
Sempre me perguntei a distinção entre Lied e Gesang que os alemães fazem e que, para nós, se perde na tradução – Lieder und Gesänge, como o ciclo de Mahler, vira “Canções e… Canções”. Fui ver, e as fontes beethovenianas que consultei asseguraram-me que Lieder – como os oito do Op. 52 – são canções mais concisas, normalmente estróficas e estruturalmente mais simples, ao passo que Gesänge – como as seis do Op. 75 – são formas mais extensas, com organização amiúde não estrófica (como aquelas inteiramente postas em música, Durchkomponiert) e acenos a recursos operísticos. Na obra de Beethoven, “Adelaide” seria o Gesang (termo que também designa “canto”) por excelência, ao passo que Urians Reise um die Welt (“A Viagem de Urian ao redor do Mundo”), com a reafirmação estrófica do protagonista de que encontra o mesmo tipo de gente em todo lugar que vai, bem, é um Lied.
Esse segundo volume de canções – sejam elas Lieder ou Gesänge – é muito variado e atraente. Gosto muito dos ciclos e aprecio a concisão com que Beethoven põe em música os por vezes curtíssimos poemas, como o de Goethe para um sujeito com seu esquilo – a “marmota” do título. Há varios duos, entre os quais Merkenstein, sobre uma visita às ruínas de um castelo na Áustria, e canções em italiano sobre textos de Antonio Domenico Bonaventura Trapassi, dito Pietro Metastasio, autor duma enormidade de libretos de óperas de sucesso, um filão aberto para todos compositores que, como Beethoven, aspiravam à fortuna com o teatro. Especialmente interessante são as duas composições baseadas sobre o mesmíssimo poema, L’amante impaziente, a primeira uma ária jocosa, e a segunda, uma ária “muito séria”. Minha favorita em todo disco é In questa tomba oscura: escrita para concorrer a um concurso que elegia a melhor composição sobre um poema de Giuseppe Carpani, ela destila a amargura que um homem desiludido leva à sua tumba (“Nesta tumba escura/Deixe-me repousar/Quando eu vivia, ingrata/Você devia pensar em mim”), e é sensacional a maneira com que o cromatismo do piano sublinha sua evocação a que as “sombras nuas” o encubram no episódio central.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Oito Canções (Lieder), Op. 52
Compostas entre 1792-96
Publicadas em 1805
1 – Urians Reise um die Welt (Claudius) [DFD, JD]
2 – Feuerfarb’ (Mereau) [PS, WO]
3 – Das Liedchen von der Ruhe (Veltzen) [DFD, JD]
4 – Maigesang (Goethe) [DFD, JD]
5 – Mollys Abschied (Bürger) [AS, WO]
6 – Die Liebe (Lessing) [DFD, JD]
7 – Marmotte (Goethe) [DFD, JD]
8 – Das Blümchen Wunderhold (Bürger) [DFD, JD]
Seis canções (Gesänge), Op. 75
Compostas em 1809
Publicadas em 1810
Dedicadas à princesa Caroline Kinsky
9 – Mignon (Kennst du das Land) (Goethe) [AS, WO]
10 – Neue Liebe, Neues Leben (Goethe) [DFD, JD]
11 – Aus Goethes Faust (Mephistos Flohlied) (Goethe) [DFD, JD]
12 – Gretels Warnung (von Halem) [AS, WO]
13 – An den Fernen Geliebten (Reissig) [AS, WO]
14 – Der Zufriedene (Reissig) [DFD, JD]
Quatro arietas e um dueto, Op. 82
Compostas entre 1801-1809
Publicadas em 1811
15 – Dimmi, Ben Mio, che M’ami (desconhecido) [DFD, JD]
16 – T’intendo si, mio Cor (Metastasio) [DFD, JD]
17 – L’amante Impaziente (Arietta Buffa) (Metastasio) [DFD, JD]
18 – L’amante Impaziente (Arietta Assai Seriosa) (Metastasio) [DFD, JD]
19 – Odi L’aura che dolce sospira (Duetto) (Metastasio) [AS, PS, WO]
20 – Der Mann Von Wort, Op.99 (1816, Kleinschmid) [GL, WO]
21 – Merkenstein, Op.100 (1814-15, Rupprecht, 2ª versão) [AS, PS, WO]
22 – In Questa Tomba Oscura, WoO 133 (1807, Carpani) [DFD, JD]
23 – Die Laute Klage, WoO 135 (1815, Herder) [DFD, JD]
24 – Andenken, WoO 136 (1809, Matthison) [DFD, JD]
25 – Gesang aus der Ferne, WoO 137 (1809, Reissig) [DFD, JD]
26 – Der Jüngling in der Fremde, WoO 138 (1809, Reissig) [DFD, JD]
27 – Der Liebende, WoO 139 (1809, Reissig) [DFD, JD]
28 – Der Bardengeist, WoO 142 (1813, Hermann) [DFD, JD]
29 – Das Geheimnis (Liebe und Wahrheit), WoO 145 (1815, von Wessenberg) [DFD, JD]
30 – Sehnsucht, WoO 146 (1815-16, Reissig) [DFD, JD]
31 – Ruf vom Berge, WoO 147 (1816, Treitschke) [DFD, JD]
32 – Resignation, WoO 149 (1817, von Haugwitz) [DFD, JD]
