto cultural e biográfico originais. E eles não fazem apenas ajustes: eles encontram respostas. Harnoncourt não muda nada no que Brahms escreveu. Ele apenas dá a cada detalhe, incluindo aqueles geralmente esquecidos, seu devido lugar na trajetória geral da performance. Como especialista em música do Período Clássico – suas sonatas Haydn completas para Teldec ainda estão entre as melhores já gravadas –, Buchbinder se encaixa bem nessa concepção, oferecendo uma execução ao mesmo tempo ousada, bem articulada e dramática, mas sensível ao som e ao equilíbrio. Os andamentos são cuidadosamente escolhidos – espaçosos e tensos nos movimentos externos e relativamente rápidos nos movimentos centrais, para evitar o sentimentalismo excessivo e o risco de tédio. Gostei.
Johannes Brahms (1833-1897): Os Concertos para Piano (Buchbinder / Harnoncourt)
Piano Concerto No.1 In D Minor, D-moll, Op.15
1-1 Maestoso 24:24
1-2 Adagio 13:05
1-3 Rondo: Allegro Non Troppo 12:14
Piano Concerto No.2 In B-Flat Major, B-dur, Op.83
2-1 Allegro Non Troppo 17:49
2-2 Allegro Appassionato 8:57
2-3 Andante 11:41
2-4 Allegretto Grazioso 8:26
Cello – Gregor Horsch (track: 2-3)
Conductor – Nikolaus Harnoncourt
Orchestra – Royal Concertgebouw Orchestra
Piano – Rudolf Buchbinder
Um bom disco de música antiga. Como diz o título, são canções de Konrad von Würzburg. Coisinha simples e bonitinha, ideal para dar uns pulinhos medievais pela sala. Konrad von Würzburg foi um poeta, músico e compositor poeta alemão que, durante o declínio da cavalaria medieval, procurou preservar os ideais da vida da corte. De origem humilde, serviu uma sucessão de patronos como poeta profissional e acabou por se estabelecer em Basileia. Suas obras vão de letras de amor e poemas didáticos curtos a épicos em grande escala. Porém, ele está no seu melhor em seus poemas narrativos mais curtos. A originalidade de Konrad é mais de forma do que de conteúdo. O caráter explicitamente didático de sua poesia lhe valeram a estima de seus contemporâneos. Um século depois, a nova geração de poetas-artesãos conhecidos como Meistersingers o nomeou como um dos “12 velhos mestres” da poesia medieval de quem eles se orgulhavam descender. Este disco, por sua vez, descende de um LP bem curtinho.
Konrad von Würzburg (c.1225-1287): Lieder (Andrea von Ramm)
1 Die meister habent wol gesungen (im ‘Langen Ton’) 2:05
2 Hofton 8:53
3 Nun ist niht mêre min dedinge (Kontrafaktur nach dem troubadour Peire Vidal) 3:28
4 Gevîolierte blüete kunst (Totenklage auf Konrad im ‘Zarten Ton’) 2:13
5 Aspis-Ton 4:50
6 Willekomen, sumerweter süeze! 3:32
7 Von allen Singern (in Marners ‘Langem Ton’) 4:30
8 Morgenwîse 6:10
Andrea von Ramm, vocals
Sterling Jones, fiddle, rebec, lyra, hurdy gurdy
Timothy C. Nelson, flute, tin whistle, hurdy gurdy
Christian Schmid-Cadalbert, narration
Assim como Domenico Scarlatti foi organista na Basílica de São Pedro do Vaticano quando jovem, o Padre Antonio Soler aproximou-se da corte espanhola quando, aos 23 anos e após já ser titular do órgão de igrejas menores, assume os cargos de organista e diretor de coro no grandioso Monasterio de El Escorial, construído no século 16 próximo a Madrid e que, além de Monastério, também era um Palácio Real e local de enterro dos reis da Espanha. Durante os últimos cinco anos de vida de Scarlatti, Soler foi seu aluno e também parece ter sido seu copista, pois ele escreve “e se se encontra nas Obras de Scarlatti tal sinal [duplo sustenido], não a tenham por escrita dele, mas minha.”
Ao mesmo tempo, Soler já começava a compor suas próprias sonatas para cravo, e a proximidade dos dois era tamanha que, em um manuscrito da época, intitulado “Sonatas del Sr. Dn. Domingo Escarlati y otras de frai Antonio Soler”, as sonatas dos dois se misturam ao longo de todo o documento. O nome “frai Antonio Soler” faz referência ao seu período como frade da ordem de São Jerônimo, mas durante a maior parte de sua vida ele foi citado como padre.
Além de sonatas, Soler compôs seis concertos para dois órgãos, além de mais de 300 obras vocais incluindo missas, hinos, motetos e também villancicos, que são obras profanas. E atualmente sua obra mais famosa é um dançante Fandango cheio de variações sobre um baixo constante, muito tocado nos recitais de gente como Scott Ross e Christian Zacharias. O Fandango tem tido sua autoria questionada, mas não deixa de ser uma grande obra espanhola do século 18, sendo ou não de Soler.
Soler é descrito como um homem culto, profundo conhecedor de Latim, de espírito sensível e profundamente religioso. Muito humilde, recusou-se a ser retratado para a galeria dos músicos ilustres da Espanha, postura que nos impediu de conhecer o seu rosto. Grande estudioso, ele publicou um tratado em 1762: Llave de la modulación, y antigüedades de la música. Ali, Soler busca conceituar a modulação que ele e seus contemporâneos faziam no cravo, pianoforte e órgão, normalmente de forma improvisada: “a Modulação, segundo sua definição geral, é a suavidade nos trânsitos de um tom a outro”. No prefácio, Don Joseph de Nebra, Organista e Vice-Maestro da Real Capela de Sua Majestade, afirma: “Confesso com ingenuidade que nunca pensei que pudessem dar regras fixas para Modulações tão sofisticadas: acreditava que eram produzidas pela prática, pelo bom gosto, pela fineza do ouvido …” E Don Antonio Ripa, outro grande organista da época, apresentou a obra de Soler com estas palavras que deixam claro que a função da obra era sobretudo como guia para o improviso, e que nem todos os improvisadores da Espanha eram tão bons como Soler, alguns até incomodavam os ouvidos:
“Julgo que esta Obra há de ser de muita utilidade, não só para Mestres de Capela e Organistas, a quem abre portas com várias regras e Modulações de bom gosto, para que à sua imitação suas produções musicais tenham novidade e boa harmonia, sem incorrer no defeito da aspereza e sem serem ingratas ao ouvido”.
Eu gosto de álbuns como este, em que Maggie Cole toca a música de Soler em dois instrumentos: um fortepiano e um cravo. Fica evidente que a música de Soler soa bem em ambos e que a busca por um instrumento mais correto que os outros às vezes é um preciosismo bobo, provavelmente impensável nos tempos de Soler, quando se tocava com o instrumento que estivesse disponível e afinado. Outra constatação: ao contrário do piano dos nossos dias, de som muito mais potente que o cravo, naquela época talvez os pianofortes fosse mais suaves e com um som menos encorpado do que seu parente mais velho. De fato, muitos cravos de meados do século 18 eram bem maiores do que aqueles do século anterior… Como resume o especialista em instrumentos antigos Michael Latcham, os novos cravos na corte espanhola tinham sessenta e uma notas, mais do que qualquer um dos cinco pianofortes que a rainha Maria Bárbara havia encomendado de Florença. O maior cravo, segundo Latcham, era transportado de palácio em palácio conforme a corte se mudava ao longo do ano. No outono a corte ficava no Escorial. Ali, Soler deve ter ouvido Maria Bárbara e Scarlatti tocarem neste instrumento.
