Milhaud (1892-1974), Poulenc (1899-1963), Honegger (1892-1955): Le Boeuf sur le toit, Les Biches, Pacific 231 – Paris, 1920 (Bychkov)

No mesmo período em que o jovem Milhaud vivia no Rio de Janeiro (1917-1919), servindo de secretário para o embaixador da França e aproveitando para escapar da terrível guerra, a primeira sociedade voltada para a proteção de direitos autorais de compositores era fundada na mesma cidade, muito por iniciativa da compositora homenageada aqui no último dia 8 de março:

“Chiquinha Gonzaga sofreu exploração abusiva de seu trabalho, o que fez com que tomasse a iniciativa de fundar, em 1917, a primeira sociedade protetora e arrecadadora de direitos autorais do país, a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais.” (Edinha Diniz)

Milhaud e muitos outros espertos – a julgar pela citação acima – roubaram melodias de Gonzaga, de Nazareth e de outros brasileiros sem citar os autores, o que realmente depõe contra seu caráter. Fica parecendo que ele colheu suas flores num campo de melodias populares e folclóricas, mas o fato é que a maioria das obras tinha autor conhecido e estava publicada em casas de edição de partituras.

Será que é assim que os povos indígenas se sentem ao verem fotos de Sebastião Salgado mostrando indivíduos genéricos e sem nome? Em ouvintes acostumados com uma certa sonoridade brasileira – e sobretudo carioca, pois não estamos falando de sanfonas do sertão nordestino nem de viola caipira – a música “brasileira” de Milhaud causa um verdadeiro estranhamento antropológico. A orquestração inclui um animado reco-reco, um pandeiro, mas tudo tocado de forma excessivamente parisiense, fica faltando uma pitada de malandragem.

Se faltava a Milhaud a humildade para citar suas fontes, se falta aos músicos de orquestra a síncope perfeita no reco-reco, isso não significa que não valha a pena ouvir a música. Não sei vocês, mas eu não faço questão de ouvir música só de gente sem defeitos e pecados. As contradições que abundam na música de Milhaud, presentes em outros aspectos também no ballet de Poulenc e na música futurista de Honegger, são contradições da mesma ordem daquelas que encontra qualquer um que pisar nas ruas.

Milhaud (1892-1974), Poulenc (1899-1963), Honegger (1892-1955):
1-9. Francis Poulenc – Les Biches (1923-24)
10. Darius Milhaud – Le boeuf sur le toit (1919-1920)
11. Arthur Honegger – Pacific 231 (1923-24)

Orchestre de Paris & Choeur de l’Orchestre de Paris
Semyon Bychkov
Philips 432 993-2 (1993)

BAIXE AQUI – Download here

Rua do Ouvidor: o Rio de Janeiro mais ou menos na época em que Milhaud esteve ali

Pleyel

.: interlúdio :. Homenagem a Wayne Shorter — Miles Davis: Filles de Kilimanjaro (1968) / Weather Report: Procession (1983)

Wayne Shorter (1933-2023) em 1969

Limpo como a água de um rio sem qualquer traço de poluição, com as borbulhas suaves de uma cachoeira nesse rio, o som do saxofone de Wayne Shorter pode ser comparado à pureza da voz de Milton Nascimento. E por um desses acasos da vida, os dois se tornaram bons amigos. Em sua longa carreira, Shorter gravou uma imensa discografia: aqui no blog, não faz tanto tempo que PQP postou um dos seus principais álbuns como instrumentista e compositor: Schizophrenia, de 1967. Anos antes, com Freddie Hubbard (trompete) e McCoy Tyner (piano), ele participou do grande álbum Ready for Freddie (1962). Vejamos a seguir outros momentos da discografia de Wayne Shorter em dois álbuns que não têm o seu nome na capa, mas que têm nele, como compositor, instrumentista, arranjador, um dos pilares de construções musicais coletivas.

Menos conhecido que álbuns mais dançantes e acelerados como Bitches Brew, Filles de Kilimanjaro é um disco do início da fase de experimentações de Miles Davis e seu grupo com instrumentos elétricos. Um delicioso disco mais calmo, cheio de floreios de blues lento, com bastante destaque para o sax tenor de Shorter e para o piano elétrico Fender Rhodes de Herbie Hancock. A linda mulher da capa é Betty Gray Mabry – depois Betty Davis – que se casou com Miles em 1968. O casamento durou apenas cerca de um ano, mas tudo indica que foi Betty quem fez Miles escutar a música psicodélica de gente como Jimi Hendrix, além de apresentar o guitarrista – amigo dela – ao trompetista. A faixa Mademoiselle Mabry também é uma referência a Mabry e se baseia em um dos riffs mais suaves de Hendrix, o da balada The wind cries Mary, lançada em 1967.

Em álbuns posteriores como o já citado Bitches Brew (“Miles wanted to call it Witches Brew, but I suggested Bitches Brew and he said, ‘I like that’.”Betty Davis), com a chegada da guitarra elétrica de John McLaughlin e de dois ou três percussionistas, Wayne Shorter teria menos destaque no grupo de Miles, do qual ele sairia em 1970 para fundar o grupo fusion Weather Report com o tecladista Joe Zawinul.

Miles Davis Quintet: Filles de Kilimanjaro
1. Frelon Brun
2. Tout de Suite
3. Petits Machins
4. Filles de Kilimanjaro
5. Mademoiselle Mabry
6. Tout de suite (alternate take)

Miles Davis – trumpet
Wayne Shorter – tenor saxophone
Herbie Hancock – electric piano on “Tout de Suite”, “Petits Machins”, and “Filles de Kilimanjaro”
Chick Corea – piano, RMI electra-piano on “Frelon Brun” and “Mademoiselle Mabry”
Ron Carter – electric bass on “Tout de Suite”, “Petits Machins”, and “Filles de Kilimanjaro”
Dave Holland – double bass on “Frelon Brun” and “Mademoiselle Mabry”
Tony Williams – drums
Recorded: June-September 1968, New York City, USA

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – Filles de Kilimanjaro (mp3 320kbps)

Os discos mais famosos do Weather Report são aqueles com o fenomenal baixista Jaco Pastorius. Mas este Procession, de 1983, pouco após a saída de Jaco, é um outro interessante momento da discografia de Wayne Shorter que não merece ser esquecido. Se a faixa Where the Moon Goes, que dá início ao lado B do LP, inclui um coral com efeitos que alguns ouvidos não vão aprovar (os meus desaprovam), nas composições de Shorter – Plaza Real e The Well – temos aquele sax de som puro e calmo que mencionei lá em cima, associado aos sons muito originais dos sintetizadores de Zawinul e ao pau comendo nas percussões, que utilizam inovações dos anos 1980 sem soarem bregas, ao contrário de outros bateristas que abusararam de reverb e outros efeitos de gosto duvidoso naquela década.

Weather Report: Procession
1. Procession (Josef Zawinul)
2. Plaza Real (Wayne Shorter)
3. Two Lines (Zawinul)
4. Where the Moon Goes (Zawinul, lyrics by Nan O’Byrne and Zawinul)
5. The Well (Shorter, Zawinul)
6. Molasses Run (Omar Hakim)

Josef Zawinul – keyboards
Wayne Shorter – tenor and soprano saxophones
Omar Hakim – drums, guitar, vocals
Victor Bailey – bass
José Rossy – percussion, concertina
The Manhattan Transfer – vocals on “Where the Moon Goes”

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – Procession (mp3 320kbps)

Wayne Shorter & Joe Zawinul, 2007

Pleyel

Chiquinha Gonzaga (1847-1935): tangos, choros, polkas, corta-jaca, maxixes… (H. Gomes, C. Sverner, P. Moura) – Semana do Dia Internacional da Mulher

Depois de uma curta vida de casada, Chiquinha se revoltou, fugiu, foi viver independente no seu canto, repudiada por todos, parentes e amigos, que não podiam se conformar com aquella ofensa à moral pública. (…) Foi professora de piano, constituiu um chôro para execução de dansas em casas de família, em que se fazia acompanhar do filhinho mais velho, tocador de cavaquinho, com dez anos de idade.
Francisca Gonzaga compôs 77 obras teatrais e umas duas mil peças avulsas. Quem quiser conhecer a evolução das nossas danças urbanas terá sempre que estudar muito atentamente as obras dela. (Mario de Andrade, em artigo de 1940)

Enquanto a mãe de Chiquinha era uma mulher negra que teria sido alforriada na pia batismal, o pai da compositora era um militar de família tradicional carioca e colocou a filha para ter aulas de piano com o maestro Lobo e apresentou-a a Francisco Manuel da Silva (1795-1865), autor do Hino Nacional e fundador do Conservatório do Rio de Janeiro, atual Escola de Música da UFRJ. A família de José Basileu Gonzaga, aliás, era parente distante de Ernesto Nazareth e de Francisco Manuel da Silva (cujo avô era “Silva Nazareth”) (mais sobre o parentesco aqui).

Mas aos 23 anos, ao separar-se do marido, Chiquinha foi considerada morta por seu pai: seu nome era impronunciável na casa dos Gonzaga e ela não pôde criar seus três filhos. O divórcio era um grande escândalo naquela época e, nas palavras de Chiquinha (citada na biografia de Dalva Lazaroni, p.68), “jamais diga que eu abandonei meu primeito marido; eu fui uma vítima que fugiu do seu torturador”.
Ela passava, então, a dedicar-se profissionalmente à música para sua manutenção econômica: dava aulas de piano, tocava à noite na Lapa e na praça Tiradentes, compôs obras teatrais e outras para os salões brasileiros, mas em alguns casos também impressas e vendidas na Europa. Ou seja, se não fosse a separação de seu marido – repito, um escândalo imenso à época – talvez Chiquinha Gonzaga não tivesse uma vida tão cheia de aventuras e inovações. Ela foi autora da primeira marchinha de Carnaval – Ó Abre alas, de 1899 – e atuou também no chamado “teatro de revista”, que passava “em revista” os acontecimentos políticos e sociais do ano, com humor, ironia e música. Chiquinha também atuou na campanha abolicionista nos anos 1880. Imaginem as reações na época a uma mulher que dava opiniões sobre política e regia orquestras em teatros…

É preciso deixar claro, porém, que Chiquinha Gonzaga, assim como seus contemporâneos Ernesto Nazareth (1863-1934) e Pixinguinha (1897-1973), tiveram uma educação musical formal, mas não tiveram a oportunidade de estudar profundamente orquestração: o instrumento que os dois primeiros conheciam bem era o piano. Se vocês virem alguma obra de Chiquinha ser tocada por orquestra, confiram bem se não se trata de um arranjo mais recente. Por outro lado, em 1932, com mais de 80 anos, Chiquinha publicou um grupo de composições para saxofone e para flauta – reunidas sob o título Alma Brasileira. Essas obras, na maioria já publicadas antes para piano solo, apareciam agora reunidas como “chôros para flauta” e “chôros para saxofone” como explica Edinha Diniz, aqui:

O conjunto compreende três volumes, chamados ‘séries’, contendo dez peças cada, num total de 30 músicas, sendo 20 para sax e dez para flauta. O mais curioso é a designação choro para essas músicas impressas, uma vez que elas foram antes  concebidas, e algumas até publicadas, para piano, como ‘polcas’, ‘habaneras’ e ‘tangos’. Por que somente na década de 1930 uma compositora que estreou em 1877, e que sempre fora ligada às rodas de choro, atuando inclusive como pianista do conjunto Choro Carioca, liderado pelo compositor e flautista Joaquim Antonio Callado, usaria pela primeira vez a designação choro em sua obra impressa? Por que não antes?
Sabemos que a palavra choro designou, na década de 1870, o conjunto musical Choro Carioca, liderado pelo citado flautista Callado e, por extensão, os conjuntos instrumentais responsáveis pelo abrasileiramento das técnicas de execução dos instrumentos europeus. Em sua formação original, o choro era um grupo musical constituído de uma flauta, um cavaquinho e dois violões, com predominância de um solista. […] Somente mais tarde, o original estilo interpretativo dos gêneros musicais importados tornou-se ele próprio um gênero.

Joaquim Callado (1848-1880) dedicou a Chiquinha sua composição “Querida por todos”, gravada no disco abaixo, de Hercules Gomes. Hercules é um pianista que mistura os clássicos e os populares, tomando certas liberdades interpretativas que provavelmente seriam aprovadas nas rodas de choro de Joaquim Callado, Chiquinha Gonzaga, pixinguinha e Villa-Lobos. Já o outro disco, gravado por Paulo Moura e Clara Sverner, traz gravações mais sóbrias, fiéis aos textos e que parecem querer mostrar o quanto toda essa música é não somente dançante e alegre mas também sofisticada.

No tempo da Chiquinha
1. Gaúcho (O Corta-jaca) (Chiquinha Gonzaga)
2. Água do Vintém (Chiquinha Gonzaga)
3. Cintilante (Chiquinha Gonzaga)
4. Querida por Todos (J. Callado)
5. Cananéa (Chiquinha Gonzaga)
6. Atraente (Chiquinha Gonzaga)
7. Machuca!… (Chiquinha Gonzaga, Patrocínio Filho)
8. Não Se Impressione (forrobodó de Massada) (Chiquinha Gonzaga, Carlos Bettencourt/Luiz Peixoto)
9. Santa (Chiquinha Gonzaga)
10. Argentina (Xi) (Chiquinha Gonzaga)
11. No Tempo da Chiquinha (Laércio de Freitas)
12. Walkyria (Chiquinha Gonzaga)
13. Biónne (adeus) (Chiquinha Gonzaga)
Hercules Gomes – piano
Convidados: Rodrigo Y Castro (flauta) e Vanessa Moreno (voz)
Recorded: Estúdio Arsis, São Paulo, Brasil, fev/2018

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – No tempo da Chiquinha (2018)

Vou Vivendo
1 Vou Vivendo (Benedito Lacerda, Pixinguinha)
2 Lamento (Pixinguinha)
3 Ingênuo (Benedito Lacerda, Pixinguinha)
4 Atraente (Chiquinha Gonzaga)
5 Amapá (Chiquinha Gonzaga)
6 Io T’Amo (Chiquinha Gonzaga)
7 Monotonia (Radamés Gnattali)
8 Samba-Canção (Radamés Gnattali)
9 Devaneio (Radamés Gnattali)
10 Fantasia (Ronaldo Miranda)

Clara Sverner – piano
Paulo Moura – saxofone
Recorded: Escola Nacional de Música, Rio de Janeiro, Brasil, jan/1986

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – Vou Vivendo (1986)

PS: Todas as fotos desta postagem mostram a rua Riachuelo, onde Chiquinha Gonzaga viveu boa parte de sua vida. Antes chamada rua de Matacavallos, ela vai dos Arcos da Lapa até perto do Campo de Santana e Igreja de Santana, onde Chiquinha se casou aos 15 anos de idade (igreja demolida para a construção da Central do Brasil e Av. Pres. Vargas). Na rua de Mata-Cavallos também moraram Dom Casmurro e Capitu, Villa-Lobos e Pixinguinha. Em 1865 a rua recebeu o nome de Riachuelo em homenagem a uma batalha naval na nojenta guerra em que brasileiros e aliados massacraram homens, mulheres e crianças paraguaias. As fotos são respectivamente de 1915, 1928, 1958 e 1965. Ao fundo, na penúltima foto, vê-se o alto prédio da Mesbla, próximo da Cinelândia, inaugurado em 1934, quando Chiquinha ainda era viva.

Fui, cheguei aos Arcos, entrei na rua de Matacavallos. A casa não era logo alli, mas muito além da dos Invalidos, perto da do Senado.
(Machado de Assis – Dom Casmurro – grafia original)

Pleyel

Sofia Gubaidúlina (n. 1931): Quinteto com piano / Introitus (Concerto para piano) / Dançando na corda bamba – Semana do Dia Internacional da Mulher

A esperança
dança
na corda bamba de sombrinha
e em cada passo dessa linha
pode se machucar
(Aldir Blanc / João Bosco)

Se a metáfora da esperança equilibrista foi lembrada pelos dois sambistas brasileiros no tempo da Anistia e de fim de uma ditadura (embora fim lento, gradual e com sigilo), a mesma metáfora ocorreu a Sofia Gubaidúlina logo após se mudar para a Alemanha, saindo de uma Moscou em colapso. Nas palavras da compositora, o título da obra Dancer on a tightrope se relaciona com um

desejo de se livrar das amarras da vida cotidiana. O desejo de voar pelo prazer do movimento, da dança e da virtuosidade estática. Um dançarino na corda-bamba é também uma metáfora para esta oposição: a vida como risco, e a arte como fuga para uma outra existência. O que me interessou nesta peça foi criar as circunstâncias para o jogo de contrastes no qual o ritmo preciso da dança do violino triunfa sobre o curso movimentado da parte para piano.

Os materiais usados por um dos grandes pianistas em atividade para tocar Gubaidúlina

Por exemplo, esse contraste é obtido pela deformação do ritmo ao se tocar sobre as cordas do piano com um cálice de vidro; pela gradual transformação destes sons harmônicos transparentes em fortissimo agressivo do cálice sobre as cordas graves do piano; pelo som ameaçador desse ritmo quando tocado pelo pianista que utiliza um dedal de costura de metal e, finalmente – o evento principal na forma da peça – pela passagem do pianista das cordas para o teclado. Todos esses eventos são dominados pelo violinista em uma dança extática.

O violinista Gidon Kremer foi importante na carreira de Gubaidúlina ao divulgar seu 1º concerto para violino e outras obras por todo o mundo. O 2º concerto para violino seria estreado em 2007 por Anne-Sophie Mutter. Kremer aparece neste disco de hoje da gravadora BIS, junto com pianistas não tão famosos como ele ou Mutter.

