Apesar de serem pai e dois filhos, é quase como se nesse disco houvesse três gerações de compositores. Carl Philipp Emanuel era filho de Maria Barbara, a primeira mulher de Bach e tinha 21 anos quando Johann Christian nasceu. Nesta época, Emanuel já era músico formado.
Johann Christian era filho de Anna Magdalena, estudou com seu pai até a morte deste. A partir de então, o jovem de 15 anos foi morar e trabalhar com Carl Philipp Emanuel.
Posteriormente Johann Christian mudou-se para a Itália, em busca de se aperfeiçoar no estilo italiano. Viveu em Bolonha e em 1760 tornou-se organista da Catedral de Milão. Em 1762 viajou para Londres para apresentação de óperas e acabou transferindo-se para lá. Tonou-se empresário organizando concertos e associou-se a Carl Friedrich Abel.
John Bach
Carl Philipp Emanuel trabalhou em Berlim e depois em Hamburgo, onde substituiu seu padrinho, Georg Philipp Telemann. Assim como todos os seus irmãos, Emanuel e Johann Christian estudaram com Johann Sebastian, mas seguiram estilos diferentes, uma vez que o barroco, estilo que Sebastian elevara à perfeição, começava a dar lugar na preferência das pessoas ao estilo clássico, que eles ajudaram a estabelecer. C.P. Emanuel era conhecido como o Bach de Berlim e, depois, Bach de Hamburgo. J. Christian tornou-se John e era o Bach de Londres. Johann Christian teve grande influência na formação musical de Mozart.
Os concertos deste disco são típicos exemplos de seus estilos. O Concerto de Emanuel tem súbitas mudanças de andamento, que representam sua abordagem pessoal: ‘um estilo expressivo, geralmente turbulento, conhecido como empfindsamer stil – estilo sensível, em que aplicava os princípios da retórica e drama às estruturas musicais.
Os dois concertos de Johann Christian fazem parte de um conjunto de seis e estão bem próximos aos concertos de juventude de Mozart.
João Sebastião Ribeiro
Para completar o disco, um dos muitos concertos que Johann Sebastian adaptou para cravo, cordas e baixo contínuo, usando movimentos de concertos para outros instrumentos ou trechos de suas cantatas. Impossível imaginar que não tenham sido criados já como concertos para algum instrumento de tecla, tão o maravilhoso era o dom musical do genial Sebastian.
Para nos brindar com este lindo programa musical, temos como solista a pianista Anastasia Injushina, que começou seus estudos aos quatro anos, em São Petersburgo e aos dez anos já se apresentava em concertos. Em 1991 mudou-se para a Finlândia onde continuou a estudar e estabeleceu sua carreira musical.
Anastasia Injushina
Para acompanha-la, temos a excelente Hamburger Camerata, regida por Ralf Gothóni, que eu conhecia por suas gravações como pianista. Isto tudo com produção esmerada do selo finlandês Ondine.
Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788)
Concerto para Piano em ré maior, Wq. 43 / 2 (H472)
Allegro di molto
Andante
Allegretto
Johann Christian Bach (1735-1782)
Concerto para Piano em ré maior, Op. 7, No. 3, W. C57
Allegro con spirito
Rondeau: Allegretto
Concerto para Piano em mi bemol maior, Op. 7, No. 5 (W C59)
Anastasia dando uma entrevista para o canal do YouTube do PQP Bach…
The Hamburg Camerata string are in sparkling form. Anastasia Injushina’s articulation is admirably versatile, though ornaments tend to accent, rather than simply decorate, the slow movement’s beautifully languid line…Injushina captures the elegance of fluid scales and pert ornaments. [BBC Music Magazine 2013]
This music is an apt vehicle for Anastasia Injushina’s limpid pianistic facility and taste, but the touches of individuality in the writing and in the work’s significance in the development of the keyboard concerto are outweighed by reams of stock, note-spinning gestures. [Gramophone 2013]
Eis um agradabilíssimo CD para ser ouvido sem outro compromisso que não seja o prazer auditivo. Um conjunto de músicos excepcionais tocando Mozart, quem não deseja um começo de manhã desses? Mozart compôs estes pouco comuns Quartetos para Piano em um momento de pleno fervor criativo, quando estava imerso na composição das suas ‘Bodas de Fígaro’, ou seja, sua cabeça estava a mil por hora, com certeza. E curioso é o tratamento que ele dá ao piano, quase concertante. O acompanhamento também tem um tratamento diferenciado do que dava aos seus Quartetos para Corda tradicionais. Outra curiosidade é que, como seus concertos para piano, esses Quartetos tem apenas três movimentos, ao contrário de outras obras de câmara que trazem quatro movimentos. Mozart inovando, como sempre. Esta gravação é um prazer total também pelo fato dos músicos e do próprio PBS (para os íntimos) se utilizarem de instrumentos de época, nos trazendo uma belíssima possibilidade de interpretação historicamente informada. O instrumento que o pianista utiliza é um modelo vienense construído em 1790, ou seja, bem próximo ao modelo que Mozart utilizava. Para as devidas comparações sugiro ouvirem o belíssimo registro que Rene Denon nos trouxe há algumas semanas (postagem original de 2020), com o Paul Lewis e o Leopold String Quartets, onde temos instrumentos modernos. As mesmas obras com interpretações bem diferentes. Mas vamos ao que viemos, pois o tempo passa, o tempo voa.
Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791): Quartetos para Piano – Festetics Quartet & Paul Badura-Skoda
01. Piano Quartet in G minor, K478 I. Allegro
02. Piano Quartet in G minor, K478 II. Andante
03. Piano Quartet in G minor, K478 III. Rondeau
04. Piano Quartet in E-flat major, K 493 I. Allegro
05. Piano Quartet in E-flat major, K 493 II. Larghetto
06. Piano Quartet in E-flat major, K 493 III. Allegretto
Paul Badura- Skoda – Pianoforte
Festetics Quartet:
Itsván Kertész – Violino
Peter Ligéti – Viola
Reszö Pertorini – Violoncelo
Bem mais Blue do que Dog, este seu Blue Dog foi acometido por uma belíssima crise de tendinite nos últimos tempos. Parcialmente imobilizado, venho mantendo distância do computador; por sorte ainda sobrou a mão esquerda para apertar o botão de play, o que me tem garantido a sanidade. Mas nada temam, que já vou quase novo. Como ainda me recupero, que tal um post papo curto, com alguns dos discos que eu pretendia ter trazido nesse meio tempo?
Human Feel – Galore /2007 [V0]
Comigo, esse foi um daqueles álbuns que a gente pega sem qualquer pretensão, e meia hora depois se pergunta “mas como é que eu não conhecia isso?” Quarteto sem baixo, com dois sax, guitarra e bateria, nesse disco não começa promissor, até que entra a deliciosamente modal Fuss; a hermepascalínica Cat Heaven; a jazz-metálica Improve. Pra além dessas três, que valem o disco, há muita beleza, inclusive cacofônica, pra ser encontrada. download – 90MB
01 Tap Master
02 After the Fact
03 Fuss
04 Cat Heaven
05 Improve
06 Fuck the Development of You
07 Serenade
08 Apch Ro Ha
09 Allegiance
John Zorn / Masada String Trio – Haborym: The Book Of Angels Vol 16 /2010 [V0]
Quem sabe, já clicou no link; quem não sabe, que se aventure pelos sabores judaicos do jazz. Como de praxe, os arranjos de Zorn são fabulosos, e a mixagem é fantástica. download – 78MB
John McLaughlin na guitarra, Jaco Pastorius no bass, e Tony Williams na bateria. Faixas 1 a 5 gravadas em 3 de março de 1979, no Teatro Karl Marx de Havana, Cuba. Faixas 6 a 10 gravadas cinco dias depois, em Nova Iorque. Edição de 2007 da Legacy. Grande abraço. download – 75MB
01 Drum Improvisation (Williams)
02 Dark Prince (McLaughlin)
03 Continuum (Pastorius)
04 Para Oriente (Williams)
05 Are You the One, Are You the One? (McLaughlin)
06 Dark Prince
07 Continuum
08 Para Oriente [alt take one]
09 Para Oriente [alt take two]
10 Para Oriente
Boa audição! Blue Dog
.oOo.
PQP acaba de ouvir os 3 CDs e vai meter sua colher torta: o primeiro é bom, o segundo é esplêndido e o terceiro são três craques com o mesmo resultado de Edmundo, Romário e Sávio no ataque do Flamengo. Ou seja, achei fraquíssimo. Mas é apenas a minha opinião, não vá atrás.
Quanto tempo você demora até perceber que um disco é bom? Há discos que você sabe na hora, e este é um deles. Bom não, ótimo!
Nikolai Lugansky
Nikolai Lugansky é um pianista virtuose já bem estabelecido, até fiquei surpreso por ser esta a sua estreia no blog. Como é possível adivinha pelo nome, Nikolai nasceu em Moscou e seus pais eram cientistas. Ele aprendeu uma sonata de Beethoven antes mesmo de saber ler música e Tatiana Nikolaieva foi sua professora, entre outros.
Na verdade, ele já gravou duas destas sonatas antes – ‘Ao Luar’ e ‘Appassionata’, para o selo Erato, em 2005. Aliás, ótimo disco, quem sabe dia destes aparece por aqui. Mas este traz a novidade com ele, acaba de ser lançado, e tem a ótima sonata: ‘A Tempestade’, como complemento.
Esta última sonata é a segunda de um conjunto de três, que integram o opus 31 do Ludovico, obras que ele compôs aos 31 anos, às quais ele se referia como um recomeço: Estou trilhando um caminho novo! Creio que ele se referia em particular a esta entre as três, que é cheia de dramáticos contrastes. É claro que a Sonata ‘Ao Luar’, que inicia piano, segue acelerando e termina con fuoco, e a ‘Apassionata’, cujo nome lhe cabe tão bem, recebem aqui interpretações excelentes, como ele já o fizera no disco anterior.
Eu adorei o disco e tenho ouvido o mesmo com frequência. Tanto que decidi postá-lo, para que vocês possam tirar suas conclusões.
Ah, depois de ouvirem a tempestuosa sonata, me digam se a conhecida anedota na qual Beethoven teria enigmaticamente respondido – Leiam A Tempestade, de Shakespeare! – ao ser interpelado sobre o sentido desta obra, é verossímil ou não… Puro Sturm und Drang!
Ludwig van Beethoven (1770 – 1827)
Sonata para Piano No. 14 em dó sustenido menor, Op. 27 No. 2 ‘Ao Luar’
Adagio sostenuto
Allegretto
Presto agitato
Sonata para Piano No. 23 em fá menor, Op. 57 ‘Appassionata’
Allegro assai
Andante con moto
Allegro ma non troppo – Presto
Sonata para Piano No. 17 em ré menor, Op. 31 No. 2 ‘A Tempestade’
Lugansky no Salão dos Espelhos do prédio da Fundação PQP Bach, em POA…
Comentário do Prestomusic: For this second volume of Beethoven sonatas, Nikolai Lugansky goes back in time and selects three milestones in the composer’s stylistic evolution: the ‘Moonlight’, the ‘Tempest’ and the ‘Appassionata’. The Master of Bonn gradually broke with the models he had inherited from the codes of Viennese Classicism in order to give free rein to affect, emotion and Romantic gesture.
With these three works, Beethoven laid the foundations of a free and humanistic art.
Há uma fábula de Esopo sobre a gralha (parente do corvo) que se enfeita com penas caídas dos pavões. Tadinha, achou que se tornaria pavão mas ficou sozinha no mundo. Deixou de ser gralha e não chegou a ser pavão, conseguindo apenas o ódio de umas e o desprezo de outros (Tradução de Monteiro Lobato). Na versão de La Fontaine, o poeta aponta no final que ele está se referindo aos plagiadores, que vão pegando no chão as plumas que outros deixaram cair.
Mas talvez gregos e troianos estivessem ambos errados, talvez a imitação do Outro não seja apenas pensável, mas indispensável. Como nos ensina Viveiros de Castro, a ideia greco-romana-ocidental de cultura projeta uma paisagem de estátuas de mármore, rígidas e fixas, e não de árvores ou qualquer outro ser vivo que muda o tempo todo.
Poucas vezes nos damos conta de que as composições mais famosas de Ernesto Nazareth, como Odeon e Fon-Fon, foram publicadas com o subtítulo “tango” ou “tango brasileiro”. O choro aparece tardiamente. É o tango, esse gênero argentino, que por vias tortas vai servir de nome, um tanto estranhamente utilizado, para a música de Nazareth, que evidentemente não se limita a parodiar o “verdadeiro” tango.
Fon-Fon – 1ª ed.
Há também, neste disco de Nazareth gravado pelo gaúcho Miguel Proença, um “Tango Estilo Milonga”, que se puxarmos bastante os fios das raízes, está no mesmo subsolo da Tonga da Mironga do Kabuletê (Vinicius de Moraes e Toquinho). E há umas valsas, entre elas, “Brejeira”, valsa brasileira extraída do tango Brejeiro, pelo próprio autor (como consta no topo do manuscrito autógrafo). Estima-se que foi composta na década de 1920, provavelmente para ganhar uns trocados pois Brejeiro era seu sucesso de maior vendagem e os direitos autorais tinham sido vendidos à editora.
Ao mesmo tempo, Nazareth era um grande apreciador de Chopin. Francisco Mignone contava um causo de quando o pianista Arthur Rubinstein estava no Rio de Janeiro e “pediu para o Nazareth tocar alguma coisa. Nazareth sentou-se ao piano e começou a tocar Chopin. Ele queria tocar Chopin para o Rubinstein. Foi uma luta convencê-lo a tocar os Tangos Brasileiros. O Rubinstein apreciava vê-lo tocar. Ele tocava em geral lento. Todo mundo tocava depressa, ele tocava bem devagar os Tangos. O que nós tocávamos com um certo vigor, certo entusiasmo, nele era pacato.”
Em um outro relato sobre a mesma noite, Rubinstein teria dito, obviamente em francês: “ – Não sr. Nazareth, estas aqui eu também toco… O que eu quero ouvir são aquelas músicas que o senhor estava tocando lá no cinema!”
Em uma outra história que também mostra a importância de Chopin na imaginação de Nazareth, quando este já era um senhor viúvo, em uma fase bem menos alegre do que o Nazareth que gostamos de imaginar, ele assistiu a um recital de Guiomar Novaes tocando Chopin em 1930. A pianista Maria Alice Saraiva narra que, durante o recital, ele “foi acometido por uma crise de choro que, não conseguindo controlar, viu-se obrigado a sair do Municipal para evitar ainda mais constrangimentos. Ao deixar o teatro, pegou o primeiro bonde que viu pela frente; nele ficando durante horas, de uma estação final a outra. Quando chegou em casa, muito além do horário previsto, o maestro encontrou seus familiares bastante preocupados, e ainda mais ficaram ao vê-lo com a fisionomia transtornada, olhos inchados de tanto chorar e repetindo sem parar as seguintes palavras:
– Por que eu não sou uma Guiomar Novaes?… – Por que eu não fui estudar na Europa?… – Se eu tivesse ido, eu seria uma Guiomar Novaes!…”
Aqui temos o grande conflito entre “vocação” e “ambição” de Ernesto Nazareth. Teria Nazareth ambição de ser um compositor/pianista de concerto enquanto que sua vocação era a de um compositor/pianista popular? O conto Um Homem Célebre, de Machado de Assis, serve de pano de fundo: está claro que Nazareth alçou vôos mais altos que o personagem Pestana do conto de Machado, já que não se resumiu a um compositor de polcas de sucesso instantâneo, tendo na verdade criado uma verdadeira revolução na linguagem pianística da música brasileira, que teve ecos muito claros em Villa-Lobos e respingou até os dias de hoje. Porém, como delineou Cacá Machado:
“(…) diferentemente de Pestana, cujo drama entre a ambição e a vocação sugere uma tensão em estado de aporia, Nazareth teve de tudo: sucesso, celebridade e glória. Mas morreu com a sensação de que não tinha nada”. (Citado aqui)
Talvez os grandes gênios artísticos brasileiros sejam esses que reproduziram de forma original um conjunto de contradições entre várias “Ideias fora do lugar”. A expressão é de Roberto Schwarz. Ele diz que, nos brasileiros mais ingênuos, que não sabem espremer esse limão para fazer uma limonada, a reprodução de ideias estrangeiras em sentido impróprio aparece como tagarelice, submissão ridícula, servilismo, puxa-saquismo (“Adoramos Coca-Cola, Disney, jeans”, disse um certo ministro em visita aos EUA). Mas nos artistas mais finos – e aqui é impossível não pensar em Machado de Assis e em Nazareth – essa conflito entre as ideias e o lugar pode se transformar em arte da mais sutil. Estes últimos são os que se tornam universais ao falarem das esquisitices da sua vila.
O pianista Miguel Proença gravou muita música brasileira – Nazareth, Villa-Lobos, Nepomuceno, Krieger… – mas, tendo tido a oportunidade de conhecê-lo, afirmo que ele é um chopiniano de coração, como Nazareth. Aliás é curioso que entre 1939 e 1943 tenham nascido tantos grandes pianistas brasileiros, todos eles com uma profunda ligação com a música do polonês: Artur Moreira Lima, Antonio Guedes Barbosa, Nelson Freire e Miguel Proença. Este último gravou menos Chopin, certamente eu não o colocaria acima dos outros três, mas ele merece estar na mesma frase, o que já é um grande elogio. Como Moreira Lima, ele viajou muito pelo Brasil, tocando Villa-Lobos e Chopin em quase todos os 26 estados e no distrito federal.