Padre Antonio Soler (1720-1783) – Sonatas, Fandango
01. Sonata 72 in F minor
02. Sonata 41 in E flat Major
03. Sonata 18 in C minor
04. Sonata 19 in C minor
05. Sonata 87 in G minor
06. Sonata 78 in F sharp minor
07. Fandango
08. Sonata 84 in D Major
09. Sonata 86 in D Major
10. Sonata 85 in F sharp minor
11. Sonata 90 in F sharp Major
12. Sonata 88 in D flat Major
Maggie Cole, fortepiano (1-6) and harpsichord (7-12)
Fortepiano: Derek Adlam 1987, after Anton Walter, Vienna circa 1795
Harpsichord: Robert Goble 1986, after AH Haas, Hamburg 1740
Recorded at Abbey Road Studio nº1, London November 1989
Encontrei essa gravação na bagunça mais ou menos organizada de um HD externo. Tinha esquecido dela. Estava guardada em uma subpasta dedicada aos Kuijken, em uma pasta que dedico a intérpretes. E a identificação da pasta era realmente impossível de entender. Não sei o que eu pensava na época em que armazenei esse CD naquele HD externo. Enfim …
Mas toda essa introdução confusa serviu apenas para dizer, no final das contas, que temos aqui uma gravação inestimável, imperdível, com certeza. Tudo funciona às mil maravilhas. A sonoridade da Petite Bande dirigida por Sigiswald Kuijken é única, adoro essa orquestra. Mas o destaque com certeza fica com o solista, Hidemi Suzuki, um espanto como esse homem toca. A forma com que ele consegue extrair novas possibilidades destes já tão conhecidos concertos de Haydn mostra um intérprete ciente de sua capacidade e maturidade.
Franz-Joseph Haydn (1732-1809): Cello Concerto no.1 in C-major
01. I. Moderato
02. II. Adagio
03. III. Allegro molto Cello Concerto no.2 in D-major
04. I. Allegro moderato
05. II. Adagio
06. III. Allegro Sinfonia Concertante
07. I. Allegro
08. II. Andante
09. III. Allegro con spirito
Hidemi Suzuki – Cello
Ryo Teraokado – Violin (Sinfonia Concertante)
Patrick Beaugiraud – Oboe (Sinfonia Concertante)
Marc Vallon – Fagott (Sinfonia Concertante)
La Petite Bande
Sigiswald Kuijken – Conductor
PS. Em recente votação durante um almoço na sede da PQP Bach Corp., nossa equipe elegeu por aclamação as gravações das sinfonias de Haydn por Kuijken como as melhores já postadas aqui neste blog. Você já ouviu?
Esta foi uma de minhas primeiras postagens, lá em 2008, há quatorze anos. Outros tempos, outra realidade, outra tecnologia. O link para Download foi colocado no falecido Rapidshare, era o que tinhamos naquele momento.
Um usuário encontrou essa pequena delícia chamada “Virtuosi” la naqueles primórdios do PQPBach e pediu para atualizar o link. O CD reune o vibrafonista e o pianista Makoto Ozone, músico totalmente desconhecido para mim naquele momento.
Mas além do CD solicitado trago outro CD desta parceria, que foi lançado em 1995, o CD intitulado ‘Face to Face’, onde a dupla toca alguns clássicos do Jazz, assim como obras do próprio Ozone, Thelonius Monk, Benny Goodman, dentre outros. O texto abaixo é da postagem original.
Outra preciosidade encontrada em meu velho porta cds, dos tempos em que ainda baixava mp3 via Soulseek. Um belo dia digitei Gary Burton, e no meio de um monte de coisas, também excelentes, encontrei essa jóia da coroa de meus cds de Jazz.
O nome dado ao CD, “Virtuosi”, define bem a proposta: o encontro de dois virtuoses em seus respectivos instrumentos. Gary Burton com seu vibrafone, e o até então desconhecido para mim, Makoto Ozone, pianista. Algus poderão torcer o nariz e comentar com desdém “mais um disco do tão famigerado encontro OcidentexOriente”. Mas lamento informar senhores de nariz torcido, de que não se trata de nada disso. O que se ouve aqui neste cd é música ocidental, com arranjos de obras de Ravel até Brahms. E tocadas com uma precisão e correção que beira as raias do absurdo. Ainda com relação a esta mesma precisão, dá-se a impressão de que eles tocam juntos há incontáveis décadas, mas existe aí uma diferença de gerações, porém o jovem Makoto Ozone não se deixa intimidar frente ao gigante Gary Burton, que traz junto de si toda a tradição de outros mestres do instrumento no jazz, como Lionel Hampton ou Milt Jackson.
Apesar de poder soar estranho num primeiro momento, garanto-lhes que o que os senhores irão ouvir é da mais pura beleza. Como comentei acima, existe uma cumplicidade tremenda entre os músicos, dando a nítida impressão de eles tocam juntos há muito tempo.
Boa audição.
Gary Burton & Makoto Ozone – Face to Face
01 – Kato’s Revenge
02 – Monk’s Dream
03 – For Heaven’s Sake
04 – Bento Box
05 – Blue Monk
06 – O Grande Amor
07 – Laura’s Dream
08 – Opus Half
09 – My Romance
10 – Times Like These
11 – Eiderdown
1 – Le tombeau de Couperin, for piano – Prelude – Composed by Maurice Ravel
2 – Excursions (4), for piano, Op. 20 No. 1 – Composed by Samuel Barber
3 – Prelude for piano No.19 in A minor, Op. 32/8 – Composed by Sergey Rachmaninov
4 – Milonga, for guitar – Composed by Jorge Cardoso
5 – Preludes (3) for piano II – Composed by George Gershwin
6 – Sonata for keyboard in E major, K. 20 (L. 375) “Capriccio” – Composed by Domenico Scarlatti
7 – Three Little Oddities, suite for piano Impromptu – Composed by Zez Confrey
8 – Concerto in F, for piano & orchestra Movement III – Composed by George Gershwin
9 – Lakmé, opera Medley: Berceuse / Duettino – Composed by Leo Delibes
10 – Capriccio for piano in B minor, Op. 76/2 – Composed by Johannes Brahms
11 – Something Borrowed, Something Blue – Composed by Makoto Ozone
Jean-Philippe Rameau escreveu três livros de Pièces de Clavecin. A primeira, Premier Livre de Pièces de Clavecin , foi publicado em 1706 ; o segundo , Pièces de Clavessin, em 1724 ; e o terceiro, Nouvelles Suites de Pièces de Clavecin, em 1726 ou 1727. Eles foram seguidos em 1741 pelo Pièces de Clavecin en concerts, em que o cravo pode ser acompanhado por violino e viola da gamba ou tocar sozinho. Uma parte isolada, “La Dauphine”, sobrevive de 1747. Tudo é bom, mas as peças finais da coleção são esplêndidas.