O concerto “Introitus” já foi postado e comentado por este mesmo Pleyel em 2018. Sigo com a opinião de que, junto com os não-concertos de Messiaen, são as melhores obras para piano e orquestra da segunda metade do século XX.

E o quinteto composto em 1957, quando Gubaidúlina era uma estudante em Moscou, me parece obra de alguém ainda com uma voz menos própria, mas parecida com a de Shostakovich e outros russos, mas enganos sempre são possíveis nesses juízos de valor.

Sofia Gubaidúlina (n. 1931):
1-4. Piano quintet (1957)
5. “Introitus” – Piano Concerto (1978)
6. Dancer on a tightrope (1993)

R. Aizawa, K. Vogler, M. Wang, U. Eichenauer, P. Bruns (1-4); B. Rauchs, Kyiv Chamber Players, V. Kozhukhar (5); G. Kremer, V. Sakharov (6). Recorded: 1995-1997

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – mp3 320kbps

Gidon Kremer relaxa após passar pela corda-bamba sem sombrinha, com violino

Pleyel

Olivier Messiaen (1908-1992): Turangalîla-Symphonie – Wiener Philharmoniker, Esa-Pekka Salonen; Yuja Wang

Iniciamos o mês dedicado às mulheres com uma pianista que arrasta multidões em todos os países por onde passa. Yuja Wang já apareceu neste blog quando era um jovem talento promissor, apareceu depois, ainda jovem mas já mais experiente, fazendo música de câmara. Hoje trazemos uma obra que ela ainda não gravou em disco, mas já apresentou dezenas de vezes com grandes maestros como Dudamel e Salonen: a Turangalîla-Symphonie de Messiaen. A gravação, em alta qualidade, é proveniente da transmissão ao vivo do Festival de Salzburg (2022).

Messiaen e Yvonne Loriod em 1952 (entre eles, um aluno metido olhando pra câmera: K. Stockhausen aos 24 anos)

Estreada em 1949, essa sinfonia em dez movimentos curtos tem uma parte importante e difícil para piano, inspirada em uma outra grande pianista, Yvonne Loriod, com quem Messiaen iria se casar apenas uns dez anos depois. Ele explicava que, desde que conheceu Loriod durante a 2ª Guerra, ele sabia que podia escrever “as maiores excentricidades” para piano, sabendo que ela iria dar conta. Sobre a Turangalîla, o compositor afirmou que esta obra tinha uma parte para piano bastante desenvolvida, “destinada a ‘diamantear’ a orquestra com linhas brilhantes, cachos de acordes [1], cantos de pássaros, o que faz da obra quase um concerto para piano e orquestra”. Ênfase no quase, pois Messiaen não compôs nenhum concerto nos moldes tradicionais, e nenhuma outra sinfonia em quatro movimentos: ele preferia formas inovadoras como esta sinfonia em 10 movimentos. Importante notar ainda que as partes para cordas soam espantosamente brilhantes com a Filarmônica de Viena. Esse legato agudo de violinos e violas não é uma constante em Messiaen: nas obras orquestrais seguintes – Réveil des oiseaux (1953), Oiseaux exotiques (1956) – ele usaria uma orquestra sem cordas e o brilho ficaria com as madeiras e com os “diamantes pianísticos”

[1] Messiaen falava em “cachos de acordes” no piano como quem fala em cachos de bananas ou de uvas. A citação é do livro “Messiaen” publicado em 1957 por Claude Rostand: Turangalîla-Symphonie est surtout une partition frappante par sa conception et sa réalisation sonore. […] des jeux de timbres, célestas et vibraphones rappelant les gamelang indous; une batterie extrêmement riches; une onde Martenot pour les effets expressifs; une partie de piano solo très développée, très difficile, “destinée à diamanter l’orchestre de traits brillants, de grappes d’accords, de chants d’oiseaux et qui en fait presque un concerto pour piano et orchestre”

Olivier Messiaen (1908-1992): Turangalîla-Symphonie
1 Introduction. Modéré, un peu vif
2 Chant d’amour Nr.1: Modéré, lourd
3 Turangalîla Nr.1: Presque lent, reveur
4 Chant d’amour Nr.2: Bien modéré
5 Joie du sang des étoiles. Vif, passionné, avec joie
6 Jardin du sommeil d’amour. Très modéré, très tendre
7 Turangalîla Nr.2: Un peu vif
8 Développement de l’amour: Bien modéré
9 Turangalîla Nr.3: Bien modéré
10 Final: Modéré, presque vif, avec une grande joie

Wiener Philharmoniker, Esa-Pekka Salonen (conductor)
Yuja Wang – piano
26 August 2022 im Großes Festspielhaus Salzburg

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – flac
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – mp3 320kbps

Ensaio de Yuja com a Filarmônica de Viena

Pleyel

Domenico Scarlatti (1685-1757): Sonatas (Konstantin Scherbakov, piano)

Vimos aqui que, nos tempos de Scarlatti pai e filho, a palavra improviso era reservada à poesia, não sendo usada no sentido musical em qualquer das línguas latinas!

Já a palavra “fantasia”, com significado correlato ao de improviso, aparece na edição de 1694 do Dictionnaire de l’Academie Française: Fantaisie. s.f. L’Imagination [Fantasia, subst.fem. A Imaginação], seguida de várias descrições complementares, incluindo a seguinte:
“Fantasia se diz também de uma coisa inventada por prazer, e na qual se seguiu mais o capricho do que as regras da Arte. ‘Uma fantasia de Pintor, uma fantasia de Poeta, de Músico, de tocador de alaúde’.” No Dicionário Musical de Rousseau (1768), só se fala em “improvisar” para cantores e poetas, jamais para música instrumental.

O Padre Antonio Soler – que foi aluno, assistente e copista de D. Scarlatti – escreveu em 1762 o tratado Llave de la modulación, y antigüedades de la música. Ali, Soler busca conceituar a modulação que ele e seus contemporâneos faziam no cravo, pianoforte e órgão, normalmente de forma improvisada: “a Modulação, segundo sua definição geral, é a suavidade nos trânsitos de um tom a outro”. No prefácio, Don Joseph de Nebra, Organista e Vice-Maestro da Real Capela de Sua Majestade, afirma: “Confesso com ingenuidade que nunca pensei que pudessem dar regras fixas para Modulações tão sofisticadas: acreditava que eram produzidas pela prática, pelo bom gosto, pela fineza do ouvido …” E Don Antonio Ripa, outro grande organista, ao elogiar a obra de Soler como importante para aqueles que modulavam [ou seja, improvisavam] em igrejas, até porque, como ele diz nas entrelinhas, nem todos eram tão bons como Soler, alguns machucavam os ouvidos: “Julgo que esta Obra há de ser de muita utilidade, não só para Mestres de Capela e Organistas, a quem abre portas com várias regras e Modulações de bom gosto, para que à sua imitação suas produções musicais tenham novidade e boa harmonia, sem incorrer no defeito da aspereza e sem serem ingratas ao ouvido”.

C.P.E. Bach, músico da mesma geração de Soler, escreveu um Ensaio sobre a verdadeira arte de tocar os instrumentos de teclado (Berlin, 1753) e no prefácio ele vende seu peixe:

“Não podemos ignorar quantas exigências coloca o teclado; ninguém se contenta de exigir de um tecladista o que se exige de qualquer instrumentista, a capacidade de executar, segundo as regras da boa interpretação, uma obra escrita para seu instrumento. Exige-se do tecladista também que ele executa Fantasias [isto é, improvisos!] de todo tipo, que ele crie naquele momento sobre um tema dado, segundo as regras mais severas da harmonia e da conduta melódica, […] que ele seja mestre na ciência do baixo contínuo, que ele possa realizá-la com discernimento.”

Ou seja, Soler e C.P.E. Bach não mencionam improviso, mas é disso que eles estavam falando. Só quando a fidelidade ao texto torna-se padrão é que o improviso torna-se um momento específico, percebido e valorizado, como nas cadências dos concertos para piano de Mozart. Nos tempos dos Scarlatti, o improviso era uma daquelas coisas como o ar que respiramos, óbvio demais para que alguém fale a respeito…

Este disco de hoje é um deleite para os ouvidos justamente por esse equilíbrio entre por um lado a “arte da modulação”, aprendida com muitos anos de estudo, e por outro lado os saltos e modulações de tipo improvisado, executados com pequenas liberdades rítmicas e de dinâmica pelos bem treinados dedos do intérprete. Hoje professor em Zurich – tendo entre suas alunas a jovem Yulianna Avdeeva que, como ele, é muito cuidadosa com o som que faz e pouco preocupada com holofotes e selfies -, o pianista russo Scherbakov executa as obras de D. Scarlatti com admirável clareza sonora, o que quer dizer que todas as vozes se fazem ouvir com seu caráter específico. Ao mesmo tempo em que as particularidades soam cheias de fantasia, o conjunto, o todo é ordenado e coeso, seguindo – e quebrando brevemente quando necessário – as regras severas mencionadas por C.P.E. Bach. (Como propôs o historiador francês François Furet, a desobediência às regras e leis é um “dilema bem conhecido” dos historiadores que estudam o Antigo Regime: “no alto, a minúcia extraordinária na regulamentação de tudo; em baixo, desobediência crônica”).

Este é mais um disco da integral das sonatas de D. Scarlatti que vai sendo lentamente lançada pela Naxos: não vou postar todos os discos pois nem todos são tão brilhantes como este aqui. Scherbakov gravou, pela Naxos, obras românticas extremamente virtuosísticas: Estudos de Liszt e de Lyapunov, Concertos de Tchai e de Rach… Ele não é um nome muito associado ao barroco, o que só me faz lamentar que não tenha gravado mais obras de Scarlatti, Soler e cia.

Domenico Scarlatti, – Complete Keyboard Sonatas Vol. 7
1 Sonata In F Major, K.483/L.472/P.407 2:53
2 Sonata In F Major, K.542/L.167/P.546 5:40
3 Sonata In B Flat Major, K.360/L.400/P.520 4:22
4 Sonata In C Minor, K.40/L.375/P.119 1:51
5 Sonata In C Major, K.422/L.451/P.511 5:34
6 Sonata In F Minor, K.238/L.27/P.55 4:06
7 Sonata In F Major, K.17/L.384/P.734:04
8 Sonata In A Major, K.500/L.492/P.358 3:15
9 Sonata In A Major, K.114/L.344/P.141 4:24
10 Sonata In E Minor, K.291/L.61/P.282 4:56
11 Sonata In G Major, K.328/L.S27/P.485 4:10
12 Sonata In A Major, K.320/L.341/P.335 3:10
13 Sonata In G Major, K.283/L.318/P.482 4:45
14 Sonata In C Major, K.464/L.151/P.460 3:14
15 Sonata In D Major, K.313/L.192/P.398 3:13
16 Sonata In D Major, K.479/L.S16/P.380 4:25

Konstantin Scherbakov, piano
Recorded at Potton Hall, Suffolk, UK, 2000

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE

Uma das coleções manuscritas de sonatas pertencentes à Rainha Bárbara da Espanha

Pleyel

.: interlúdio :. John Coltrane & Don Cherry – The Avant-Garde (1960) / John Coltrane & Rashied Ali – Interstellar Space (1967)

Dois discos de John Coltrane sem piano, e essa ausência não é apenas uma curiosidade: faz toda diferença… O primeiro foi gravado em 1960 com três músicos da banda de Ornette Coleman, com três da cinco composições também assinadas por Coleman: ele e Coltrane tinham uma admiração mútua um pelo outro, embora nunca tenham gravado juntos. E as bandas de Coleman quase nunca contavam com pianistas, o que fazia parte de seu som característico, mais baseado em solos do que em acordes, e que receberia o nome de Free Jazz a partir do álbum com este nome, que seria gravado seis meses depois dessas sessões comandadas por Don Cherry e John Coltrane. (Outros saxofonistas, como Eric Dolphy e Archie Shepp, que surgem após Coltrane e Coleman, vão liderar bandas também sem piano, à vezes com o vibrafone ocupando o espaço dos agudos…)

Curioso, porém, que o disco, no qual Cherry e Coltrane estão em pé de igualdade, dividindo solos em cada faixa, não soe tão livre assim, pelo contrário, às vezes fica uma certa impressão de fórmula aplicada a cada uma das jams, com trompete e sax introduzindo as melodias em uníssono e depois dividindo solos, o trompete com seu som mais nasal e o sax mais “redondo”, sem as “cascatas sonoras” (sheets of sound) que Coltrane fazia em outros álbuns daquele período. Ou seja: alguns grandes solos, belas melodias de Ornette Coleman e Thelonius Monk, mas paradoxalmente organizadas de forma pouco livre, com um jeitão, se me permitem abusar de mais um anglicismo, um jeitão de “one size fits all”. Das suas gravações como convidado com bandas de colegas, Coltrane soa mais livre no disco Bags & Trane, de 1959.

John Coltrane & Don Cherry: The Avant-Garde
1. Cherryco (Don Cherry) – 6:47
2. Focus on Sanity (Ornette Coleman) – 12:15
3. The Blessing (Ornette Coleman) – 7:53
4. The Invisible (Ornette Coleman) – 4:15
5. Bemsha Swing (Thelonious Monk, Denzil Best) – 5:05

John Coltrane – tenor and soprano saxophone
Don Cherry – cornet
Charlie Haden – double bass (tracks 1, 3)
Percy Heath – double bass (tracks 2, 4, 5)
Ed Blackwell – drums
Recorded: June 28, 1960; July 8, 1960 / Released: 1966

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE

Coltrane (1926-1967) vive em uma rua em Denver, EUA

Quatro meses após as sessões de The Avant-Garde, Coltrane gravaria My Favorite Things e, devido ao grande sucesso não só artístico como comercial deste LP, ele não mais faria outras gravações com bandas alheias: tocaria sempre com o piano de McCoy Tyner e a bateria de Elvin Jones, até o fim de 1965. O baixista variava (às vezes, dois baixos!) e, às vezes, chamava mais alguém nos sopros, como Eric Dolphy e Freddie Hubbard. Como escreveu David Stoesz, no fim do ano de 1965, Coltrane  entrou em um território tão “far out” que os seus leais companheiros — o “quarteto clássico” que havia gravado A Love Supreme e Crescent — não o seguia mais. O que ele buscava eram sentimentos puros, para além de notas e certamente para além de algo tão mundano como acordes.

Do fim de 1965 em diante, teria sempre ao seu lado o piano de Alice Coltrane. Não fez mais freelances… confiram o último mês em que Coltrane tocaria ao vivo e em estúdio com o grupo de Miles Davis: março de 1961, mesmo mês de lançamento de My Favorite Things

Então o disco Interstellar Space, gravado em fevereiro de 1967, é uma raridade por apresentar novamente um Coltrane sem piano (e agora sem baixo), apenas com bateria e, agora sim, absolutamente livre. Dessa vez, após alguns anos que lhe trariam mais experiência e várias viradas de rumo, Coltrane soa sem amarras, nada parece planejado, a começar por aquela própria seção de gravação, se acreditarmos no jornalista Ben Ratliff: segundo ele, Interstellar Space foi gravado em um dia em que Rashied Ali (na banda de Coltrane desde 65) chegou no estúdio em New Jersey e não encontro nenhum outro músico, para logo depois ver Coltrane chegar:

Soon Coltrane arrived. / “Ain’t nobody coming?” he said to Coltrane. / “No, it’s just you and me.” / “What are we playing? Is it fast? Is it slow?” / “Whatever you want it to be. Come on. I’m going to ring some bells.”

Coltrane improvisou acompanhado apenas do baterista Rashied Ali, alçando alguns de seus voos mais altos e ao mesmo tempo incompreensíveis. Se você estiver iniciando sua jornada pela discografia do saxofonista, ouça primeiro alguma coisa de 1959 a 1964 e chegue aqui só depois de se apaixonar pelo timbre de Coltrane, sua maneira de respirar e de “fazer arte” (também no sentido de quem fala em crianças “fazendo arte”, ou seja, bagunça). No LP (lançado em 1974) temos a informação de que a música foi produzida por John Coltrane e o álbum, por Ed Michel e Alice Coltrane – suponho que o papel desses dois tenha sido, entre outros detalhes, nomear as faixas e escolher a ordem delas no disco. No CD (1991), temos duas faixas adicionais que entram no meio da bagunça de uma forma coesa, afinal foram gravadas no mesmo dia pela mesma dupla.

Aqui, só temas novos, não há espaço para standards de outros compositores – embora nos shows ao vivo da época ainda aparecessem versões muito peculiares de My Favorite Things e Naima (de Giant Steps, de 1959). Esses dois álbuns citados, e em um grau ainda maior A Love Supreme (1964), transformaram John Coltrane em uma celebridade internacional e ele poderia passar muitos anos repetindo a formação de quarteto e lotando show dos dois lados do Atlântico Norte. Mas se repetir certamente não era o objetivo de John Coltrane, ele queria sempre fazer algo novo e desde 1961 já havia inovado em outras formações, seja com mais músicos ou com menos e, nesse caso, uma forma de bagunçar o coreto era com só dois instrumentistas tocando: Saxofone e Bateria/Percussão. Sem baixo e piano, os improvisos podiam seguir ainda mais livres: é assim, sozinho com Elvin Jones, que ele toca já em 1961 em alguns trechos da faixa Chasin’ the Trane do disco “Live at the Village Vanguard”. No ano seguinte, o piano também se calava na metade final de Traneing In ao vivo na Suécia, lançada no disco póstumo “Bye Bye Blackbird”, além de alguns trechos de Crescent, disco de 1964… Mas um disco inteiro de saxofone e percussões, só em Interstellar Space.