33 – Abendlied unterm gestirnten Himmel, WoO 150 (1820, Goeble) [DFD, JD]
Adele Stolte, soprano [AS]
Peter Schreier, tenor [PS]
Günther Leib, barítono [GL]
Dietrich Fischer-Dieskau, barítono [DFD]
Jörg Demus, piano [JD]
Walter Obertz, piano [WO]


#BTHVN250, por René Denon
Vassily
Apreciei tanto a reação suscitada pela 
SONATAS PARA PIANO por EMIL GILELS
SINFONIAS 1-9 sob OTTO KLEMPERER
SINFONIAS 1-9 sob BRUNO WALTER
Quando vi Patricia Kopatchinskaja pela primeira vez, algo acendeu em mim um alerta – algo a me sussurrar “Liberace”, ou “Nigel Kennedy”, ou “David Garrett”, ou algum outro nome de músico de óbvia competência, mas embriagado pela sedução do puramente espetaculoso. Aquele jeitinho calculadamente estranho, as pequenas esquisitices, a pegada hipster – sim, tudo havia para que eu a escutasse com preconceito. Quando isso finalmente aconteceu, eu me rendi imediatamente a seu encanto, e acabei por compreender que aquela estranheza toda, ademais compreensível para uma filha da estranhíssima Moldávia, era expressão, assim como sua música, dum talento sui generis.




Já lhes repeti tantas vezes o termo “balaio de gatos” nessa série que ele seguramente perdeu toda capacidade de evocar estranheza, então chamarei este disco de “bornal de ariranhas” porque, né, não é todo dia que alguém coloca o único oratório de Beethoven, já tão pouco encontradiço em gravações e programas, junto com um punhado de suas pouco ouvidas canções, apartados por uma pitada de um pouco célebre compositor do barroco alemão. O recipiente cheio de mustelídeos, no entanto, justifica-se plenamente em função de seu único denominador comum – uma das mais lindas vozes jamais ouvidas neste cacófono globo azul, um artista cuja partida prematura privou a música de muitos de seus mais belos dias, o maravilhoso Fritz Wunderlich (1930-1966).
Dinheiro, grana, gaita, bufunfa: chamem-no como quiserem, Beethoven sempre precisava dele. Ao recorrer novamente ao velho golpe de vasculhar o fundo da velha canastra dos tempos de Bonn e dela tirar algo que pudesse publicar, dela catou umas variações para trio com piano que compusera aos vinte e poucos anos e, soprando-lhes a poeira, deu-as à prensa doze anos depois, como seu Op. 44. Apesar de alegadamente serem sobre “um tema original”, sua origem é de outra lavra: um fragmento da ária Ja, ich muss mich von ihr scheiden (“Sim, eu tenho que me separar dela”), da ópera Das rote Käppchen (“O gorrinho vermelho” – sem relações com a história do Lobo Mau!) de Karl Ditters von Dittersdorf. Apropriação indébita? Talvez, mas o mais provável é que a obra, que tinha sido muito popular em Bonn na juventude de Beethoven, a ponto dele compor variações para piano (WoO 66) sobre um de seus temas, jazesse então na obscuridade, e que não fosse familiar a pessoa alguma em Viena. Não que nosso renano favorito fosse exatamente célebre pelo crédito que dava aos autores dos temas que lhe inspiravam variações: quando publicou suas monumentais “Variações Diabelli”, ele as intitulou tão só “Trinta e três variações sobre um tema” para piano; o nome do autor do tema só apareceu na primeira edição porque, bem, Diabelli era o editor.
A curiosa música para Die Geschöpfe des Prometheus (“As Criaturas de Prometeu”) é tão singular quanto as circunstâncias que levaram à sua criação. Quando a famosa companhia de balé de Salvatore Viganò chegou a Viena, em 1801, logo recebeu o convite para se apresentar para a corte imperial. O napolitano Viganò, sobrinho de Luigi Boccherini, normalmente compunha a música para suas próprias coreografias e imaginou um algo ambicioso libreto baseado no mito de Prometeu. Julgando a ocasião e a complexidade da proposta além de suas habilidades como compositor, convidou o ainda entusiasmado Beethoven pré-Heiligenstadt para contribuir com a produção. Ludwig respondeu de maneira pouco usual, escrevendo a música com rapidez e atendendo todos os prazos, de maneira que, quando da estreia no Burgtheater, a obra estava totalmente completa, sem a necessidade do tradicional expediente beethoveniano de copiar as partituras na penúltima hora lá nas coxias.