Mahan Esfahani é um jovem e grande mestre do cravo, alguém cujo aparecimento nos enche de alegria. Tem 38 anos e esperamos que grave a obra completa de Bach para o instrumento. Pode-se dizer que é um talento do tamanho de Gustav Leonhardt. Ou maior. Que amadureça!
Jean-Philippe Rameau (1683-1764): Pièces de clavecin
1. Suite No 1 in A minor | Prélude [2’04]
2. Suite No 1 in A minor | Allemande I [4’08]
3. Suite No 1 in A minor | Allemande II [1’55]
4. Suite No 1 in A minor | Courante [1’52]
5. Suite No 1 in A minor | Gigue [2’23]
6. Suite No 1 in A minor | Sarabandes I & II [2’58]
7. Suite No 1 in A minor | Vénitienne [1’29]
8. Suite No 1 in A minor | Gavotte [1’28]
9. Suite No 1 in A minor | Menuet [1’06]
10. Suite in E minor | Allemande [3’47]
11. Suite in E minor | Courante [1’36]
12. Suite in E minor | Gigues en rondeau I & II [3’36]
13. Suite in E minor | Le rappel des oiseaux [2’57]
14. Suite in E minor | Rigaudons I, II & double [2’07]
15. Suite in E minor | Musette en rondeau [2’14]
16. Suite in E minor | Tambourin [1’17]
17. Suite in E minor | La villageoise (rondeau) [2’31]
18. Suite in D major | Les tendres plaintes (rondeau) [2’58]
19. Suite in D major | Les niais de Sologne [5’15]
20. Suite in D major | Les soupirs [3’57]
21. Suite in D major | La joyeuse (rondeau) [1’16]
22. Suite in D major | La follette (rondeau) [1’27]
23. Suite in D major | Lentretien des Muses [5’49]
24. Suite in D major | Les tourbillons (rondeau) [2’11]
25. Suite in D major | Les cyclopes (rondeau) [3’05]
26. Suite in D major | Le lardon (menuet) [0’48]
27. Suite in D major | La boiteuse [1’01]
28. Menuet en rondeau in C major [0’35]
Disc: 2
1. Suite No 2 in A minor | Allemande [6’37]
2. Suite No 2 in A minor | Courante [3’51]
3. Suite No 2 in A minor | Sarabande [2’40]
4. Suite No 2 in A minor | Les trois mains [4’38]
5. Suite No 2 in A minor | Fanfarinette [2’37]
6. Suite No 2 in A minor | Le triomphante [1’28]
7. Suite No 2 in A minor |Gavotte [7’26]
8. Suite in G minor |Les tricotets (rondeau) [1’40]
9. Suite in G minor | Lindifferente [1’41]
10. Suite in G minor | Menuets I & II [3’02]
11. Suite in G minor | La poule [4’42]
12. Suite in G minor | Les triolets [3’59]
13. Suite in G minor | Les sauvages [2’18]
14. Suite in G minor | Lenharmonique [5’41]
15. Suite in G minor | Legiptienne [3’41]
16. La Dauphine [2’49]
17. Les petits marteaux [1’42]
Peço perdão pelo longo silêncio que já virou praxe, mas a vida anda dando suas pequenas voltas. A pior foi queimar o HD e estar sem meus LPs e CDs por alguns meses. Mas este não é o caso da compositora de hoje, que estava no meu mp3 player todo o tempo. Seu nome é Tatyana Mikheyeva (lê-se Mirreieva), cazaque, nascida em 1962 em Talgar, no sul do Cazaquistão, próximo a antiga capital Almaty, já na fronteira com a República Quirguiz. Estudou no Conservatório de Música justamente de Almaty, mas quando estive lá, o pessoal do conservatório não sabia quem era (ou fizeram pouco esforço para lembrar, já que eu disse que ela estava em Moscou agora. Parece também que já chegou a dar uma passada pelo Festival Música Nova, em Santos.
Deixando de lado o blá, blá, blá biográfico de quem nada sabe da vida da moça, sua música é muito interessante. Não que seja profundamente revolucionária. Está mais para um crossover, cheio de elementos folclóricos e improvisação jazzística, mas tendendo tudo a caminhar em direção à música clássica, embora, frequentemente, com mais soltura (que é o que me pega aqui). Boa parte das peças são cantadas, mas não é nada que lembre canto lírico. Tem tudo isso, no entanto, uma força magnífica, uma preocupação expressiva bem peculiar e uma harmonização de diversos elementos que me chamam a atenção. Basicamente, não é uma revolução, mas me soa muito singular.
Coloquei tudo que tenho dela aqui (e tudo vêm do Classical Archives). Eu, particularmente, gosto muito da “Morning Mountain Music for Voice, Piano, Cello and Small Ensemble” e me divirto muito com várias partes do Réquiem (ainda que, às vezes, ela exagere um pouquinho no sintetizador).
Boa diversão!!
Tatyana Mikheyeva (1962- )
01 – Archaic Canons for Cello, Voices, Choir and Phonograph
02 – Moonlight Woman for Flute, Alto Flute and Percussion
03 – Morning Mountain Music for Voice, Piano, Cello and Small Ensemble
04 – Music for the Pregnant for Voice and Synthesizer
05 – Music in the Dark for two Pianos, Percussion and Phonograph
06 – The Prophecy of Yahavi’ for Voice, Percussion and Sea Wave
Requiem in Memory of Dmitry Pokrovsky
07 I. Great Devastation
08 II. Trisna
09 III. Voices of Ancestors
10 IV. Krada
11 V. Lullaby of Iriy
Dmitry Cheglakov, cello (faixa 1) K. Drasavin, voz (faixa 1) T. Smyslova, regente (faixa 1, 7-11) Tatyana Mikheyeva, soprano (faixa 1, 7-11), sons eletrônicos (faixa 3), voz (faixa 4, 6) D.Pokrovsky Theater of Folk Music Chamber Ensemble (faixa 1, 7-11) D. Denisov, flauta (alta) (faixa 2) Natalia Pshenichnikova, flauta (faixa 2) V. Grishin, percussion (faixa 2) Andrey Zelensky, sintetizador (faixa 3) N. Shiryaev, baixo (elétrico) (faixa 3)
N. Vintskevich, saxofone (faixa 3) V. Kuleshov, bateria (faixa 3) M. Dubov, piano (faixa 5), M. Pekarski, piano (faixa 5) Mark Pekarsky Percussion Ensemble Chamber Ensemble (faixa 5) Bolshoi Theater Percussion Ensemble Chamber Ensemble (faixa 6) V. Grishin, regente (faixa 6) V. Pushechnikov, piano (faixa 6)
Se Mahler não é um compositor para diletantes, o que dizer de A Canção da Terra (Das Lied von der Erde)? Na lista de maestros que gravaram a obra há poucos que não são de primeira linha. A obra é belíssima, muito sutil e difícil. Não é para qualquer orquestra ou regente. É algo para Haitink. A Canção da Terra é considerada por alguns a obra mais importante de Mahler. Nesta obra, tornam-se visíveis as qualidades mais singulares do compositor: a angústia existencial e a sublime grandiosidade. A obra consiste num ciclo de seis canções baseadas em antigos poemas chineses, adaptados para o alemão por Hans Bethge. Mahler trabalhou nesta sua obra durante os últimos verões da sua vida. Conseguiu concluí-la em 1911, pouco antes de morrer. Ele não chegou a ouvir a estreia, apesar de tê-la interpretado inúmeras vezes ao piano, auxiliado por seu amigo e aluno Bruno Walter — que viria a estreá-la em Munique, em novembro de 1912, um ano e meio após a morte do compositor. Tudo aqui é esplêndido, mas o último movimento… Olha, é muito poético, a instrumentação rarefeita de Mahler é levada às ultimas consequências, é tudo lindo demais. Consta que Das Lied von der Erde não foi catalogada como sinfonia devido a uma superstição que pesava sobre os músicos alemães: ninguém ousava ultrapassar o número nove. Beethoven, Schubert e Dvorak tinham morrido após suas nonas e Mahler não quis escrever a sua… Quando escreveu, pum, vocês já sabem, ele morreu… Mas A Canção da Terra é nitidamente uma sinfonia vocal, que culmina a linha composicional mahleriana — melancólica, pessimista porém cheia de bandinhas, melodiosa, monumental porém íntima — iniciada na Primeira Sinfonia. Eu amo as sinfonias de Mahler de 1 a 7. Amo A Canção da Terra. Detesto a Oitava, sou indiferente à Nona e volto a amar o fragmento da Décima… Para finalizar, um conselho para nosso leitor: não escreva sua Nona Sinfonia, é muito perigoso.