John Coltrane & Rashied Ali: Interstellar Space
1 Mars 10:41
2 Venus 8:28
3 Jupiter 5:22
4 Saturn 11:33
5 Leo 10:53
6 Jupiter Variation 6:44

John Coltrane – tenor saxophone, bells, producer
Rashied Ali – drums
Recorded February 22, 1967 at Van Gelder Recording Studio, Englewood Cliffs, New Jersey; Released September 1974

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE

Rashied Ali (1935-2009)

Tony Whyton wrote that the tracks on Interstellar Space “clearly demonstrate the full glory of Coltrane’s late style”[32] and notes that “the removal of identifiable structures, a steady pulse, and clear sense of meter opens up the music and removes familiar aids of orientation for the listener. In this respect, although Coltrane’s sound and approach can be understood as part of the same continuum, the context has changed dramatically to the point where the music is clearly experienced more as an immediate sensation. This leads to recordings such as Interstellar Space being received as musical processes rather than as products; they encourage us to listen in the here and now as opposed to assimilating what has happened before and predicting what will happen next.”

Pleyel

Frédéric Chopin (1810-1849): Concerto para Piano nº 2 em 3 gravações ao vivo (Rubinstein, Arrau, Pires)

(e ainda: 1ª Balada, 4º Scherzo, Norturnos, 1º Concerto de Liszt…)
Chopin: O Aristocrata, o Escultor, o Poeta

Artur Rubinstein (1887-1982)

O Chopin aristocrata
Se seu rosto mostrava algumas rugas, se seus cabelos eram prateados, um bom observador teria visto nisso as marcas da paixão e os sulcos do prazer, pois os característicos pés de galinha nas têmporas e os degraus do palácio na testa eram rugas elegantes. Tudo nele revelava os modos do homem que teve muitas mulheres.

Sem exagerar no cheiro, o cavaleiro exalava como um perfume de juventude que refrescava seu ar. Suas mãos de aristocrata, bem cuidadas como as de uma donzela, chamavam a atenção para as unhas rosadas e bem cortadas. Finalmente, sem seu nariz magistral e superlativo, seu rosto seria um tanto infantil.

Se ele tinha a virtude de não repetir seus bon mots pessoais e nunca falar de seus amores, suas graças e seus sorrisos cometiam deliciosas indiscrições. Seu principal vício era o tabaco que tirava de uma velha caixa dourada adornada com o retrato de uma princesa.

Além disso, o Chevalier de Valois redimia seus defeitos por tantas outras graças que a sociedade devia se sentir suficientemente indenizada. Ele se esforçava realmente bastante para esconder seus anos e agradar seus conhecidos. É preciso destacar o extremo cuidado que tinha com suas camisas de linho, sempre brancas, limpas e de uma fineza aristocrática. Quanto ao paletó, embora notavelmente limpo, era sempre usado, mas sem manchas.

O digno fidalgo, que jantava fora todos os dias e voltava na hora de se deitar. Seu único gasto com alimentação era, portanto, pela manhã: uma taça de chocolate acompanhada de manteiga e de frutas da estação. Ele só acendia a lareira nos invernos mais pesados, e somente de madrugada. Nas mesas de jantar mais distintas de Alençon ele era um convidado permanente. Seus talentos como jogador de baralho, contador de histórias e boa companhia eram apreciados: os donos das casas tinham necessidade do seu olhar de aprovação. Quando uma mulher ouvia o chevalier dizer em um baile: “a senhora está adoravelmente bem vestida!”, ela ficava mais alegre com este elogio do que com o desespero de sua rival.
(Trechos de La Vieille Fille [A Solteirona], por Honoré de Balzac, 1836)

A mãe de Chopin era uma senhora de origem aristocrática, mas de uma família sem dinheiro, de modo que se viu obrigada a trabalhar (expressão que aristocratas pronunciam como uma das maiores desgraças possíveis). Já George Sand, maior amor da vida de Chopin, não apenas tinha sangue nobre – era prima distante dos reis da França – como também era herdeira de uma charmosa casa no norte de Paris (atual Musée de la vie romantique) e de uma casa de campo em Nohant. Ou seja, Chopin esteve nesses meios de aristocratas com um sabor de ruína do passado que, na obra de Balzac, parece sempre prestes a ser varrida pelo capitalismo (tudo que é sólido desmancha no ar, escreveu um leitor atento de Balzac).

Rubinstein às vezes era descrito como um pianista aristocrático, o que talvez queira dizer que ele seguia apenas seus caprichos. Mais fiel ao espírito do que ao texto de Chopin, portanto, embora ele também não esbofeteie o texto e mantenha, sobretudo, sempre as boas maneiras, transgredindo sem perder a elegância. Reparem, por exemplo, a partir dos 5min45s do movimento lento central, uma cascata de notas descendentes que normalmente os pianistas fazem mais lenta e suave, mas Rubinstein faz rápida, como quem sorri e diz: me deu vontade. (A partitura é dúbia quanto ao andamento, expressando apenas o estado de espírito: “legatissimo dolcissimo”).

No fundo, estamos falando menos do suposto sangue azul e mais de um tipo de atitude aristocrática, uma forma imaginária de se existir no mundo, pois há também gente de linhagem nobre fazendo as manobras mais baixas como as do Princípe Andrew, filho mais novo da Rainha Elizabeth II, que conseguiu abafar todas as investigações sobre estupro de uma menor de idade.

Em Edinburgh, Escócia, durante o cortejo fúnebre do caixão da finada rainha, um jovem gritou que Andrew era um velho doente (aqui o vídeo), em seguida o jovem foi colocado no chão por policiais, preso e processado. Assim agem alguns aristocratas da vida real, mas a aristocracia expressa na música de Artur Rubinstein (como já em 1840 na de Balzac) era mais um personagem da ficção, um estereótipo como os da commedia dell’arte, ou o “núcleo rico” de uma novela da Globo sempre ao som de bossa nova.

Claudio Arrau (1901-1991): Tela sob carvão

             O Chopin escultor

A cadeira onde Balzac escrevia (sua casa é o atual Museu Balzac, em Paris) – o busto atrás é de 1844 por David d’Angers

Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo “tal como ele propriamente foi”. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela lampeja num instante de perigo. (Walter Benjamin, Teses sobre o conceito de História)

Claudio Arrau foi descrito como um pianista-filósofo por alguns críticos, e não discordo desse adjetivo. Porém, lembrando que na Grécia Antiga e em tantos outros lugares os filósofos – como os aristocratas – evitavam qualquer tipo de trabalho braçal, me parece mais adequado descrever o que Arrau faz aqui com os concertos de Chopin (2º) e de Liszt (1º) a partir da metáfora do escultor.

Distante do ar despreocupado de Rubinstein, Arrau parece preocupadíssimo em não deixar de sublinhar nenhuma intenção do compositor. Enquanto Rubinstein parece estar improvisando melodias que ele conhece desde o berço, Arrau parece estar talhando o relevo melódico e harmônico na pedra ou na madeira, com esforço evidente. A tensão em diversos momentos é fortemente romântica, acompanhada por uma orquestra com gestos grandiosos.

Arrau parece ir apontando para que o ouvinte não perca nada de importante: “veja, aqui Chopin cria tensão para depois afrouxar, ali Chopin abunda em brilho com essa cascata de notas agudas” – a que mencionamos alguns parágrafos acima, Arrau a executa de forma doce, rigorosa e sempre atenta a partir dos 6min13s.

Daniel Barenboim, em entrevista com Joseph Horowitz, disse sobre o então veterano pianista: “quando Arrau toca, uma das forças que conduzem a música é a tensão harmônica. Bem mais do que a beleza melódica de uma frase; mais ainda do que a pulsão rítmica. (…) Quando ele toca acordes, eles soam sempre tão cheios e equilibrados de forma que ouvimos tudo: não só as notas de cima e as de baixo.”

O Arrau que Barenboim conheceu era o grande mestre que trazia conhecimentos de tempos idos. Mas quando Arrau começava sua carreira, na Alemanha, a maior parte do público e dos pianistas considerava a música de Chopin apenas agradável, charmosa. Os sérios alemães não sabiam bem que estatuto dar a um compositor que se abstém da música de câmara e orquestral. O agrado fácil ao público nunca foi a ambição do artista Arrau: ele argumentaria que, uma vez tendo superado seu medo inicial de desagradar ao público, o artista deve desenvolver em seguida o medo de agradar.

Aprendendo, ao longo dos anos, a ver em Chopin música pura e abstrata, e não apenas música de salão, Arrau se afastou da dança que é o pretexto, ao menos nominal, de tantas de suas obras – Valsas, Polonaises, Mazurkas. É a harmonia, não o ritmo, o essencial em suas gravações que, como apontado por Benjamin, buscam menos recriar o mundo de Chopin “tal como ele propriamente foi”, mas sobretudo recriar as lembranças em um mármore, granito ou madeira, dando cores e texturas grandiosas às intenções e tensões do compositor.

Maria João em Belgais, Portugal (março/2020)

O Chopin poeta
Se Arrau é como um escultor que, com suas ferramentas, dá vida ao espírito que Chopin deixou preso nas partituras, Pires se comporta um pouco como atriz e sobretudo como poetisa. Como diria o Fernando Pessoa:

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

Pires, portanto, encarna as expressões de Chopin quando vai ligando as notas como se fossem palavras, sempre com um ar de facilidade, que é pura interpretação: para ela, com suas mãos pequenas, quase nada lhe é fácil de tocar, mas ela nos engana deliciosamente. A cascata aguda que já mencionamos, Pires também toca de forma delicadíssima como manda a partitura, aos 6min15s do movimento lento.

Em 2019 as plateias em São Paulo e Belo Horizonte tiveram o provilégio de ouvir Pires tocar uma monumental, equilibrada sonata op. 111 de Beethoven e uma finíssima seleção de noturnos de Chopin:
os três do op. 9 (escritos em 1830-32), os dois do op. 27 (1835) e o nº 1 op. 72 (1827-29). Do ponto de vista formal, os noturnos não são tão exigentes quanto Beethoven, é verdade. Mas o seu melodismo poético talvez não encontre paralelos na história da música. E se o público já estava dominado pelo Beethoven, aqui foi uma elevação. A interpretação de Maria João Pires, seu senso de agógica, sem nenhum maneirismo, atinge um grau de expressão artística raro mesmo entre os grandes músicos da atualidade.
(palavras de Nelson Rubens Kunze)

E também temos as palavras da poeta ou poetisa, pois no libreto dessa gravação ao vivo na Polônia, Maria João Pires se solta em uma longa entrevista:
“Eu amo os dois concertos e nunca deixo de tocá-los. Também gosto das outras obras de Chopin para piano e orquestra. E ao contrário daqueles que criticam sua habilidade de orquestração, eu acho que há também muita beleza nas partes orquestras dos concertos. Ambos são cheios de mágica, cheios de sonhos…”

“O que eu mais amo na música de Chopin é sua impermanência: ali, nada é fixo para sempre, nada é definitivo. Como na vida. Tudo muda. Normalmente as pessoas gostam de um sentimento de segurança. Não querem aceitar o fato de envelhecerem, adorariam manter suas posses, viver para sempre, mas para mim ser permanente e possessivo é contra a natureza transitória de nossa existência. E Chopin nos dá a maior lição nesse aspecto, pois nos mostra como aceitar a impermanência da vida. Nesse sentido ele é o maior dos poetas entre os músicos.”

Frédéric Chopin:
1-3. Piano Concerto No. 2, in F minor
4. Ballade No.1 in G minor Op. 23
5. Mazurka in C minor Op.56 No.3
6. Scherzo in E major Op.54
7-9. Etudes Op.10 No.6, 8, 9
10-11. Grande Polonaise brillante précédée d’un Andante spinato, Op.22
Artur Rubinstein, piano
Philharmonia Orchestra
Carlo Maria Giulini, conductor
Recorded: Royal Festival Hall, London, 16 May 1961 (Concerto), Concert Hall, Broadcasting House, London,6 Oct. 1959 (Solo Piano)

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – Rubinstein (mp3 320kbps)

1-3. Frédéric Chopin: Piano Concerto No. 2, in F minor
4-7. Franz Liszt: Piano Concerto No. 1, in E flat major
Claudio Arrau, piano
Danish National Symphony Orchestra
Conductor: Miltiades Caridis.
Recorded: Radiohuset’s Concert Hall, 25 Nov. 1967

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – Arrau (flac)
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – Arrau (mp3 320kbps)

Frédéric Chopin:
1-3. Piano Concerto No. 2, in F minor
4-10. Nocturnes Op.9 (No. 1-3), Op.27 (No. 1-2), Op.48 (No. 2), Op. posth. (Lento con gran espressione)
Maria João Pires, piano
Sinfonia Varsovia
Christopher Warren-Green, conductor
Recorded: Warsaw, 29 aug. 2010 (Concerto), 29 aug. 2014 (Nocturnes)

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – Pires (flac)
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – Pires (mp3 320kbps)

F. Chopin em pintura de seu amigo E. Delacroix

Pleyel

.: interlúdio :. John Coltrane ao vivo, 1961: Village Vanguard (NYC, USA) (“Live” e “Impressions”)

Ao contrário das gravações ao vivo na Europa postadas aqui dias atrás, feitas por rádio ou TV e lançadas postumamente, esses dois discos de hoje foram produzidos com a participação de John Coltrane e sua gravadora, a partir de momentos selecionados em uma temporada de quatro concertos no Village Vanguard, famosa casa em Nova York.

Por um lado, temos o selo de aprovação dos músicos para o lançamento. Por outro lado, há um certo ar de colagem de datas diferentes, sem aquela sensação de um show com início, meio e fim. Só foram selecionados temas inéditos, deixando de fora músicas que eram comuns nos set lists do quinteto de Coltrane à época, como My Favorite Things, do álbum homônimo; Naima, de Giant Steps; e Greensleeves, lançada meses antes em Africa/Brass.

O clarinete baixo de Eric Dolphy soa em complemento ao sax de Coltrane em Spiritual, composição inspirada na música vocal devocional afro-americana, e que traz indícios do que faria Coltrane bem depois a partir de A Love Supreme. Mas se quiserem ouvir Eric Dolphy tocando flauta com o acompanhamento elegante do piano de McCoy Tyner, aí só ouvindo outros shows…

Inamu Baraka, autor de livros sobre jazz, assistiu John Coltrane ao vivo várias vezes e escreveu:
“There is a daringly human quality to John Coltrane’s music that makes itself felt, wherever he records. If you can hear, this music will make you think of a lot of weird and wonderful things. You might even become one of them.”

John Coltrane – Live at the Village Vanguard, 1961
1. Spiritual
2. Softly As In A Morning Sunrise
3. Chasin’ The Trane

John Coltrane — soprano and tenor saxophone
Eric Dolphy — bass clarinet on “Spiritual”
McCoy Tyner — piano on 1, 2
Reggie Workman — bass on 1, 2
Jimmy Garrison — bass on 3
Elvin Jones — drums
Recorded: November 1961, Village Vanguard, NYC, USA

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – Live at the Village Vanguard (mp3 320kbps)

Eric Dolphy & John Coltrane

Impressions não se apresenta na capa como um disco ao vivo, mas as suas duas faixas mais longas – India e Impressions, cada uma por volta dos 15 minutos – foram gravadas ao vivo no Village Vanguard em 1961. As três faixas curtas, porém, foram gravadas em estúdio e na formação de quarteto, sem Dolphy. Apesar desse jeitão de colcha de retalhos, é considerado um dos pontos altos de Coltrane, especialmente devido à parte ao vivo. No início de 1963 o quarteto gravou em estúdio a composição Impressions, mas devem ter preferido a gravação ao vivo de 61, que lançaram em julho de 63. Só em 2018, no álbum “Both Directions at Once” (outra colcha de retalhos supervisionada pelo filho de John Coltrane), foi lançada a Impressions de estúdio. Para uma outra versão dela ao vivo e em vídeo, confiram o quinteto em Baden-Baden, Alemanha, aqui.
Em India, assim como em Olé Coltrane (gravada em estúdio meses antes), temos dois baixistas servindo como chão para os outros músicos se aventurarem por toques exóticos e escalas inspiradas em outros países. As faixas gravadas em estúdio e lançadas nesse disco Impressions (nº 2, 4 e 5) são, ao menos para mim, mais fracas: não sei apontar o motivo ou circunstância, mas naquele período (1962-63) algumas gravações de estúdio do quarteto de Coltrane, embora com extrema competência e bom gosto, parecem mostrar um certo bloqueio de criatividade, que seria definitivamente superado em 1964 com os discos de estúdio Crescent e A Love Supreme.

John Coltrane – Impressions
1. India (Live, November 3 1961, Village Vanguard)
2. Up ‘Gainst the Wall (September 18 1962, Van Gelder Studio)
3. Impressions (Live, November 3 1961, Village Vanguard)
4. After the Rain (April 29 1963, Van Gelder Studio)
5. Dear Old Stockholm (April 29 1963, Van Gelder Studio, CD reissue bonus track)

John Coltrane – soprano and tenor saxophone
Eric Dolphy – bass clarinet (track 1), alto sax (track 3, final chord only)
McCoy Tyner – piano (tracks 1, 3, 4, and 5)
Jimmy Garrison – double bass
Reggie Workman – double bass (track 1)
Elvin Jones – drums (tracks 1, 2, and 3)
Roy Haynes – drums (tracks 4 and 5)

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – Impressions (mp3 320kbps)

Elvin Jones (bateria) e John Coltrane (sax soprano) em Baden-Baden, 1961, um mês após os shows no Village Vanguard

Pleyel

.: interlúdio :. Dois grandes grupos com Don Cherry (1936-1995)

Este mês de janeiro tem sido de muitos momentos de alívio, alguns de tensão e muitos interlúdios jazzísticos aqui no PQPBach. Não rolou uma combinação nem uma pressão do patrão, apenas um daqueles transmimentos de pensação… Vamos então a mais dois álbuns em que os improvisos vão se construindo de forma horizontal e coletiva, difícil até de imaginar para certas cabeças obcecadas por ordem, dominação e esmagamento de uns por outros… Afinal, como disse meu colega WellBach, é difícil imaginar algo mais democrático que o Jazz.