A interpretação de Proença, já a partir do repertório selecionado (valsas lentas, meditações, um “1º Nocturno de Ernesto Nazareth” que acabaria sendo o único…) mostra o lado chopiniano do compositor, muito mais do que o Nazareth mais sorridente e tributário dos ritmos populares brasileiros. Como contraponto, deixo para vocês a recomendação de ouvirem o Nazareth de Maria Teresa Madeira, um tango brasileiro de pés descalços e com samba no pé, muito diferente do toque mais clássico de Proença. Nascida na Lapa e criada em Nova Iguaçu (RJ), Madeira é a única até hoje que gravou a integral de Nazareth, recomendo que ouçam no Tidal, Spotify e similares para lhe render uns trocados que sempre caem bem…
Há artistas precoces e há também o contrário: quase todas as 555 sonatas do italiano Domenico Scarlatti foram compostas quando ele tinha mais de 40 ou 50 anos e morava na Espanha, após sua passagem por Portugal. As sonatas que atualmente recebem os números K.1 a 30 correspondem às 30 obras que foram publicadas em Londres, em 1738 com o nome Essercizi per gravicembalo (Exercícios para cravo). Essas sonatas, editadas com prefácio do compositor, são exceção: a maioria das sonatas ficou dentro dos limites da corte real espanhola, de onde foram espalhadas aos poucos por outros músicos como o cantor castrato Farinelli e o Padre Antonio Soler. Na verdade, as cópias manuscritas são a única evidência da recepção das primeiras edições impressas na Espanha. Apenas algumas dezenas de sonatas de Scarlatti foram amplamente divulgadas na Europa durante sua vida, por meio de edições e reimpressões em Paris, Londres e Amsterdã. A reputação de Scarlatti em toda a Europa como compositor para teclado começou com essas edições. É interessante notar que uma publicação em Paris tinha na capa a indicação “Peças Escolhidas para Cravo ou Órgão”, seguindo a tradição das obras de Alessandro Scarlatti e J.P. Sweelick que podiam ser tocadas tanto no cravo como no órgão. Na coleção mais famosa e influente, em Londres, a indicação é apenas “para cravo”.
Scarlatti e Händel se conheceram no período em que este último viveu na Itália, por volta de 1709. Consta que a admiração entre os dois era recíproca e na época D. Scarlatti era conhecido como um grande improvisador ao cravo mas, como compositor, ainda não tinha – até onde sabemos – obras manuscritas ou publicadas para teclado: sua produção aos 20 e 30 anos de idade era mais ligada à música vocal, com óperas, missas e cantatas religiosas e profanas.
Händel e Scarlatti, apesar da mútua admiração, não parecem ter se influenciado. É bastante diferente o estilo dos dois compositores nascidos em 1785 (mesmo ano de J.S. Bach). Esses dois alemães, ao contrário de Scarlatti, compuseram suítes no estilo francês, com movimentos inspirados em danças. A suíte mais conhecida de Händel, essa que Alicia de Larrocha gravou, tem como movimento final uma série de variações conhecida como o ferreiro harmonioso. A lenda sugere que Händel se baseou em uma ária que ele ouviu um ferreiro cantar, se é verdade, aí já não sei dizer…
O Padre Antonio Soler nasceu em 1729, mesmo ano em que Scarlatti se mudava de Portugal para Espanha. Scarlatti foi um de seus professores e certamente as sonatas do espanhol trazem muitos elementos das do italiano. Sua música tem um grande cheiro de folclore espanhol e se adapta bem tanto ao cravo como ao piano.
Scarlatti, por volta dos 60 a 70 anos de idade (justamente quando compôs a maior parte de suas sonatas, mas não essas que Alicia toca aqui), parece ter tido Soler como um braço-direito, talvez um amigo do peito e quase certamente um dos copistas que copiavam, a mão, suas sonatas que pareciam brotar organicamente como frutos numa árvore, e das quais até hoje não se encontrou nenhuma versão assinada por Scarlatti (imaginamos que era um senhor respeitado com vários jovens copistas ao seu redor, não precisando tirar as mãos do teclado para sujá-las de tinta). Soler tinha quase 27 anos quando Scarlatti morreu (1757), e escreveu, na década seguinte, que alguns problemas de notação nas sonatas do italiano eram culpa dele: “Confesso minha má ação, para que não se dê a culpa a quem não a tem … e se se encontra nas Obras de Scarlatti tal sinal, não a tenham por escrita dele, mas minha.” Podemos imaginar o velho Domenico Scarlatti, com mais de 70 anos, produzindo sonatas aos montes em frente ao cravo, às vezes ao pianoforte, enquanto seus alunos tinham a tarefa de copiar a música, como hoje faz a assessoria de imprensa contratada para tuitar em nome de políticos e artistas famosos.
Essa ligação direta entre Alessandro Scarlatti (nascido na Sicília, atuou em Nápoles, Roma e Florença), Domenico Scarlatti (nascido em Nápoles, viveu em Roma, Veneza, Lisboa e Madrid) e Antonio Soler (nascido na Catalunha e morto no Monastério do Escorial, próximo a Madrid), cada um trazendo os sotaques de suas terras mas transitando muito pelo mundo católico mediterrâneo, me leva a pensar – mais do que em um barroco espanhol ou italiano – em um Barroco Mediterrâneo. Até porque a Itália nem existia como país e a própria Espanha é uma Babel com vários dialetos.
Alicia de Larrocha (Barcelona, 1923-2009) capricha nos ornamentos dessas sonatas de música barroca mediterrânea. Ela não gostava de ser tratada como apenas uma especialista em música espanhola – suas gravações de Mozart e Ravel também são muito famosas – mas é inegável que os discos de Alicia tocando Granados, Albéniz e também Scarlatti e Soler fazem parte do repertório básico que todo amante do piano precisa conhecer.. A suíte de Händel fica um pouco deslocada aqui, mas acrescenta outras formas barrocas de expressão nesse CD que reeditou gravações anteriores de Alicia.
D.Scarlatti (1685-1757), G.F.Händel (1685-1759) e A.Soler (1729-1783): Sonatas e Suíte, por Alicia de Larrocha Domenico Scarlatti (1685-1757)
1 Sonata in D minor, K. 9, L. 413
2 Sonata in F major, K. 6, L.479
3 Sonata in D minor, K. 10, L. 370
4 Sonata in G minor, K. 8, L. 488
5 Sonata in G major, K. 13, L. 486
6 Sonata in C minor, K. 11, L. 352
7 Sonata in E major, K. 28, L. 373
Georg Friedrich Händel (1685-1759)
Suite n° 5 in E major, HWV 430
8 I. Prelude
9 II. Allemande
10 III. Courante
11 IV. Air con variazione (‘The Harmonious Blacksmith’)
Padre Antonio Soler (1729-1783)
12 Sonata in D minor, R.15
13 Sonata in C-Sharp minor, 5.21
14 Sonata in D major, R.86
15 Sonata in G minor, Nin n° 11
16 Sonata in F-Sharp minor, R.85
17 Sonata in F major, R.89
18 Sonata in G minor, R.87
19 Sonata in D major, R.84
Alicia de Larrocha – piano
Recorded at Kingsway Hall, London ; May 1974 [# 18 & 19] ; Decca Studio 3, West Hampstead, London ; September 4, 1979 [# 1-7] ; September 2/6, 1980 [#12-17] ; & Henry Wood Hall, London ; January 1986 [# 8-11]
Houve um período no qual eu frequentava as lojas do PQP Bach, mas do outro lado balcão, como consumidor… Inicialmente achava que tudo era obra de um só ente, algo assim entre Titã e Pantagruel, mas com o tempo e explorando as remotas regiões do seu cibernético espaço, comecei a divulgar diferenças nas postagens e me dei conta que o todo era resultado do esforço de um grupo de contribuintes.
Sandrine cantando para o pessoal do PQP Bach reunidos para o festim de São Paulo…
As postagens do Avicenna me chamaram a atenção devido a pequenos diferenciais, como o uso de cores nos títulos, o cuidado em realçar os links para os downloads, o arremate na postagem. Mas principalmente, me chamava a atenção uma certa coerência na escolha do que vamos aqui chamar de repertório. Passei a considera-lo um amigo com o qual tinha uma significativa identificação de gosto musical e daí a interpela-lo e deixar comentários nas postagens, foi um passo. Para minha surpresa e alegria, recebi resposta acolhedora, espirituosa e divertida. As brincadeiras em torno de sua musa, a lindíssima e charmosa Sandrine eram constantes.
Aqui trabalhamos como os remadores de Ben-Hur!
Acabei sendo convidado e me tornando um contribuinte do blog, membro dessa brancaleônica (mas orgulhosa) trupe devido à iniciativa do Avi, Mestre Avicenna. Nosso primeiro contato mais ‘humano’ foi um telefonema (ele me mandou um zap – posso te ligar às 19h?). Claro, foi a resposta. Nos falamos bastante e ele me deu várias dicas a sobre a (malas)arte de escrivinhar no blog.
Nos encontramos uma única vez, numa memorável tarde em São Paulo, numa reunião de alguns membros de nossa confraria, incluindo a alta diretoria.
Depois, com o tempo e os afazeres, fomos nos afastando um pouco. Ele deixou de fazer suas postagens, até o momento que, como disse o Bisnaga em sua singela postagem, foi ouvir os anjinhos in loco…
De qualquer forma, Avicenna, o Mestre Avi, assim como alguns de meus queridos amigos e irmãos na música, vai continuar em minhas conversações sobre esta absolutamente apaixonante arte.
Falando nisso, que achas daí, mestre, da escolha do disco para esta postagem? Sua pombinha cantando árias de um de meus mais queridos compositores… perfetto, non è vero?
Wolfgang Amadeus Mozart (1756 – 1791)
Le nozze di Figaro, K. 492, Act IV: L’ho perduta … Me meschina (Barbarina)
Don Giovanni, K. 527, Act II: Crudele! Ah no, mio bene – Non mi dir (Donna Anna)
La finta giardiniera, K. 196, Act I: Geme la tortorella (Sandrina)
Mitridate, re di Ponto, K. 87, Act III: Ah ben ne fui presaga! – Pallid’ombre (Aspasia)
Le nozze di Figaro, K. 492, Act IV: Giunse al fin il momento… (Susanna)
La finta giardiniera, K. 196, Act II: Crudeli, fermate, crudeli (Sandrina)
Idomeneo re di Creta, K. 366, Act II: Se il padre perdei la patria, il riposo (Ilia)
Lucio Silla, K. 135, Act III: Sposo … mia vita … (Giunia)
Il re pastore, K. 208, Act II: L’amero, saro costante (Aminta)
Ivor Bolton quando soube que seria o regente para o disco da Sandrine…
Piau recreates numb torment, fear and anger within the comparatively small expressive range of her soprano…And Ivor Bolton’s urging of the orchestral slings and arrows is everywhere minutely attuned to the elusive and delicate, nervous volatility Piau expresses so well. BBC Music Magazine, 2015
Ela…
Piau brings each of these women, amorous, vulnerable and/or tormented, to vivid life. Her tender shaping of ‘Non mi dir’ convinces you that Donna Anna does indeed love Don Ottavio…Elsewhere she finds an extra sensuous warmth in her tone for Susanna’s aria, and a darker intensity for Aspasia’s Gluckian ombra scena, and Sandrina’s ‘mad scene’. Gramophone, 2014
O título ‘Delight in Disorder’, algo assim como ‘Delícia de Bagunça’, resume o disco que traz o conhecido cravista alemão Andreas Staier e o flautista-doce Pedro Memelsdorff, nascido na Argentina e formado na Holanda, o verdadeiro protagonista.
Pedro Memelsdorff
A gravadora é alemã, mas a música é bem inglesa. Peças do período 1640 – 1680, anterior ao nascimento da trinca Bach, Handel e Scarlatti, é barroca, mas anterior ao tipo de música barroca a que estamos acostumados a ouvir.
Nesta época a música que frequentava os palácios tinha o mesmo sabor que a música das ruas, das pessoas comuns e isso garante a propriedade da primeira palavra do título do disco. Temos aqui uma coleção dos típicos gêneros da época: ayres, battles, suites, ballets e grounds.
Ayre ou air é uma canção com um solo (aqui dublado pela flauta) acompanhado por um alaúde (aqui dublado pelo cravo). John Dowland era um bamba no gênero. Aqui temos umas composições anônimas assim como composições dos irmãos William e Henry Lawes.
Andreas Staier
Battle é um gênero bem típico do barroco, no qual a música toma tons marciais e imita os sons de uma batalha. Nicola Matteis foi um violinista italiano que fez carreira e sucesso na Inglaterra, mas lá morreu em condições bem difíceis.
Não poderia faltar um gênero bem típico do barroco, a Suite, aqui representada por uma peça de Matthew Locke, que nasceu em Exeter e cantou no coro regido por Edward Gibbons, irmão do famoso Orlando Gibbons.
Para completar o disco ainda temos Ballets e Grounds, dois destes últimos da pena do príncipe dos compositores ingleses, Henry Purcell. John Cooper ou John Cowper foi um compositor e violista inglês que viajou pela Europa e acabou mudando seu nome para Giovanni Coprario (ou Coperario) e aqui deu sua cooperação nas masques.
Sei que nem todo o mundo tem a disposição de ouvir um disco todo de música com flauta, mas a bela bagunça aqui vale a investigação. Não deixe de ouvir alguns trechos e aposto que retornará mais vezes, para sentir-se transportado para uma época de (talvez) maior inocência do que esta nossa…
Delight In Disorder –
The English Consort of Two Parts 1640 – 1680
Henry Lawes
Ayres
3 Tunes New To John Playford’s Dancing Master (Anônimo)
Why So Pale (William Lawes) / Bid Me To Live (Henry Lawes) / 2 Tunes New To John Playford’s Dancing Master (Anônimo)
Nicola Matteis
Battles
Passages In Imitation Of The Trumpet, Ayres And Pieces IV (Nicola Matteis) / 5 Marches And Tunes From John Playford’s New Tunes (Anônimo)
Matthew Locke
Suites
Fantazie Suite In A (Matthew Locke)
William Lawes
Ballets
Court Masques Under Charles I And Charles II, 1640 – 1665 (Anônimo, Giovanni Coperario, William Lawes)
Giovanni CoperarioHenry Purcell
Grounds
Toccata In A The Plaint, A Ground In A (Henry Purcell)
The Black Joak, As ‘tis Perform’d At Dublin, Upon A Silent Ground In D, (Ca.1660)
De um crítico amador entusiasta: Wonderful recorder music with a fine harpsichord accompaniment. Pedro Memelsdorff plays with both great expression and technical virtuosity. The selections are excellent as well. I listen to this frequently and have not tired of it at all.
E ainda outro: This is one of the 10 CDs I would bring to a desert island. Pedro Memelsdorff is probably the most poetic and elegant recorder player of the whole world.
Aproveite!
René Denon
Memelsdorff durante uma apresentação no Salão Marmóreo do Prédio da Fundação PQP Bach em Buenos Aires…
Nascido na Sicília, Alessandro Scarlatti se mudou para Roma ainda adolescente, após a morte do pai. Em 1678, aos 18 anos, foi nomeado organista e mestre de capela na igreja San Giacomo degli Incurabili. Em 1682, foi nomeado organista em outra igreja romana, S. Girolamo della Carità. Em 1683 deixou esse posto ao se mudar pela primeira vez para Nápoles. Ao longo de toda sua vida, seriam várias idas e vindas no trecho Roma-Nápoles, cidades distantes cerca de 200 km, ou seja, metade da distância entre São Paulo e Rio de Janeiro. Em outro período em Roma (1703-1708), já muito famoso e protegido por alguns influentes cardeais, Alessandro Scarlatti era contratado para tocar órgão na igreja de Santa Maria Maggiore, uma das maiores de Roma. Ele também tocou em muitas igrejas em Nápoles, embora, como já dissemos, a música que ele escreveu para órgão seja quase toda sem finalidade religiosa. Sem dúvida ele improvisava durante ou após as missas e outras cerimônias católicas, mas isso era algo tão comum e esperado como o calor do sol no verão romano, de forma que ninguém se preocupou em anotar as improvisações do Signor Cavalieri Scarlatti. Ele próprio parece ter se preocupado mais em pôr no papel sua música sem finalidade religiosa: toccatas com um número indefinido de movimentos, além de fugas avulsas e, em menor número, outros movimentos avulsos como arpeggios, vivaces, etc. e que também podem se unir para formar toccatas ao gosto do intérprete. Neste último volume da integral de suas obras para teclado, temos fugas aos montes, que parecem ter tido também um papel didático. Como sabemos, o estilo contrapuntístico da música vocal de Palestrina (1525-1594) virou uma espécie de “estilo oficial” da Igreja Católica Romana, a ser ensinado e difundido. Não é muito claro se Alessandro atuava como professor de música em algumas ou em todas as igrejas de Roma e Nápoles onde trabalhou, de fato os registros que restaram nesse sentido são poucos e levam a crer que os alunos foram poucos, em comparação por exemplo com Vivaldi que passou cerca de 30 anos cuidando das atividades orquestrais e da educação musical de um orfanato e convento em Veneza. O ganha-pão principal de Alessandro parece ter sido como compositor de óperas e cantatas para diversos palcos, com representações sobretudo em Roma, Nápoles, Florença e Veneza, mas ao mesmo tempo na maior parte de sua vida as atividades de organista e mestre de capela em igrejas sempre ajudavam a equilibrar o orçamento. Nisso, como também em outros sentidos, A.Scarlatti pode ser comparado a Mozart: se o primeiro ficou apenas alguns anos em cada igreja, sem criar vínculos estreitos com nenhuma delas mas compondo várias missas e oratórios sacros, Mozart aos 25 anos se livra da submissão ao arcebispo de Salzburgo e ambos vão viver compondo várias óperas por ano, além de comporem e tocarem para uma série de protetores ricos, fazendo música de câmara e o que mais fosse lhes garantir o sustento.