Gustav Mahler (1860-1911): A Canção da Terra (Haitink)
1 1. Das Trinklied Vom Jammer Der Erde 8:14
2 2. Der Einsame Im Herbst 10:26
3 3. Von Der Jugend 3:07
4 4. Von Der Schönheit 7:31
5 5. Der Trunkene Im Früling 4:25
6 6. Der Abschied 31:07
Mezzo-soprano Vocals – Janet Baker
Tenor Vocals – James King
Orchestra – Concertgebouw Orchestra, Amsterdam*
Conductor – Bernard Haitink
O Quarteto para o fim dos tempos para piano, clarinete, violino e violoncelo foi composto a partir de maio de 1940 no campo de prisioneiros Stalag VIIIA e executado pela primeira vez no mesmo local no dia 15 de janeiro de 1941 para 5000 prisioneiros. A partitura é encabeçada com o seguinte excerto do Apocalipse de São Jõao (10, 1-7): “Vi um anjo poderoso descer do céu envolvido numa nuvem; por cima da sua cabeça estava um arco-íris; o seu rosto era como o Sol e as suas pernas como colunas de fogo. Pôs o pé direito sobre o mar e o pé esquerdo sobre a terra e, mantendo-se erguido sobre o mar e a terra levantou a mão direita ao céu e jurou por Aquele que vive pelos séculos dos séculos, dizendo: não haverá mais tempo; mas nos dias em que se ouvir o sétimo anjo, quando ele soar a trombeta, será consumado o mistério de Deus”.
A estruturação da obra em oito movimentos é explicada por Messiaen da seguinte forma: “Sete é o número perfeito, a criação em seis dias santificada pelo Sábado divino; o sete deste repouso prolonga-se na eternidade e se converte no oito da luz inextinguível e da paz inalterável”.
1 – Liturgia de cristal
“Principia com o despertar dos pássaros entre três e quatro horas da manhã. Um melro ou um rouxinol solista improvisa, acompanhado por um conjunto de trilos perdidos no alto das árvores. Esta cena transposta para o plano religioso significa o silêncio harmonioso do céu”.
2 – Vocalise, para o anjo que anuncia o fim dos tempos
Este movimento divide-se em três partes. “A primeira e a terceira parte , muito breves, evocam o poder desse anjo. A segunda parte representa as harmonias intangíveis do céu. No piano, doces cascatas de acordes envolvem o canto monótono do violino e do violoncelo”.
3 – Abismo dos pássaros
“O abismo é o tempo, com suas tristezas e aborrecimentos. Os pássaros, pelo contrário, simbolizam o nosso desejo de luz, de estrelas, de arco-íris e de demonstração de júbilo”.
4 – Intemédio
“Scherzo, de caráter menos íntimo que os outros movimentos, mas relacionado com eles por citações rítmicas e melódicas”.
5 – Louvor à eternidade de Jesus
Neste número, “Jesus é considerado um quarto Verbo. Uma grande frase, extremamente lenta do violoncelo, exprime com amor e devoção a eternidade deste Verbo poderoso e doce, para quem os anos jamais terão fim. Majestosamente, se extenue numa espécie de tenra e suprema distância”.
6 – Dança do furor para as sete trombetas
Do ponto de vista rítmico é a peça mais característica da série. “Os quatro instrumentos, sempre em uníssono, imitam os gongos e trombetas do Apocalipse. Em toda a obra é a única alusão ao aspecto cataclísmico do juízo final”.
7 – Turbilhão de arco-íris, para o anjo que anuncia o fim dos tempos
Repetem-se aqui trechos do segundo movimento. “O poderoso anjo aparece e sobretudo o arco-íris que o cobre (arco-íris: símbolo da paz, da sabedoria e de uma vibração luminosa e sonora”).
8 – Louvor à imortalidade de Jesus
“Este segundo louvor dirige-se especialmente à segunda natureza de Jesus, a Jesus-homem, ao Verbo feito carne, ressuscitado para nos dar a vida. É todo amor. A lenta ascensão até o extremo agudo é a elevação do homem até o seu Deus, do Filho de Deus até o Pai, da criatura divinizada até o Paraíso”.
Olivier Messiaen (1908-1992): Quarteto para o fim dos tempos (Nash)
1. No. 1, Liturgie de cristal
2. No. 2, Vocalise pour l’ange qui annonce la fin du temps
3. No. 3, Abime des oiseaux
4. No. 4, Intermede
5. No. 5, Louange a l’eternite de Jesus
6. No. 6, Danse de la fureur, pour les sept trompettes
7. No. 7, Fouillis d’arcs-en-ciel, pour l’ange qui announce la fin du temps
8. No. 8, Lourange a l’immortalite de Jesus
Nascida em 1937, Alice Coltrane foi uma pianista de jazz que fez seu nome – antes de ter esse sobrenome – a partir de 1960 como improvisadora em Paris e Detroit. Quando tocava em Nova York com o vibrafonista Terry Gibbs em 1962, ela conheceu John Coltrane. No ano seguinte, Alice saiu abruptamente da banda de Terry Gibbs, dizendo a ele que ia se casar com Coltrane. John e Alice tiveram três filhos juntos. Em toda a década de 60, a música de John Coltrane tomava progressivamente uma dimensão espiritual. Ele dizia que, após esse acordar espiritual, “não dá mais para esquecê-lo. Torna-se parte de tudo que você faz.”