Uma tendência do jazz dos anos 1970, que já aparece no disco de 1969 abaixo, foram os grupos sem um líder bem marcado. Naquela época se aposentavam ou saíam de cena Duke Ellington and his Orchestra, Thelonious Monk Quartet, John Coltrane Quartet, Miles Davis Quintet e as novidades eram Weather Report (com Joe Zawinul, Wayne Shorter e Jaco Pastorius dividindo holofotes), Return to Forever (Chick Corea, Stanley Clarke, Al Di Meola, Airto Moreira) ou o quarteto europeu de Keith Jarrett com um grande protagonismo de Jan Garbarek…

Don Cherry – supondo que dê pra conhecer a personalidade de alguém pelos seus solos de trompete e de flauta – tem um jeitão tranquilo, com alguns momentos mais intensos, gritos repentinos, mas predominância mesmo dos solos mais suaves (aqui!) e ao mesmo tempo imprevisíveis. Com essa suposta personalidade tranquila, apesar de ser uma das mais amadas figuras no jazz da segunda metade do século XX, ele não é tão lembrado pelos momentos em que organizou uma banda pra chamar de sua e exerceu liderança. Esse floreio é pra dizer que Don Cherry funciona bem em grupos mais democráticos.

O primeiro, lançado por um selo obscuro em 1969, tem uma história misteriosa: aparentemente o jovem James Mtume, de 23 anos, convenceu vários medalhões do jazz a gravarem um disco com suas composições e alguns trechos falados ligados ao movimento negro daquele período politicamente turbulento. O baterista Albert ‘Tootie’ Heath – tio de Mtume – parece ter sido quem conseguiu o contrato de gravação, e por isso ele aparecia na contracapa do LP. Já na reedição de 1975, Herbie Hancock e Don Cherry aparecem em letras maiores, o que não significa que eles tenham liderado as sessões, apenas que eram mais famosos.

Herbie Hancock frequentemente é quem faz a base das composições, junto com as percussões de Mtume, Tootie Heath e Ed Blackwell… sim, é um disco com bastante percussão, como já era de se esperar em um trabalho afrocentrado. Na 2ª faixa do álbum, temos voz muito interessante cantando sem palaras, aquele famoso “la-la-la”, mas na 3ª faixa a voz se intromete mais, supomos que seja a de Mtume, fazendo discurso político… os ouvidos mais apressados podem pular para a metade daquela faixa, quando as duas flautas ficam mais interessantes e a voz, mais discreta. Nos anos seguintes, Mtume tocaria percussão nas bandas de fusion de Miles Davies no início dos anos 1970, além de gravar alguns discos solo e, nos anos 80, lançar alguns hits pop/R&B (mais detalhes nesta resenha aqui).

Mas quando Don Cherry aparece ele quase sempre rouba a cena, ao contrário de Jimmy Heath, grande acompanhante (gravou com Milt Jackson, Freddie Hubbard e muitos outros), mais destinado ao papel de coadjuvante que ao de principal.

Ao contrário dessa breve e improvável constelação de estrelas que seguiriam seus rumos e nunca mais se encontrariam, o segundo disco de hoje é de um grupo que tocou junto por alguns anos, criou uma certa intimidade, o que não significa, claro, que tenham ligado o piloto automático e começado a se repetir, pecado imperdoável no jazz…

No disco de 1979, Codona, o nome do trio é uma junção de Collin, Don e Naná. Este último, o brasileiro Naná Vasconcellos, brilha no berimbau, cuíca e vários outros instrumentos de percussão. Nascido no Recife, Naná batucou desde pequeno em dezenas de instrumentos, gravou com Milton Nascimento (Milagre dos Peixes, entre outros) e, por intermédio de Gato Barbieri e Egberto Gismonti, se aproximou do jazz europeu de artistas que circulavam em volta da gravadora alemã ECM. Don Cherry e Collin Walcott nasceram nos EUA mas fizeram boa parte da carreira na Europa, com interesses musicais bem internacionais: Don se interessando por instrumentos africanos e Collin tendo estudado com Ravi Shankar e outros mestres indianos.

Kawaida (1969)
A1. Baraka
A2. Maulana
B1. Kawaida
B2. Dunia
B3. Kamili

Piano – Herbie Hancock; Trumpet [and flute?] – Don Cherry; Tenor Saxophone, Soprano Saxophone – Jimmie Heath; Albert “Tootie” Heath; Percussion – Ed Blackwell; Congas [and voice?] – James Mtume; Bass – Buster Williams; Flute, Percussion on B1 – Billy Bonner
All tracks composed by Mtume, except B2 by Tootie Heath
Recording date: December 11 1969
Recording place: The Universe

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – FLAC
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – mp3 320kbps

Capa da reedição de 1975, colocando Hancock e Cherry em letras maiores

Collin, Don e Naná: Codona 1 (1979)
1. Like That of Sky (Walcott)
2 Codona (Cherry, Vasconcelos, Walcott)
3. Colemanwonder: Race Face/Sortie/Sir Duke (Ornette Coleman/Coleman/Stevie Wonder)
4 Mumakata (Walcott)
5. New Light (Walcott)
Recorded at Tonstudio Bauer in Ludwigsburg, West Germany in September 1978

Collin Walcott — sitar, tabla, hammered dulcimer, kalimba, voice
Don Cherry — trumpet, wood flute, doussn’ gouni, voice
Naná Vasconcelos — percussion, cuíca, berimbau, voice

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – mp3 320kbps

Don Cherry (circa 1971). Dizem que quanto menor o trompete, maior a… coragem!

Pleyel

Olivier Messiaen (1908-1992): Visons de l’amen (Aimard, Stefanovich) + peças curtas de Enescu, Knussen, Birtwistle

Após sua experiência no front e como prisioneiro de guerra, Messiaen voltou para Paris e compôs três obras bastante distantes de qualquer comentário mais engajado sobre os horrores da 2ª Guerra, talvez por buscar na religião a sanidade que tantos soldados tinham perdido. Essas três obras são: Visões do amém (1943), para dois pianos; 20 olhares sobre o menino Jesus, para piano (1944); Três pequenas liturgias (1944), para orquestra com importantíssima participação do piano. São três obras em que os truques de mágica pianística se repetem e se complementam, sendo interessante ouvi-las em sequência, mais ou menos como é interessante ouvir as Sinfonias 3 e 4 de Mahler e os ciclos de Lieder que ele compôs na mesma época e que se repetem nas sinfonias (guardadas as proporções entre dois compositores tão diferentes como Mahler e Messiaen).

Entre os truques, invenções e manias pianísticas de Messiaen, o pianista francês Pierre-Laurent Aimard chama atenção para um que, confesso, eu não havia reparado, mas é daquelas coisas que, uma vez que lhe abrimos os olhos, podemos enxargá-la por todos os lados: me refiro aos frequentes sons de sinos nas Visions de l’amen. Com a palavra, Aimard:

Eu toquei as Visions de l’Amen desde os quinze anos, virei as páginas quando Yvonne Loriod e Messiaen as executaram, as estudei com ele e toquei incontáveis vezes – inevitavelmente transportado pela força irresistível da visão de Messiaen.
Se ter uma casa realmente significa alguma coisa, então esta obra é minha casa.
Os inúmeros sinos que intoxicam o Amém da Criação e o da Consumação encontrarão um complemento musical nas composições do profético Enescu, do poético Knussen e do radical Birtwistle. Elas ressoam para nos mostrar o quanto o som do sino, esse choque inicial com desdobramentos harmônicos infinitos, é emblemático da música de Messiaen. (Pierre-Laurent Aimard)

Olivier Messiaen (1908-1992): Visons de l’amen
1 I. Amen de la Création
2 II. Amen des étoiles, de la planète à l’anneau
3 III. Amen de l’agonie de Jésus
4 IV. Amen du Désir
5 V. Amen des Anges, des Saints, du chant des oiseaux
6 VI. Amen du Jugement
7 VII. Amen de la Consommation

Tamara Stefanovich, piano I
Pierre-Laurent Aimard, piano II

George Enescu (1881-1955)
8 Carillon Nocturne (from Suite No. 3, Op. 18 “Pièces Impromptues”) (piano: Aimard)

Oliver Knussen (1952-2018)
9 Prayer Bell Sketch, Op. 29 (piano: Stefanovich)

Harrison Birtwistle (1934-2022)
10 Clock IV (from Harrison’s Clocks) (piano: Aimard)

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE

PS: O amém é aquele mesmo, pronunciado no fim das orações… Com o significado mais imediato de “que assim seja” e outros por extensão, o “amém” deu asas à imaginação de Messiaen nessa obra de mais de 40 minutos.

Olivier Messiaen (esq.) e Laurent Aimard (dir.)

Pleyel

.: interlúdio :. John Coltrane Quintet with Eric Dolphy – Live, 1961: Copenhagen, Baden-Baden, Paris

John Coltrane devia ter muitos admiradores em Copenhagen, porque após este show gravado em excelente qualidade de áudio na segunda-feira 20/11/1961, e após circular por outros países da Europa do norte, seu quinteto voltaria à capital da Dinamarca para um segundo show no domingo 26/11.

Além de faixas mais comuns no repertório de Coltrane, como Impressions, Naima e a balada de Cole Porter Ev’ry Time We Say Goodbye, o destaque do show de Copenhagen é Delilah, um tema de tipo orientalista (no sentido de Edward Saïd: um oriente mais nos olhos de quem vê) que, antes de ser introduzida ao mundo do jazz pelo timbre cool do trompete de Clifford Brown, havia sido composta como parte da trilha sonora de um Sansão e Dalila, superprodução bíblica de Hollywood em 1949. Aqui, esse tema serve para o quinteto “se esquentar”: começando meio lenta e também cool, a música ganha solos sucessivos de Coltrane e Dolphy, depois um de Tyner, para finalmente decolar nas notas rápidas do sax soprano de Coltrane nos minutos finais…

Jones na bateria, Coltrane no sax soprano (Baden-Baden 1961)

O outro destaque dessa turnê europeia foi o show em um estúdio de TV em Baden-Baden, Alemanha, todo gravado em som e vídeo, coisa rara na época. O quinteto de Coltrane certamente tinha algum grau de estranhamento com a ideia de serem gravados pelas diversas câmeras de um estúdio de TV. As câmeras, para músicos de jazz naquela época, eram bem mais raras do que os gravadores. Então eles escolheram o repertório mais tocado, para não correrem riscos: três temas que apareciam em quase todas as apresentações de 1961 e 62. Dois deles haviam sido lançados no LP My Favorite Things e o terceiro (a composição modal Impressions) ainda era inédito para os públicos mas vinha sendo retrabalhado pelo grupo praticamente a cada noite. Talvez seja o único registro em vídeo do grupo de Coltrane ainda com Reggie Workman, que sairia no ano seguinte. É verdade que Jimmy Garrison duraria mais tempo com Coltrane e faria solos mais longos (hipótese: os solos de baixo e bateria entram em 1962 para cobrir o buraco com a saída de Dolphy?) Mas Workman – que esteve em gravações como Olé Coltrane, Africa/Brass, Village Vanguard – também é um baixista sofisticado que, nas últimas notas de Ev’ry time we say goodbye, ataca o contrabaixo com o arco, como dá pra ver no vídeo mais abaixo, que também segue para download, para os excêntricos que ainda baixam vídeos.

Jones na bateria, Dolphy na flauta (Baden-Baden 1961)

A My Favorite Things de Copenhagen deve ser uma das mais longas já tocadas por Coltrane: dura 28 minutos com longos solos de (nesta ordem) Tyner no piano, Dolphy na flauta e Coltrane no sax. Pra não dizerem que não avisei: enquanto o solo de Tyner é brilhante mas ao mesmo tempo harmonicamente situado nas mudanças de acordes da versão do LP de 1960, o solo de flauta de Dolphy é bem mais free jazz, sem medo de em certos momentos soar em desalinho com os outros instrumentos. Já na “Things” de Baden-Baden, o quinteto funciona sob a pressão do relógio da gravação televisiva, o que por um lado poda as alturas alcançáveis, mas por outro lado coloca restrições que levam os músicos a inventar novas ideias.. O solo de pouco menos de 3 minutos de Dolphy na flauta (dos 6 aos 9 minutos do vídeo) é uma verdadeira obra-prima do improviso jazzístico.

Com uma qualidade de gravação pior e, portanto, apenas para os fãs mais dedicados – embora em primeiro na lista abaixo que é cronológica na ordem da turnê – temos o show no Olympia de Paris, outra grande casa de espetáculos, em atividade até hoje e com lugares para cerca de duas mil pessoas. Ali, o quinteto toca Blue Train, do disco homônimo de 1957-58, o primeiro lançado por Coltrane como artista principal e não coadjuvante. Blue Train começa com frases em uníssono dos dois saxofones (tenor de Coltrane, alto de Dolphy), que soam bastante interessantes com o eco da sala L’Olympia. Mas a gravação (que, pelo eco, podemos supor que foi feita da plateia e não do palco ou da mesa de som) deixa a desejar sobretudo nos detalhes de piano, baixo e bateria. Então as prioridades são o show em Copenhagen e a sessão televisionada em Baden-Baden.

John Coltrane Quintet:
L’Olympia, Paris – November 18, 1961 (late show)
1. Blue Train (J. Coltrane)
2. I Want to Talk About You (Billy Eckstine)
3. My Favorite Things (Rogers/Hammerstein)

Falconer Salen, Copenhagen – November 20, 1961
1. Intro by Norman Granz
2. Delilah (Victor Young)
3. Ev’ry Time We Say Goodbye
4. Impressions (J. Coltrane)
5. Naima (J. Coltrane)
6. My Favorite Things (false start) > Announcement by Coltrane
7. My Favorite Things (Rogers/Hammerstein)

Südwestfunk TV Studio, Baden-Baden – December 4, 1961
1. My Favorite Things (Rogers/Hammerstein) 11:06
2. Ev’ry Time We Say Goodbye (C. Porter) 5:25
3. Impressions (J. Coltrane) 7:30

Tenor Saxophone, Soprano Saxophone – John Coltrane
Alto Saxophone, Bass Clarinet, Flute – Eric Dolphy
Piano – McCoy Tyner
Drums – Elvin Jones
Bass – Reggie Workman

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE (link para pasta com os três shows separados)

McCoy Tyner, durante o solo, olha para o piano – reparem que na outra foto abaixo ele olha para Coltrane enquanto o acompanha
Jones, Coltrane (sax soprano), Workman, Tyner: Baden-Baden 1961
Workman (baixo), Coltrane (sax tenor), Dolphy (sax alto) em Baden-Baden, 1961

Dolphy died on June 29, 1964 in a diabetic coma, leaving a short but tremendous legacy in the jazz world. He was quickly honored with his induction into the Down Beat magazine Hall of Fame in 1964. Coltrane paid tribute to Dolphy in an interview: “Whatever I’d say would be an understatement. I can only say my life was made much better by knowing him. He was one of the greatest people I’ve ever known, as a man, a friend, and a musician.”

Recebendo Prêmio Edison no Concertgebouw de Amsterdam (1961)

Pleyel

.: interlúdio :. John Coltrane: Meditations (1965)

Após o sucesso dos álbuns Giant Steps (1959-60), My Favorite Things (1960-61) e A Love Supreme (1964), John Coltrane era uma celebridade internacional e ele poderia passar muitos anos repetindo a formação de quarteto e lotando show dos dois lados do Atlântico Norte, ganhando prêmios e, claro, dinheiro.

Mas se repetir certamente não era o objetivo de Coltrane. No álbum Meditations, gravado em 1965, temos o quarteto “clássico” dos anos anteriores aumentado para sexteto com o saxofone de Pharoah Sanders e a a percussão de Rashied Ali. Mas na maior parte do tempo o piano e o baixo ficam mais discretos e o foco musical circula entre saxofones e percussão. Há exceções, como o fim de Consequences e o início de Serenity, onde finalmente temos uma participação mais marcante do pianista McCoy Tyner.

Através de sua carreira, a música de Coltrane foi tomando progressivamente uma dimensão espiritual. Ele dizia que, após esse acordar espiritual, “não dá mais para esquecê-lo. Torna-se parte de tudo que você faz. Nesse aspecto, este álbum é uma extensão de A Love Supreme, já que minha concepção dessa força continua mudando. Meu objetivo ao meditar sobre isso pela música, no entanto, continua o mesmo. É colocar as pessoas para cima, o máximo que eu posso. Inspirá-las a realizar mais e mais da sua capacidade de ter vidas cheias de sentido. Porque certamente há sentido na vida.” (John Coltrane no booklet de Meditations)

Por volta de 1957-58 ele havia largado o vício em álcool e heroína, embora essas substâncias sejam a provável causa do câncer de fígado que causaria sua morte aos 40 anos. E a partir desses fins dos anos 50, sua música vai se tornando cada vez mais permeada de religiosidade em um sentido amplo pois, como Coltrane dizia, “Acredito em todas as religiões”.

