Já lhes repeti tantas vezes o termo “balaio de gatos” nessa série que ele seguramente perdeu toda capacidade de evocar estranheza, então chamarei este disco de “bornal de ariranhas” porque, né, não é todo dia que alguém coloca o único oratório de Beethoven, já tão pouco encontradiço em gravações e programas, junto com um punhado de suas pouco ouvidas canções, apartados por uma pitada de um pouco célebre compositor do barroco alemão. O recipiente cheio de mustelídeos, no entanto, justifica-se plenamente em função de seu único denominador comum – uma das mais lindas vozes jamais ouvidas neste cacófono globo azul, um artista cuja partida prematura privou a música de muitos de seus mais belos dias, o maravilhoso Fritz Wunderlich (1930-1966).
Wunderlich, que queria ser trompista, mas foi cooptado por uma professora de canto a soltar a voz e encantar o planeta, ainda não chegara ao seu apogeu artístico quando uma estúpida queda duma escadaria o matou, aos 36 anos. Sua carreira transcorreu essencialmente em teatros alemães e austríacos, onde a demanda por óperas italianas cantadas em alemão caiu como uma luva para sua voz brilhante, dir-se-ia mediterrânea, de tenor lírico, com um belíssimo timbre e a dicção impecável em seu idioma nativo. Entre as poucas gravações que nos deixou, aquelas feitas em estúdio são absoluta minoria, de modo que seus muitos fãs – entre eles, como já adivinharam, eu próprio – têm que recorrer aos registros muitas vezes precários, e quase sempre não autorizados de recitais e concertos, principalmente em festivais, e a fitas de transmissões radiofônicas para ouvi-lo e pranteá-lo ainda mais um pouco.
Essa gravação, o tal bornal de ariranhas, muniu-se justamente desses registros. Passaremos ao largo dos excertos de Rosenmüller e só comentaremos, acerca do oratório, gravado nos Países Baixos com músicos de uma rádio neerlandesa, que o brilho da maravilhosa voz de Wunderlich parece um pouco incongruente com a agonia no Monte das Oliveiras, o que parece fazer coro aos contemporâneos deque estranharam uma voz de tenor, em lugar de alguma mais grave, para o papel de Jesus. O que quero, e aliás meu único objetivo com essa postagem, é apresentar-lhes uma de minhas gravações favoritas em todos os tempos – a canção que Wunderlich nasceu para cantar com sua voz luminosa, a Adelaide.
Composta nos primeiros anos de Beethoven em Viena sobre um poema de Friedrich von Matthison, foi dedicada ao próprio poeta, que ele adorava. Intitulada “uma cantata para voz com acompanhamento de teclado” e totalmente posta em música (Durchkomponiert, ou seja, com música diferente para cada estrofe), ela narra através de duas seções contrastantes o anseio do poeta por Adelaide, uma mulher inatingível. Na primeira, um larghetto sobre um acompanhamento arpejado, o poeta enxerga Adelaide na luz entre as flores, “no reflexo do rio, na neve dos Alpes”, em contemplações da Natureza em várias estações, na noite e no dia. Na segunda, um allegro impetuoso, o poeta fantasia ultrarromanticamente que, depois de sua morte, brotará “de minha tumba, uma flor, das cinzas de meu coração” e que de suas pétalas violetas brilhará o nome de… sim, vocês sabem de quem.
Certamente o poema calou fundo em Beethoven, que estava sempre a sonhar com as intangíveis anáguas das aristocratas, e ele dedicou vários anos a sua composição. Apesar de seu muito sucesso, hesitou em enviá-la a Matthison, com medo de sua reprovação. Quando finalmente o fez, alcançou-lhe também uma carta em explica ao seu ídolo literário os motivos da demora, a qual, pela delicadeza com que Beethoven, que tanto se depreciava como um tosco de poucas maneiras e precária educação, merece ser traduzida (ainda que muito livremente):
“Estimadíssimo amigo:
Receberá com esta [carta] uma de minhas composições, publicada há já alguns anos, e ainda assim, para minha vergonha, da qual você provavelmente jamais ouviu falar. Não posso tentar me desculpar, ou explicar por que eu lhe dediquei uma obra que veio diretamente de meu coração, mas nunca o deixei saber de sua existência, a não ser que dessa forma: que eu primeiramente não sabia onde você vivia, e parte também por acanhamento, que me levou a pensar que fora prematuro em dedicar-lhe uma obra sem certificar-me de que você a aprovaria. De fato, mesmo agora eu lhe envio “Adelaide” com uma sensação de timidez. Você sabe por si mesmo que mudanças o passar de alguns anos traz a um artista que se mantém a fazer progressos; quanto maiores os avanços que fazemos na arte, menos satisfeitos ficamos com nossas obras de outrora. Minha vontade mais ardente realizar-se-á se você não ficar insatisfeito com o modo em que pus em música sua celestial “Adelaide”, e que ele [refere-se aqui ao modo] o instigue a escrever logo um poema similar; e se você não considerar meu pedido por demais petulante, imploro que você mo enviasse sem demora, para que eu dedique todas minhas energias a abordar sua adorável poesia com o devido mérito. Rogo que considere a dedicatória como uma retribuição pela satisfação que sua “Adelaide” em mim provocou, assim como a apreciação e o intenso deleite que sua poesia sempre inspirou, e sempre inspirará em mim [grifo de Beethoven].
