Toscanini faz um La Mer grandioso, mas apressa demais os Noturnos. Ansermet tem ideias geniais mas nem sempre sua orquestra está à altura. Haitink com a Orquestra do Concertgebouw de Amsterdam, pelo contrário, não erram jamais em suas gravações de Debussy. Onde é preciso suavidade, mistério, eles fazem isso com um colorido instrumental de primeira. E onde é preciso suor e potência, ou brilho e desejo, enfim, nada fica faltando.
De forma que, entre as gravações quase completas das obras de Debussy, esta aqui de Haitink é sempre uma das mais lembradas. É verdade que Jean Martinon gravou em Paris uma coleção maior, que hoje cabe em 4 CDs pois inclui obras de juventude (Fantasia para piano e orquestra…) e orquestrações de amigos de Debussy (Ravel, Koechlin, Büsser…) Então Martinon e Haitink dividem o pódio. É tudo tão bem feito que não vou mais me arriscar a comentar. Seguem abaixo as notas do encarte do disco.
Pianista de formação, Debussy poderia se tornar um segundo Chopin, compondo quase exclusivamente para o piano, se não fosse sua sensibilidade exacerbada para as sonoridades mais raras, inclusive ao piano, o que o levaria a escrever para orquestra de uma maneira tão pessoal, buscando para cada instrumento o colorido mais incomum. Para o compositor Pierre Lalo – que hoje tem uma ou duas obras ainda lembradas, mas naquele tempo se achava em posição de dar lições ao compositor quatro anos mais velho que ele – isso era um defeito. Lalo escreveu em 1910, sobre Iberia: “Que abuso das percussões e madeiras, esses oboés e clarinetes e seu eterno som nasal! Esses metais sempre fechados [com surdina], esses instrumentos, nenhum deles empregado na sua função verdadeira e seu timbre normal, mas que sempre parecem rir com afetação, com uma voz de palhaço!”
Embora o objetivo fosse falar mal, a crônica de Lalo descreve bem o gosto de Debussy pelas madeiras, enquanto ele evita sempre fazer berrar os metais, defeito que ele via nos wagnerianos tão detestados, como Mahler. Ao mesmo tempo, as percussões deviam trazer alguns barulhos à memória (ressaca em La Mer) mais do que batidas fortes.
A orquestra de Debussy tem origem nos hábitos do fim do século XIX, mas com a presença de um timbre particular, como os címbalos antigos no fim do Prelúdio ao entardecer de um fauno, o coro feminino das Sereias (Noturnos) ou o oboé d’amour de Gigues. Uma invenção contínua sobre os timbres condiciona não somente a orquestração, mas também a forma, por assim dizer sui generis. Seu objetivo é reproduzir as atmosferas da vida e do mundo ao seu redor, transpostas com uma sensibilidade extrema para o plano musical, o que o compositor nomeava “a carne nua da emoção”. Não poderíamos definir melhor o conteúdo do “Prelúdio”, estreado triunfalmente em 22 de dezembro de 1894 e o único vestígio que sobrou de um tríptico planejado sobre “Églogue” do poeta Mallarmé (1842-1898), que evoca os desejos eróticos de um pequeno deus dos rebanhos no calor de uma tarde siciliana, assim como sua comunhão íntima com a paisagem. Para Ravel, era a obra musical mais perfeita jamais composta, tal era a ausência de “ligações” entre as seções.
A ideia de tríptico domina também as obras seguintes: os Três Noturnos, finalizados em 1899, concebidos inicialmente como “Cenas ao crepúsculo” para violino e orquestra. La Mer, estreado em 1905 em um ambiente de incompreensão geral, se assemelha mais a uma sinfonia edificada segundo os princípios de Franck, faltando somente a seção lenta: se Debussy não nos presenteou com um estático “luar no mar” (“clair de lune en mer”) como o fizeram outros, e ele mesmo na precedente Sirènes, é porque ele encontrou ali no elemento marinho uma maneira de empurrar a orquestra para o instante fugidio. Um dos grandes méritos dessa obra maior do século XX é associar o sentimento e a emoção do Prelúdio com a visão do universo explorada nos Noturnos, mas com uma objetividade mais explícita, pois para Debussy, não se tratava tanto de ver o mar quanto de recolher dele uma ambiência efetiva graças às sensações diversas provocadas pela música: gritos de gaivotas, ondas, vento violento ou gosto salgado.