Rashied Ali (1935-2009) com vergonha de sorrir pra câmera

Ao mesmo tempo a música do Coltrane dos últimos anos vai se tornando mais estranha e inovadora, também, com influências do free jazz de Ornette Coleman e de Eric Dolphy (que tocou com Coltrane por cerca de um ano em 1961-62). Em Meditations, gravado em novembro de 1965, temos dois bateristas – e outra característica da última fase de Coltrane é a presença mais forte da percussão nos arranjos. Dizia ele que sentia necessidade de “mais ritmo ao meu redor. E com mais de um baterista, o ritmo pode ser mais multi-direcional.” Trata-se do último álbum com a presença do grande pianista McCoy Tyner, que por tantos anos fez a cama sonora para Coltrane brilhar. Justamente esse chão harmônico de Tyner não era mais o que Coltrane buscava a partir de meados de 1965, e o oposto também é verdadeiro: Tyner parecia um pouco sufocado pelas percussões intensas e, em muitos momentos de Meditations, sua participação é discreta, apesar de dois belos solos, sobretudo o do final de Consequences. Poucos meses depois, Tyner sairia do grupo (“I didn’t see myself making any contribution to that music… I didn’t have any feeling for the music, and when I don’t have feelings, I don’t play”), após mais de cinco anos juntos. Entraria no seu lugar Alice Coltrane, que já era uma pianista de longa carreira antes de adquirir esse sobrenome de casada. Com um estilo mais baseado em notas soltas e menos em acordes, ela se encaixaria bem nessa última fase da banda. Depois da morte de John, Alice gravaria alguns álbuns com Pharoah no sax, Garrison no baixo e/ou Rashied na bateria.

Enquanto o pianista Tyner estava perto de sair, o saxofonista Pharoah Sanders era um recém-chegado. O álbum utiliza bem a tecnologia stero, ainda recente à época, apenas por volta de 1958 surgem no mercado vitrolas capazes de reproduzir em dois canais separados, enquanto as transmissões de rádio FM em stereo se iniciaram em 1960. Sanders toca no canal direito, Coltrane no canel esquerdo (com fone de ouvido isso fica mais evidente… e os dois bateristas também estão um de cada lado!) Quando fazia uma dobradinha de saxofonistas com Cannonball Adderley (fim dos anos 50) ou com Eric Dolphy (início dos anos 60), Coltrane e seu colega frequentemente tocavam instrumentos de tamanho e alcance diferente: um no sax tenor e um no sax alto ou soprano, ou ainda no clarinete baixo. Aqui nessa fase final da carreira de Coltrane, que infelizmente durou apenas dois anos até sua morte precoce, Pharoah Sanders – que estava vivo e tocando fantasticamente até 2022 – toca um sax tenor igual ao de Coltrane, mas cada um com um timbre diferente, ao mesmo tempo em que um influencia o outro: muitos momentos de sopro intenso, forte e dando a impressão de estar forçando o instrumento para além do seu limite sonoro nos agudos…

Mas como Coltrane diz na entrevista que aparece no encarte de Meditations, não se chega nunca nesse limite:

“Nunca existe um fim”, Coltrane disse ao concluir nossa conversa sobre este álbum. “Sempre existem novos sons para se imaginar, novos sentimentos para se alcançar. E sempre há a necessidade de seguir purificando esses sentimentos e sons para vermos o que nós descobrimos no seu estado mais puro. Então podemos ver mais e mais claramente o que nós somos. Dessa forma, podemos chegar à essência, ao melhor do que somos. Mas para isso, a cada momento, temos que estar sempre limpando o espelho.”

Entenderam? Mais ou menos, né? Se fosse fácil de entender, não teria tanta graça…

John Coltrane: Meditations
1. The Father and the Son and the Holy Ghost
2. Compassion
3. Love
4. Consequences
5. Serenity

Personnel
John Coltrane – tenor saxophone, percussion (left channel)
Pharoah Sanders – tenor saxophone, tambourine, bells (right channel)
McCoy Tyner – piano
Jimmy Garrison – bass
Elvin Jones – drums (right channel)
Rashied Ali – drums (left channel)

Released: August 1966
Recorded: November 23, 1965, Van Gelder Studio, New Jersey
All tracks written by John Coltrane

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE 

Pharoah Sanders em 1969

Pleyel

.: interlúdio :. John Coltrane Quartet – Live, 1962: Konserthuset (Estocolmo, Suécia) e Stefaniensaal (Graz, Áustria)

McCoy Tyner em 1961

O instrumento mais próximo do meu coração é o piano, por mais que dezenas de outros disputem minha preferência: flauta, reco-reco, cuíca, órgão, sintetizador… Não tem jeito, desde bebê gorducho tenho fotos em um velho e desafinado piano de armário da família, não um Pleyel francês mas um Bentley inglês. Não me considero um pianista, mas uns dias atrás me sentei em frente a um Essenfelder em um bar praiano e, após algumas cervejas, acompanhei o amigo que tocava violão, tudo no improviso, apenas dando uma olhada nos acordes que ele tocava… posso dizer que não fiz muito feio, até porque a maresia tinha comido várias notas médias então tive uma boa desculpa para me concentrar em terças agudas fortes e extremos graves suaves… E os amigos alcoolizados foram pouco exigentes.

E nesses dias quentes, meu coração tem batido novamente por John Coltrane, mais especificamente pela sua íntima relação com o pianista McCoy Tyner, que tocou com ele de 1960 a 65. Quando Tyner não estava disponível, Coltrane tocava sem piano, com a exceção de uma gravação com Duke Ellington, um ídolo bem mais velho para quem não seria possível dizer não…

McCoy Tyner tinha 22 anos quando começou a tocar no quarteto de Coltrane, mas já estava pronto musicalmente, com todas as suas características: um toque percussivo, agressivo quando necessário, mas harmonicamente muito elegante, preciso, ao contrário da suavidade de um Bill Evans ou da agressividade de um Thelonious Monk, que se dava tanto em termos de peso nas mãos quanto de harmonias (intencionalmente?) caóticas – um crítico chamou Monk de “elephant on the keyboard”! Tyner era agressivo no toque, na dinâmica, dançante e negro nos ritmos (negro demais no coração, diria o Vinícius de Moraes), e ao mesmo tempo com harmonias e arpejos que daria pra confundir com um Chopin.

Outra característica de Tyner é sua facilidade com melodias cantáveis de standards como, nesse ao vivo na Áustria, Autumn Leaves (que Nat King Cole e vários outros gravaram) e Ev’ry Time We Say Goodbye (canção de Cole Porter). Essas duas canções têm melodias tão notáveis que Coltrane e Tyner nem precisam se esforçar tanto, é só seguirem a linha melódica e harmônica, é bola pronta pra chutar pro gol. Esse tipo de invenção jazzística mais contida sobre melodias notáveis ocupa todo o álbum Ballads, gravado em estúdio nos EUA apenas uma semana antes da turnê europeia que rendeu estes registros ao vivo, embora nenhum tema de Ballads apareça aqui.

Já em Bye-Bye Blackbird e My Favorite Things, melodias mais simples e banais, o quarteto faz um jazz bem mais modal, no qual a melodia original é apenas um pretexto inicial para invenções ao sabor do momento. Também é tipicamente modal a composição Impressions, do próprio John Coltrane, e que aparece no concerto na Áustria em um andamento mais lento e relaxado do que na gravação (também ao vivo) de 1961 no álbum de mesmo nome. Irmã de So What, do disco Kind of Blue no qual Coltrane também tocou, Impressions tem a mesma sequência de modos da composição de Miles Davis, que vão se repetindo tendo sempre o piano de Tyner como a cama, o chão.

O outro álbum que trago hoje, gravado na Suécia no mesmo mês de 1962, não tem o show inteiro, apenas dois destaques longos e cheios de improvisos: o standard Bye Bye Blackbird (de novo) e a autoral Traneing in. Lançado em 1981, este álbum ao vivo deu a Coltrane um Grammy póstumo de melhor performance de jazz instrumental.

John Coltrane Quartet: Konserthuset Stockholm, Sweden, 19 November 1962
1 Bye Bye Blackbird
2 Traneing In

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – FLAC

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – MP3 320kbps

John Coltrane logo após descer do avião (aeroporto de Schiphol-Amsterdam)

John Coltrane Quartet: Grosser Stefanien-Saal, Graz, Austria, 28 November 1962
1 Bye Bye Blackbird
2 The Inchworm
3 Autumn Leaves
4 Every Time We Say Goodbye
5 Mr. P.C.
6 I Want to Talk About You
7 Impressions
8 My Favorite Things

ORF Radio Broadcast

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – FLAC

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – MP3 320kbps

John Coltrane – tenor and soprano saxophones
McCoy Tyner – piano
Jimmy Garrison – double bass
Elvin Jones – drums

Um outro detalhe curioso: o quarteto de Coltrane podia brilhar tanto em grandes salas de concerto na Europa com cerca de 2 mil assentos (além dessas de Graz e Estocolmo, o Concertgebouw de Amsterdam e o Olympia de Paris), como também em inferninhos americanos. De forma geral, as grandes salas de concerto nos EUA pareciam menos abertas ao jazz: talvez a única aparição de Coltrane no Carnegie Hall tenha sido em um enorme evento beneficente em 1957 que incluía o saxofonista na banda de Thelonius Monk além de Billie Holiday, etc. Na Filadélfia, terra natal de Coltrane e Tyner, não sei se eles tocaram nas salas onde se apresentava na época a grande orquestra local com Eugene Ormandy, mas sei que em 1963 o quarteto de Coltrane se apresentou algumas vezes no Showboat, localizado no porão de um hotel, com capacidade para 200 pessoas bem apertadas, que pediam drinks aos garçons e certamente fumavam enquanto os músicos tocavam. Longe de mim dizer que esse espaço esfumaçado convenha menos ao jazz do quarteto de Coltrane do que a arquitetura e acústica refinada das salas europeias. Coltrane, Tyner, Garrison e Jones transitavam por esses dois ambientes e isso faz parte da sua grandeza.

A grandiosa sala de concertos em Graz data de 1885, lembra o Concertgebouw de Amsterdam, construído na mesma década

John Coltrane’s music is a cry, revolting against the coldness of our world […] Moreover he seems to be the only one who is able to present ballads with the emotional depth of a Hawkins, Webster or Elridge. His playing is characterized by straightforward, harmonically traditional themes that are the basis for ranging note cascades. (Review of a concert in Vienna Konzerthaus, Austria, 1962-11-27, by Willie Gschwedner)

Pleyel

Alexander Scriabin (1872-1915): Sonatas para piano nº 3, 8, 9 e 10 (Ohlsson), Prelúdios, Poema e Estudos (Gadjiev)

Garrick Ohlsson é um pianista com uma extensa discografia: obras completas de Chopin, concertos de Liszt, de Brahms, de Dvorák, de Busoni… Se o buscador à direita não tiver me enganado, hoje ele faz sua estreia aqui no blog.

A julgar por esse recital ao vivo de sonatas de Scriabin, não deveríamos tê-lo ignorado até aqui. Nascido em Nova York em 1948, aluno de  mestres russos na Juilliard School (também teve aulas privadas com Claudio Arrau), o pianista mostra um profundo conhecimento dessas obras tecnicamente muito difíceis e beirando o atonalismo (com exceção da 3ª sonata, anterior em 15 anos às outras). Ele não as aborda como amontoados de notas desconexas, mas sempre com fraseados cantantes e uma forma de esculpir as tensões harmônicas que lembra seu professor e ídolo Arrau – que, como sabemos, não se arriscava nessas sonatas.

As três últimas sonatas foram finalizadas no mesmo ano de 1913. Elas passeiam entre momentos atonais e alguns centros tonais. Às vezes lembram Schoenberg, mas com uma retórica mais próxima do romantismo, por exemplo os longos e tensos trinados que lembram vagamente as últimas sonatas de Beethoven. São harmonicamente mais complexas do que as sonatas para piano de Prokofiev e Shostakovich (embora muita gente prefira as desses dois: Scriabin constuma ser um compositor que se ama ou se odeia).

Alexander Gadjiev, bem mais jovem, ficou famoso ao participar do Concurso Chopin de Varsóvia, assim como Ohlsson décadas antes. Ele nos brinda com pequenas pérolas de Scriabin, selecionadas não em grandes grupos de estudos ou de poemas, mas alternando os gêneros, como também gostavam de fazer pianistas de outras eras como Sofronitsky e Horowitz.

Neste ano de 2022, Scriabin completou 150 anos de nascimento. Na verdade a história é mais complicada: o calendário na Rússia era diferente então ele nasceu em dezembro de 1871 na época, mas em janeiro de 1872 convertendo para os dias atuais… Enfim, alguns discos foram lançados em comemoração e aqui no PQPBach tivemos dois desses novos: um da ucraniana Valentina Lisitsa (aqui) e este de hoje de um americano e de um ítalo-esloveno, com gravações selecionadas pela BBC. As de Ohlsson foram ao vivo no Wigmore Hall, sala cuja acústica é considerada uma das melhores do mundo para música de câmara e piano solo.

Garrick Ohlsson

Alexander Scriabin (1872-1915):
1-4. Sonata No. 3 in F sharp minor, Op. 23
5. Sonata No. 8, Op. 66
6. Sonata No 9, Op. 68 ‘Black Mass’
7. Sonata No. 10, Op. 70
Garrick Ohlsson
Recorded live at Wigmore Hall, London, 27 April 2015

8. Prelude Op. 16 No. 3
9. Poème Op. 32 No. 1
10. Prelude Op. 16 No. 2
11. Feuillet d’album Op. 45 No. 1
12. Etude Op. 8 No. 8
13. Prelude Op. 16 No. 4
14. Etude Op. 42 No. 5

Alexander Gadjiev
Recorded in Studio 2, Maida Vale Studios, London, 6 October 2019

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE

Scriabin em um picnic com sua esposa Tatiana. Assim como Debussy na praia, ele levou guarda-chuva. Mais uma semelhança entre os dois…

Pleyel

Padre Antonio Soler (1729-1783): Concertos para dois órgãos (Hurford, Trotter)

Peças únicas no repertório para órgão, esses concertos de Soler nunca soaram tão deliciosamente saborosos quanto nessa gravação nos dois órgãos da Catedral de Salamanca. Construídos no século 18, esses órgãos têm timbres realmente muito típicos daquele século e daquela região do mundo.

Antonio Soler nasceu na Catalunha, foi ordenado padre aos 23 anos em 1752 e se mudou para o Monasterio de San Lorenzo del Escorial, próximo a Madri, onde se tornou um pupilo do velho Domenico Scarlatti até a morte deste em 1757. Scarlatti provavelmente teve um surto de criatividade na velhice, compondo centenas de suas curtas sonatas em seus últimos anos de vida, com Soler ajudando como copista… as datas são incertas, assim como as das sonatas de Soler, que de certa forma têm as do italiano como modelo.

Além de compor essas sonatas, Soler compôs missas e dezenas de villancicos – música vocal não litúrgica, tradicional na Espanha. Anos depois, a partir de 1766, ele se tornou tutor musical do infante Don Gabriel de Borbón (1752-1788), filho caçula do rei Carlos III que, por não estar na linha de sucessão do trono, podia dedicar sua atenção ao órgão, cravo e piano. Lembremos ainda que a rainha anterior, Maria Bárbara, tia do infante Don Gabriel, foi a grande mecenas e protetora de Scarlatti. Ou seja, havia na casa real espanhola uma grande predileção pela música para instrumentos de teclado.

Por outro lado, a Espanha daquele tempo não contava com casas de edição de partituras, o que em parte podemos creditar ao rígido controle da Inquisição ibérica sobre a circulação de ideias… A censura prévia era bem rígida e, embora naquela época já não queimassem tantas bruxas, a Inquisição só terminaria com a invasão de Napoleão! Assim, as obras de Soler ficaram restritas às bibliotecas privadas e de monastérios e igrejas espanholas, com a raríssima exceção de uma coleção de 27 sonatas impressas na Inglaterra, levadas para aquele país pelo Lord Fitzwilliam após uma visita à Espanha em 1772.

Tudo leva a crer, portanto, que Soler não tinha vontade de ser conhecido por melômanos franceses, italianos ou alemães, bastando para ele o reconhecimento local. Mas voltemos ao seu pupilo, o infante Don Gabriel: para ele foram dedicados os Seis Quintetos para teclado e cordas (obra pioneira nessa formação que depois seria ilustrada por obras-primas de Schumann, Brahms e Fauré) e os Seis Concertos para dois órgãos, provavelmente compostos por volta de 1780. Feitos para serem tocados pela dupla Antonio Soler / Gabriel de Borbón, esses concertos fogem do modelo italiano em três movimentos: a forma básica é um movimento lento seguido de um minueto. E os minuetos, com temas simples e dançantes, são ricos em variações que mostram a erudição do Padre Soler.

Padre Antonio Soler (1729-1783):
Six Concertos for two organs

Concerto No. 1 in C
1. Andante 4’11
2. Minué 3’36

Concerto No.2 in A minor
3. Andante 4’17
4. Allegro 2’34
5. Tempo de minué 5’33

Concerto No.3 in G
6. Andantino 4’22
7. Minué 4’45

Concerto No.4 in F
8. Afectuoso – Andante non largo 3’10
9. Minué 4’42

Concerto No.5 in A
10. Cantabile 3’46
11. Minué 5’39

Concerto No.6 in D
12. Allegro – Andante – Allegro – Andante 4’42
13. Minué 5’41

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE

Frade Dominicano espanhol, por El Greco, 1605. (A modéstia do Padre Soler o impediu de ser retratado)

Pleyel

César Franck (1822–1890): Trois Pièces & Trois Chorals (P. Sakari, órgão)

200 anos de César Franck (Liège, 10 de dezembro de 1822 — Paris, 8 de novembro de 1890)

César Franck teve um papel importante na ressurreição do órgão francês. Admirada e imitada nos séculos 18 e 19 com compositores como Clérambault e a família Couperin, essa prestigiosa escola de compositores para órgão já estava enfraquecida quando a Revolução de 1789 e as guerras subsequentes levaram à ruína as igrejas e seus órgãos. César Franck, com a ajuda do construtor de órgãos Aristide Cavaillé-Coll (1811-1899), acordou do sono um instrumento cujo papel tinha sido reduzido ao de acompanhamento litúrgico ou exibicionismo desprovido de substância musical.