As fugas de A.Scarlatti são um pouco mais curtas e menos rígidas do que as de J.S.Bach, mas ainda assim cheias de temas e contratemas se imitando: a imitação é mais um estilo do que uma série de regras fixas. Algumas de suas modulações, segundo os especialistas, vão em desacordo com as convenções harmônicas de seus contemporâneos, e ele deixa claro em um manuscrito seus motivos: “Perchè fa buon sentire”, ou seja, porque soa bem. No mesmo sentido, seu filho Domenico Scarlatti dizia ter quebrado todas as regras em suas obras, mas perguntava, segundo Burney: esses desvios ofendem o ouvido? Essa parecia ser a principal regra para Scarlatti pai e filho: as outras regras eles conheciam muito bem, apenas para quebrá-las melhor.
Não surpreende, então, que o pai tenha composto dezenas de toccatas e o filho, centenas de sonatas, nas quais podiam exercitar com liberdade suas preferências harmônicas e melódicas. Ao contrário do estilo imitativo das fugas, as toccatas muitas vezes têm um início exploratório de uma única voz, que me faz imaginar o músico se sentando ao teclado e fazendo um improviso inicial (ou ainda: um prelúdio) enquanto as pessoas ao seu redor terminam as conversas e as bebidas antes de se virarem para o lado do salão onde está o cravo. Sim, porque na época barroca o cravo era um instrumento mais familiar, para plateias de amigos e parentes, ao contrário do órgão, que existia em duas versões: o órgão positivo, móvel, e o órgão de igreja, fixo. Era na igreja e na ópera que o músico tocava para multidões.
Também Bach, na Fantasia Cromática, na Fantasia BWV 922 e outras fantasias para cravo reunidas em um belo disco por Andreas Staier, assim como na famosa Toccata e Fuga em Ré Menor para órgão, utiliza esse tipo de início exploratório de uma única voz. As fantasias e toccatas de Bach, assim como as toccatas de A. Scarlatti e os préludes non mésurés de L.Couperin e de E.Jacquet de la Guerre eram, portanto, música para os amigos do instrumentista ou para os amigos dos patrões… E para os amigos é mais fácil improvisar, experimentar, inventar novidades do que em um palco ou catedral com mais de mil pessoas, concordam?
Cavalieri Alessandro Scarlatti
Esta sétima e última etapa da integral gravada por Francesco Tasini se abre com 15 fugas, todas elas de um único manuscrito de Nápoles com o título “Quindici Fughe a Due” (ou 15 fugas em duas partes), que aparentemente era uma coleção para o ensino de contraponto. O segundo disco (este é o único volume da integral em disco duplo), voltamos às toccatas em vários movimentos, além de um conjunto de variações (partite, em português: partes) sobre um tema. As três últimas tocatas são tocadas no cravo, incluindo obras que Tasini já havia gravado no órgão (a última faixa desse vol.7, por exemplo, é a toccata em mi maior que abriu o vol.5) e é interessante ver as diferenças entre a execução nos dois instrumentos.
Confesso que essa opção de Francesco Tasini de gravar tantas fugas juntas não me agradou tanto quanto os volumes anteriores, nos quais as fugas avulsas se encontram rodeadas de muitas toccatas e algumas variações. Nessa integral a ordem das composições sempre teve como princípio a fantasia e vontade do intérprete, inclusive pela falta de dados confiáveis sobre a ordem cronológica das obras ou sobre se Alessandro Scarlatti pretendia publicar algumas delas juntas em uma ordem específica (provavelmente não pretendia).
Para pôr um ponto final nessa abordagem da obra para cravo e órgão de Alessandro Scarlatti, é curioso notar que seu filho Domenico (1685-1757), especialmente no fim da vida, compôs centenas de sonatas para teclado, muitas delas caracterizadas por um cantabile riquíssimo, utilizando melodias italianas e ibéricas de forma a fazer o cravo ou pianoforte cantar como depois faria Chopin, outro fã do bel canto italiano, mas que compunha quase só para teclado. Alessandro Scarlatti, por outro lado, foi um grande compositor de música vocal, muito maior nesse gênero que seu filho, então podemos imaginar que ele utilizou suas melodias mais cantabile em suas centenas de cantatas, mais de cem óperas, dezenas de oratórios e missas, enquanto o cravo, para ele, era o instrumento privilegiado para as invenções harmônicas, modulações, liberdade rítmica, moto perpetuo, improvisos e outros tipos de fantasia (sublinhemos sempre essa palavra, típica da época do compositor), fantasias que a voz humana seria incapaz de alcançar.
Alessandro Scarlatti (1660-1725): Obra completa para teclado, vol. 7
1-15. Quindici Fughe a Due
16. Varie [12] partite obbligate al basso in Do maggiore
17. Andante in Do maggiore
18. Fuga in Do maggiore
19. Tastatura in Do maggiore ([Arpeggio], [Allegro])
20. Toccata per cembalo in La maggiore (Arr. for Organ) ([Allegro], [Allegro], [Partira alla Lombarda])
21. Toccata in Sol maggiore ([Allegro], [Andante])
22. Toccata No. 9 in Sol maggiore (Arpeggio, Allegro, Presto, Allegro)
23. Toccata 4a in Mi minore (Allegro, Adagio, Minuetto / Allegro)
Francesco Tasini – organo Carlo Serassi (1836), chiesa di S. Maria di Campagna, Piacenza, Italia; clavicembalo di anonimo, Ferrara, sec. XVIII
Tal como Jan Garbarek, o reflexivo saxofonista britânico John Surman (1944) determinou sua identidade em meio a sombrios tons menores. Mas não é o que ocorre neste álbum solto e jazzístico, onde é acompanhado por um espetacular Abercrombie e pela renascida poliríta do impressionante Jack DeJohnette. Aqui, Surman está longe de seus projetos semiclássicos com quartetos de cordas ou corais. Surman reaparece com agilidade folclórica em Hilltop Dancer e No Finesse. Também demonstra ferocidade em Kickback, onde ele e DeJohnette parecem trancar-se num quarto para desferirem ofensas um ao outro. E é emocionante. Com colaboradores de longa data, Brewster’s Rooster é um tremendo CD. E fazia tempo que eu não trazia um Surman, não? E como é bom ouvir seu o som de seus saxofones.
John Surman: Brewster’s Rooster
1. Slanted Sky 6:34 $1.29
2. Hilltop Dancer 7:27
3. No Finesse 6:52 $1.29
4. Kickback 7:25
5. Chelsea Bridge 5:49
6. Haywain 6:18
7. Counter Measures 10:44
8. Brewster’s Rooster 6:37
9. Going For A Burton 6:48
John Surman, saxofones
Jack DeJohnette, percussão
John Abercrombie, guitarra
Drew Gress, baixo
Ainda esses tempos falávamos dos álbuns memoráveis do finalzinho da década de 50. Venho engrossar a lista: gravado em Chicago no dia 3 de fevereiro de 1959, Cannonball & Coltrane é uma sessão do Miles Davis Sextet – sem o líder, claro. Com o chefe longe, Julian Adderley comandou uma bela e descontraída (no feeling, jamais na execução) tarde/noite de perfeito hard bop. Não que tenha deixado Trane em segundo plano; pelo contrário, deu espaços e valorizou, inclusive, suas composições. O trio Kelly / Cobb / Chambers dá o show usual. Talvez quem se sobressaia na cozinha seja este último, que galga incansavelmente o braço de seu baixo durante toda a gravação.
Nos saxofones sincopados em estéreo (Adderley está na esquerda, Trane na direita) de Limehouse Blues, no riff épico e pré-sessentista de Stars Fell On Alabama (belíssimo solo de Coltrane) ou na altíssima velocidade de Grand Central, nota-se um disco tão polido, tão bem executado, que se entende porque o bop estava sumindo do cenário. O que fazer depois de um disco como esse, por exemplo? Qualquer coisa, menos hard bop. Se nada é definitivo, esse álbum é, ao menos, verbete de enciclopédia. Aproveitem a remasterização cristalina – mixagem sutil e inteligente para todos os instrumentos soarem como que captados na semana passada.
Cannonball & Coltrane (320)
Cannonball Adderley: alto sax
John Coltrane: tenor sax
Wynton Kelly: piano
Jimmy Cobb: drums
Paul Chambers: bass
produzido por Jack Tracy para a Mercury
01 Limehouse Blues (Braham, Furber) 4’39
02 Stars Fell on Alabama (Parish, Perkins) 6’15
03 Wabash (Adderley) 5’44
04 Grand Central (Coltrane) 4’33
05 You’re a Weaver of Dreams (Young, Elliott) 5’31
06 The Sleeper (Coltrane) 7’15
Bernard Haitink e a Orquestra Sinfônica de Londres sempre tiveram excelente relacionamento. A orquestra sempre foi viva e receptiva às suas demandas, um fator que é sempre melhor avaliado em gravações como esta, que é de uma performance ao vivo. Este concerto foi particularmente bem preparado e ocorreu no Barbican Center, em Londres, em maio de 2003.
Depois de lutar muito para completar sua primeira sinfonia, Brahms a Sinfonia nº 2 com facilidade e a obra transborda com uma beleza descontraída e pastoral. A leitura da Sinfonia nº 2 de Brahms é cheia de luz e Haitink encontra todas as vozes internas às vezes enterradas na espessa escrita orquestral de Brahms. Esta é uma leitura brilhante e alegre, com excelentes respostas de todas as seções em suas porções solo.
A segunda parte desta gravação — na verdade tocada primeiro no CD — é o Concerto Duplo de Brahms, no qual o primeiro violoncelista Tim Hugh e o concertino, o violinista Gordan Nikolitch surgem como competentes solistas. Esta leitura enfatiza a atmosfera das danças húngaras de Brahms. Os solistas enfatizam o sabor cigano raramente ouvido em performances desta composição estranha e talvez insatisfatória, em comparação aos outros concertos de Brahms. O finale é carregado de exaltação e intensidade. Gordan Nikolitch e Tim Hugh são expressivos, nunca vistosos. Eles estão no mesmo nível do que as duplas de estrelas que gravaram o trabalho antes.
Johannes Brahms (1833-1897): Symphony No 2 / Double Concerto (Haitink, LSO, Nikolitch, Hugh)
O piano brasileiro perde uma brilhante intérprete: a carioca Diana Kacso, que marcou sua trajetória por especial interesse no repertório romântico. Neste 1º de março, próximo passado, aos 68 anos, veio a falecer, após enfrentamento de câncer… Formada no “Conservatório brasileiro de Música”, Rio de Janeiro, com Elzira Amábile, 1971; e, mais tarde, na “Juilliard School”, de Nova York, com Sascha Gorodnitzski, 1972/75, Diana optou por fixar residência nos EUA…
Ao longo da carreira, realizou recitais no “Carnegie Hall”, de New York; no “Concertgebouw”, de Amsterdam; e no “Queen Elizabeth Hall”, de Londres, além de diversas programações para rádio e TV… E como solista, em cocertos com a “London Players” e as filarmônicas de Munique, Israel e Londres; nos USA, Europa e Ásia...Destacaram-se também trabalhos em música de câmara, com Nancy Green (cello), Jennifer Devore (cello), e Rosemary Glyde (violista)…
Diana Kacso – finalista no “Concurso Chopin”, Varsóvia, 1975.
Premiada em diversos concursos, nacionais e internacionais, obteve 6º lugar no “Concurso Chopin”, de Varsóvia, 1975, quando Krystian Zimermann foi 1º colocado; 2º lugar no “Concurso Rubinstein”, de Tel Aviv, 1977; e 1º lugar no “Concurso de Viña del Mar”, Chile, 1978… Após inicio promissor, Diana priorizou a vida familiar, além de dedicar-se a movimentos pela causa animal. Assim, por 20 anos, evitou intensificar a carreira internacional e dedicou-se ao ensino… Sua musicalidade e apresentações, no entanto, eram marcantes e sua presença nos palcos, solicitada!
Diana Kacso – segunda à esquerda, entre os seis finalistas do “Concurso Chopin”, 1975, com Krystian Zimermann, 1º colocado, à direita.
Entre os apreciadores do piano, muito se fala em intérpretes que, francamente, exploram o virtuosismo mais técnico, e aqueles que, pela musicalidade, invariavelmente, priorizam a expressividade… Diana Kacso buscava certo equilibrio, entre vigor e expressividade… A partir de 2006, esteve diversas vezes no Brasil, para rever amigos, realizar masterclasses e também recitais, na “Sala Cecília Meireles”, Rio de Janeiro; e nos “Conservatório de Tatuí” , “OSMC de Campinas” e “Festivais de Campo do Jordão”, em São Paulo…
E, entre os registros que permanecem, suas interpretações da “Sonata em si menor”, de Liszt, da “Polonaise-Fantasie” ou da “Ballada em fá menor”, de Chopin, são reveladoras da leitura acurada, personalidade e amplo domínio técnico… Uma grande artista, cujas qualidade e musicalidade ficam nos poucos registros fonográficos que realizou…
Após atuação no “Concurso de Leeds”, Inglaterra, 1978, surgiu interesse da gravadora alemã “Deutsche Grammophon”, que resultou na bela gravação com obras de Liszt e Chopin, de 1980…Aos 68 anos, penso, Diana nos deixa precocemente… Ficam a gratidão e carinho por seu trabalho e atuações. E, pelo talento e alto nível artístico, lugar especial na memória e no pianismo brasileiro. Descanse em paz…
Premiações
“Concurso Internacional do Rio de Janeiro” (1976) – 3º lugar “9º Concurso Internacional Chopin” (Varsóvia, 1975) – 6º lugar “Teresa Carreño Concurso Internacional Latino-Americano” (Caracas, 1976) – 1º lugar “Concurso Internacional Artur Rubinstein” (Tel Aviv, 1977) – 2º lugar “Concurso Internacional de Leeds” (Inglaterra, 1978) – 2º lugar “Concurso Internacional de Viña del Mar” (Chile, 1978) – 1º lugar “Concurso Internacional Gina Bechauer” (Atenas, 1982) – 2º lugar
Aos seus alunos, Diana aconselhava: “sobre técnica, a concentração; e sobre o coração, a parte que transmite sentimentos, através da música”…
Volto a estes Concertos de Mozart depois de alguns anos sem ouvi-los, e sem surpresas, confirmo que eles continuam sendo obras primas inconstestes no gênero. Li em algum lugar alguma vez que dentro do catálogo das obras de Mozart tratavam-se de obras menores, se comparados aos concertos para Piano ou Clarinete, por exemplo. Mas estes comentários não me afetam, ao contrário, eles me fazem ouvi-los com maior atenção e paixão. Lembro que foi Jean Pierre Rampal quem me apresentou estas obras, há incontáveis décadas, ainda nos meus tempos de adolescente, e foi como que uma paixão a primeira audição. Já o Concerto para Flauta e Harpa, que abre esse CD, me foi apresentado por Auréle Nicolet, em sua histórica gravação com Karl Richter, lá no início dos anos 60. Não por acaso ele foi uma de minhas primeiras postagens, lá em meados de 2008, e, de acordo com o meu texto na época de uma repostagem, era meu campeão de downloads.
Curioso como nosso cérebro trabalha: associo muito alguns trechos do Concerto para Flauta e Harpa a determinados momentos de minha vida, poderia até dizer que essa obra, principalmente seu Andantino, seria a trilha sonora daqueles belos momentos de minha juventude. É Mozart em sua essência.
Mas aqui temos uma gravação mais recente, não tão jurássica, com o primeiro flautista da Filarmônica de Berlim, Emmanuel Pahud, não por acaso, francês, assim como Rampal e Nicolet. A França continua produzindo excelentes flautistas, que bom. Temos então uma gravação quase ‘caseira’, já que a orquestra que o acompanha é a sua empregadora, assim como da Harpista Marie-Pierre Langlamet, primeira harpista da Filarmônica de Berlim, na época dirigida pelo saudoso Claudio Abbado. Ah, o registro é de 1997. Curiosamente, vi dia destes ele tocando o Segundo Concerto junto a uma Orquestra de jovens alunos e estudantes do Festival de Lucerne. E abaixo deixo um vídeo mais recente, de 2018, onde, junto com a mesma Marie-Pierre Langlamet, interpreta esse mesmo Concerto.
Espero que apreciem. Belíssimas obras com músicos de altíssimo nível é o que lhes aguarda. Curioso verificar que passados tantos anos desde que este CD foi gravado ele mantém seu frescor e qualidade.
Concerto For Flute And Harp In C, KV 299
I. Allegro
II. Andantino
III. Rondo (Allegro)
Flute Concerto No. 1 In G, KV 313
I. Allegro Maestoso
II. Adagio Ma Non Troppo
III. Rondo (Tempo Di Menuetto)
Flute Concerto No. 2 In D, KV 314
I. Allegro Aperto
II. Adagio Ma Non Troppo
III. Rondeau (Allegro)
Emmanuel Pahud
Berliner Philharmoniker
Claudio Abbado – Condutor
Um belíssimo CD, muito bem interpretado. As obras de von Bingen são realmente excelentes, de uma estranha e permanente intensidade. Bem, como eu sou um amante da cerveja — espero que a maioria de vocês também seja –, confiram abaixo o papel desta “gênia” medieval na produção da bebida. Afinal, Santa Hildegard (sim, ela foi canonizada) é a Santa do Lúpulo. Foi a abadessa e santa alemã que relatou, no século XII, a propriedade conservante do lúpulo na cerveja. E ela também descreveu o orgasmo feminino, o que faz dela uma pioneira.