John Coltrane morreu de câncer de fígado em 1967. Por algum tempo, Alice dormiu mal, teve visões, emagreceu. Nas profundezas de sua dor, Alice tornou-se discípula de Swami Satchidananda, guru indiano especialista em Hatha Yoga. Seus conselhos e orientação espiritual acalmaram seu espírito, enquanto ela estudava harpa, instrumento que, segundo a lenda, teria sido encomendado por John Coltrane mas ele não teve tempo de vê-la tocando. (informações tiradas daqui)
O tipo de “spiritual jazz” que Alice Coltrane fez na década de 1970 se insere em um movimento que também contou com o inglês John McLaughlin (Mahavishnu Orchestra) e o mexicano/americano Carlos Santana, ambos também muito influenciados por Coltrane. E no álbum Journey in Satchidananda, de 1970, temos músicos do último grupo liderado por Coltrane: Pharoah Sanders no sax e Rashied Ali na bateria e percussão. Além, é claro, de Alice, que tinha substituído o pianista McCoy Tyner no fim de 1965. Na última faixa, gravada ao vivo, Charlie Haden aparece no baixo, mas a estrela desse momento final do álbum é o diálogo entre a harpa e o oud (instrumento da família do alaúde, comum no mundo islâmico), pontuado por aparições do sax.
O título do álbum dá boas pistas: é uma jornada. Alice Coltrane nos leva a um território inexplorado no jazz, com base em múltiplas culturas e diversos instrumentos, mas sobretudo com base na emoção.
Alice Coltrane (1937-2007) – Journey in Satchidananda (1970)
1. Journey in Satchidananda – 6:39
2. Shiva-Loka – 6:37
3. Stopover Bombay – 2:54
4. Something About John Coltrane – 9:44
5. Isis and Osiris – 11:49
All compositions by Alice Coltrane
Tracks 1-4
Alice Coltrane – piano, harp
Pharoah Sanders – soprano saxophone, percussion
Cecil McBee – double bass
Rashied Ali – drums
Tulsi – tanpura
Majid Shabazz – bells, tambourine
Recorded at the Coltrane home studio, Dix Hills, New York, on November 8, 1970
Track 5
Alice Coltrane – harp
Pharoah Sanders – soprano saxophone, percussion
Rashied Ali – drums
Charlie Haden – bass
Vishnu Wood – oud
Recorded live at The Village Gate, New York City, on July 4, 1970
Incrível que já se tenha passado um ano desde que, antes da gafe de deixar o patrão PQP tocar sozinho a série de postagens com a obra completa de Béla Bartók, assumi o papel de mestre de cerimônias no 140º natalício do grande homem e mostrei-lhes algumas de suas muitas façanhas como compositor, pianista, pedagogo e colecionador.
Pois hoje, enquanto colocamos mais uma velinha no bolo do mestre, voltarei àquele que é, talvez, o mais suculento gomo de sua obra. Entre todas suas composição, são as peças para violino – solo, em duo, com piano e acompanhadas por orquestra – que me parecem mais dependentes do “sotaque húngaro”, aquela tecla em que batemos obsessivamente ao longo da série de postagens do ano passado. Claro que há exceções, mas é muito difícil que elas – com seus modos, ataques e efeitos tão calcados no folclore da “Grande Hungria”, estudados à minúcia pelo compositor – sejam executadas a contento por intérpretes não magiares.
Endre Gertler (1907-1998), natural de Budapest, tinha, além de todo esse sotacão, uma tremenda familiaridade com essas obras, advinda da familiaridade com seu próprio autor: ele colaborou com Bartók em recitais ao longo dos anos 20 e 30 e foi, juntamente com József Szigeti, seu consultor para assuntos de técnica violinística. Mesmo depois de se radicar na Bélgica, tornar-se professor do Real Conservatório de Bruxelas e adotar o prenome “André”, o sotaque não se perdeu. Gertler já beliscava os sessenta anos quando foi à Tchecoslováquia, acompanhado dum regente patrício (János Ferencsik) e da esposa, a pianista dinamarquesa Diane Andersen, registrar a integral de Bartók para violino solista, ao lado de orquestras e solistas tchecos. O resultado foi essa gravação emblemática que ora lhes apresento e que, para mim, ainda é a referência nesse repertório, mais de cinquenta anos depois de ser dada ao mundo. O ótimo selo Supraphon é notório pelo cuidado de seus engenheiros de som, e a remasterização para a edição em CD fez jus ao material original. Se tiverem que escolher apenas um disco, sugiro-lhes o segundo: além duma eletrizante leitura da sonata para violino solo, vocês encontrarão minha interpretação predileta dos quarenta e quatro duos, em que o excelente Josef Suk – neto do compositor homônimo e bisneto de Antonín Dvořák – parece trocar de pedigree para tagarelar em magiar com o violino de Gertler.
Béla Viktor János BARTÓK (1881-1945)
A Obra Completa para Violino André Gertler, violino
Gravações realizadas em 1966
Disco 1
01 – Rapsódia no. 1 para violino e orquestra, Sz. 87
02 – Rapsódia no. 2 para violino e orquestra, Sz. 90
Com a Filharmonie Brno (Orquestra Filarmônica de Brno)
János Ferencsik, regência
Concerto para violino e orquestra no. 2, Sz. 112
03 – Allegro non troppo
04 – Andante tranquillo – Lento – Allegro scherzando – Comodo – Tempo I
05 – Allegro molto
Com a Česká Filharmonie (Orquestra Filarmônica Tcheca)
Karel Ančerl, regência
Disco 2
Quarenta e quatro duos para dois violinos, Sz. 98
1 – Livro I: Párosíto – Kalamajkó – Menuetto – Szentivánéji – Tót nóta – Magyar nóta – Oláh nóta – Tót nóta – Játék – Rutén nóta – Gyermekrengetéskor – Szénagyűjtéskor – Lakodalmas – Párnás tánc
2 – Livro II: Katonanóta – Burleszk – Menetelő nóta 1 – Menetelő nóta 2 – Mese – Dal – Újévköszöntő – Szunyogtánc – Mennyasszonybúcsútató – Tréfás nóta – Magyar nóta
3 – Livro III: “Ugyan édes komámasszony…” – Sánta-tánc – Bánkódás – Újévköszöntő – Újévköszöntő – [3] Újévköszöntő – Máramarosi tánc – Ara táskor – Számláló nóta – Rutén kolomejka – Szól a duda – A 36 Sz. Változata
4 – Livro IV: Preludium és kanon – Forgatós – Szerb tánc – Oláh tánc – Scherzo – Arab dal – Pizzicato “Erdélyi” tánc
Com Josef Suk, violino
Sonata para violino solo, Sz. 117 5 – Tempo di ciaccona
6 – Fuga. Risoluto, non troppo vivo
7 – Melodia. Adagio
8 – Presto
Disco 3
Sonata no. 1 para violino e piano, Sz. 75
1 – Allegro appassionato
2 – Adagio
3 – Allegro
Sonata no. 2 para violino e piano, Sz. 76
4 – Molto moderato (attacca)
5 – Allegretto
Com Diane Andersen, piano
Contrasts, para clarinete, violino e piano, Sz. 111
6 – Verbunkos
7 – Pihenő
8 – Sebes
Com Milan Etlík, clarinete e Diane Andersen, piano
Disco 4
Concerto no. 1 para violino e orquestra, Sz. 36
1 – Andante sostenuto – attacca:
2 – Allegro giocoso
Com a Filharmonie Brno (Orquestra Filarmônica de Brno)
János Ferencsik, regência
Sonata em Mi menor para violino e piano, Op. póstumo
3 – Allegro moderato (molto rubato)
4 – Andante
5 – Vivace
Sonatina para violino e piano sobre temas folclóricos da Transilvânia
(arranjo de André Gertler para a Sonatina para piano, Sz. 55) 6 – Allegretto – attacca:
7 – Moderato – attacca:
8 – Finale. Allegro vivace
9 – Canções folclóricas húngaras para violino e piano, Sz. 42
BÔNUS: toda festa de aniversário que se preza tem sua dose de constrangimento ao aniversariante, então não poderíamos deixar de servir-lhe uma bela torta de climão. Quem sairá de dentro dela será sua antiga paixão de juventude, a violinista Stefi Geyer, que inspirou seu primeiro concerto para violino, prontamente engavetado por cinquenta anos depois que ela deu o fora em Béla, e publicado só treze anos depois da morte do compositor. Para piorar o constrangimento, Stefi sairá da torta a tocar o concerto para violino – também dedicado a ela – composto por Othmar Schoeck, que era ninguém menos que o rival de Bartók no embate pelo coraçãozinho da moça. Se me acham perverso por isso, tsc, eu lhes peço que escondam suas venenosas línguas: Geyer é ótima violinista, e melhor ainda é Dennis Brain, o genial trompista que executa o idiomático concerto que completa o disco.