O órgão (construído em 1880) da Catedral Sainte-Croix de Orléans, onde foram gravadas essas obras de Franck pelo organista Pétur Sakari, é um dos mais bem preservados instrumentos da firma Cavaillé-Coll, responsável também pelo órgão (1859) que Franck tocava na igreja Sainte-Clotilde in Paris. “Meu novo órgão? É uma orquestra!”, disse Franck quando tocou pela primeira vez em um instrumento feito por Cavaillé-Coll. Também levam a assinatura Cavaillé-Coll o órgão (1869) da igreja Trinité onde tocava Messiaen, o da Madeleine (1846) onde tocava Saint-Saëns e muitos outros órgãos franceses, além de alguns outros pelo mundo (Moscou, Buenos Aires, Rio de Janeiro…)

Das obras de César Franck, quase todas as que ainda são lembradas hoje em dia foram escritas quando o compositor tinha mais de 50 anos, em um caso extremo de compositor com uma “última fase” de destaque. É o caso da Sonata para piano e violino (1886), da Sinfonia em ré menor (1889) e das principais obras para órgão. Os Três Corais foram escritos no seu último ano de vida (1890). A ideia de “corais para órgão” foi inspirada em J.S. Bach, mas Franck pensou os seus com uma diferença considerável: ao invés de utilizar hinos tradicionais e conhecidos dos frequentadores de igrejas, ele utilizou melodias originais, que se revelam apenas gradualmente “com grande imaginação”, como o próprio César Franck escreveu em uma carta para seu editor. Esses três corais fazem parte do repertório da maior parte dos grandes organistas desde então.

César Franck (1822–1890):
Trois Pièces pour grand orgue, FWV 35-37 (1878)
1 Fantaisie. Andantino 16’16
2 Cantabile. Non troppo lento 6’50
3 Pièce héroïque. Allegro maestoso 9’39
Trois Chorals pour grand orgue, FWV 38-40 (1890)
4 Chorale No. 1 in E major. Moderato 15’37
5 Chorale No. 2 in B minor. Maestoso 15’32
6 Chorale No. 3 in A minor. Quasi allegro 15’20
Pétur Sakari, organist
Recording: January 2020 at the Cavaillé-Coll Organ (1880) of the Cathédrale Sainte-Croix, Orléans, France

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE

O organista César Franck e suas costeletas maiores que as de Elvis Presley

Pleyel

Guia de Gravações Comparadas – César Franck (1822–1890): Sonata para Piano e Violino

200 anos de César Franck (Liège, 10 de dezembro de 1822 — Paris, 8 de novembro de 1890)

César Franck é um compositor com algumas características muito curiosas. Quase todas as suas obras que ainda são tocadas são as que ele escreveu quando tinha mais de 50 anos de idade e a Sonata para piano e violino é sem dúvida a que mais ouvimos por aí hoje em dia, tanto em gravações como ao vivo. Embora suas obras para piano sejam poucas, Franck entendia muito de piano – e também de órgão, claro, como veremos na postagem de amanhã. De violino, ele entendia menos: em sua famosa sonata, ele não usa técnicas como o pizicatto ou outras mais raras, de forma que o tom do violino é quase sempre cantante, melódico, e se é fácil para o violinista tocar todas as notas, o difícil é expressar a ampla palheta de sentimentos dos quatro movimentos, ao mesmo tempo que se deve manter a compostura pois é música cheia de diálogos de tipo contrapontístico, de variações sobre alguns poucos temas que vão reaparecendo ao longo dos movimentos. Para o pianista, por outro lado, há algumas passagens mais carregadas de notas, com o tema dando as caras no teclado junto a sofisticadas harmonias em arpejos e graves profundos.

Temos tantas gravações antológicas dessa sonata aqui no PQP Bach que na postagem de hoje, em comemoração ao seu aniversário, vou listar nada menos que sete interpretações notáveis, trazidas aqui ao longo dos anos por meus colegas de blog, sobretudo por FDP Bach que é talvez o mais romântico entre nós. Então vamos, em ordem cronológica, para evitarmos um tipo de competição nem sempre saudável…

Batiashvili e Gigashvili (2022)
Uma extraordinária violinista georgiana. O Franck deles me impressionou demais. Sua admirada Sonata para Violino traz um diálogo íntimo entre violino e piano, que vai do encanto terno à paixão fascinante. O momento introdutório do Allegretto ben moderato já mostra as muitas nuances de Batiashvili: sua qualidade de tom vibrante e fraseado fluido lembram vividamente a voz humana. As primeiras notas são um sussurro e um prenúncio do que está por vir. Bela interpretação! O desempenho de Gigashvili também é sólido: além de se alinhar perfeitamente às linhas do violino, ele adiciona profundidade aos grandes momentos e responde com sensibilidade às mudanças de cores harmônicas de Franck. (PQP Bach)

Franck / Szymanowski / Chausson / Debussy: Secret Love Letters (Batiashvili, Nézet-Séguin, Gigashvili)

Faust e Melnikov (2017)
Única postagem de hoje no meio das outras recicladas. Isabelle Faust usa um violino Stradivarius de 1710 com cordas de tripas de boi ou de carneiro, Alexander Melnikov usa um piano Érard, circa 1885, ou seja, se enquadram na corrente das interpretações historicamente informadas (nome que pressupõe que as outras todas são ingênuas sobre aspectos históricos… mas aqui não é o momento para essa discussão espinhosa). Faust usa menos vibrato do que a média dos violinistas aqui listados, mas não pensem que ela faz um com totalmente seco e sem vibrato: ela solta suas emoções com equilíbrio e ponderação, virtudes importante ao se tocar Franck. O disco tem, no que seria o lado B, o Concerto para piano, violino e quarteto de cordas de Chausson (1855-1899), aluno e amigo de Franck. (Pleyel)

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE

Melnikov e Faust

Ehnes e Armstrong (2015)
Poucas obras me emocionam tanto quanto esta Sonata de Cesar Franck. E nas mãos deste excepcional músico chamado James Ehnes ela se torna ainda mais emocionante. Li em algum lugar que Ehnes é o Heifetz do século XXI. Ele imprime na sua interpretação aquilo que sempre procuramos, e que encontramos apenas nos grandes mestres: clareza, objetividade, sem subterfúgios, fazendo parecer fácil o que não é. (FDP Bach)

Cesar Franck (1822-1890) – Sonata in A – Richard Strauss (1864-1949) – Violin Sonata in E flat, op. 18 – James Ehnes, Andrew Armstrong

Perlman e Argerich (1998)
A admiração entre ambos, sempre mútua e imensa, teve que esperar até o verão de 1998 para virar parceria nos palcos. O repertório não fugiu do habitual: a sonata de Franck, em que a Rainha já acompanhou tantos violinistas, e a “Kreutzer” de Beethoven, para a qual é difícil imaginar pianista melhor. O recital é uma deleite tão grande quanto devem ter sido seus bastidores. (Vassily)

Viva a Rainha! – As Idades de Marthinha: a Sexta Década (1991-2000) [Martha Argerich, 80 anos]

Dumay e Pires (1993)
Gosto muito da sonata de Franck. Considero-a de extrema sensibilidade e delicadeza. Imagino sempre, ao ouvi-la, que estou deitado na relva, ao lado de um regato tranqüilo, com uma leve brisa soprando. (FDP Bach)
Gostei imensamente deste grande trabalho da portuguesa Pires e de seu estranho violinista francês Dumay. (PQP Bach)

Cesar Franck (1822-1890), Claude Debussy (1862 – 1918), Maurice Ravel (1875-1937) – Sonatas para Violino e Piano

Chung e Lupu (1977)
A cumplicidade entre os dois músicos está presente em todos os momentos, e o destaque novamente fica para a sonata de Franck, uma das melhores gravações que já ouvi desta obra. O Ravel e o Debussy só confirmam a qualidade, mesmo sendo obras pouco gravadas. (FDP Bach)

Cesar Franck – Sonata in A Major for Violin & Piano, Claude Debussy – Sonata for Violin & Piano – Kyung Wha Chung and Radu Lupu

Ferras e Barbizet (1966)
Violino e piano cantam naturalmente, sem nunca tentar qualquer hegemonia. Pouquíssimos conseguiram tirar do violino sonoridades tão melancólicas, atormentadas e ao mesmo tempo elegantes. (Pleyel)

Franck, Lekeu, Brahms, Schumann – Sonatas para violino e piano

São muitas as nuances, muitas as formas de se agarrar as frases fugidias de Franck que escorrem pelas mãos como água… E isso porque não citamos os arranjos: para piano e flauta, para piano solo ou ou mais gravado, para piano e violoncelo. Após esse monte de interpretações possíveis de uma obra com um pé nos perfumes e fraseados românticos e outro pé firmemente plantado em um procedimento muito erudito de variações sobre curtos temas, um pouco de literatura, por que não? Ao descrever a Sonata de Vinteuil (personagem fictício com características de Franck, de Saint-Saëns, talvez de Fauré e Debussy), o escritor francês Marcel Proust (1871-1922) fala sobre um tema bem no estilo dos de Franck, com reaparições misteriosas. Em uma longa descrição de duas audições de música de câmara, ele compara a frase daquela sonata com uma pessoa desconhecida que Swann encontra sem saber seu nome, o que não impede uma profunda afinidade de se estabelecer, afinidade que reaparece apenas um ano depois por obra do destino.

No ano anterior, numa reunião, ouvira uma obra para piano e violino. Primeiro, só lhe agradara a qualidade material dos sons empregados pelos instrumentos. (…) Mas em um dado momento, sem que se pudesse distinguir nitidamente um contorno, dar um nome ao que lhe agradava, subitamente fascinado, procurava recolher a frase ou a harmonia – não sabia ele próprio – que passava e que lhe abria mais amplamente a alma, como certos perfumes de rosas, circulando no ar úmido da noite, tem a propriedade de dilatar as narinas. [… Depois,] distinguira nitidamente uma frase que se elevava durante alguns instantes acima das ondas sonoras. Ela logo lhe insinuara peculiares volúpias, que nunca lhe ocorreram antes de ouvi-la, que só ela lhe poderia ensinar, e sentiu por aquela frase como que um amor desconhecido.

Num lento ritmo ela o encaminhava primeiro por um lado, depois por outro, depois mais além, para uma felicidade nobre, ininteligível e precisa. E de repente, no ponto aonde ela chegara e onde ele se preparava para segui-la, depois da pausa de um instante, ei-la que bruscamente mudava de direção e num movimento novo, mais rápido, miúdo, melancólico, incessante e suave, arrastava-o consigo para perspectivas desconhecidas. Depois desapareceu. Ele desejou apaixonadamente revê-la uma terceira vez. E ela com efeito reapareceu, mas sem falar mais claramente, e causando-lhe uma volúpia menos profunda. Mas, chegando em casa, sentiu necessidade dela, como um homem que, ao ver passar uma mulher entrevista num momento na rua, sente que lhe entra na vida a imagem de uma beleza nova que dá maior valor à sua sensibilidade, sem que ao menos saiba se poderá algum dia rever aquela a quem já ama e da qual até o nome ignora.

(…) Mas, não conseguindo saber de quem era a obra que ouvira, não a pudera procurar e acabou esquecendo-a. Encontrara na mesma semana algumas pessoas que também se achavam naquela reunião e as interrogara; mas várias tinham chegado depois da música ou partido antes; algumas no entanto lá se achavam durante a execução, mas tinham ido conversar noutra sala, e outras que ficaram a escutar não tinham ouvido mais que o começo. Quanto aos donos da casa, sabiam que era uma obra nova que os artistas contratados tinham pedido para tocar: como estes haviam partido em turnê, Swann não pôde saber mais nada. Tinha muitos amigos músicos, mas, embora relembrasse o prazer especial e intraduzível que lhe causara a frase, vendo diante dos olhos as formas que ela desenhava, era, no entanto, incapaz de a cantar para eles. Depois deixou de pensar no assunto.

Ora, apenas alguns minutos depois que o pequeno pianista começara a tocar em casa da sra. Verdurin, eis que de súbito, após uma nota alta longamente sustida durante dois compassos, ele viu aproximar-se, escapando de sob aquela sonoridade prolongada e tensa como uma cortina sonora para ocultar o mistério de sua incubação, ele reconheceu, secreta, sussurrante e fragmentada, a frase aérea e odorante que o enamorara. E ela era tão particular, tinha um encanto tão individual que nenhum outro poderia substituir, que foi para Swann como se tivesse encontrado num salão amigo uma pessoa a quem admirara na rua e que desesperava de jamais tornar a ver. Afinal, ela afastou-se, guiadora, diligente, entre as ramificações de seu perfume, deixando no rosto de Swann o reflexo de seu sorriso. Mas agora podia perguntar o nome de sua desconhecida (disseram-lhe que era o andante da Sonata para piano e violino de Vinteuil), tinha-a segura, podia tê-la consigo quantas vezes quisesse e tentar aprender a sua linguagem e o seu segredo.

(…) O pintor ouvira dizer que Vinteuil estava ameaçado de alienação mental. E acrescentava que a gente o podia perceber em certas passagens da sua sonata. A Swann não pareceu absurda a observação, mas perturbou-o muito; pois, como uma obra de música pura não contém nenhuma dessas relações lógicas cuja alteração na linguagem denuncia a loucura, a loucura reconhecida numa sonata lhe parecia algo de tão misterioso como a loucura de uma cachorra, a loucura de um cavalo, que no entanto se observam realmente.
(No Caminho de Swann, tradução de Mario Quintana)

Robert Schumann (1810-1856): Papillons, Sonata nº 1, Kinderszenen, Fantasia, Waldszenen, Geistervariationen (Schiff)

Nos últimos anos, não tenho perdido ocasião de ouvir András Schiff, seja o dos anos 1970 e 80 (aqui), seja o deste disco de hoje gravado em 2010, seja o senhor de cabelos brancos que rapidamente se adaptou às lives dos anos 2020, generosamente permitindo que gente de todo o mundo o assistisse durante a pandemia de COVID-19, quando ele fez seus recitais ao vivo no Wigmore Hall para públicos presenciais muito reduzidos (mas ao vivo no YouTube) tocando Schubert com Mozart, Bach com Beethoven, Schumann com Janáček, Trios de Haydn…

Pela lista acima, dá pra notar que Schiff é um especialista no repertório germânico e da Europa Central. Sua gravações de Bartók também são imperdíveis. No disco de hoje, Schiff aborda várias obras de Schumann, a maioria delas compostas quando ele tinha menos de 30 anos, mas também as Cenas da Floresta (Waldszenen), de quando o compositor já se aproximava dos 40, e as Variações-Fantasma (Geistervariationen), sua última obra, que teria sido ditada por vozes que ele ouvia em seus difíceis últimos anos: em um momento ele disse que era a voz de anjos, em outro, garantia que era o espírito de Schubert.

O pianista e professor francês Alfred Cortot costumava dizer sobre Schumann: “O que torna sua arte tão emocionante, tão próxima de nós, tão fraternal, é que antes de sentir a sua genialidade, sentimos os batimentos de um coração parecido com o nosso. Com Schumann, não pensamos nos problemas composicionais que ele resolveu, só temos ouvidos para as emoções que surgem de sua música. Como se se tratasse de um constante estado de improvisação, do qual jorram maravilhosas melodias, cada uma delas contando segredos – incluindo os nossos.” Há outras interpretações de Schumann em que todas essas emoções queimam com um fogo mais quente (aqui e aqui), outras com mais delicadeza (aqui e aqui), mas o que Schiff traz de forma muito única é um certo sarcasmo, um senso de humor que coloca Schumann como um improvável precursor de Bartók, Prokofiev e outros compositores que expressam um amplo espectro de emoções sarcásticas e cômicas. Sem perder com isso o sentimentalismo, é claro, pois Schiff nos apresenta as belas paisagens e o pássaro das Cenas da Floresta, toda a força e seriedade da Fantasia op. 17 em homenagem a Beethoven, etc. Tudo isso, porém, Schiff o faz sem tirar o sorriso do rosto.

E mais um detalhe para os fãs de Schumann: Schiff gravou a Fantasia op. 17 utilizando uma partitura alternativa do último movimento, com correções escritas à mão por Schumann e conservada em uma biblioteca em Budapeste. Na última página, segundo Schiff, essa versão alternativa tem uma grande surpresa em relação à versão mais famosa… e mais não falaremos, afinal vamos deixar que nossos leitores-ouvintes mais atentos encontrem a tal surpresa.