Feminista, santa e rebelde: A monja que descreveu o orgasmo feminino há 900 anos
Ela foi pintora, poeta, compositora, cientista, monja, filósofa, médica e profeta. Conheça a incrível história de Hildegarda de Bingen, a monja feminista que escrevia poemas de amor e sexo, e descreveu o orgasmo feminino no ano de 1.140 d.c.
Décima filha de um casal católico, Hildegarda de Bingen teve seu destino determinado ao nascer, seria doada como dízimo à igreja.
Nascida na cidade de Bermersheim na Alemanha no ano de 1.098, Hildegarda foi entregue à Igreja para ser monja.
Seus pais a deixaram em um monastério que possuía uma ala destinada às mulheres quando ela tinha apenas oito anos de idade.
Vitral católico representando à santa Hildegarda de Bingen
Desde os três anos Hildegarda tinha visões, mas só depois dos quarenta começou a escutar uma voz que lhe dizia que escrevesse e desenhasse tudo aquilo que seus olhos e ouvidos alcançassem.
Conheça agora essa mulher incrível que escreveu e desenhou o que sua alma lhe pediu, e nos deixou uma obra intrigante e bela, sobre a mulher, a amor e o sexo.
Quem foi a monja Hildegarda
Pintora, poeta, compositora, cientista, monja, filósofa, profeta… Uma mulher de um poder e uma coragem impensáveis para a época, que conseguiu uma autorização do vaticano para estudar e escrever sobre seus estudos.
Vivendo em um monastério de monjas desde criança, Hildegarda tornou-se abadessa. Atormentada por suas visões convenceu o Papa que a permitisse escrevê-las e assim começou a registrar suas visões, suas previsões, escreveu livros de medicina, de remédios naturais, cosmologia e teologia.
Com o passar do tempo a monja começou a estreitar relações com as autoridades eclesiásticas e políticas tornando-se conselheira, algo que era totalmente vetado para mulheres naquela época.
Uma mulher visionária, detentora de algum poder secreto que a fez ascender a posições jamais imaginadas em uma era medieval, onde mulheres eram queimadas por produzirem remédios caseiros ou simplesmente por escolherem uma religião não cristã.
Hildegarda interpretada por Bárbara Sukowa no filme “Visión”
A monja e o sexo
Com relação ao sexo a monja foi uma revolução quase inacreditável. Hildegarda falava do tema com uma liberdade que não existia na época, especialmente na vida religiosa, e mais ainda se tratando de uma mulher.
Em uma linguagem clara e apaixonada Hildegarda fez o que seria a primeira descrição do orgasmo feminino do ponto de vista de uma mulher e se atreveu a garantir que o prazer sexual era de ambos, homem e mulher, e não somente do homem como se fazia acreditar na época.
Para ela, o ato sexual era algo belo, sublime e ardente. Nos seus livros dedicados à medicina abordou com frequência o tema da sexualidade.
No livro “Causa et Curae” (Causa e Cuidado), escrito por ela, vemos uma descrição detalhada e técnica do ato sexual entre homem e mulher:
“Quando a mulher se une ao homem, o calor do cérebro dela, que tem em si o prazer, faz com que ela saboreie o prazer da união e atraia a ejaculação do sêmen. E quando o sêmen cai em seu lugar, esse fortíssimo calor do cérebro o puxa e o retém consigo, e imediatamente o órgão sexual da mulher se contrai e se fecham todos os membros que durante a menstruação estão prontos para abrir-se, do mesmo modo como um homem forte agarra uma coisa dentro de sua mão.”
Hildegarda de Bigen no livro “Causa et Curae”
Eva e a maça: A verão feminista de Hildegarda sobre o pecado original
Além de sua produção relacionado ao sexo, em particular sobre a mulher e sua sexualidade, Hildegarda tinha uma leitura bem polêmica com relação a diversos dogmas católicos, como por exemplo sua visão ultra feminista de Eva e o pecado original.
No livro “História Medieval do sexo e do erotismo”, Ana Martos explica a forma como Hildegarda percebia a passagem bíblica onde somos apresentados ao pecado através do deslize de Eva com a maça e o assédio da serpente:
“Assim como para Santo Agostinho a concupiscência é o castigo de Deus, para Hildegarda, que não se atreveu a contradizê-lo e admitiu a ideia de que o pecado original era de luxúria, a culpa foi de Satanás, que soprou veneno sobre a maçã antes de entregá-la a Eva, invejoso de sua maternidade. Esse veneno foi, precisamente, o prazer, e seu sabor, o desejo sexual.”
História medieval do sexo e do erotismo – Ana Martos
Incrível o que foi capaz de produzir esta mulher, em 1.140! Uma época onde as mulheres eram perseguidas e queimadas em gigantescas fogueiras. Uma figura especial não só na história do conhecimento, mas também da Igreja Católica.
Cena do filme “Visión” que conta a história de Hildegarda de Bingen
“O desejo sexual é o sabor da maçã”
Hildegarda interpretada por Bárbara Sukowa no filme “Visión”
Poemas de amor e sexo da monja rebelde
O erotismo permeou toda sua obra, seus poemas também levantavam as questões sexuais.
“Tu Dulcissime Amator” (Seu doce amante,) um poema dedicado às virgens:
Nascemos no pó,
ai!, ai!, e no pecado de Adão
É muito duro resistir
O sabor que tem a maçã
Eleva-nos, Cristo Salvador
Cerveja e ressaca, temas que Hildegarda tratou em seus livros sobre saúde
A monja era a favor da cerveja e tinha até uma receitinha caseira para curar a ressaca que aparece em seu livro de medicina “Causa et Curae” (Causa e Cuidado):
“(…) de sua parte, a cerveja engorda as carnes e proporciona ao homem uma cor saudável no rosto, graças à força e boa seiva de seu cereal. Em troca, a água debilita o homem e, se está doente, às vezes lhe causa malignidade ao redor dos pulmões, já que a água é fraca e não tem vigor nem força alguma. Mas um homem saudável, se bebe água às vezes, ela não lhe fará mal.
Para atenuar os sintomas do excesso, molhar uma cadela na água e, com essa água, molhar a frente da pessoa afetada.”
Hildegarda de Bingen no livro “Causa et Curae”
A santa Hildegard von Bingen
Canonizada em 2012, a santa “Hildegard von Bingen” teve uma vida movimentada e repleta de êxitos.
É difícil compreender como uma monja que viveu em uma época onde as mulheres não tinham direito a quase nada, nem mesmo de aprender a ler e escrever, foi capaz de conseguir tanto espaço para se expressar e produzir.
Alguns indícios nos ajudam a chegar mais perto de entender o que foi a vida desta mulher, que estava cercada de encantos e magias inexplicáveis.
Suas várias mortes, as premonições, o uso que fazia da música para curar doenças, e sua morte real aos 82 anos em uma época em que a expectativa de vida era de 40, constroem um pouco essa aura de santa que sempre envolveu a menina que foi dada à Igreja como dízimo.
Hildegarda interpretada por Bárbara Sukowa no filme “Visión”
O filme que conta a fascinante história de Hildegarda Von Bingen
“Visión” foi lançado em 2009 e conta a história desta santa feminista da era medieval.
Os diálogos do filme estão baseados em frases textuais extraídas de seus tratados e cartas.
Aa músicas que compõem a trilha sonora do filme foram compostas pela própria Hildegarda durante sua vida no convento nos anos 1.100.
Um filme lindo para uma história incrível que vale à pena assistir. As fotos que ilustram esse post foram todas tiradas deste filme.
Artistas que se inspiraram na vida da monja feminista
Além da medicina, da ciência e da filosofia, Hildegarda foi uma artista, escreveu poemas e compôs músicas. E claro que inspirou, e continua inspirando até os dias de hoje vários artistas ao redor do mundo.
Um destes artistas é o músico americano Devendra Banhart, que fez uma canção que se chama “Für Hildegard von Bingen”.
Esta música foi inspirada nesta santa alemã, revolucionária e feminista.
Deixo aqui o videoclipe da música, com Hildegarda sendo interpretada por uma joven negra, rebelde e feminina, que foge do convento para ser uma cantora de sucesso.
Esta foi Hildegarda von Bingen, uma santa, rebelde e feminista que nos fascina pela força com que se manteve fiel aos seus ideais, mesmo vivendo em uma época onde as mulheres não deveriam falar, nem pensar.
Próxima semana vamos conhecer a história de mais uma mulher intrigante e inspiradora, que ousou ser mais do que a sociedade permitia a uma mulher ser.
Quem já pesquisou a história dos ingredientes cervejeiros – mais especificamente o lúpulo – provavelmente topou com o nome da abadessa alemã Hildegard von Bingen, um dos luminares do conhecimento sobre a flor que dá amargor e aroma à cerveja, além de conservar a bebida. Como virou santa em 1584, é fácil imaginar que vez em quando se dê uma rezadinha para Hildegard, para que a brassagem não desande ou sobre dinheiro e saúde para a próxima boa cerveja.
Hildegard, nascida em 1098 na Renânia, tem fama cervejeira merecidíssima, mas não é autora da primeira citação a respeito do lúpulo na elaboração de uma de nossas bebidas prediletas, como se diz à boca larga. A glória cabe a outro santo, Adelardo, que em 822, no monastério beneditino de Corbie, França, enumerava obrigações dos abades – uma delas fornecer um décimo do malte e do lúpulo colhido ao monge incumbido de fabricar a cerveja. Adelardo não deixa claro como o lúpulo era utilizado na fabricação de cerveja, mas chegou antes. De qualquer forma, não perca sua fé: reze para os dois santos.
Hildegard foi quem, pela primeira vez, explicitou a qualidade conservante do lúpulo para a cerveja, embora não fosse grande fã dos efeitos da planta no organismo. Em sua avaliação, o lúpulo deixava o cabra meio jururu, caidão. “Ele não é muito útil ao bem estar do homem, porque faz a melancolia crescer, deixa a alma do homem triste e faz pesar seus órgãos internos. Porém, como resultado de seu próprio amargor, evita certas putrefações das bebidas, às quais deve ser adicionado, e assim elas podem durar muito mais tempo”, escreveu na obra Physica Sacra, de cerca de 1150, em que descreve o uso medicinal e prático de várias espécies que pesquisou.
Se você ainda devota Hildegard como a mais lupulina de todas as santas, é bom saber que ela preferia uma cerveja mais levinha, feita à base de aveia, gruit e folhas de freixo. Na mesma obra ela dá a receita: “Se você também deseja fazer cerveja com aveia sem lúpulo, mas apenas com gruit, deve fervê-la depois de adicionar um número muito grande de folhas de freixo. Esse tipo de cerveja purga o estômago do bebedor e torna seu coração leve e alegre”.
Outro mito que envolve Hildegard von Bingen é o de que ela própria teria sido mestre-cervejeira. Adoraríamos ardentemente acreditar nisso, mas não há documento que prove a destreza da santa no comando das panelas de brassagem. O historiador da cerveja Martyn Cornell, no entanto, acredita sua obra deixa indícios suficientes de que ela manjava de longe a técnica de fazer cerveja com lúpulos e é de se supor que tenha de fato colocado a mão na massa em algum momento. Suposição com base em sua história de mulher curiosa.
Pioneira na cerveja, no feminismo, na causa ecológica e na música
Uma história peculiar e avançada para a época, dada a posição inferior da mulher na Europa do século 12 e em séculos subsequentes. Como décimo rebento da família (na época era comum ter-se mais de uma dezena de filhos), Hildegard nasceu predestinada a ser confiada à igreja, como mandava a tradição. Aos 8 anos foi entregue aos cuidados de Jutta, mestra em um claustro de monjas no mosteiro beneditino de Disibodenberg, onde em 1114 fez seus votos definitivos e ingressou na ordem.
De pequena tinha visões e acreditava ouvir a voz divina. Viveu em relativa clausura até chegar à casa dos 40 anos, mas acredita-se que tenha desenvolvido seus conhecimentos de medicina e botânica atendendo a gestantes e doentes que acorriam ao mosteiro. Dizia não ter tido uma educação muito esmerada, mas a obra caudalosa que escreveria durante a segunda metade de sua vida (chegou aos 81) prova o contrário.
Em 1141, teve uma visão que a ordenou que escrevesse tudo o que ouvia. Era Ele, afinal, quem mandava aquela brasa. Pôs mãos à obra e seus escritos chegaram ao conhecimento do Papa Eugênio III, que deu aval ao seu pensamento teológico. A aprovação papal fez de Hildegard uma celebridade na Europa e, fato incomum para uma mulher da época, viajou por Alemanha e parte da França pregando a doutrina cristã em público – a única mulher na história medieval a fazê-lo. Em vida, sua obra foi aceita pelos teólogos da Universidade de Paris, então a mais respeitada instituição de ensino europeia. A essa altura, também atendendo ao chamado de uma visão, já havia criado seu próprio mosteiro, em Bingen am Rhein (daí a alcunha von Bingen).
Sua obra extrapolou as questões de fé (como sabemos, chegou à cerveja) e envolveu teses e saberes que inspiram até hoje os movimentos feminista e ambiental. Não via o papel da mulher em seu tempo como satisfatório e foi a primeira a escrever sobre sexualidade e ginecologia, inclusive descrevendo o orgasmo feminino. Fez alegorias em que Deus era a figura de uma mãe amamentando a humanidade e a criação. Sua visão da medicina tinha caráter holístico, acreditava na união indissolúvel do homem com a natureza (não se formou médica, no entanto, pois o ensino era vetado para mulheres). Uma de suas profecias (fez várias) pregava que a profanação da natureza faria com que ela se voltasse contra o homem. Alguma relação com aquecimento global, efeito estufa e outras catástrofes modernas?
Foi biografada por dois monges com quem conviveu e essas obras ajudaram o processo de canonização, uma vez que lhe atribuíam milagres. Estudiosos atuais, porém, discutem a origem das visões de Hildegard. Uma turma acredita que se tratava de alucinações, causadas por uma espécie de neurose histérica, ou obra de uma terrível enxaqueca crônica. Há quem seja da tese de que Hildegard foi mesmo esperta: numa época em que não se ouvia a voz da mulher em nenhum assunto considerado sério, o prestígio de uma suposta revelação divina poderia abrir-lhe os ouvidos alheios.
Como se fosse pouca coisa, Hildegard von Bingen ainda compôs uma obra musical – evidentemente sacra, para ser cantada por freiras. Sua música ficou esquecida por séculos até 1979, quando ganhou as primeiras gravações. Lançado em 1982, o álbum A Feather On The Breath Of God, da soprano inglesa Emma Kirkby, virou hit. Hoje há dezenas de gravações disponíveis. E milhares de cervejas, mais ou menos lupuladas, para nosso prazer.
Hildegard von Bingen (1098-1179): Music From Symphonia Harmonia Caelestium Revelationum (Alba)
1 O Viriditas 8:48
O Virilissima Virga (11:35)
2 O Virilissima Virga
3 Columba Aspexit
4 O Virilissima Virga
5 O Euchari 8:32
6 O Quam Mirabilis Est 3:27
7 Ave Generosa 8:08
Caritas Abundat (10:22)
8 Caritas Abundat
9 O Frondens Virga
10 O Nobilissima Viriditas
11 O Spirit Sancto 8:07
Alto Vocals – Agnethe Christensen
Harp – Helen Davies
Pipe [Pipe & Pasaltery], Tar (Drum), Triangle – Poul Høxbro
Members of the vocal ensemble CON FUOCO
Um disco muito bom, sempre variado e interessante, com obras ou de von Bingen ou que giram em torno desta surpreendente e talentosa mulher medieval. Este disco é fino e raro. A gravação é ao vivo e muito boa, com aquele ar pirata porque ninguém limpou os sons do público em meio às interpretações.
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Mística, teóloga, escritora de livros de medicina natural e compositora. O Dia Internacional da Mulher é a data ideal para relembrar uma das personagens femininas mais interessantes da Idade Média.
Talvez a abadessa alemã Hildegard von Bingen tenha sido a primeira feminista da história.
Num mundo medieval dominado pela insegurança, pelo clero e por senhores feudais, Von Bingen não se deixou dominar. Com muita habilidade e trabalho, construiu e administrou dois conventos, escreveu livros de teologia, medicina e ciências naturais, compôs música sacra. Sua maior batalha, no entanto, foi não se deixar calar.
Hildegard von Bingen desafiou sua época
Habilidades especiais
Quando Hildegard nasceu – não se pode precisar o dia em 1098 –, as primeiras cruzadas partiam para Jerusalém. Em 1095, o papa Urbano 2° conclamara a cristandade a “libertar a Terra Santa das mãos dos infiéis”, o que aconteceu quatro anos mais tarde.
A religiosa é sempre é retratada escrevendo
Com os cruzados, não somente pagãos, judeus e muçulmanos foram combatidos, mas também ensinamentos do Oriente chegaram à Europa medieval.
Hildegard provinha de família nobre da região de Alzey, no sul da Alemanha. Já aos três anos de idade, a futura abadessa demonstrava habilidades visionárias. Mas foi somente aos 15 anos, como interna do convento junto ao mosteiro beneditino de Disibodenberg, que percebeu quão especial era a habilidade que possuía.