Quando tocar “Adelaide”, lembre-se às vezes de
Seu sincero admirador,
Beethoven”
Matthison certamente não deixou de se lembrar de seu sincero e inseguro admirador. Ao apresentar “Adelaide” numa coletânea de seus poemas, já no final da vida, escreveu taxativamente:
“Muitos compositores trouxeram esta pequena fantasia lírica à vida através da música; estou firmemente convencido, no entanto, que nenhum deles fez tanta sombra ao texto com sua melodia quanto o gênio Ludwig van Beethoven em Viena”.
Quem escutar a solar gravação de Wunderlich só poderá concordar com o poeta.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Christus am Ölberge, oratório para solistas, coro e orquestra, Op. 85
Composto em 1803
Publicado em 1811
2 – “Erzittre, Erde!” – “Preist des Erlosers Gute” – “O Heil euch, ihr Erlosten” – “Doch weh! Die frech entehren”
3 – “Verkundet, Seraph, mir dein Mund” – “So ruhe denn”
5 – “Die mich zu fangen augezogen” – “Hier ist er”
6 – “Nicht ungestraft” – “In meinen Adern wuhlen” – “Auf, ergreifet den Verrater!” – “Welten singen Dank und Ehre” – “Preiset ihn, ihr Engelchore”
Fritz Wunderlich, tenor (Jesus)
Erna Spoorenberg, soprano (Serafim)
Hermann Schey, baixo (Pedro)
Groot Omroepkoor
Radio Filharmonisch Orkest, Hilversum
Henk Spruit, regência
Johann ROSENMÜLLER (1619-1684), arranjo de Fred HAMEL (1903-1957)
Lamentationes Jeremiae Prophetae
7 – 2. Lektion zum Mittwoch der Karwoche (Kap. 1, 6-9) – 3. Lektion zum Gründonnerstag (Kap. 3, 1-9)
Fritz Wunderlich, tenor
Lisedor Praetorius, cravo
Fred Buck, violoncelo
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
8 – Adelaide, Op. 46 (poema de Friedrich von Matthison)
9 – Resignation, WoO 149 (Haugwitz)
10 – Oito canções, Op. 52 – no. 4: Maigesang (Goethe)
11 – Der Kuß, op. 128 (Heisse)
Fritz Wunderlich, tenor
Hubert Giesen, piano
Vassily
carissimo vassily, bom dia! muito obrigado por este belo post!!!! wunderlich é realmente maravilhoso!!!! seu tamino é algo explendoroso – na maravilhosa gravação da flauta sob a batuta de karl bohm. os lieder de schumann dichterliebe é algo feito no céu!!! você mencionou o christus am olberge e a raridade com que é gravado. pois bem, venho aqui propor uma coisa: a postagem da gravação estupenda do oratório feita por bernhard klee, marido da grande edith mathis – que cantou bastante com fritz wunderlich – dirigindo a sinfonica de viena, com ninguem mais ninguem menos que james king como jesus, franz crass – o sarastro de karl bohm (com fritz wunderlich como tamino), como pedro e a maravilhosa elisabeth harwood – a musetta estupenda da la boheme de karajan – pavarotti e freni – como anjo. o coro é o wiener singverein – colossal. é uma gravação fenomenal. na minha opiniao, a melhor gravação do oratorio. som excelente – by deutsche grammophon – e a interpretação é de tirar o folego. não há como não se encantar e nada há para se arrepender. é uma gravação simplesmente estupenda!!! muito obrigado!!!
Oi, Bernardo, perdoe-me pela intromissão, mas vi que a gravação referida por você está no YouTube, portanto acessível a um desses programas de conversão.
Quanto à postagem de hoje, caro Vassily, mais um texto primoroso! Em termos de criação presente no virtual, um dos poucos consolos do período obscuro vivido por nós é a série com a obra de Beethoven.