Robert Schumann (1810-1856):
CD1:
Papillons (Butterflies), Op. 2
Piano Sonata No. 1 in F sharp minor, Op. 11
Kinderszenen (Scenes from Childhood), Op. 15

CD2:
Fantasie (Obolen auf Beethovens Monument) in C major, Op. 17
Waldszenen (Forest Scenes), Op. 82
Variations on an original theme, in E flat major (Geistervariationen), WoO 24

András Schiff, piano
Recorded: june 2010, Historical Reitstadel, Neumarkt

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE

O álbum foi gravado no Reitstadel em Neumarkt, Alemanha. O antigo depósito de grãos e armas construído em 1539, foi convertido para uma sala de concertos

Pleyel

Krzysztof Penderecki (1933-2020): Trenódia para as vítimas de Hiroshima / Dois Concertos / Adagio (London Philharmonic)

Ao mudar o nome de uma de suas composições – originalmente 8’37”, em homenagem aos 4’33” de John Cage – para homenagear as vítimas da bomba de Hiroshima, Penderecki não podia imaginar que essa obra faria dele uma celebridade internacional. Pouco depois, em 1961, a obra receberia um grande prêmio da UNESCO, não só por méritos musicais mas também pelo caráter pacifista que a composição adquiriu. Penderecki explicava que, da primeira vez que ouviu a composição ser tocada, ficou impressionado com o impacto emocional e resolveu alterar o nome para Trenódia para as vítimas de Hiroshima. Na Grécia antiga, uma trenódia (do grego antigo θρῆνος / thrênos, de θρέομαι / thréomai, “gritar com força”) era um lamento fúnebre nos funerais, antes de se tornar um estilo literário.

A Trenódia é escrita para orquestra de cordas, em uma linguagem extremamente inovadora, usando algumas técnicas que à época eram comuns na música eletroacústica, mas que Penderecki adapta para instrumentos tradicionais. Os 24 violinos são divididos em quatro grupos; as dez violas, em dois, assim como os dez violoncelos e os oito contrabaixos. Uma linha em zigue-zague mostra a ordem de entrada de cada grupo. O compositor também explica que, em seus anos de formação, “tudo começou com o violino, quando criança eu sempre sonhei em me tornar um virtuoso do violino. Foi o violino, não o piano, que me inspirou em minhas primeiras peças… Eu escrevo sobretudo música para cordas, elas são onipresentes na minha criação.”

Semitha Cevallos nos traz mais algumas direções para navegarmos nesse universo: Penderecki alcançou riqueza de invenção nas cordas, criando maneiras de tocar totalmente novas. Ao lado de técnicas já conhecidas como arco e pizzicato, ele fez uso de vários tipos de vibratos rápidos e lentos. Utilizou também as conhecidas técnicas como legno battuto, col legno e sul ponticello, que eram pouco empregadas até então. Os instrumentos e cordas na obra de Penderecki são utilizados como percussão, pois utilizam o arco e as mãos para obter efeitos percussivos ao tocar as cordas e todo o corpo do instrumento. Outras inovações são as observações como “alcançar a nota mais aguda possível de dado instrumento, pela pressão da corda perto do arco”, “bater no corpo do violino, arranhando o estandarte”.

A proximidade com a música eletroacústica pode ser percebida na notação musical: Penderecki trouxe para a música instrumental a grafia da música eletroacústica. Para as notas, o compositor utiliza retângulos e triângulos, fazendo menção aos clusters e glissandos. Ao ouvir a música de Penderecki e de outros sonoristas, percebe-se a liberdade de expressão da obra e a forte carga emocional contida na sonoridade descoberta pelos poloneses. […] Era uma maneira de dizer aos comunistas que a Polônia era livre das diretrizes impostas e de mostrar que eles podiam fazer o que pretendiam no âmbito musical.

O pano de fundo histórico do século XX nos ajuda a entender a explosão de música inovadora na Polônia nas décadas de 1950 e 60, mais precisamente após 1956: naquele ano, após a morte do primeiro-ministro stalinista Bolesław Bierut, seguiu-se um período de maior liberdade artística e de mais intercâmbio de ideias com outros países. Não custa lembrar que o ministro da cultura polonês no período anterior a 1956, após a estreia da 1ª Sinfonia de Lutoslawski, havia declarado que um compositor como ele deveria ser atropelado por um bonde. Ou seja, após se livrarem daqueles burocratas e militares que pretendiam ditar qual era a música correta para a pátria, poloneses como Lutoslawski, Górecki e Penderecki viveram um período de grande efervescência cultural. Como relata o compositor cubano Leo Browuer, o Outono de Varsóvia era um dos festivais de vanguarda mais importantes do planeta, onde circulavam lado a lado obras de Bacewicz, Berio, Cage, Khachaturian, Messiaen, Penderecki, Shostakovich e Stockhausen .

Segundo a já citada Semitha Cevallos, a partir dos anos 1960 características da vanguarda polonesa apareceram nas obras para orquestra e/ou coral de vários compositores brasileiros, como Almeida Prado (Pequenos Funerais Cantantes, de 1969), Claudio Santoro (Interações Assintóticas, de 1969) e Edino Krieger (Canticum Naturale, de 1972, Três Imagens de Nova Friburgo, de 1988).

Sidney Molina, na Folha de SP, afirmou que mesmo quando radical e experimental, sua arte gélida parece exercer uma inesperada atração sobre o público. Há uma autenticidade em Penderecki, que combina com o olhar triste e os passos pesados com que se dirigia ao centro do palco para reger. Talvez por isso sua música tenha sido tão bem-sucedida no cinema, o que inclui a utilização em trilhas de clássicos como “O Exorcista”, de 1973, e “O Iluminado”, de 1980. Ao longo de muitas décadas ele alternou a composição com a regência, chegando a dirigir 60 concertos por ano em todos os continentes. Esteve muitas vezes na América do Sul, tendo sido próximo do compositor argentino Alberto Ginastera.

O CD lançado pela Filarmônica de Londres em 2020, além da Trenódia, tem outra peça para cordas: um Adagio publicado originalmente como parte da 3ª Sinfonia, para grande orquestra (1995) e depois adaptado pelo compositor para orquestra de cordas (em 2013). Para Penderecki, como explica o libreto do CD, não há problema algum em se tocar um movimento avulso de uma sinfonia. Desde o começo, esse Adagio lembra o Adagietto da 5ª de Mahler, outro movimento de sinfonia que de certa forma ganhou vida própria. Não é possível afirmar que se trate de uma homenagem ou paródia de Mahler, mas sem dúvida este Adagio de Penderecki pertence à mesma família daquele Adagietto.

Dos dois concertos, gostei mais do mais recente, para trompa (2008), que consegue utilizar o instrumento solista não só da forma solene que é mais comum, mas também em orquestrações com outros metais de formas cômicas que lembram Prokofiev e Shostakovich. O 1º concerto para violino (1977) é mais sério, de certa forma impregnado da seriedade de outras obras de Penderecki como a Trenódia (1960), a Paixão Segundo São Lucas (1966) ou o Credo (1998).

Krzysztof Penderecki (1933-2020): Trenódia para as vítimas de Hiroshima / Concerto para trompa e Concerto para violino nº 1 / Adagio para cordas
1. Horn Concerto ‘Winterreise’ (17:31)
2. Adagio For Strings (11:37)
3. Violin Concerto No. 1 (40:25)
4. Threnody For The Victims Of Hiroshima (8:56)

London Philharmonic Orchestra
Recorded live at the Royal Festival Hall, London, 2013 (3) and 2015 (1-2, 4)
Conductor – Krzysztof Penderecki (1-2, 4)
Conductor – Michał Dworzynski (3)
Horn – Radovan Vlatković (1)
Violin – Barnabás Kelemen (3)

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE (MP3 320 kbps)

Penderecki roubando uma muda do vizinho.

Pleyel

Maurice Ravel (1875-1937) – Concertos para Piano: em Sol e para a Mão Esquerda, Pavane, La Valse (Svetlanov, USSR SSO)

Aluno de Gabriel Fauré, Maurice Ravel teve um difícil início de carreira como compositor: tirando Fauré que sempre o apoiou, a maior parte do mundo acadêmico desprezava o seu estilo. No começo do século XX, ele precisava se defender das acusações de ser uma mera cópia de seu amigo Claude Debussy: entre outros argumentos, ele explicava que obras como Jeux d’eau (1901) usavam inovações que só apareceriam nas obras do amigo uns anos depois (Images, Préludes).

Em 1900, Ravel (3º em pé) ainda usava bigode. Não tão grande quanto o de Fauré (sentado ao piano)

Mas após as mortes de Debussy (1918), Saint-Saëns (1922) e de Fauré (1924), Ravel finalmente foi reconhecido como o maior compositor vivo na França e talvez no mundo: uma turnê nos EUA em 1928 iria aumentar seu renome e sua conta bancária. Nessa época, ele escreveria mais para orquestra, o que não era o caso do jovem da década de 1900 que dificilmente encontraria uma orquestra disponível para suas obras.

Os dois concertos para piano surgem após a turnê americana e são fortemente influenciados pelo jazz. E La Valse, concebida como um balé mas mais comumente apresentada sem dança, é ao mesmo tempo uma homenagem e uma paródia das grandes valsas orquestrais vienenses.

Os frequentadores deste blog devem ter visto eu e o nosso líder PQP incensarmos o maestro Evgeny Svetlanov (1928-2002) em suas gravações de repertório do início do século XX: Debussy, Scriabin, Mahler… E nos momentos mais dançantes de Ravel, Svetlanov e sua orquestra soviética dão um show novamente impressionam. A gravação do Concerto em Sol – em 1959 com Yakov Zak, vencedor do Concurso Chopin de 1937 – tem o som um pouco mais abafado, mas as outras gravações são mais recentes, anos 1970-80, com um rico colorido orquestral.

Svetlanov (1928-2002)

Maurice Ravel (1875-1937):
1-3. Concerto para Piano em Sol maior:
I. Allegramente
II. Adagio assai
III. Presto
Yakov Zak, USSR State Academic Symphony Orchestra, Evgeny Svetlanov (Recorded 1959)

4. Concerto para Piano para a mão esquerda, em Ré maior
Alexander Slobodyanik, USSR State Academic Symphony Orchestra, V. Verbitsky (Recorded 1978)

5. Pavane pour une infante défunte
6. La valse, poème chorégraphique pour orchestre
USSR State Academic Symphony Orchestra, Evgeny Svetlanov (Recorded 1975, 1982)

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE

Ravel de cabelos brancos e sem bigode

Pleyel

Valentin Silvestrov (1937): Três Sonatas para piano; Sonata para violoncelo e piano (Lubimov, Monighetti)

A música do compositor ucraniano Valentin Silvestrov — disse uma vez nosso chefe PQP Bach — é delicada mas nada fácil de ignorar. É um sussurro muito instigante e contemporâneo. As sonatas para piano de Silvestrov têm algo em comum com as de Scriabin, a semelhança talvez possa ser descrita como uma tendência dos dois compositores a saborear as dissonâncias, ou seja, abordá-las de forma, lenta, suave, cheia de segundas e terceiras intenções…

Alexei Lubimov (nasc. 1944) é um pianista e cravista russo. Seu interesse, nas décadas de 1960 e 70, por compositores contemporâneos ocidentais como Arnold Schoenberg e Karlheinz Stockhausen o levou a ser mal visto pelas autoridades soviéticas: talvez como estratégia para ficar menos visado, ele se dedicou então a estudar a sonoridade de instrumentos antigos. Pela gravadora Erato, Lubimov gravou uma inovadora integral de sonatas de Mozart em um fortepiano de época. Depois, ele gravaria pela Bis o concerto n. 11 de Mozart, para dois pianos, com Brautigam, também em instrumentos de época (neste caso, réplicas do original). Ele também apareceu aqui no blog com um belíssimo Chopin, rara incursão de Lubimov no repertório romântico. Mas ele não deixaria de se interessar por música contemporânea (por exemplo aqui: Ustvolskaya, Gubaidulina, Górecki e Pelécis). E de Silvestrov, além deste disco pela Erato, Lubimov também gravou pela ECM obras para piano solo e com orquestra.

Ivan Monighetti, também nascido na Rússia mas com família em parte ocidental como o sobrenome entrega, atualmente vive na Suíça. Já Lubimov continua morando na Rússia, onde teve um recital com obras de Schubert e Silvestrov interrompido pela polícia. Sobre Monighetti, o violoncelista Mstislav Rostropovitch costumava dizer: “é um de meus alunos favoritos. Tendo conduzido a orquestra sua gravação dos concertos de Tishchenko e de Boris Tchaikovsky, eu não pude evitar o orgulho por meu notável pupilo.” A sonata para violoncelo e piano de Silvestrov, de 1983, foi dedicada a Monighetti, assim como a 2ª sonata para piano foi dedicada a Lubimov.

Hoje os países de Lubimov e de Silvestrov estão em guerra. Vamos nos permitir ouvir essa arte profunda e multifacetada que fazem Lubimov e Monighetti com as partituras de Silvestrov, sem fazer comentários tratando uma carnificina humana como se fosse uma partida de futebol? Vamos nos permitir ouvir com atenção as sensações causadas pelo piano e pelo violoncelo, sem pensamentos pré-concebidos sobre nações e outras abstrações? Será que conseguimos não nos rebaixar ao nível que esperam da gente? Sem arte, não há esperança.

Valentin Silvestrov (1937):
1. Sonate N° 2: Moderato stringendo (17:00) (1975)
2. Sonate N° 3: Preludio – Fuga – Postludio (15:27) (1979)
3-4 Sonate N° 1: Moderato, con molto attenzione – Andantino (16:21) (1972)
5. Sonate pour Violoncelle et Piano: Andante – Allegro vivace – Animato dolce – Allegro vivace (20:40) (1983)

Piano – Alexei Lubimov
Violoncello – Ivan Monighetti
Recorded 14-18/01/1991: Salle de l’Arsenal de Metz, France

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – FLAC

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – mp3 320kbps

Alexei Lubimov

Pleyel

Alexander Scriabin (1872-1915): Estudos, Prelúdios, Poemas, Sonatas 9-10 para piano (Sofronitsky, Gilels)

Edição ricamente ornamentada de algumas obras curtas de Scriabin em Leipzig, 1925

“A arte é um vinho maravilhoso.”
Alexander Scriabin, citado por Boris de Schloezer

Hoje em dia a música de Scriabin faz parte do repertório de pianistas de várias origens e estilos: aqui no blog já tivemos a obra do russo por Marc-André Hamelin, Stephen Coombs, Valentina Lisitsa, Yuja Wang, Martha Argerich, Nelson Freire… Mas em meados do século passado, aquele compositor era uma especialidade dos soviéticos e russos emigrados, com bem poucos pianistas de outros países se aventurando em suas obras: uma das raras exceções era o alemão Walter Gieseking.

Hoje, então, vamos trazer dois dos grandes russos que se tornaram referência na interpretação de Scriabin. Além da relevância pela arte pianística, selecionei esses dois discos ao vivo por estarem entre as gravações com melhor qualidade e menos ruído.

Vladimir Sofronitsky (São Petersburgo, 1901 – Moscou 1961) foi colega de classe de Dmitri Shostakovitch, e de Elena Scriabina, a filha mais velha de Scriabin, com quem ele se casaria em 1920. Aliás Elena, já viúva, aparece no documentário Horowitz in Moscow, de 1986

Por sua vez, Emil Gilels (Odessa, 1916 – Moscou, 1985) foi um dos maiores intérpretes de Beethoven de sua geração, mas também tinha algumas obras de Scriabin – estudos e sonatas do jovem Scriabin e os últimos prelúdios, op.74, compostos em 1914 – sempre reaparecendo nos seus recitais, como esse de 1980 diante de um público inglês que provavelmente conhecia pouco sobre aquele compositor.

Sviatoslav Richter e Emil Gilels viam Sofronitsky como um importante mentor. Uma vez, em estado alcoolizado, Sofronitsky teria dito que Richter era um gênio. Em troca, Richter brindou e disse que Sofronitsky era um deus.

Abaixo, a tradução de dois textos sobre Scriabin, um de um escritor francês e o outro de uma pianista russa:

Além de três sinfonias, dois poemas sinfônicos, um concerto e das Sonatas nº 1 e nº 3, todas as outras obras de Scriabin não chegam a quinze minutos de duração… Além disso, a maior parte das suas cerca de duzentas peças para piano – como Chopin, Scriabin escreverá abundantemente para piano – não duram mais do que dois ou três minutos. Se a música de muitos de seus contemporâneos é prolixa, Scriabin age ao contrário, obcecado pela economia de meios e pela densidade máxima a ser dada ao material musical. Uma lição também aprendida com Chopin.

Assim como para o músico polonês, o piano de Scriabin é um mundo fechado e autossuficiente, onde ele respira livremente. Chopin e sua profunda influência – Scriabin retomará grande parte de seus gêneros, prelúdios, estudos, impromptus, mazurkas, noturnos – muitas vezes nos fazem esquecer sua verdadeira personalidade, essa espécie de graça lânguida e sonhadora que se afirma no famoso Estudo em dó sustenido menor op. 2, composto na adolescência. Scriabin, de fato, prolonga Chopin mais do que o segue. É surpreendente que um gênio tão precoce siga por um tempo os passos de outro? O contrário seria impensável quando conhecemos o alcance infinito do universo harmônico de Chopin, para não falar de sua inigualável arte pianística.

Os retratos fotográficos que temos de Scriabin dão uma imagem dele semelhante à sua música: orgulhoso, altivo, encantador, elegante, fino, misterioso, assertivo, nobre, distinto, estranho, singular, luminoso, surpreendente, exaltado…

(Texto de Jean-Yves Clément)

Como é o estilo de Scriabin? É uma pergunta difícil de se responder. Há alguns exemplos. Por exemplo, Vladimir Sofronitsky era um magnífico pianista. Ele era um amigo da família de Scriabin e tocava com frequência na sua casa. Mas Scriabin em suas interpretações é o seu próprio Scriabin, e o mesmo vale para outros pianistas como Horowitz e Neuhaus…

Leonid Sabaneyev conta que uma vez, quando ele assistia a um concerto com Tatiana Schloezes, esposa de Scriabin, eles descobriram um jovem pisnista cujo estilo lembrava o do compositor. Impressionados, eles falaram a respeito com Scriabin. Mas este não compartilhou do entusiasmo, ele não buscava formar uma escola. Ele era único.