Othmar SCHOECK (1886-1957)
Concerto para violino e orquestra “quasi una fantasia” em Si bemol menor, Op. 21
1 – Allegretto
2 – Grave, non troppo lento
3 – Allegro con spirito
Bem, não vamos exagerar. Mas este talvez seja o melhor LP de Astor Piazzolla. Ainda sem exagerar, digo que talvez ele mereça estar entre os melhores de todos os tempos. Inicia com duas obras conhecidíssimas e segue com outras não tão divulgadas, mas que são absolutamente LINDAS, com destaque para Coral e para o Final da Tangata. E, vejam só, um montão de gente grava Piazzolla. É justificado, claro, todos podem dar suas versões da obra do mestre, só que eu acho que ninguém jamais superou as gravações originais. Há algo de maior e mais ousado em Piazzolla por Piazzolla. O disco foi gravado entre março e junho de 1969 nos estúdios Ión SA em Buenos Aires e depois foi remasterizado.
Astor Piazzolla (1921-1992): Astor Piazzolla y su Quinteto – Adiós Nonino
Encontrei, por acaso, ontem uma gravação que me deixou de queixo caído: não fazia ideia de que Stokowski houvesse gravado Lutosławski. Verdade que é o primeiro Lutosławski, ligado claramente à música de Bartók (de fato, mesmo depois, ele continuaria umbilicalmente ligado, mas de formas mais sinuosas, complexas, ambíguas; aqui, não, tudo é direto e cristalino, ainda que esteja longe, muito longe, de ser a obra que Bartók não escreveu), mas seja o compositor teoricamente visto como conservador (e tenho muitas ressalvas a essa percepção), seja o vanguardista de pouco depois, Lutosławski é grande, fantástico em sua capacidade de manejar a massa sonora, na compactação e na fluência de suas peças, na sua capacidade de construir climas. Pessoalmente, gosto mais desta 1ª Sinfonia do que de qualquer peça puramente orquestral de Bartók (salvo, talvez, pelo início do Mandarim Miraculoso). E nas mãos de Stokowski (numa gravação ao vivo, de 1959), a peça soa fresca, intensa, como nunca havia visto (ouvido) antes. A princípio, o primeiro impacto é a velocidade e a angulosidade da regência, mas não menos impressionante é a coesão que ela imprime, o frescor que tira aquele bolor de obra escolar que estava impregnado em nossa (tanto Antoni Wit quanto o próprio Lutosławski acabam fazendo isso em suas gravações e, do que me recordo, não conheço outras interpretações), e que ele consegue mesmo quando é menos acelerado que Wit no último movimento. Por essas e outras, minha reverência por Stokowski só cresce.
Da 5ª Sinfonia do Shostakovich não tenho muito o que dizer. Não a escutei com atenção e não é, em absoluto, uma das minhas sinfonias favoritas (seria tão melhor por ouvir o Stokowski regendo uma das quatro primeiras ou a décima!).
Ótima diversão!
Witold Lutoslawski
Sinfonia nº1 (1947), para orquestra
01 I. Allegro giusto
02 II. Poco adagio
03 III. Allegro misterioso
04 IV. Allegro vivace
Dmitri Shostakovich
Sinfonia nº5 in Ré menor, Op. 47, para orquestra
05 I. Moderato
06 II. Allegretto
07 III. Largo
08 IV. Allegro non troppo
Orquestra Filarmônica Nacional de Varsóvia (faixas 1-4) Orquestra Filarmônica Tcheca de Praga (5-8) Leopold Stokowski, regente
O turíngio Elias Gottlob Haußmann (1695-1774) aprendeu, como era a praxe em sua época, o ofício de seu pai, pintor da corte de Hesse, e serviu ele próprio as cortes do Eleitor da Saxônia e de Dresden antes de se tornar o retratista oficial de Leipzig. Nos quase quarenta anos em que exerceu essa função, Haußmann levou para as telas praticamente todos os figurões e figurinhas da cidade saxã, imortalizando-os em poses idealizadas que, frequentemente, aludiam a seu poder ou ofício na cidade.
Poupá-los-ei, portanto, de spoilers sobre a função do trompetudo Gottfried Reiche
A despeito de todo trabalho que lhe passou pelo ateliê, pode-se supor que o nome de Haußmann estaria hoje na mesma vala do oblívio em que jazem quase todos seus retratados, não fosse pelo mais célebre deles. Era um músico prolífico (tanto em obra quanto em rebentos) e tão próspero em seu ofício que assumira o prestigioso cargo de Kantor na Igreja de São Tomás – cujas responsabilidades envolviam todas as outras igrejas da cidade e diversas funções do fazer musical, e equivalia, portanto, ao de Diretor Geral de Música em Leipzig.
O laborioso cidadão, pai de vinte e um filhos (os vinte que a História lhes conta, mais o patrãozinho) e ocupadíssimo pela maior parte de seus sessenta e um anos, decidira adicionar inda outra camada de atividades à sua já abarrotada vida. Assim, e por desejar ocupar uma rara vaga na (tentem dizer num só fôlego) Correspondierende Societät der musicalischen Wissenschaften (“Sociedade Correspondente das Ciências Musicais”), fundada por Lorenz Michler, o dito-cujo resolveu cumprir os dois pré-requisitos para a admissão: submeter-lhes uma composição de bom fundamento (no caso, as Variações Canônicas sobre Vom Himmel hoch da komm’ ich her) e arranjar um retrato digno de um figurão daquela exclusiva sociedade, que tinha Händel e Telemann entre seu punhado de membros.
O nome do cidadão, bem, eu não o direi, pois vocês já o adivinharam.