E finalmente Images (1905-1912, não confundir com as Images para piano, da mesma época), tríptico que tem no meio um outro tríptico dedicado à Espanha. Para o compositor Manuel de Falla, Iberia “ensinou aos compositores espanhóis formas mais sutis de usarem seu próprio folclore”, embora a obra não cite nenhuma melodia espanhola. Já o movimento final de Images, “Rondes de printemps” (algo como cirandas de primavera), cita “Nous n’irons plus au bois”, canção infantil que Debussy dizia prefirir mil vezes ás Valquírias de Wagner. Em 1904, por encomenda da firma Pleyel, ele compôs Dança sagrada e dança profana para harpa, com o acompanhamento suave dedicado somente às cordas.
Jeux, sua última peça orquestral, foi escrita rapidamente, no verão de 1912, para os Ballets Russes, que já haviam estreado em Paris o Pássaro de Fogo de Stravinsky (1910), obra muito admirada por Debussy. Aqui, o colorido instrumental é mais do que nunca um fator predominante, com uma música elusiva, misteriosa, não-narrativa, não-cíclica, avançando de um momento para outro sem recapitulação. Jeux se manteve como uma das obras mais importantes para os vanguardistas do século XX, mas o balé foi um fracasso de público, o que não chega a ser uma surpresa, pois essa última obra-prima de Debussy, sem os elementos necessários para um sucesso teatral, tem a clareza luminosa e indecifrável de um sonho.
(Compilado das notas por Max Harrison e Bruno Gousset)
Claude Debussy (1862-1918):
CD1
01 – Berceuse Héroïque
Images pour Orchestre:
02 – I. Gigues
03-05 – II. Iberia: Par les rues et par les chemins; Les parfums de la nuit; Le Matin d’un jour de fête
06 – III. Rondes de Printemps
07 – Jeux (poème dansé)
08 – Marche Ecossaise
CD2
01 – Prélude à l’après-midi d’un faune
Nocturnes
02 – I. Nuages
03 – II. Fêtes
04 – III. Sirènes
La Mer
05 – I. De l’aube à midi sur la mer
06 – II. Jeux de vagues
07 – III. Dialogue du vent et de la mer
08 – Rapsodie pour orchestre avec clarinette principale
09 – Danses pour Harpe et Orchestre à Cordes – I. Danse Sacrée
10 – Danses pour Harpe et Orchestre à Cordes II. Danse Profane
Bernard Haitink
Eduard van Beinum (CD1 Track 1)
Royal Concertgebouw Orchestra
Recordings: 1959 (Beinum), 1976, 1977, 1979 (Haitink)
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – MP3 320kbps
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Bônus:
Décadas depois de gravar Debussy no Concertgebouw de Amsterdam, Haitink gravaria em Paris a única ópera do compositor francês: Pelléas et Mélisande.
Gravação ao vivo no ano 2000, com uma sonoridade muito delicada, apropriada a esta ópera cheia de personagens misteriosos que não sabemos bem de onde vêm nem para onde vão. Uma ópera com florestas sombrias, fontes miraculosas e muitas pérolas orquestrais que Haitink e seus músicos e cantores apresentam sem a grandiosidade de Karajan/Berlim e Abbado/Viena ou a clareza vocal e orquestral de um regente francês que daqui a alguns dias aparecerá aqui no blog com aquela que meu colega Alex DeLarge considerou a maior gravação desta ópera (e eu concordo… daqui a uns dias neste mesmo canal!) Mas essa gravação que trago hoje é forte concorrente ao 2º ou 3º lugar pela sutileza e refinamento das partes orquestrais. Ao mesmo tempo, por ser ao vivo, temos ruídos da vida real como o virar de páginas da partitura…
Claude Debussy:
Pelléas et Mélisande
Orchestre National de France, direção Bernard Haitink
Solistas: Wolfgang Holzmair (Pelléas) – Anne Sofie von Otter (Mélisande) – Laurent Naouri (Golaud) – Alain Vernhes (Arkel) – Hanna Schaer (Geneviève) – Florence Couderc (Yniold) – Jérôme Varnier (Le Berger, Le Médecin)
Choeur de Radio France
Live Recording: mars 2000, Théatre des Champs-Élysees, Paris, France
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE (mp3 320kbps)
Pleyel