Como era de costume entre as famílias nobres medievais, meninas e meninos saíam de casa, já na idade de sete anos, para a formação como cavaleiros e freiras. Além disso, muitas famílias preferiam ver suas filhas num convento do que nas mãos de um bruto senhor feudal.
Trívio e quadrívio
Relíquias de Von Bingen estão em Eibingen
Além da leitura dos escritos sagrados, a curiosa Hildegard pôde, no convento beneditino, aprender a ler e a escrever rudimentos de latim. Ela não teve, no entanto, um aprendizado sistemático dos cânones do conhecimento medieval baseados nas sete artes liberais, divididas em trívio (gramática, retórica e dialética) e quadrívio (aritmética, geometria, música e astronomia). Isto era reservado aos membros masculinos da ordem.
Hildegard viveu vários anos como uma simples freira. Com a morte da tutora Jutta, em 1136, ela se tornou a superiora do convento. Sempre acometida de doenças, tentava esconder suas visões. Aos 42 anos, recebeu a incumbência divina de escrevê-las. Por medo da tarefa, caiu doente. Somente após a intervenção de Volmar, seu padre-confessor, e do abade Kuno, ela começou sua obra.
Hildegard trabalhou durante cinco anos no livro Scivias (Saiba o caminho), ditando-o para Volmar, que corrigia gramaticalmente os escritos em latim. São Bernardo de Clairvaux, um dos maiores teólogos do século 12, interveio junto ao papa Eugênio 3° em prol de Hildegard. O papa enviou uma comissão para examinar o caráter de seus escritos. Não houve dúvidas, eram palavras de Deus.
Novas visões
Abadia foi reconstruída em Eibingen, em estilo neoromânico
Pouco tempo depois, uma nova visão acometeu a futura abadessa. Deus lhe ordenava construir seu próprio convento, não mais sob a égide dos monges beneditinos. Estes ficaram bastante insatisfeitos com a decisão. O apoio papal tornara a visionária a atração do mosteiro em Disibodenberg. Hildegard caiu novamente doente, conseguindo assim vencer a resistência do abade Kuno, de quem se despede em 1150.
Acompanhada pelo monge Volmar, Hildegard construiu seu convento em Rupertsberg, próximo à cidade de Bingen, onde nunca morou, mas que lhe deu o nome pelo qual é conhecida até hoje.
Hildegard demonstrou grande talento como administradora. Conseguiu o apoio do papa e do arcebispo de Mainz na briga com os monges de Disibodenberg pelas terras, até então administradas pelos monges beneditinos, dadas pelas famílias das freiras que a acompanharam para o novo convento.
Sem proteção, nenhum convento poderia sobreviver na Idade Média. A prespicácia de Hildegard fez com que tanto o arcebispo de Mainz como seu admirador Frederico Barbarossa, eleito imperador do Sacro Império Romano Germânico, se tornassem responsáveis pela segurança de Rupertsberg.
Causa e cura
Cidade de Bingen deu nome à abadessa
No convento, a abadessa afrouxa as regras beneditinas. A música é muito importante para Hildegard. Para receberem o sacramento da comunhão, suas freiras, com anel no dedo e vestidas de branco e de flores, entoam canções que ela mesmo compunha. A idéia do casamento substitui a da morte na relação com Cristo, o que explica as procissões de freiras que antes pareciam fúnebres. Para Hildegard, a Igreja é uma mulher ao lado do Senhor.
Os trabalhos no hospital e na horta do convento levam a duas outras importantes obras da abadessa, o livro de ciências naturais Physica e o livro de medicina natural Causae et Curae, escritos entre 1151 e 1158. A obra de Hildegard sobre plantas medicinais escrita em 1158 é, até hoje, referência da medicina natural. Assim como São Bernardo de Clairvaux, Hildegard não acredita encontrar Deus na razão.
Ela aprendeu a olhar os lírios dos campos e a ver neles a presença divina que também levaria a cura de doenças. Para ela, o homem saudável estava em sintonia com Deus. Hildegard aliou a antiga medicina dos gregos, propagada por Galeno, à fé cristã. Para ela, micro e macrocosmo interagem lado a lado em sua percepção do homem e de Deus. Para honrar a Deus, o homem teria que interagir com seu meio-ambiente.
O século 12 trouxe muitas mudanças para a Idade Média, que se distanciava da idéia de um Deus absoluto. Hildegard foi aristotélica avant la lettre. Somente no século seguinte, São Tomás de Aquino, o mais sábio dos santos, resgataria teologicamente o aristotelismo na doutrina cristã.
Telúrica demais para ser santa
Miniatura de ‘Scivias’: Hildegard em visão divina
Por volta de 1160, novas visões divinas lhe levaram a pregar por diversas cidades alemães. Em Colônia, ela se opôs ao luxo do clero e à acídia dos cátaros. Em Trier, combateu a arrogância de clérigos e eruditos. Hildegard também se posicionou contra o fanatismo religioso da plebe. Em 1165, fundou em Eibingen um novo convento, que visitava duas vezes por semana.
Ela previu a própria morte para o dia 17 de setembro de 1179. E assim o foi. Hildegard von Bingen foi canonizada por decreto papal somente em 2012 pela Igreja Católica. Sua sagacidade também lhe gerara resistência e controvérsia. Talvez por isso seu processo de canonização tenha levado quase 900 anos.
Por outro lado, como poderia ter sido diferente para uma mulher que ousou penetrar um terreno destinado aos homens, alguém que sempre esteve tão próximo à terra?
Para Hildegard von Bingen, Deus existe para aqueles que achavam que ele existe. Pela mesma lógica, ela sempre foi santa para aqueles que achavam que ela o era. O boom da medicina natural prova que suas ideias ressoam até hoje, pois as doenças da sociedade industrial não podem ser curadas com os remédios que ela mesmo produz.
Hildegard von Bingen (1098-1179): Hildegard von Bingen e sua época
01 – Hildegard von Bingen – O magne Pater
Length: 2mn 59s
02 – Hildegard von Bingen – O aeterne Deus
Length: 2mn 12s
Élisabeth-Claude Jacquet de la Guerre (nascida Jacquet) nasceu em 17 de março de 1665, em uma família de músicos e mestres fabricantes de instrumentos em Paris.
Aos cinco anos, Luís XIV notou quando ela se apresentou, evidentemente como uma criança prodígio, em seu palácio de Versalhes. Isso a levou a se tornar cravista na corte do Rei Sol. Casou-se com um organista e, ao contrário de muitas mulheres da época, não abandonou a carreira para cuidar da família. Continuou compondo, tocando e dando aulas. Compôs obras instrumentais para cravo e violino, que foram muito apreciadas em sua época, além de algumas óperas de pouco sucesso.
Ela é autora de dois volumes de suítes para cravo. As suítes de 1687 são iniciadas com Prelúdios sem compassos (Prélude non mésuré). Trata-se de um tipo de música característico das suítes francesas naquela época, aliás não só na França, pois como escreveu o espanhol Padre Antonio Soler em seu tratado Llave de la modulación,
aquele que chega a um Órgão ou Clavicórdio, que não tenha tocado outra vez, vai se informando sobre quais partes estão saudáveis, ou afinadas, e quais não; se a pulsação pede força, ou suavidade, etc. e por fim, demonstra todos os Tons pelos quais há de passar a obra que quer praticar.
O Prelúdio não vai sujeito ao Compasso, mas ao movimento, e quando se encontra algum Tom duvidoso, se deterá nele, e se assegurará, fazendo a Modulação, que a obra terá como passar pelos diversos Tons.
Podemos ter certeza, então, que grandes cravistas como E.Jacquet de la Guerre, A.Scarlatti ou J.-P.Rameau, quando se sentavam ao cravo, improvisavam um Prelúdio no tom das obras seguintes. E os prelúdios das primeiras Suítes de Élisabeth estão entre as mais bem sucedidas tentativas de se colocar no papel aquele tipo de música cheia de fantasia livre.
Na suíte de 1707 que aparece neste CD, não há prelúdio: o movimento de abertura é uma dança de tempo bem marcado, uma flamande, variação da mais comum allemande. Esta suíte, composta quando a compositora tinha 39 anos (as outras são de quando ela tinha 19!), se encerra com uma Chacona mais longa que as outras.
Élisabeth Jacquet de la Guerre (1665-1729): Pièces de Clavecin
Suite I en Ré Mineur (1687) (15:05)
1 Prélude 2:28
2 Allemande 3:15
3 Courante 1:53
4 Sarabande 2:28
5 Gigue 1:47
6 Chaconne L’Inconstante 3:24
Suite II en Sol Mineur (1687) (10:55)
7 Prélude 1:23
8 Allemande 2:27
9 Courante 1:41
10 Sarabande 2:30
11 Gigue 1:32
12 Menuet 1:22
Suite I en Ré Mineur (1707) (18:09)
13 Prélude La Flamande 2:33
14 Double 2:32
15 Courante 1:13
16 Double 1:12
17 Sarabande 2:48
18 Gigue 2:41
19 Chaconne 5:10
Suite III en La Mineur (1687) (16:13)
20 Prélude 1:50
21 Allemande 2:54
22 Courante 1:45
23 Deuxième Courante 2:02
24 Sarabande 2:29
25 Gigue 1:34
26 Chaconne 3:39
Blandine Verlet – cravo Hans Ruckers II, 1624 (Musée d’Unterlinden, Colmar)
Gravado em 1998 BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Pleyel
Blandine Verlet (1942-2018)
A cravista Blandine Verlet também escrevia poesia. Vejam o que ela escreveu sobre seu instrumento: Preciso, intransigente, o som parte
Irreparável
Puro
Bruto
Sem possibilidade de arrependimento.
Élisabeth-Claude Jacquet de la Guerre com um cravo ao lado dela
Vimos na postagem anterior que as toccatas de Alessandro Scarlatti podem ser descritas como obras onde as regras do contraponto coexistem com improvisos muito livres, ainda que o uso da palavra improviso seja anacrônico: melhor dizer que são obras dominadas pela fantasia, palavra muito comum nos séculos de Frescobaldi, A.Scarlatti e Bach.
O chamado stylus phantasticus é uma definição que aparece na obra de Athanasius Kircher (1601-1680), um padre jesuíta alemão nascido na Turíngia, que estudou em Colônia (Köln) e passou a maior parte de sua vida em Roma estudando e ensinando sobre música, matemática, física e sobre o antigo Egito. Em sua obra Musurgia Universalis (1650), um grande compilado dos conhecimentos sobre música de sua época, ele ensina que havia vários estilos musicais, relacionados aos diferentes objetivos da música e meios sociais onde ela era executada, incluindo: stylus ecclesiasticus (música sacra), stylus madrigalescus (ligado a afetos amorosos e dolorosos, e ele cita exemplos ilustres: Lassus, Monteverdi, Gesualdo), stylus hyposchematicus (danças, balés e festas), stylus dramaticus (que daria origem à ópera)… e finalmente o stylus phantasticus que, segundo o jesuíta, é “apropriado para instrumentos. É o mais livre método de composição, não se submete a nada, nem a palavras e nem ao desenvolvimento de temas”.
Já nos nossos tempos, o organista, cravista e regente Ton Koopman resume assim: “O Stylus phantasticus busca entreter o público com efeitos especiais, surpresas, vozes irregulares, dissonâncias, variações rítmicas e imitações. É um estilo livre, improvisatório, que força a audiência a ouvir com atenção se perguntando ‘como isso é possível?’ ” (Koopman, 1991)
A palavra fantasia, então, descrevia o tipo de música livremente concebido por um músico solista. Nas obras do holandês Sweelinck e do alemão Telemann, encontramos fantasias para instrumentos de teclado e também para instrumentos de cordas ou flauta, mas sempre cada um desses instrumentos sozinho, sem acompanhamento, fugindo da prática do baixo continuo (Telemann por exemplo publicou as para violino com o aviso: “senza basso” – sem baixo). Na música de J.S.Bach são comuns as obras do tipo “Fantasia e Fuga”, ou ainda “Toccata e Fuga”, que resumem de forma bastante esquemática e racional (como é comum na obra do mestre de Leipzig) o contraste entre o stylus phantasticus e as regras do contraponto, normalmente com uma ordem programática que começa no caos e termina com a ordem. Na obra de seus filhos C.P.E. Bach e W.F. Bach são abundantes as Fantasias para teclado (sem fugas), que em meados do século 18 eram tocadas às vezes no clavicórdio, às vezes no pianoforte, às vezes no cravo.
Se estamos gastando tanto tempo com essas preliminares, é porque o estilo das Toccatas de A. Scarlatti tem muito a ver com o que a pena dos alemães definia como Phantasie, Fantasye, Fantasie, Phantasia… Ainda que ele próprio não utilize nenhuma dessas variantes do termo em seus manuscritos para teclado que chegaram até nós. Mas, considerando todas essas características do stylus phantasticus que vimos até aqui, podemos entender que a música para teclado de Scarlatti corresponde perfeitamente às definições acima do padre jesuíta do século 17 e do holandês Koopman. Há alguns poucos momentos de sonoridade mais ligada à dança ou à música vocal (o cantabile vai aflorar muito mais na música para teclado de seu filho Domenico Scarlatti), e há também, com mais frequência, fugas em que o mestre napolitano mostra seus conhecimentos da arte do contraponto desenvolvida por Palestrina, Sweelinck e outros. Mas o que predomina é sempre a fantasia, com peripécias rítmicas e harmonias inventivas e inesperadas. Considerado pelo compositor Johann Adolph Hasse (1699-1783) o maior mestre em harmonia na Itália e no mundo, o “velho Scarlatti” (expressão usada para diferenciá-lo de seu filho) realizou em suas toccatas diversos tipos de combinação estrutural entre o estilo livre e o contraponto. Enquanto nas toccatas para órgão de Buxtehude e de Bach (como respectivamente a BuxWV 155 e a BWV 565) há um caminho previsível do caos e da espontaneidade em direção à ordem, com contrastes violentos e floreios improvisatórios na primeira metade e o pulso firme a as regras estritas do contraponto na segunda metade, nas obras para cravo e órgão de Alessandro Scarlatti, também há uma tendência das fugas a ficarem mais para o final, mas em muitos casos a ordem dos movimentos é imprevisível: após a fuga pode vir um minueto (faixa 7 do CD6), ou pode vir uma série de variações (partite) sobre a folia de Espanha (última faixa do CD1).
Várias toccatas de A.Scarlatti têm um movimento “arpeggio”, normalmente no início da obra mas às vezes no meio. Esse tipo de sonoridade das notas arpegiadas soa muito idiomático, é claro, nas harpas mas também nas cordas pinçadas do cravo: lembremos do nome inglês harpsichord. O arpejo no início deixa clara a tonalidade de cada toccata e seu temperamento: um arpejo em lá menor (faixa 3 do CD4) não soa como o outro em dó maior (faixa 8 do CD4) ou ainda o outro em ré menor (faixa 8 do CD6). Outra característica do arpejo: quase o tempo todo nesses movimentos, ouvimos a livre fantasia de uma única voz, apenas raramente acompanhada pela outra mão do instrumentista. Na fuga é o contrário: sempre duas vozes seguindo as regras do contrapondo. E em muitos allegros há, com mais liberdade que na fuga, jogos de imitação entre as vozes. Se formos associar esses tipos de movimentos das toccatas de Scarlatti com as origens das formas instrumentais italianas, temos o seguinte:
Arpeggio – movimento de uma só voz, idiomático e típico de instrumentos de cordas como a harpa ou o alaúde, instrumentos esses de antiquíssima tradição mediterrânea, aparecendo em hieróglifos egípcios, na lira do mundo grego (instrumento de Orfeu, figura legendária que teria origem na Trácia, região que vai da atual Bulgária até Istambul) e também em instrumentos do mundo islâmico, que deram origem ao alaúde quando chegaram à Europa cristã por intermédio da Andaluzia, do sul da França e da Sicília, ilha onde nasceu Alessandro Scarlatti;
Fuga – movimento com duas ou mais vozes se imitando, uma seguindo, procurando a outra que foge na frente (daí o nome fuga, conferir também o nome italiano ricercare, análogo ao francês rechercher, em português procurar), forma musical com origem na música vocal cristã, seguindo as regras do contraponto. Este último, do latim punctos contra puntum (nota contra nota), surge na época em que o cantochão ou canto gregoriano começou a ser substituído nas igrejas pelo canto com mais do que uma linha melódica (voz);
Allegro e, mais raramente, Andante, Adagio, Presto, etc. – movimentos em que com frequência há imitações entre vozes, mas com muito mais liberdade e fantasia do que na fuga. Tratam-se, nesse nosso esquema explicativo, de movimentos que misturam aspectos do Arpeggio de origem instrumental mediterrânea (grega, egípcia, árabe, persa, etc) e da Fuga de origem vocal nas igrejas e monastérios cristãos.
A música europeia como conhecemos, ou seja, música escrita, foi apenas vocal por muito tempo, com as formas de música instrumental sendo escritas – e, depois, publicadas – muito tempo depois. Um grande revolucionário nesse sentido foi o cravista e organista da Basílica de S. Pedro do Vaticano, Girolamo Alessandro Frescobaldi (1583 – 1643), cujas obras instrumentais foram impressas em grandes tiragens que alcançaram a Inglaterra de Purcell e a Alemanha de Bach. Frescobaldi e o alemão Johann Jacob Froberger (1616 – 1667) foram os mais famosos compositores de música instrumental da primeira metade do século 17, e não só isso, mas os primeiros a alcançarem fama internacional com música instrumental em toda a história da música europeia. Na Europa do Norte, Sweelinck (1562 – 1621) é considerado um inovador ao compor fugas, fantasias e outras obras para teclado, mas nada disso ele imprimiu em vida, era tudo manuscrito.