Ecce homo
Não sabemos se o respeitado Thomaskantor, que morreria poucos anos depois em consequência duma cirurgia realizada pelo mesmo charlatão que cegaria Händel, imaginava que aquele seria seu único retrato indubitavelmente legítimo a chegar ao século XXI. O fato é que, ao posar para Haußmann e para a eternidade, ele – que foi o maior tecladista de seu tempo, e um organista cuja fama extrapolou os vastos limites do então Sacro Império Romano-Germânico – não quis ser retratado ao lado de qualquer um de seus muitos instrumentos. Preferiu, em vez disso, ostentar em sua mão direita o símbolo de seu outro ofício: um breve cânone enigmático a demonstrar sua maestria como compositor (ouça-o aqui), a mesma que haveria de imortalizá-lo, através do mais impressionante conjunto de obras de toda a Música.
Ainda que não se saibam muito bem os motivos, há duas versões autênticas do célebre “retrato de Haußmann”. Talvez o retratado quisesse deixar um dos quadros em exibição pública – quem sabe junto à Sociedade supracitada – e guardar o outro consigo, quiçá a salvo das traquinagens da prole. O fato é que, embora devessem ser idênticos, eles sofreram de maneira muito diferente com a passagem do tempo.
O primeiro, datado de 1746, nunca deixou a Alemanha e passou por restaurações que, embora bem intencionadas e ainda que não desfigurassem por completo o retratado (e sim, estamos pensando no mesmo péssimo exemplo), chegou aos nossos dias sem impressionar: é opaco, neutro, e passa despercebido por aqueles que o visitam onde está há muitos anos, na Altes Rathaus de Leipzig.
Já o segundo, que foi o que lhes mostramos acima, tem a data de 1748 e está vívido como se suas tintas ainda estivessem a secar. Ele é, para todos os efeitos, O “retrato de Haußmann”. Nele, o Thomaskantor encara a posteridade com a sisudez esperada de alguém com o cargo da espessura do seu, enquanto suas bochechas rosadas, o queixo duplo e os dedos roliços atestam o bom garfo e o copo fundo com que sorvia aquela estabilidade de finanças que nunca antes tivera em sua vida. Mais ainda: uma vez que se lhe percebe o discreto sorriso, ele nunca mais deixa de sorrir.
O espantoso estado de conservação desse retrato não dá ideia de seu rocambolesco itinerário continentes afora. Após a morte do retratado, em 1750, há razoável consenso de que a pintura ficou com seu filho mais célebre, Carl Philipp Emanuel. O que se fez dele entre a morte do Bach mais moço e seu reaparecimento, já no século XIX, nas mãos da família Jenke de Breslávia (hoje Wrocław, Polônia), ninguém o sabe ao certo. O que sabemos é que, em 1936, o Jenke da vez, chamado Walter, percebeu que algo de muito errado estava a acontecer na Europa e, judeu que era, temeu que os nazistas lhe confiscassem o inestimável retrato. Assim, em 1938, ele o deixou aos cuidados de amigos na Inglaterra, que tinham uma propriedade rural no pacato condado de Dorset, onde a obra ficaria até que pudesse reavê-la com segurança. Jenke, infelizmente, acertou suas previsões: a guerra incendiaria boa parte do mundo, e ele próprio seria prisioneiro na ilha de Man (um destino menos pior, certamente, do que experimentaria na Europa Central). Enquanto isso, a partir da sala de estar dos Gardiners, o retrato de Haußmann contemplava impavidamente a rotina da família e, com especial rigor, o caçula da casa, um menino que deu seus primeiros passos sob os olhos severos daquele futuro colega de arte, o Thomaskantor falecido quase dois séculos antes.
Talvez eu tenha sido o último bípede a saber dessa história improvável, e é bem possível que vocês estejam todos a rir de mim por conta disso. Não me importo: descobrir que o único retrato autêntico de Johann Sebastian Bach esteve, e por vias tão convolutas, tão intimamente próximo da infância de seu maior intérprete vivo fez-me (e ainda faz!) olhar para os lados a procurar a câmera escondida e sacudir os miolos com incredulidade. Nem o próprio Gardiner acredita em coincidência: chama tudo de serendipidade e reconhece, entre sorrisos, que o olhar de Sebastião Ribeiro não lhe foi, nos primeiros anos, nem um pouco estimulante. Foi-lhe difícil, reconhece, conciliar a ideia de que tanta beleza, e tanta grande música fosse cria de alguém de olhar tão severo. Com o passar dos anos, no entanto, o jovem John conseguiu enxergar naquelas bochechas rosadas, no queixo duplo e nos dedos roliços os sinais bonachões de quem, afinal, deixara para a posteridade um legado artístico sem qualquer paralelo. Mais que isso: ao desenvolver sua brilhante carreira musical, Gardiner soube retribuir ao Demiurgo da Música toda sua generosidade, tornando-se presidente do Arquivo Bach de Leipzig e, nessa condição, contribuindo decisivamente para que o retrato de Haußmann, que passou quase sessenta anos numa coleção particular nos Estados Unidos, voltasse para seu lar em Leipzig, mais de dois séculos e meio depois de deixá-lo.
Se essa história inacreditável não lhes fez vibrar qualquer corda, tenho certeza de que a grande música do aniversariante (que tem dois aniversários, o primeiro dos quais é hoje) o fará.
Dedicado a J. S. Bach, maior gênio criador que já respirou nessa atmosfera, no seu tricentésimo trigésimo sétimo aniversário.
1 – Lobet den Herrn, alle Heiden, BWV 230
2 – Komm, Jesu, komm, BWV 229
3 – Der Geist hilft unser Schwachheit auf, BWV 226
Jesu, Meine Freude, BWV 227
4 – Jesu, meine Freude
5 – Es ist nun nichts Verdammliches
6 – Unter deinem Schirmen
7 – Denn das Gesetz des Geistes
8 – Trotz dem Alten Drachen
9 – Ihr aber seid nicht Fleischlich
10 – Weg mit allen Schätzen!
11 – So aber Christus in euch ist
12 – Gute Nacht, O Wesen
13 – So nun der Geist
14 – Weicht, ihr Trauergeister
15 – Fürchte dich Nicht, ich bin bei Dir, BWV 228
Singet dem Herrn ein neues Lied, BWV 225
16 – Singet dem Herrn ein neues Lied
17 – Wie sich ein Vater erbarmet
18 – Lobet den Herrn in seinen Taten
19 – Ich lasse dich, du segnest mich denn, BWV Anh. 159
Olaf Reimers, violoncelo Valerie Botwright, contrabaixo György Farkas, fagote James Johnstone, órgão The Monteverdi Choir John Eliot Gardiner, regência
Teofil Danilovich Richter (1872–1941), pai de Sviatoslav, foi um pianista, organista e compositor, de família alemã, que estudou no Conservatório de Viena e deu aula muitos anos no Conservatório de Odessa, atualmente na Ucrânia.