O catálogo pessoal de obras de Beethoven, que ele tanto relutara em inaugurar, fazendo-o somente aos vinte e quatro anos com três sólidos e meticulosamente revisados trios com piano, começou a romper suas criteriosas costuras naquele fatídico biênio de 1802-3. Não queríamos falar que ele precisava desesperadamente de dinheiro, mas, já que voltamos ao assunto, abordaremos aqui alguns de seus expedientes para tentar fazê-lo. Um deles, cada vez mais frequente, era o de negociar suas obras com vários editores ao mesmo tempo, o que levava muitas vezes a publicações simultâneas da mesma peça em cidades diferentes. O resultado nem sempre era satisfatório, tanto pela falta de cuidado de quem gravava as peças nas pranchas que iam à prensa, quanto pela falta ainda maior de paciência do compositor para revisar as provas gráficas de tantas editoras. Beethoven preferia ver suas composições amplamente publicadas e faturar com elas, mesmo que com o eventual desleixo de algumas edições, a perder totalmente o controle sobre elas, uma vez que, após a primeira edição, não havia qualquer maneira de coibir suas cópias não autorizadas.
Esse disco é quase todo composto por obras de associação pelo menos oblíqua com Beethoven. A serenata para flauta e piano, Op. 41, é uma adaptação da obra homônima para flauta, violino e viola, Op. 25. Embora tenha sido aprovado e corrigido pelo compositor, o arranjo foi provavelmente realizado por terceiros e publicado, sem surpresa, pela desesperada necessidade de dinheiro que se seguiu à infernal temporada em Heiligenstadt. A sonata em Si bemol, Anh. 4, foi encontrada em manuscrito de punho alheio entre os papeis do compositor, depois de sua morte. Os flautistas saudaram a descoberta e, renegados que foram pelo compositor, acabaram por incorporá-la a seu repertório. Os estudiosos, entretanto, nunca tiveram muita certeza de sua autenticidade e atribuiram-lhe um lugar pouco honroso no apêndice (Anhang), e não no rol principal do catálogo Kinsky-Halm. Os editores tampouco lhe deram muito crédito, de maneira que a simpática obra só encontrou a prensa em 1906, cento e dez anos depois de sua composição. Os minúsculos Allegro e Minueto para duas flautas, pelo contrário, são indubitavelmente criações de Beethoven, e inclusive carregam uma dedicatória a um seu amigo, J. M. Degenhart, que era flautista amador. E eu adoraria lhes afirmar que o melífluo trio para flautas que encerra o disco é obra autêntica, mas não lhes sei mentir: ela é considerada espúria e foi aqui incluída porque o artista que o estreou foi o mesmo que adquiriu o manuscrito e que aqui está a executá-la para vocês, e não seremos nós a dizer “não” para Jean-Pierre Rampal, né?



Kovacevich encerra sua travessia com uma leitura elétrica das três últimas, visionárias sonatas. Quando parece que não lhe vai mais sobrar energia depois da fuga do final da Op. 110, ele começa a Op. 111 com toda pilha, cantarolando com o mesmo vigor com que toca – percebam que ele fica ultra-alegre cada vez que ataca os baixos -, e quem o acompanhou até aqui sabe o que esperar das variações que coroam toda série: brilho e expressividade, incluindo um proto-jazz especialmente pirotécnico.














O melífluo romance em Sol maior, Op. 40, servirá aqui como mero pretexto para lhes alcançar uma gravação extraordinária tanto por seus protagonistas quanto, e especialmente, pelo contexto em que foi feita.
A temporada transformadora em Heiligenstadt, de onde Beethoven saiu em outubro de 1802 com a disposição, segundo suas próprias palavras, de “agarrar o Destino pelo pescoço, de modo a que não me destrua por completo”, resultou num surto de planos, muitas das quais, como era bem típico a alguém tão desorganizado e cheio de problemas para resolver, nunca passaram à prática. Um deles, no entanto, era particularmente firme: refazer seu cartaz como compositor-virtuose, um tanto apagado tanto pelo sucesso de suas publicações quanto pelos quase oito anos transcorridos desde a estreia de seu primeiro par de concertos. Tal vontade certamente inspirou-se no grande sucesso de outro compositor-virtuose: Johann Nepomuk Hummel, com quem Beethoven manteve por muito tempo uma relação ambivalente. Eram predominantemente amigos, mas também prevalecia uma inveja azeda acerca dos triunfos do colega mais novo, um requisitadíssimo professor e pianista, além da mágoa por ter sido preterido por Hummel como aluno de Haydn, que jamais foi superada. O fruto mais notável dessa resolução foi um novo concerto em Dó menor, cujos primeiros esboços datavam de cinco anos antes, e que tinha não tinha nem Haydn, tampouco Hummel como inspirações. O modelo óbvio era Mozart: mais especificamente, seu grande concerto K. 491, com quem a nova obra compartilhava a tonalidade e muita, mas muita mesmo, semelhança temática.