O rubato de Scriabin é incomparável. É necessário sentir o ritmo metronômico, mas dentro de um rubato que é impossível de capturar porque ele foge e nunca chega a uma vitória lógica, mas sempre se curva inesperadamente.

(Texto de Ludmila Berlinskaya)

Vladimir Sofronitsky: Scriabin Recital
1-1 Étude in F sharp minor, Op. 8 No. 2
1-2 Étude in B major, Op. 8 No. 4
1-3 Étude in E major, Op. 8 No. 5
1-4 Étude in A flat major, Op. 8 No. 8
1-5 Étude in G sharp minor, Op. 8 No. 9
1-6 Étude in B flat minor, Op. 8 No. 11
1-7 Étude in F sharp major, Op. 42 No. 3
1-8 Fantaisie in B minor, Op. 28
1-9 Prélude in C major, Op. 13 No. 1
1-10 Prélude in A minor, Op. 11 No. 2
1-11 Prélude in G major, Op. 13 No. 3
1-12 Prélude in E minor, Op. 11 No. 4
1-13 Prélude in D major, Op. 11 No. 5
1-14 Prélude in B minor, Op. 13 No. 6
1-15 Prélude in A major, Op. 15 No. 1
1-16 Prélude in C sharp minor, Op. 9 No. 1 (for left hand)
1-17 Prélude in E major, Op. 11 No. 9
1-18 Prélude in C sharp minor, Op. 11 No. 10
1-19 Prélude in C sharp minor, Op. 22 No. 2
1-20 Prélude in B major, Op. 22 No. 3
1-21 Prélude in G sharp minor, Op. 16 No. 2
1-22 Prélude in G flat major, Op. 16 No. 3
1-23 Prélude in E flat minor, Op. 16 No. 4
1-24 Prélude in F sharp major, Op. 16 No. 5
1-25 Prélude in D flat major, Op. 11 No. 15
1-26 rélude in B flat minor, Op. 11 No. 16
1-27 Prélude in A flat major, Op. 11 No. 17
1-28 Prélude in E flat major, Op. 11 No. 19
1-29 Prélude in C minor, Op. 11 No. 20
1-30 Prélude in B flat major, Op. 11 No. 21
1-31 Prélude in B flat major, Op. 17 No. 6
1-32 Prélude in G minor, Op. 11 No. 22
1-33 Prélude in F major, Op. 11 No. 23
1-34 Prélude in D minor, Op. 11 No. 24
2-1 Poème, Op. 52 No. 1
2-2 Poème, Op. 59 No. 1
2-3 Poème ailé, Op. 51 No. 3
2-4 Poème languide, Op. 52 No. 3
2-5 Masque, Op. 63 No. 1 (Poème)
2-6 Poème satanique, Op. 36
2-7 Poème in D major, Op. 32 No. 2
2-8 Poème in F sharp major, Op. 32 No. 1
2-9 Poème, Op. 69 No. 1
2-10 Poème, Op. 69 No. 2
2-11 Piano Sonata No. 9, Op. 68
2-12 Flammes sombres, Op. 73 No. 2 (Danse)
2-13 Guirlandes, Op. 73 No. 1 (Danse)
2-14 Poème, Op. 71 No. 1
2-15 Poème, Op. 71 No. 2
2-16 Piano Sonata No. 10, Op. 70
2-17 Fragilité, Op. 51 No. 1
2-18 Feuillet d’Album, Op. 45 No. 1
2-19 Mazurka in E minor, Op. 25 No. 3
2-20 Étude in C sharp minor, Op. 42 No. 5
2-21 Mazurka in F sharp major, Op. 40 No. 2
2-22 Étude in D sharp minor, Op. 8 No. 12

Vladimir Sofronitsky, piano (Recorded live, 1959-1960, Moscow)

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – Sofronitsky (mp3 320kbps)

Emil Gilels: Beethoven/Scriabin/Ravel/Poulenc Recital
1-4. Beethoven: Piano Sonata No.7 In D Major, Op.10 No.3
5. Beethoven: Eroica Variations, Op. 35
6-7. Scriabin: Etude No.2 In F Sharp Minor, Op.8, Etude No.1 In C Sharp Minor, Op.2
8-12. Scriabin: Five Preludes, Op.74
13-14. Ravel: Jeux D’Eau, Alborada del Gracioso
15. Poulenc: Pastourelle

Emil Gilels, piano (Recorded live: Cheltenham Town Hall, 20 November 1980. Issued as BBCL 4250-2 – BBC Legends)

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – Gilels (mp3 320kbps)

The Russian composer Scriabin, whose piano pieces I knew well, arrived in Paris for a concert of his own compositions. (…) “Come have a cup of tea with me,” he said amiably, and we went to the nearby Café de la Paix and ordered some tea and cakes. Scriabin was short and slender, with wavy dark blond hair, a carefully trimmed pointed beard not unlike Nikisch’s, and cold brown eyes which seemed to ignore everything around him.
“Who is your favourite composer?” he asked with the condescending smile of the great master who knows the answer. When I answered without hesitation, “Brahms“, he banged his fist on the table. “What, what?” he screamed. “How can you like this terrible composer and me at the same time? When I was your age I was a Chopinist, later I became a Wagnerite, but now I can only be a Scriabinist!” And, quite enraged, he took his hat and ran out of the café, leaving me stunned by this scene and with the bill to pay.

– Arthur Rubinstein, My Young Years (1973, p.164-165)

Retrato que Scriabin autografou em uma visita a Paris em 1907, talvez a mesma ocasião em que conheceu Rubinstein

Pleyel

.: interlúdio :. Gilberto Gil ao vivo na USP 1973 (bootleg)

As postagens deste blog são agendadas com alguns dias de antecedência. Após o épico dia 30 de outubro de 2022, não teremos palavras nossas. Deixo vocês com as palavras de Gilberto Gil há quase 50 anos. Naquela época muito distante, a polícia torturava e matava gente. Dois meses após a morte de um estudante da USP, o clima não era leve. Gilberto Gil foi procurado pelos estudantes para tocar de improviso, de graça, antes do show que faria à noite em um teatro paulista. Só com voz e violão, a maneira de João Gilberto e Jorge Ben, Gilberto Gil se soltava mais do que com banda, incorporava várias vozes, inclusive aquelas que estavam lá pra calá-lo. Essa edição não oficial (bootleg) inclui, além da música, as longas conversas com o público. Adicionamos algumas cores abaixo para diferenciar as diferentes vozes/personagens.

São Paulo, 26 de maio de 1973

[Gilberto Gil no bis, quando canta Cálice pela 2ª vez após muitos pedidos da plateia:]

– Pai, afasta de mim esse cálice
Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Deixa eu lançar um grito desumano

[Outra voz:] – Cale-se!

Que é uma maneira de ser escutado

–\\–

[Em ‘Oriente’, outra voz: canto sem palavras, cheio de intervalos microtonais como os de povos orientais que Gil certamente conheceu no exílio em Londres, do qual voltou em 72.]

[Voz de Gilberto Gil:] – Esse canto é o mesmo na Arábia Saudita. Nas terra maldita do Nordeste é o mesmo na Arábia Saudita.

[Terceira voz, séria:] – Cala a boca, rapaz.
Ah, esse cara já tá…
Acaba com isso, rapaz
Ah… você aí com esse negócio desse nhanhanha…
[…]
Que cara, que babaca, olha que palhaço… fica com esse nhénhénhé, tem nada do que ver, rapaz, isso aqui é o Brasil, rapaz, Ocidente. Civilização Ocidental, rapaz, industrial, tem nada que ver com isso não! Olha aí, rapaz, o som da gente é outro!
[….] Esse cara é doido mermo…
Vai pra Índia, entendeu… Isso aqui não é… Isso aqui é lugar de produtividade.

[Voz de Gilberto Gil:] – Mas na verdade é o mermo, o mermo lamento, o mermo canto de sofrimento.
Lá nas terra maldita do Norte
Nas terra maldita na Arábia Saudita

[Outra voz: canto sem palavras]

[Voz de Gilberto Gil:] – Se oriente, rapaz…

–\\–

[Após cantar Objeto sim, objeto não]

– Lendas e profecias, é a mesma coisa. As lendas têm caráter profético, elas muitas vezes podem já estar esgotadas no seu sentido profético, ou seja, são relativas a coisas já ocorridas, mas… outras vezes não, outras vezes as lendas são elas, em si mesmo, uma forma de ocultação, ou seja, uma forma [que] Nostradamus usava, pra não ser degolado como Giordano Bruno, pela fogueira da Inquisição, ele pegou e as coisas que ele achava que ele sabia, […] botou tudo em versos ocultos ali, e agora as pessoas pegam…

–\\–

– Pera aí que tem um rapaz aqui que quer fazer uma pergunta?

[Alguém da plateia, voz quase inaudível: … qual o papel do compositor?]

– É um problema muito pessoal, rapaz, depende muito… você quer dizer o seguinte, que existe um sistema, no qual as pessoas vivem, no qual existe a lei, no qual existem as barreiras todas, não é isso? E que o artista se vê na sua criação diante desses problemas todos, no Brasil se chama Censura, e que vai determinar o que é que é, no final é o que vai fazer a seleção, vai dizer qual é a música, qual é a arte que convém ao povo, e etc. etc. Quer dizer, mas isso é um critério pessoal, é um critério deles, quer dizer, não abrange de forma nenhuma a totalidade das coisas, haja vista no Brasil as manifestações que a gente tem frequentemente contrárias a esse tipo de atitude castrativa diante da música. Agora, isso o quê que é, isso é um problema da nossa sociedade, quer dizer, é uma das insinuações do sistema da forma que ele está hoje, no mundo, e a gente tem que enfrentar. […] procuro me comportar, sem me trair, cê tá entendendo? Quer dizer, eu procuro fazer o que eu acho que posso fazer, o que devo fazer, e tudo mais, e eu acho que o comportamento de cada um, que foi o que você perguntou no fim, “O quê que o compositor devia fazer, como ele devia se comportar”, eu não acho que deva haver padrão, cê tá entendendo? Um método, uma cartilha, uma regra para o comportamento do compositor, porque aí seria a merma coisa, seria fazer também uma censura né, do lado de cá, dizer: não, só o comportamento desse tipo é que é válido contra uma barreira qualquer, e acho que não… tem a corrida de obstáculos, o cara vem e pula por cima, o outro passa por baixo… [risos]

Gilberto Gil ao vivo na Escola Politécnica da USP, 1973:
Oriente (Gilberto Gil)
Apresentação (Gilberto Gil)
Chiclete Com Banana (Gordurinha/Almira Castilho)
Minha Nega na Janela (Germano Mathias/Doca)
Senhor Delegado (Antoninho Lopes/Jaú)
Eu Quero um Samba (Haroldo Barbosa/Janet de Almeida)
Meio de Campo (Gilberto Gil)
Cálice (Chico Buarque/Gilberto Gil)
O Sonho Acabou (Gilberto Gil)
Ladeira da Preguiça (Gilberto Gil)
Expresso 2222 (Gilberto Gil)
Procissão (Gilberto Gil)
Domingo No Parque (Gilberto Gil)
Umeboshi (Gilberto Gil)
Objeto Sim, Objeto Não (Gilberto Gil)
Ele e Eu (Gilberto Gil)
Duplo Sentido (Gilberto Gil)
Cidade do Salvador (Gilberto Gil)
Iansã (Gilberto Gil/Caetano Veloso)
Eu Só Quero um Xodó (Dominguinhos/Anastácia)
Edith Cooper (Gilberto Gil)
Back In Bahia (Gilberto Gil)
Filhos de Gandhi (Gilberto Gil) [inclui: Afoxé (Dorival Caymmi) e Oração de Mãe Menininha (Dorival Caymmi)]
Preciso Aprender a Só Ser (Gilberto Gil)
Cálice (Chico Buarque/Gilberto Gil)

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE

Em Buenos Aires. Qualquer semelhança é mera coincidência…

Pleyel

Frédéric Chopin (1810-1849): Valsas (Dinu Lipatti)

A pianista brasileira Guiomar Novaes costumava dizer que Chopin exige tudo do intérprete, “que precisa tocá-lo com cabeça, coração, com o pé, com a mão, com tudo”. Entre outras grandes gravações de Novaes (só de Chopin: Concertos, Noturnos, Mazurkas, Sonatas…), são também notáveis as 15 valsas que ela gravou, incluindo 13 publicadas em vida pelo polonês e duas póstumas. Nikita Magaloff, Claudio Arrau e Dang Thai Son gravaram 19 valsas de Chopin, pois incluíram um total de seis valsas póstumas. Mais o mais comum é que a coleção de valsas “principais” fique restrita a 14, foram essas as que gravaram, entre outros, A. Rubinstein, A.G. Barbosa, M.J. Pires, entre tantos outros… e Lipatti.

E aqui eu vou me contradizer: sempre tenho defendido em minhas postagens a importância de se conhecer várias interpretações das grandes obras, para percebermos as nuances e diferentes possibilidades… Mas com essas valsas, vocês vão me perdoar, mas e tenho dificuldades para ouvir qualquer um que não seja o pianista romeno Dinu Lipatti (1917-1950).

A forma como Lipatti executa as valsas de Chopin coloca a melancolia do compositor polonês sempre em segundo plano, como um sentimento presente mas sublimado pela dança. A vida é dura, as doenças, a estupidez e a maldade são dados da realidade, e na música de Chopin não temos a profunda religiosidade de Bach ou Messiaen, não temos tanta certeza da presença de um ser supremo para livrar-nos do Mal, parece que a energia deve ser buscada no fundo de nós mesmos, como mostra Lipatti ao interpretar Chopin: mesmo nas valsas em tom menor, há uma alegria interior, um agridoce e uma vontade irresistível de dançar.

E ao mesmo tempo, estamos falando de gravações do fim da curta vida de um pianista diagnosticado com uma grave leucemia: eu consigo imaginar Lipatti falando o seguinte para a plateia de seu último recital em Besançon, onde ele tocou 13 valsas de Chopin: “não sei se vou durar muito, mas sobretudo não parem de dançar!”

As Valsas de Chopin foram compostas ao longo de quase vinte anos, ao contrário dos Prelúdios ou dos Estudos que foram pensados e publicados em grupos grandes e coesos, com uma ordem bem definida, alternando tons maiores e menores. Por isso, as valsas se prestam bem ao tipo de ordenamento pessoal que fez Lipatti, começando com algumas das mais calmas e sofisticadas e terminando com as duas primeiras a serem publicadas, as mais brilhantes e alegres. Se um pianista fosse seguir a ordem cronológica estrita, seria preciso começar com aquelas que foram publicadas postumamente, algumas das quais ele compôs aos 19-20 anos e não enviou para editoras, apenas dedicando versões manuscritas a amigos e sobretudo amigas, às vezes mais do que amizades… como a “Valsa do adeus” op. posth. 69 nº 1, dedicada primeiro a Maria Wodzińska, polonesa autora do retrato abaixo, e de quem Chopin foi noivo. A família de Wodzińska impediu o casamento e, talvez por isso, Chopin dedicou anos depois a mesma valsa – em manuscritos – a Eliza Peruzzi e a Charlotte de Rothschild. Ambas foram suas alunas: Peruzzi tornou-se um grande nome do piano nos salões de Paris: em 1843 e 44, organizou soirées em que ela e Chopin tocaram os concertos do polonês em versão para dois pianos. A riquíssima Mademoiselle de Rothschild também dava algumas das recepções mais cotadas entre os intelectuais de Paris, recebendo em sua casa artistas como Chopin, Honoré de Balzac, Eugène Delacroix e Heinrich Heine. No “tempo perdido” de Proust, temos descrições de alguns desses salões parisienses sempre comandados por mulheres ricas, que bancavam o jantar e os drinques, reunindo cuidadosamente, como jardineiras, uma flora diversificada de artistas, aristocratas endividados, contadores de piadas, burgueses de gosto conservador e raros burgueses de gosto mais exótico.

Frédéric Chopin (1810-1849):
14 Valses

Dinu Lipatti, piano
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE

Maria Wodzińska foi a autora desta aquarela, em 1835, ano da Valsa op. 69 nº 1

E para completarmos o momento “túnel do tempo”, trago um outro intérprete da tradição francesa de se tocar Chopin, tradição que inclui também os imensos nomes já citados de Novaes e Magaloff, que estudaram, ambos, com o francês Isidor Philipp. Já Samson François (1924-1970) e Dinu Lipatti, que aliás eram da mesma geração, ambos estudaram com Alfred Cortot. Chopin viveu seus últimos 18 anos em Paris, então tanto Philipp como Cortot conheceram pessoas que conheceram Chopin, se inscrevendo em uma tradição oral e performática de ideias sobre como a música de Chopin devia soar. Nos últimos anos, com o famoso Concurso Chopin de Varsóvia, tem sido mais destacado o lado polonês do compositor, mas não tenho dúvidas de que a metade francesa por adoção é tão importante quanto a metade polonesa de berço.

As mazurkas por Samson François, assim como as valsas por Dinu Lipatti, são sobretudo miniaturas musicais dançantes: não temos aqui a seriedade das interpretações de Michelangeli. O tempo rubato às vezes pode soar um pouco exagerado, como é o caso também nas gravações de Cortot, mas em geral me agrada bastante a forma como François vai se expressando por meio de fraseados elegantes e dançantes. Embora não me faça esquecer totalmente as outras gravações como acontece quando eu ouço um único segundo de Lipatti.

Frédéric Chopin (1810-1849):
Sonates nº 2 & 3
51 Mazurkas

Samson François, piano
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE

Frédéric Chopin (desenho a lápis por George Sand, 1841)

Pleyel