Na Segunda Guerra Mundial, como o pai de Sviatoslav Richter era alemão, ele estava sob suspeita das autoridades e foi feito um plano para que a família fugisse do país. Envolvida com um outro homem, sua mãe não queria sair e assim eles permaneceram em Odessa. Em agosto de 1941, seu pai foi preso e considerado culpado de espionagem, sendo condenado à morte em 6 de outubro de 1941. Não era difícil conseguir uma sentença de morte no regime stalinista. E não é preciso ser um discípulo de Freud para supor que alguém com essa história familiar se tornaria uma pessoa excêntrica, neurótica, peculiar…
Após se tornar famoso mundialmente e receber aplausos e gravações em Moscou, Londres, Praga, Nova York etc., Richter passaria suas últimas décadas frequentando cidades muito menores como Aldeburgh (Inglaterra), la Grange de Meslay, no vale do Loire (França), Ludwigshafen am Rhein (Alemanha). Ele pedia que os palcos fossem menos iluminados, dizendo que assim o público prestaria mais atenção na música do que em assuntos irrelevantes como as expressões faciais e gestos do pianista.
É comum que músicos idosos e respeitados tirem do seu repertório alguns compositores e voltem seu foco para alguns que tocam mais fundo em seu coração, afinal, já não precisam mais provar nada pra ninguém. É o caso, por exemplo, de Nelson Freire que, quando velho, tirou de seu repertório orquestral alguns concertos como os de Liszt, Tchaikovsky e Bartók, se concentrando sobretudo nos concertos de Brahms, no 2º de Chopin e nos dois últimos de Beethoven: ele tocou inúmeras vezes cada um desses nos seus últimos 20 anos de carreira. E nos recitais solo, Freire de barba grisalha raramente saiu do palco sem tocar algo de Chopin, compositor que ele parece ter admirado cada vez mais ao longo dos anos.
Nos concertos do velho Richter com orquestra, por outro lado, surgem obras raras do repertório como o concerto de Gershwin e o 5º de Saint-Saens. Nos recitais solo de Richter, ao contrário de Freire, Chopin foi ficando raro: nos anos 90, segundo as listas dos richterófilos, não há registro de que o russo tenha tocado os Scherzos, os Prelúdios, os Estudos, a Barcarolle, mas sobra uma obra grandiosa, a Polonaise-Fantaisie.
E o pianista russo (ucraniano de nascimento) parece ter tido um reencontro tardio com a música de Ravel: obras que não apareciam nos seus programas de recitais desde os anos 1960 ressurgem a partir de 1992 e ocupam boa parte de um dos álbuns ao vivo dessa série da Live Classics. Importante ressaltar que cada CD se dedica a uma só noite, ao contrário de outras edições que fazem colagens.
Também aparecem alguns russos no repertório: não os Quadros de uma Exposição de Mussorgsky, cavalo de batalha de Richter quando jovem, nem Shostakovich nem Stravinsky. Os escolhidos nesses recitais de 1992 e 94 são Prokofiev e Scriabin. O pianista e professor José Eduardo Martins fez uma recente homenagem, em seu blog, aos 150 anos de Scriabin. Diz ele:
Se as criações de Chopin (1810-1849) exerceram influência na escrita de Scriabine, não desprovida das raízes russas, mas sem cariz popular, seria contudo mais acentuadamente a partir do início do século XX que o compositor-pensador empreenderá um caminho singular, personalíssimo (aqui e aqui). Caminho que já aparece discretamente nas Mazurkas op. 40 (1903) e de forma escancarada no Poème-Nocturne op. 61 (1912) e na Sonata nº 7, op. 64 (1912). Noturno, como sabemos, é um gênero tão associado a Chopin quanto a Mazurka. Scriabin escreveu alguns Noturnos curtos e chopinianos quando mais jovem, mas esse Poema-Noturno escolhido por Richter é bem mais longo e já cheio do clima misterioso do compositor russo, com curtas frases seguidas por rápidos cromatismos ascendentes ou descendentes. Segundo J.E.Martins, são motivos curtos neurótico-obsessivos, que vão se acentuando conforme o compositor chega à maturidade. Richter, o pianista famoso por sua construção sólida de longas frases nas sonatas de Beethoven, Brahms e Schubert, se adapta surpreendentemente bem a esse clima noturno-neurótico de Scriabin, clima no qual algumas notas são cuidadosamente aproximadas e alcançadas para em seguida se quebrarem em dissonâncias.
Debussy e Ravel, é claro, eram compositores de música mais solar, menos noturna, mas ao tocá-los depois de Scriabin, ficam evidentes as semelhanças na linguagem dessas obras do comecinho do século XX. Se as gravações dos Prelúdios de Debussy por Richter não me empolgam tanto, aqui o pianista septuagenário emerge profundamente no mundo de Debussy e sobretudo no de Ravel com seus pássaros tristes, seu barco no oceano, sua alvorada e seu vale de sinos (Oiseaux tristes, Une Barque sur l’Océan, Alborada del gracioso, Vallée des cloches).
E as sonatas de Beethoven, essas pelo jeito nunca estiveram distantes do coração e dos dedos de Richter (aliás os 3 B’s estiveram nos seus programas do início ao fim da carreira). Aqui ele toca a penúltima sonata de Beethoven, uma obra madura interpretada por um Richter maduro que sabia aquilo de trás pra frente mas sempre trazia um algo mais de emoção nessa sonata. Ainda mais considerando que ele havia dedicado o recital à memória de sua amiga pessoal de longa data, a atriz e cantora alemã Marlene Dietrich (Berlim, 27 de dezembro de 1901 — Paris, 6 de maio de 1992).
Sviatoslav Richter – Out of Later Years Vol. 2
01. Prokofiev: Klaviersonate Nr. 2 D-Moll Op.14, Allegro ma non troppo
02. Prokofiev: Klaviersonate Nr. 2 D-Moll Op.14, Scherzo – Allegretto Marcato
03. Prokofiev: Klaviersonate Nr. 2 D-Moll Op.14, Andante
04. Prokofiev: Klaviersonate Nr. 2 D-Moll Op.14, Vivace
05. Scriabin: Klaviersonate Nr.7 Op.64 – Allegro
06. Ravel: Valses nobles et sentimentales
07. Ravel: Miroirs, Noctuelles. Très Léger
08. Ravel: Miroirs, Oiseaux tristes. Très Lent
09. Ravel: Miroirs, Une Barque sur l’Océan. D’un Rythme Souple
10. Ravel: Miroirs, Alborada del gracioso. Assez Vif
11. Ravel: Miroirs, La Vallée des cloches. Très Lent Sviatoslav Richter – piano Ludwigshafen, 1994-05-19
Sviatoslav Richter – Out of Later Years Vol. 3
01. Haydn: Andante con variazioni in F minor H17-6
02. Beethoven: Sonata No.31 in A flat major Op.110 – I Moderato cantabile
03. Beethoven: Sonata No.31 in A flat major Op.110 – II Allegro molto
04. Beethoven: Sonata No.31 in A flat major Op.110 – III Andante molto cantabile
05. Chopin: Polonaise-Fantaisie in A flat major Op.61
06. Scriabin: Mazurka Op.40 No.1 in D flat major
07. Scriabin: Mazurka Op.40 No.2 in F sharp major
08. Scriabin: Poème-Nocturne Op.61
09. Debussy: L’isle joyeuse
10. Ravel: Miroirs, La Vallée des cloches. Très Lent Sviatoslav Richter – piano München (Munich), 1992-05-16