A catedral de Palermo, provável cidade natal de Alessandro. Na foto abaixo, uma inscrição em árabe em pilastra da catedral
Mas não se deve, com isso, supor que toda música instrumental anterior ao século 17 fosse popular no sentido de estritamente não erudita, simplória, tocada por músicos amadores e sem estudo, bêbados em tavernas. As tradições de música instrumental de outros povos, como os indianos e os muçulmanos da Arábia e Norte da África, remontam a tempos muito mais antigos e essas tradições exteriores ao mundo musical cristão – que entravam na Europa, como vimos, por vários poros: Espanha, Marselha, Sicília – provavelmente tiveram algum peso na formação de Alessandro Scarlatti, um habitante de cidades portuárias mediterrâneas: Palermo, onde passou a infância, e Nápoles onde passou a maior parte da vida exceto alguns longos períodos em Roma.
O stylus phantasticus de A.Scarlatti se expressa principalmente em toccatas onde o imprevisível é a regra, mas também em algumas obras de variações: é o caso, no CD6, das 22 variações sobre a Folia, e das 10 “Partite sopra Basso obligato”. A primeira obra é uma das três que chegaram até nós nas quais Alessandro alça voos sobre o simples tema da Follia di Spagna, que provavelmente se originou em Portugal. E a segunda, com 10 partite (partes) sobre um outro tema, bem mais típico de Scarlatti com suas várias modulações. E outra obra do CD6 que parece única no corpus do compositor é o conjunto de 17 Introduttioni p[er] sonare, e mettersi in tono Delle Composizioni.
Instrumento da família do alaúde, de tradição muçulmana, na Capela Palatina, em Palermo
São pequenos prelúdios improvisativos, com a função explícita de ajudar o músico (e seus ouvintes) a meter-se no tom das composições. Me chama a atenção o número desleixado, enquanto Bach e Chopin compuseram prelúdios em grupos de 24, um em cada tom, e até fora dessa armadura das tonalidades, Debussy compôs dois livros de 12 prelúdios. Também Scriabin compôs 24 prelúdios e Shostakovich tem dois conjuntos de 24, o segundo também com 24 fugas. Alessandro Scarlatti, por outro lado, parece não se preocupar se seriam 12, 24 ou 17, como seu filho aliás, que gerou sonatas com a mesma irregularidade orgânica de uma árvore dando frutos.
Na mais longa toccata destes dois CDs de hoje, a toccata em sol maior (CD4, faixa 7), como explica Francesco Tasini no encarte do álbum, estão presentes todas as cartas na manga de A.Scarlatti: “passagens com efeitos brilhantes intercaladas com amplos arpejos de harmonia extravagante e bizarra”. Essa harmonia extravagante dos arpejos combina com a liberdade rítmica das fantasias de que temos falado, correspondente à liberdade dos préludes non mésurés (prelúdios sem compasso) da música francesa do século 17.
Podemos supor que as harmonias das óperas de A. Scarlatti são mais previsíveis, mais atentas ao gosto popular, enquanto na música para teclado, de um âmbito mais do lar, as harmonias são mais extravagantes, mais sonhadoras e às vezes dissonantes.
Alessandro Scarlatti (1660-1725): Obra completa para teclado, CD 4
Moderato in Do minore
Toccata per Cembalo del Sig.r Cav.r A.Scarlatti in Do magg. (Tempo di Minuetto, Fuga)
[Toccata IV] in La Minore (Arpeggio, [Allegro], Fuga)
O acoplamento dos extraordinários Quartetos de Debussy e Ravel é muito comum, mas felizmente faz muito mais sentido do que outros pares que andam por aí. Para ambos os compositores, seus quartetos de cordas foram suas primeiras incursões na música de câmara. As duas são representativas de seus anos de formação antes de ganharem reconhecimento. Muitas semelhanças podem ser encontradas também na comparação da música. Os dois quartetos têm movimentos introdutórios rápidos, seguidos de um scherzo com partes de pizzicato, um movimento lento e um final vigoroso. Ravel foi acusado de imitação, pois Debussy produziu o seu primeiro, em 1893, e o de Ravel veio dez anos depois. Ravel estava em boas relações com Debussy na época e obviamente admirava seu Quarteto o suficiente para escrever parecido, o que levou os críticos a comentar que o trabalho de Ravel era apenas uma boa repetição do primeiro. Ravel sempre se ressentiu dessas acusações e protestou contra elas. As obras receberam reações estranhas quando estreadas. César Franck e Gabriel Fauré, professores de Debussy e Ravel respectivamente, tiveram apenas palavras de desaprovação a dizerem sobre a direção estilística de seus alunos. Mas a gente não dá bola, a gente gosta dos dois, um pouquinho mais do de Ravel. Já o Emerson é um capítulo especial. Que baita quarteto de cordas! Que prazer ouvir seu som vigoroso quando é o caso e delicado quando precisamos disso…
Claude Debussy & Maurice Ravel: Quartetos de Cordas (Emerson)
Claude Debussy – String Quartet In G Minor Op. 10
1 Animé Et Très Décidé 6:23
2 Assez Vif Et Bien Rythmé 3:46
3 Andantine, Doucement Expressif 7:42
4 Très Modéré — Très Mouvementé Et Avec Passion 7:08
Maurice Ravel – String Quartet In F Major
5 Allegro Moderato 8:13
6 Assez Vif — Très Rythmé 5:59
7 Très Lent 8:38
8 Vif Et Agité 5:14
Alguns mistérios cercam as sonatas de Domenico Scarlatti. Primeiro mistério: após publicar em 1738 uma série de 30 sonatas cuidadosamente preparadas, com dedicatória ao Rei de Portugal e prefácio escrito pelo autor (“nestas composições não espere nenhuma Aprendizagem profunda, mas sim uma engenhosa brincadeira com a Arte…” [Non aspettarti … il profondo Intendimento, ma bansi lo scherzo ingegnoso dell’Arte]), por que em seguida ele deixaria mais uma poucas dezenas de sonatas serem publicadas em edições feitas por outras pessoas sem dedicatória e sem muito cuidado? Por exemplo em uma edição parisiense de 1742, consta uma sonata do veneziano B. Galuppi (1706 – 1785) junto com algumas de Scarlatti incluindo a famosa K.96, como se fossem todas do mesmo autor.
E por que, na década de 1750, já com mais de 65 anos de idade, ele produziria centenas de sonatas, quase nenhuma sendo publicada nos grandes centros de edição musical (as dos anos 1730/40 saíram em casas de edição de Londres, Paris, Amsterdam), ficando restritas a cópias manuscritas que circulavam nos arredores de Madri e, depois, trazidas por músicos italianos também empregados na corte espanhola, iriam parar em bibliotecas na Itália?
Será que, em seus últimos anos D. Scarlatti deixou de se importar com a fama internacional – que exigia a impressão das obras – e preferiu se concentrar em compor suas sonatas para um público mais próximo que as copiava de mão em mão? Será que a sua aluna e patroa, Infanta Maria Bárbara, ao tornar-se Rainha em 1746, aumentou seu salário e benefícios de modo que ele parou de se preocupar com a grana das publicações? Tudo isso são só hipóteses, voos da imaginação, aliás José Saramago também imaginou muita coisa sobre a vida de Scarlatti em seu romance Memorial do Convento.
Um dos volumes manuscritos pertencentes à Rainha Bárbara
O que sabemos é que, dessas sonatas gravadas por Schiff, as poucas que foram impressas na época de Scarlatti são aquelas de número K. mais baixo, ou seja, compostas antes (mesmo as primeiras, contudo, parecem ter sido compostas quando Domenico já tinha uns 40 ou 50 anos de idade). Aquelas de número K. acima de 300 chegaram até nós apenas em manuscritos, principalmente uma coleção que pertencia à Rainha Maria Bárbara e hoje se encontra na Biblioteca de Veneza.
Em todo caso, ao escrever uma multidão de obras para teclado e dividi-las com amigos músicos e aristocratas do seu entorno, ele continuou a tradição do pai. Alessandro Scarlatti compôs dezenas de toccatas para cravo e órgão, sem se preocupar em publicar nenhuma delas. Assim essas toccatas se dispersaram em bibliotecas pela Itália, Portugal, Inglaterra, sendo reunidas apenas recentemente por Francesco Tasini na série de CDs que estamos postando este mês aqui no PQPBach.
O instrumento ao qual se destinam essas sonatas também é um mistério, pois na corte Espanhola havia vários cravos, pianofortes e órgãos, aliás fica clara a predileção da rainha Maria Bárbara e do rei Fernando VI da Espanha pelos instrumentos de teclado. Se é certo que D. Scarlatti era um virtuose do cravo, também é muito provável que ele tocasse piano e, se não tocava, certamente muitos de seu ciclo mais próximo tocavam. E ainda jovem, Domenico Scarlatti esteve em Florença no mínimo duas vezes na década de 1700 e viu os primeiros pianofortes criados por Bartolomeo Cristofore na corte dos Medici. Só não sabemos o que ele achou da novidade.
Eva Badura-Skoda (1929-2021), musicóloga, pianista e casada com pianista, tem suas hipóteses sobre o papel de Domenico na difusão do pianoforte:
É provável que Domenico Scarlatti tenha sido o primeiro grande compositor-intérprete que não apenas conheceu Cristofori em Florença como também experimentou o novo “cimbalo che fa il piano e il forte” e aprendeu a tocá-lo. Obviamente ele gostou da nova possibilidade de dinâmicas flexíveis, pois aparentemente foi Domenico Scarlatti que introduziu os novos instrumentos de Cristofori em Portugal após 1719. […] A princesa portuguesa Maria Barbara tornou-se aluna de Scarlatti em Lisboa, e quando ela se casou com o príncipe da Espanha, aparentemente a princesa imediatamente encomendou um “cravo com martelos” (piano) de Florença.
(Eva Badura-Skoda – The 18th century fortepiano grand and its patrons: from Scarlatti to Beethoven)
Assim, e considerando que Maria Bárbara encomendou não só um, mas cinco pianofortes para sua corte (um para o palácio de Aranjuez um para o Escorial, etc.), temos duas hipóteses: [A] Domenico Scarlatti não teve qualquer papel na difusão do pianoforte em Portugal e Espanha, sendo uma grande coincidência que ele tenha chegado a esses países junto com o instrumento. Nesse caso, a melômana princesa/rainha Maria Bárbara teria decidido, com uma leve influência de seu professor, que a corte espanhola precisava de cinco pianos. Ou [B] Um papel crucial de Domenico Scarlatti na difusão do pianoforte, ficando implícito que ele tinha muito interesse pelo novo instrumento, o que não significa, é claro, que ele estivesse abandonando completamente o cravo para ficar só com o “cimbalo con martelli” (cravo com martelos). Tudo indica que o cravo e o piano coexistiram na vida de Scarlatti sem ciúmes, assim como todos os tecladistas da época também tocavam órgão, é claro, sobretudo aos domingos e feriados religiosos.
Um mistério final: como essas sonatas compostas, quase todas, por um senhor de 65 a 72 anos conseguem ter tanta jovialidade, tanta dança nos momentos mais alegres e um cantabile tão fresco nos vários movimentos marcados andante? Sem falar nas ousadas dissonâncias, nos acordes carregados de notas próximas que hoje chamamos de clusters… Não temos resposta sobre qual era o elixir da juventude do velho Domenico, em todo caso, é curioso como muitas grandes gravações de D. Scarlatti são feitas por pianistas jovens. Vimos Pascal Pascaleff gravar várias sonatas da maturidade com um talento nato para os ornamentos e para o cantabile, vimos em postagem anterior do colega Denon a gravação cheia de brio de Ivo Pogorelich então com 30 e poucos anos.
Clusters na mão esquerda na abertura da sonata K.175
Hoje temos o então jovem András Schiff, que não fica atrás. Os dois álbuns Scarlatti que gravou, um foi aos 22 anos e o outro, com trinta e poucos. Ele mostra uma capacidade espantosa de fazer as vozes da música cantarem ao mesmo tempo, em um diálogo que é sempre interessante, da mesma forma que em suas várias gravações das obras de J.S.Bach. Hoje a sensibilidade do toque de Schiff não é segredo, especialmente para o público de Londres, que tem tido o privilégio de ouvi-lo várias vezes por ano no Wigmore Hall. Nesses tempos recentes de pandemia, os recitais no Wigmore Hall têm sido transmitidos ao vivo no Youtube. Mas já muito jovem, Schiff tinha todas as suas qualidades, como mostram esses dois CDs imperdíveis.
Domenico Scarlatti (1685-1757): 12 Sonatas
1. E Major K.162 Andante Allegro
2. A Major K.322 Allegro
3. B Minor K.27 Allegro
4. D Major K.96 Allegrissimo, “La caccia”
5. E Minor K.394 Allegro
6. F Major K.17 Presto
7. C Major K.420 Allegro
8. F Major K.518 Allegro
9. F Minor K.519 Allegro Assai
10. A Major K.208 Andante Cantabile
11. G Major K.427 Prestissimo
12. D Major K.491 Allegretto
Domenico Scarlatti (1685-1757): 15 Sonatas
1. Sonata in A Minor, K.175, Allegro
2. Sonata in C Major, K.513, Pastorale: Moderato – Molto Allegro – Presto
3. Sonata in E Minor, K.402, Andante
4. Sonata in E Major, K.403, Allegro
5. Sonata in G Major, K.144, Cantabile
6. Sonata in C Minor, K.115, Allegro
7. Sonata in C Minor, K.116, Allegro
8. Sonata in Eb Major, K.474, Andante e cantabile
9. Sonata in Eb Major, K.475, Allegrissimo
10. Sonata in G Major, K.449, Allegro
11. Sonata in G Minor, K.450, Allegrissimo
12. Sonata in Bb Major, K.544, Cantabile
13. Sonata in Bb Major, K.545, Prestissimo
14. Sonata in D Minor, K.516, Allegretto
15. Sonata in D Minor, K.517, Prestissimo
Edição de algumas “Peças escolhidas para o cravo ou o órgão do Sr. Dom. Scarlatti” (Paris, circa 1737-1740), uma das edições “desleixadas”, sem prefácio ou dedicatória, após os cuidadosamente editados “30 Essercizi” (1738)
Anciently music was not written as scrupulously as it is today, and a certain liberty was permitted to interpretation. This liberty went farther than one would think, resembling much what the great Italian singers furnished examples of in the days of Rubini and Malibran. They did not hesitate to embroider the compositions, and the reprises were widespread. Reprises meant that when the same piece was sung a second time, the executants gave free bridle to their own inspiration. (…) it would be betraying the intentions of Mozart to execute literally many passages in concertos written by that author for the piano. At times he would write a veritable scheme only, upon which he would improvise. (…) when I played at the Conservatoire in Paris Mozart’s magnificent concerto in C Minor, I would have thought I was committing a crime in executing literally the piano part of the Adagio, which would have been absurd if thus presented in the midst of an orchestra of great tonal wealth. There as elsewhere the letter kills; the spirit vivifies. But in a case like that one must know Mozart and assimilate his style, which demands a long study.
(Camille Saint-Saëns: On the Execution of Music, and Principally of Ancient Music – A Lecture delivered at the Salon de la Pensée Française, Panama-Pacific International Exposition, San Francisco, June 1915)
Órgão Serassi de 1836, utilizado no vol. 5
A música para órgão de Alessandro Scarlatti é composta basicamente de Toccatas em dois ou mais movimentos – partituras manuscritas nas quais muita coisa fica subentendida e ao gosto do intérprete – e de Fugas avulsas, ao contrário de vários de seus contemporâneos que escreveram música para órgão de caráter religioso, seja litúrgico, isto é, voltado para celebrações como a missa, ou não litúrgico mas ainda assim com expressão religiosa.
Entre os católicos, Frescobaldi (1583-1643) foi talvez o primeiro compositor a alcançar grande fama internacional por sua obra instrumental mais do que pela vocal: ele publicou a coleção de música litúrgica para órgão Fiori Musicali, além de outras obras sacras como 3 Magnificats no seu 2º livro de toccatas. Na França, temos duas Missas para órgão em 1690 por François Couperin (1668-1733, mas segundo algumas fontes o autor foi seu tio de mesmo nome), uma voltada para os conventos e outra para as paróquias, isto é, a primeira para frades e freiras, a segunda para o povão. Outros compositores como Grigny e Raison também compuseram Missas para órgão, um gênero comum no barroco francês.
E entre os protestantes há os Prelúdios Corais de Buxtehude (1637-1707) e de J.S. Bach, obras curtas sobre corais luteranos, tipicamente usadas como introdução para o canto congregacional ou como interlúdio nas celebrações, o famoso “tapa-buraco”. De forma similar, na música para órgão francesa se destacam os Noëls de Dandrieu e de Balbastre que são coleções de música para órgão baseadas em corais natalinos.
E voltando para a Alemanha, há também as Fantasias Corais e as Partitas Corais, cuja invenção é atribuída a Georg Böhm (1661-1733), são obras mais longas, de variações sobre os corais: como vimos, partite em italiano era uma obra composta de várias partes, comumente na forma tema-variações, portanto essas partitas corais são uma fusão das variações italianas com os corais alemães, o que mostra que havia conexões entre essas diferentes regiões da Europa, embora muita gente não viajasse: Alessandro Scarlatti, até onde sabemos, nunca esteve na Alemanha, nem J.S.Bach esteve na Itália, mas Bach foi um grande conhecedor de música italiana. A partir do repertório de manuscritos e cópias do Collegium musicum de Leipzig, comandado por Bach, sabemos que na década de 1730 eles tinham no seu repertório algumas cantatas de Händel (1685-1759), compostas em 1707 quando este estava em Roma, três cantatas do napolitano Nicola Porpora (1686-1768) e uma do também napolitano Allesandro Scarlatti. Ele também conhecia bem as obras de música instrumental de Corelli, Vivaldi e Frescobaldi.
Enfim, nada disso aparece na música para órgão de Alessandro Scarlatti: nem peças baseadas em corais, nem obras com o intuito de acompanhar qualquer liturgia… Não que ele não tenha tocado isso nas igrejas onde trabalhava – como na Basílica de Santa Maria Maggiore, uma das maiores entre as imensas igrejas de Roma. Mas podemos supor que o grande compositor se divertia sobretudo nos dias em que a igreja estava vazia e os instrumentos à disposição da sua fantasia para criar allegros, fugas e adagios.
No volume 3 da integral gravada por Francesco Tasini, novamente a originalidade de Alessandro Scarlatti se faz notar: ao contrário da suíte francesa, composta por danças com uma ordem mais ou menos definida, ou do concerto italiano em três movimentos no esquema rápido-lento-rápido, que Vivaldi levou à perfeição e alemães/austríacos como Bach e Mozart imitariam, aqui nessas Toccatas de Scarlatti a fantasia, o inesperado, a surpresa são a alma do negócio. Temos uma toccata longa em seis movimentos concluída por uma fuga, temos também toccatas mais curtas com fuga no final, mas em outros casos o último movimento pode ser um dançante Balletto de tempo bem constante e marcado (faixa 6), ou pode ser um longo e virtuoso Allegro ou Presto (faixas 5 e 7).
É importante notar também que as obras para órgão de Alessandro Scarlatti, ao contrário das de J.S.Bach, não tinham parte escrita para pedal, de forma que, em linhas, gerais, os dois instrumentos eram intercambiáveis: uma mesma composição podia ser tocada no órgão ou no cravo, bastando para isso que o intérprete ficasse atento a algumas propriedades intrínsecas a cada um desses instrumentos: por exemplo o órgão “segura” o som das notas por mais tempo do que o cravo, permitindo alguns acordes mais longos em bloco, acordes que no cravo provavelmente seriam tocados em forma de arpejo. Na toccata que aparece na faixa 2 deste CD, isso fica muito claro, pois o manuscrito explicita o que normalmente ficava implícito, ao nomear a obra: “Toccata per Organo, e per Cembalo, dou’è arpeggio sù l’Organo, è tenute, e dou’è tenute sù l’Organo, sù il Cembalo s’arpeggia” [Toccata para Órgão e para Cravo, onde é arpejo, no Órgão se segura, onde se segura, no Cravo se arpegia.]
Outra diferença: a ordem de grandeza do volume sonoro, claramente, é outra: se o som do cravo tem mais a ver com uma sala familiar ou no máximo um salão aristocrático, o som do órgão italiano utilizado por Francesco Tasini é muito mais alto, se impõe a muitos metros de distância.
No outro disco (vol.5), além das Toccatas e de alguns allegros e andantes avulsos, temos duas exceções: uma obra sacra e uma de variações. A faixa oito, composta de duas Fugas sobre um Kyrie e um Christe, é na verdade uma transcrição de uma “Messa breve ala Palestrina” a quatro vozes, composta por A. Scarlatti por volta de 1703, a cappella e em um estilo mais austero que o de outras missas do mesmo compositor. Certamente a intenção era agradar ao Papa e Cardeais que não gostavam da música teatral de Scarlatti e preferiam o estilo de Giovanni da Palestrina (1525-1594), estilo que foi por muito tempo o “estilo oficial” das Basílicas Papais de São Pedro do Vaticano, de São João de Latrão e de Santa Maria Maggiore. Porém há dúvidas se a transcrição para órgão é do próprio compositor ou se foi feita depois, em todo caso Francesco Tasini a incluiu no CD para fazer jus à prática de transcrição de obras corais que era muito comum no século 18. A outra exceção neste volume 5 é a Follia de Espanha, com apenas quatro partite ou variações, ao contrário das 29 variações que ouvimos no CD 1 e das 22 do CD 6.
Mas o destaque, para mim, é a primeira obra do disco, uma Toccata em três movimentos com um calmo Adagio central que soa sublime no órgão italiano de 1836 escolhido por F. Tasini. É uma lenta melodia cantabile, mais típica de Domenico Scarlatti do que do estilo de seu pai. E um curto Minuetto fecha essa toccata com chave de ouro.
Alessandro Scarlatti (1660-1725): Opera omnia per tastiera Vol. 3
Fuga in Re minore
Toccata per organo e per cembalo in La magg. ([Allegro], Presto, Partita alla Lombarda, Fuga)
Fuga in Do magg.
Toccata per organo in Do magg. ([Allegro] – grave – [Allegro], Allegro – Lento, Andante, Adagio assai, Andante – Adagio, Allegro Assai)
Toccata per cembalo in Do magg. ([Arpeggio], Arpeggio – Veloce, Presto)
Toccata aperta d’organo in La minore ([Allegro], Balleto – Allegro)
Toccata per organo in Do magg. ([Allegro], Allegro [in Sol magg.])
[Toccata per organo] in Do magg. ([Allegro], [Fuga])
[Toccata] in Do magg. ([Allegro], [Fuga])
Fuga in Fa minore
Toccata Terza in Sol minore (Allegrissimo, Arpeggio, [Fuga])
Francesco Tasini – organ by Antonio Sangalli (1854), chiesa di S. Paolo Apostolo di Ziano Piacentino, Piacenza, Italia
Certa vez, na falecida loja de discos clássicos do Marini, aqui em Porto Alegre, ouvi algo com o tom indiscutível da verdade: o Adágio da 5ª Sinfonia de Bruckner seria o mais longo adágio sinfônico já composto. Os frequentadores do Marini eram um bando de pernósticos dos quais hoje sei: eram meros chutadores. Mas comprei lá o CD com a 5ª. Nunca medi, mas penso que não seja o mais longo adágio, é APENAS um dos 5 mais belos que conheço. Por isso, a 5ª mora no meu ventrículo esquerdo. Bem, vamos ao contexto desta extraordinária gravação.
A menos que Andris Nelsons pretenda gravar “Die Nullte” (a sinfonia Nº 0 que Bruckner compôs em 1869 entre a primeira e a segunda obras numeradas), este será o último CD de seu ciclo com a orquestra de Leipzig, que se desenrolou paralelamente à série de Shostakovich do outro lado do Atlântico, com a Orquestra de Boston. Nelsons é maestro titular de ambas as orquestras. Como nas edições anteriores, as performances da Primeira e da Quinta Sinfonias são tiradas de concertos no Gewandhaus nos últimos três anos e, como as nos CDs anteriores, o conjunto é preenchido com pedaços pungentes arrancados de Wagner, neste caso o Prelúdio e Liebestod (sem o solista soprano) de Tristão e Isolda.
A Primeira Sinfonia foi apresentada pela primeira vez em 1868, mas Bruckner revisou a partitura no início da década de 1890, embora as mudanças tivessem sido relativamente pequenas. É essa versão final que Nelsons conduz, e sua natureza geralmente extrovertida combina bem com Bruckner. Ele é mais convincente nos movimentos externos. Há momentos no movimento lento em que ele parece deixar-se levar pela beleza lírica da música e pela forma como as cordas aveludadas da Gewandhaus a moldam. É nos movimentos externos que ele rende mais.
A Sinfonia Nº 5 é uma das preferências na vida de PQP Bach. Esta versão provavelmente convencerá qualquer agnóstico de Bruckner. Ela tem o toque extraordinariamente calmo e expressivo das cordas na abertura, a robustez encorpada dos metais graves nas passagens corais do primeiro movimento ou o som plangente de solo de oboé e fagote no movimento lento, um dos mais belos que já ouvi em minha existência. Muitas vezes sinto que o perigo na Quinta Sinfonia, sobretudo no último movimento, é que, com a quantidade de material repetido, há o risco do regente perder o foco e deixar as coisas caírem, mas aqui Nelsons consegue cumprir a difícil tarefa de mantendo a música movendo-se em direção ao seu objetivo, sem nunca sacrificar a profundidade dos momentos individuais. A chave para isso parece ser que ele é particularmente bom em executar longos crescendos: isso é muito eficaz não apenas no movimento lento, o tal adágio.
Uma das marcas do ciclo de Nelsons foi complementar as sinfonias de Bruckner com música de Wagner, e este álbum não é exceção, começando com o Prelude e Liebestod de Tristan und Isolde . A flexibilidade que Nelsons demonstrou nas sinfonias de Bruckner continua aqui, especialmente no Prelude, que nunca é rígido. É uma abertura sedutora que contribui para a conclusão satisfatória de uma série esplêndida.
Anton Bruckner (1824-1896): Symphonies Nos. 1 & 5 / Richard Wagner (1813-1883) : Tristan Und Isolde: Prelude & Liebestod (Nelsons, Gewandhausorchester)
Tristan Und Isolde, WWV 90
Composed By – Richard Wagner
1 Prelude To Act I 10:35
2 Mild Und Leise Wie Er Lächeit “Isoldes Liebestod” 6:57
Symphony No. 1 In C Minor, WAB 101 (Vienna Version 1890/91)
Composed By – Anton Bruckner
3 I. Allegro 14:04
4 II. Adagio 14:17
5 III. Scherzo. Lebhaft. Trio. Langsam 8:56
6 IV. Finale. Bewegt, Feurig 17:47
Symphony No. 5 In B-Flat Major, WAB 105
Composed By – Anton Bruckner
7 I. Introduction. Adagio. Allegro 20:45
8 II. Adagio. Sehr Langsam 18:41
9 III. Scherzo. Molto Vivace (Schnell). Trio. Im Gleichen Tempo 13:01
10 IV. Finale. Allegro Moderato 22:10
Como os visitantes mais atentos deste blog já leram por aqui, Domenico Scarlatti esteve em Florença no mínimo duas vezes na década de 1700, foi apresentado ao príncipe Ferdinando de’ Medici por seu pai Alessandro Scarlatti e conheceu os primeiros pianofortes criados por Bartolomeo Cristofori na corte dos Medici. As 555 Sonatas que garantiram a perenidade do nome de Domenico foram compostas anos depois, para serem tocadas principalmente ao cravo, mas é quase certo que o compositor ou seus contemporâneos também as tocavam ao órgão e ao piano, instrumento que a rainha Maria Bárbara importava de Florença.
O primeiro requisito a ser cumprido por um pianista que toca as sonatas de D.Scarlatti é tocar com as duas mãos de forma bem articulada, com peso igual em ambas, evitando que uma voz esconda a outra. O segundo requisito é uma atenção aos ornamentos, como trinados e appogiaturas, que são notas curtas e próximas à nota principal da melodia. Os ornamentos na música barroca devem ter ao mesmo tempo um ar de enfeites improvisados no momento e um caráter bem definido que só vem após um estudo profundo da partitura: um ornamento em um Andante é diferente de um outro em um Presto.
Atendendo a essas duas condições obrigatórias, resta ainda ao pianista muita imaginação para tocar as sonatas de forma variada, porque é difícil aguentar um CD ou um recital inteiro com 14 ou 18 sonatas soando parecidas. Normalmente essa variedade é alcançada alternando entre movimentos mais rápidos e mais lentos, aliás um erro comum com Scarlatti é tocar tudo muito apressado e como em uma competição de quem chega primeiro na linha de chegada… De fato, se Scarlatti era respeitado por seus contemporâneos como um virtuose do cravo, é verdade também que a maioria das sonatas foi composta nas suas últimas décadas de vida, provavelmente a maioria quando ele tinha mais de 60 anos de idade. O músico e historiador inglês Charles Burney (1726-1814) relata que teve acesso, por intermédio de um amigo, a um manuscrito com quarenta e duas peças de Scarlatti compostas nos seu penúltimo anos de vida, “entre as quais há vários movimentos lentos, e das quais apenas três ou quatro eu conhecia anteriormente, mesmo tendo colecionado composições de Scarlatti por toda minha vida. Elas foram compostas em 1756, quando ele estava gordo demais para cruzar suas mãos como costumava fazer, então elas não são tão difíceis quanto suas obras anteriores, que foram criadas para sua patroa, a rainha de Espanha, quando ainda era princesa das Astúrias.”
Maria Bárbara de Bragança, a patroa de Scarlatti (circa 1750)
Aqui cabem algumas explicações sobre o que escreveu Burney: as sonatas de maturidade também foram compostas para Maria Bárbara de Bragança, sob cuja proteção Domenico esteve até o fim da vida. E quando o autor fala em um corpo que engordou e não conseguia cruzar as mãos, é possível que se trate sobretudo da rainha de Espanha, vejam na foto ao lado…
O búlgaro Pascal Pascaleff, em seu primeiro álbum dedicado a Scarlatti, atende a todas as condições que mencionei acima. Ele se mostra especialmente cuidadoso com o cantabile – som que imita a voz humana – nas sonatas mais lentas, de andamento Allegretto (isto é, um pouco mais lento que um Allegro e com um certo humor que lembra os Scherzos das sonatas de Beethoven), Andante commodo ou simplesmente Andante. Sua gravação é o 25º CD na integral das Sonatas pela Naxos, integral que vem sendo lentamente gravada desde 1999 por mais de dez pianistas e ainda não terminou. Como dizem em inglês, “first come first served” ou, com significado não tão diferente por aqui, “quem chega por último é mulher do padre“, ou seja, as sonatas mais famosas já foram gravadas por quem chegou lá no começo: K.141 e K.208 no CD2 por Lewin, K.10 no CD3 por Jandó, K.96 no CD8 por Lee… Isso significa que Pascaleff, chegando na reta final da integral (faltam uns 6 a 10 CDs), pegou 18 sonatas mais ou menos desconhecidas entre as 555, mas ele claramente dedicou a elas toda sua atenção, passou longe de tratá-las como menos importantes. Nessas integrais lentamente gravadas, os músicos têm tempo de saborear as obras aos poucos, como foi o caso das inesquecíveis gravações das 32 Sonatas de Beethoven por Pollini (anos 1970 até anos 2010) ou dos Concertos de Mozart por Brendel/Marriner (1970 até 1985).
Domenico Scarlatti (1685-1757): 18 Sonatas
1. Sonata in F major, K.167, Allegro
2. Sonata in E major, K.206, Andante
3. Sonata in C major, K.243, Allegro
4. Sonata in E flat major, K.307, Allegro
5. Sonata in F major, K.350, Allegro
6. Sonata in E flat major, K.371, Allegro
7. Sonata in B minor, K.409, Allegro
8. Sonata in F major, K.437, Andante commodo
9. Sonata in A minor, K.451, Allegro
10. Sonata in D major, K.480, Presto
11. Sonata in C major, K.501, Allegretto
12. Sonata in G major, K.538, Allegretto
13. Sonata in G major, K.153, Vivo
14. Sonata in A major, K.221, Allegro
15. Sonata in E flat major, K.252, Allegro
16. Sonata in D major, K.281, Andante
17. Sonata in F major, K.297, Allegro
18. Sonata in A major, K.343, Allegro Andante
Pascal Pascaleff, piano
Recorded 19–21 August 2019 at The Bradshaw Hall, Royal Birmingham Conservatoire, UK
Curiosidade: na capa do álbum, vemos o Palácio Real de Aranjuez, uma das residências do Reis da Espanha, onde havia um cravo e um “clavicordio de piano hecho en Florencia”, segundo o inventário da Rainha.
O compositor italiano Alessandro Scarlatti escreveu sobre sua própria música: “A harmonia de minhas notas não é suficiente, em si mesma, para trazer uma sombra de prazer, se a força da Poesia, e a virtude dos Atores, não derem a ela a Semelhança do prazer”*
Talvez ele estivesse sendo excessivamente modesto nesse trecho de uma carta ao poderoso príncipe Ferdinando de Medici. Além disso, ele estava claramente falando de sua música vocal, que incluía óperas, cantatas, missas e oratórios. Mas em todo caso, essa ideia de que o texto escrito em si não basta parece ser uma chave para se compreender a música barroca e também as contradições de um período em que a cada década se publicavam mais partituras, mas ao mesmo tempo a música instrumental publicada e difundida internacionalmente ainda parecia uma inovação recente e curiosa. É importante, então, pensarmos um pouco sobre o papel do improviso e da fantasia livre do solista ao teclado, em tensão com as rígidas regras do contraponto, para apreciarmos as obras para cravo e órgão de Alessandro e também as de seu filho Domenico Scarlatti. É um repertório pouco gravado, que ouvi com o prazer de um voyeur que observa e ouve, pelo buraco da fechadura, um mestre do barroco italiano improvisando ao cravo. Algumas leituras foram necessárias para entender um pouco esse mundo tão diferente do nosso, mundo em que o improviso – palavra que ainda nem era usada no sentido musical em qualquer das línguas latinas! – coexiste com a música escrita, leituras que quero compartilhar com vocês.
Monteverdi (cavanhaque) e A.Scarlatti (cachos) – Hungarian State Opera
Comecemos então pela noção contemporânea de improviso, que na minha cabeça, talvez por influência do jazz, pareça uma palavra em primeiro lugar musical e em seguida aplicada a outros contextos. Não é o que nos diz o Dicionario d’italiano Tommaseo-Bellini (1861), que lista como primeiro significado de improvvisare: “Dire versi o Fare discorso, non preparati per l’appunto etc.” Só mais à frente, ele lista outros tipos mais específicos de improviso: “Improvvisare musica. – Variazioni d’un’aria, d’un motivo. – Un ballo o altra opera d’arte; Una festa”
No Dictionnaire de l’Academie Française, edições de 1694 e 1740, não consta qualquer versão da palavra improviso. Na edição de 1762, finalmente, aparece a palavra Im-promptu, assim com hífen mesmo, com a definição que traduzo a seguir: “Aquilo que se faz no momento. Utiliza-se apenas para um epigrama [gênero poético satírico], um Madrigal, ou outra Poesia feita sem premeditação. Diz-se também de um ‘bon mot”, um pensamento que foi planejado mas é dito como se tivesse surgido naquele momento.”
Ao contrário dessa palavra impromptu, ligada à poesia e com aparição musical tardia (até onde sei, Schubert e Chopin foram os primeiros grandes compositores a utilizar o título Impromptu em suas obras) e de seu irmão “improviso”, a palavra Fantasia tem um longo histórico de aparição nas obras de compositores de Barroco Instrumental, desde Sweelinck, passando por Frescobaldi e J.S. Bach, então talvez seja interessante entendermos o que as pessoas dessa época entendiam por Fantasia.
Esta palavra já aparece na edição de 1694 do Dictionnaire de l’Academie Française: Fantaisie. s.f. L’Imagination [Fantasia, subst.fem. A Imaginação], seguida de várias descrições complementares, incluindo a seguinte:
“Fantasia se diz também de uma coisa inventada por prazer, e na qual se seguiu mais o capricho do que as regras da Arte. ‘Uma fantasia de Pintor, uma fantasia de Poeta, de Músico, de tocador de alaúde’.”
No século 19 (ou final do 18?) o improviso/impromptu parece ter recebido o significado musical que ainda tem hoje e a fantasia pode significar mais ou menos qualquer coisa, mas sempre associada à imaginação, por exemplo na Sinfonia Fantástica de Berlioz (1830). Um caso curioso é o título pleonástico de Chopin “Fantaisie-impromptu” (1834).
A própria palavra “improviso”, portanto, provavelmente não era jamais aplicada à música nos tempos de A. Scarlatti, o que significa que o que hoje recebe este nome não existia? Ou no fundo o oposto disso: só quando a fidelidade ao texto torna-se padrão é que o improviso torna-se um momento específico, percebido e valorizado, como nas cadências dos concertos para piano de Mozart. Nos tempos de A. Scarlatti, o improviso era uma daquelas coisas óbvias demais para que alguém as nomeie, ainda que se improvisasse de formas diferentes em cada região da Europa, como explica N. Harnoncourt no livro O discurso musical: a música barroca italiana tinha uma imaginação sem limites, com abundante ornamentação que era improvisada de forma espontânea pelos intérpretes, enquanto o “estilo francês” se caracterizava pela forma clara e concisa, influenciada sobretudo pelas danças. A suíte de danças, diz ele, ganha sua forma definitiva na corte do rei francês Luís 14 (1638-1715). Muitos alemães como Froberger, Telemann, Bach e Händel imitaram a influente moda francesa, ao contrário de Alessandro Scarlatti, que em nenhum momento imita a suíte de danças, preferindo o estilo mais livre de Toccatas compostas por dois, três ou muito mais movimentos.
Harnoncourt relata ainda que na música barroca italiana devia-se, por princípio, fazer variações livres, seguindo a imaginação, sobretudo nas repetições (ritornellos). Havia poucas regras para esses improvisos em comparação com a música francesa, onde o código de ornamentação era refinado e complexo, aliás como a etiqueta das cortes francesas, onde havia lugares certos e bem definidos para a esposa do rei, para os irmãos, as amantes, etc. Harnoncourt se diverte ao comentar as disputas entre as “escolas nacionais”, como as críticas dos franceses à ornamentação livre dos italianos: escrevia um francês que o célebre compositor Lully (1632-1687), “defensor do belo e do verdadeiro, teria retirado de sua orquestra um violinista que queria estragar seu concerto ao adicionar fora de hora todo tipo de figuras pouco harmoniosas. Porque eles não tocam do jeito que está escrito?”, perguntou-se o francês…** No século 20, quando pianistas e saxofonistas de jazz trouxeram o improviso de volta às glórias – ao menos do ponto de vista dos críticos da arte ocidental – parecia imensamente distante a época em que Chopin e Liszt se sentavam no piano e improvisavam, levando multidões (Liszt) e salões nobres (Chopin) ao delírio.
Como também explica Harnoncourt, nos séculos 17 e 18, a música não era essa arte internacional, universalmente compreensível, que ela se tornaria hoje graças ao trem, ao avião, rádio, televisão e, mais recentemente, internet. Formavam-se nas diferentes cidades estilos particulares, que se desenvolviam de forma mais ou menos independente ao longo das gerações… Evidentemente, a comunicação era suficiente para que algumas pessoas notassem as diferenças entre esses estilos: virtuoses itinerantes mostravam em vários lugares as modas de seu país de origem, sem falar em alguns melômanos ricos que viajavam e podiam ouvir e comparar os estilos de diferentes lugares. Alguns compositores viajaram: Vivaldi, o padre de Veneza, escreveu as Quatro Estações em Mântua e morreu em Viena. É também o caso de A. Scarlatti que, ao longo de sua vida nasceu na Sicília, viveu em Nápoles e Roma, com períodos de alguns meses em Florença, viagens que hoje seriam consideradas curtas: ele aparentemente jamais pisou fora da Itália. Em todo caso, as viagens por terra eram lentas e sofridas, era preciso trocar os cavalos que se cansavam, sair da carruagem para fazer as necessidades vitais, ou vocês acham que tinha banheiro na carruagem? Então era preciso ter coragem para ir, por exemplo, da Itália a Amsterdam, cidade onde as Estações de Vivaldi foram publicadas, mas onde ele próprio, ao que tudo indica, nunca esteve.
Em comparação com as viagens de carroça ou de carruagem, eram mais fáceis e rápidas as viagens no mar Mediterrâneo, com suas águas muito mais calmas do que as do temível Atlântico. Por isso, podemos falar em um estilo barroco mediterrâneo, com algumas características compartilhadas entre Nápoles, Roma e a Península Ibérica. Nesse mundo ibérico onde mais tarde circularia Domenico Scarlatti, circulou também a Folia, um tipo de dança. Como dissemos antes, A.Scarlatti (assim como Domenico) não compôs suítes francesas com Allemandes, Courantes e outras danças em sucessão. Mas em suas toccatas se incluem algumas danças em pequeno número: dois Minuetos, duas Corrente (versão italiana da Courante francesa), um Balletto, uma Giga… Todos esses são movimentos curtos e ritmados misturados entre vários movimentos Allegro, Presto, Spiritoso, Arpeggio com grande liberdade rítmica. A Follia (com dois ll na grafia italiana) foi, portanto, a única dança que chamou a atenção de A.Scarlatti a ponto de leva-lo a compor obras de mais fôlego, no caso as 29 variações (ou partite, italiano que significa várias partes) que ouvimos neste 1º CD da integral de Tasini, além de outros dois grupos de variações: 4 no 5º Cd e 22 no 6º CD.
A “Folia de Espanha”, que provavelmente se originou em Portugal, é um exemplo dessa conexão do mundo mediterrâneo: surgida na Península Ibérica por volta de 1500, esse tipo de dança era associado às pessoas simples, pastores e camponeses, e teve alguma relação com festas populares incluindo o carnaval. Daí vem o nome, Folia, de folia mesmo. Por volta de 1700, essa dança se torna uma verdadeira mania, sendo utilizada por quase todos os compositores italianos e franceses da época: Corelli em 1700 (Sonata Op. V n. 12), Marin Marais em 1701 (Pièces de viole), Antonio Vivaldi em 1705 (Sonata da camera no 12 do seu Op. 1). Muitos anos depois, na Alemanha, J.S.Bach vai usar o tema na sua cantata dita “Camponesa” BWV 212, en 1742 e depois seu filho C.P.E.Bach também vai compor variações sobre o tema. Além, é claro, de Alessandro Scarlatti nas suas variações que encerram a Toccata nel Primo Tono provavelmente de 1710***. É uma Toccata quase toda alegre, apressada, ao contrário das suas “22 variações” que virão mais à frente e já tinham aparecido aqui.
As outras Toccatas deste 1º CD são bem mais curtas e há também movimentos separados que F.Tasini agrupa seguindo a prática da época. Me chama atenção a Toccata da faixa 11, com dois movimentos opostos: Spiritoso, Largo. O spiritoso (com espírito) tem a ver com a fantasia da qual falávamos agora há pouco, e também se opõe a um certo cantabile que é mais comum nas sonatas de seu filho Domenico. Aqui, nenhuma chance de se “cantar”, como uma voz faria, essas rápidas modulações que vão se seguindo conforme a fantasia do intérprete. Quando o compositor/músico entende de harmonia tanto assim, ele pode ir trocando as tonalidades da forma mais erudita e dando a impressão de estar apenas improvisando algumas modulações no seu cravo, passando por trinados e todos os outros ornamentos à disposição. Atenção, crianças: pra improvisar assim, tem que ter muito estudo.
Nestes primeiros CDs já dá pra perceber que a obra de A.Scarlatti para teclado é composta basicamente de Toccatas com um número indefinido de movimentos, além de Fugas avulsas e, em menor número, outros movimentos avulsos como arpeggio, vivace, etc. No segundo disco, temos apenas Toccatas, o que não significa que temos obras de proporções parecidas: nessas Toccatas de Scarlatti a fantasia, a imaginação, o inesperado são a alma do negócio. Assim, na interpretação – no fundo uma recriação – de Francisco Tasini, as toccatas aqui reunidas podem durar 10 minutos ou menos de cinco.
Alguns poucos movimentos têm um ritmo mais estável e melodia mais cantabile, como é o caso do Minueto que encerra a faixa 5 ou da Aria alla Francese que encerra a faixa 11. Mas a regra, sobretudo nos vários movimentos Allegro e Arpeggio, é o compositor exercitando a arte do não-cantabile, a música como ciência das modulações, com mudanças harmônicas abundantes e arpejos típicos do alaúde e da harpa (lembrar o nome inglês do instrumento: harpsichord). A ária que encerra a última toccata do disco com uma melodia singela e com aspectos de música vocal, contrasta com quase todo o resto das toccatas que ouvimos, marcadas por progressões harmônicas extremamente refinadas, arpejos muito livres criando efeitos sonoros caleidoscópicos, passagens de fuga ou com imitação entre vozes e ocorrências de moto perpetuo ou ostinato, de baixos constantes e hipnóticos e de ornamentos longos especialmente idiomáticos no cravo.
Como diz o próprio Tasini no encarte do álbum, para apreciar adequadamente as composições de teclado de Alessandro Scarlatti, o intérprete deve se preocupar em dar ao texto movimentos vivos e inventivos, ao invés de apenas reproduzir mecanicamente as notas determinadas pelo compositor. O que está na página deve ser considerado um mero esboço ao qual é necessário dar vida por meio da interpretação. Frequentemente, uma intervenção é necessária, especialmente nas seções denominadas Arpeggio, onde o que está escrito é mais um esboço do que a música em si.
Alessandro Scarlatti (1660-1725): Opera omnia per tastiera, CD 1
1. Arpeggio
2. Fuga
3. Corrente
4. Toccata
5. Primo Tono. Fuga
6. Fuga 2º Tono
7. Fuga 3º Tono
8. Toccata
9. Toccata
10. Fuga (Allegro)
11. Toccata per Cembalo (Spiritoso, Largo)
12. [Toccata]
13. Fuga
14. Fuga
15. [Toccata] (Largo, Allegro, [Fuga])
16. Toccata VII, Primo tono (Preludio, Adagio, Presto, Fuga, Adagio, Follia [29 Partite])
Francesco Tasini – cravo (clavicembalo italiano de anonimo, Ferrara, XVIII secolo)
Alessandro Scarlatti (1660-1725): Opera omnia per tastiera, CD 2
1. Toccata per cembalo in Re minore ([Andante], Largo, Fuga)
2. Toccata Per Cembalo in Re minore ([Arpeggio], [Allegro], Fuga)
3. Toccata per cembalo in Re minore ([Arpeggio], Fuga)
4. Toccata Per Cembalo in Re minore ([Allegro], Fuga)
5. [Toccata] in Mi Minore ([Allegro], Fuga, [Allegro], Minuet)
6. Toccata Per Cembalo in Sol maggiore ([Allegro], Fuga, presto)
7. [Toccata] in Re maggiore ([Allegro], Un poco largo, Allegro)
8. Toccata VIII in La minore
9. Toccata X in Fa magg. ([Allegro], Adagio, Presto, [Arpeggio], Allegro, Corrente)
10. Toccata in Sol maggiore ([Allegro], Fuga)
11. [Toccata VI] in Re minore ([Allegro], Aria alla Francese-Andante)
Francesco Tasini – cravo (clavicembalo italiano de anonimo, Ferrara, XVIII secolo)
Outra versão (restauração?) do retrato de A.Scarlatti quando jovem
Pleyel
* Nella loro vera o falsa modestia prezione rimandono dunque le parole che Alessandro stesso scrisse a Ferdinando de Medici: “L’armonia delle mie note non è mai bastante, per se stessa, ad apportare un’ombra di diletto, se la forza della Poesia, e la virtù degli Attori, non gliene diano la Sembianza.” (Carta de 1706 para o principe Ferdinando de’ Medici)
** Harnoncourt, 1982. O discurso musical. Especialmente o capítulo “O estilo italiano e o estilo francês”
*** A datação das obras para teclado de A.Scarlatti é muito incerta. Supõe-se que quase tudo seja da segunda metade da vida do compositor, e boa parte da última década, por conter o título cavaliere Scarlatti, honraria concedida em 1715 pelo papa Clemente XI. Nos textos muito detalhados dos encartes dos CDs, Francisco Tasini não se arrisca a datar nenhuma obra, passando ao largo dessa questão cronológica.
Eu adorei este CD de Telemann. Elizabeth Wallfisch solou e dirigiu a L’Orfeo Barockorchester realizando um trabalho de primeira linha. Bem, quando a CPO lança um disco como este, o ouvinte mais experiente pode ter certeza de que algo maravilhoso está sendo concebido. Neste primeiro disco da série de Concertos para Violino de Telemann (são vinte), temos motivo de regozijo. Essas performances são tão boas, e essa música é tão atraente e elegante, que imediatamente ouvi o disco inteiro pela segunda vez. Dado o número de CDs que cruzam por mim, esse é um elogio. Telemann era um músico com um enorme apetite pelo conhecimento e que assumiu a responsabilidade de dominar praticamente todos os instrumentos de uso comum em seu tempo. Dos cerca de doze instrumentos nos quais se tornou proficiente, foi o violino o seu principal interesse, e ele passou muitas horas aperfeiçoando sua técnica. Felizmente para nós, ele também foi um compositor prolífico e, como o muito difamado Vivaldi, deixou centenas de obras muito diversas e originais. Telemann estava mais preocupado com a melodia e seu lugar em uma composição e, como tal, desaprovava o que considerava ser um virtuosismo de mau gosto o estilo italiano de concertos. Em vez disso, ele favoreceu o estilo francês, com sua construção melódica mais suave e elegante. Vários de seus concertos têm quatro movimentos (lento-rápido-lento-rápido) em oposição ao estilo italiano de três movimentos (rápido-lento-rápido). Mas chega de papo.
Georg Philipp Telemann (1681-1767): Concertos para Violino 1 (Wallfisch)
Violin Concerto In C Major, TWV 51:C2 (10:15)
1 Affetuoso 2:13
2 Allegro 2:10
3 Grave 2:32
4 Allegro 3:20
Violin Concerto In G Major, TWV 51:G8 (6:36)
5 Allegro 2:32
6 Andante 2:03
7 Allegro 2:01
Violin Concerto In E Minor, TWV 51:e3 (7:06)
8 Allegro 2:32
9 Soave 2:14
10 Allegro 2:20
Violin Concerto In D Major, TWV 51:D9 (9:34)
11 Con Contento 1:21
12 Allegro 2:57
13 Largo 2:45
14 Vivace 2:31
Violin Concerto In E Major, TWV 51:E2 (11:28)
15 Affetuoso 3:58
16 Allegro Assai 2:18
17 Cantabile 2:29
18 Allegro 2:43
Violin Concerto In F Major, TWV 51:F2 (8:55)
19 Vivace 3:26
20 Largo 2:30
21 Presto 2:59
Violin Concerto In D Major, TWV 51:D10 (5:15)
22 Adagio. Allegro 2:15
23 Grave 0:41
24 Vivace 2:19
Bassoon – Nikolaus M Broda*
Cello – Katie Stephens, Nils Wieboldt
Double Bass – Jan Krigovsky
Harpsichord – Johannes M. Bogner*
Oboe – Andreas Helm, Carin van Heerden*
Orchestra – L’Orfeo Barockorchester
Psaltery – Margit Übellacker
Viola – Julia Fiegl, Lucas Schurig
Violin – Johanna Weber, Julia Huber, Martin Jopp, Martin Kalista, Michael Gusenbauer, Michi Gaigg, Petr Zemanec
Violin, Directed By – Elizabeth Wallfisch