Certos artistas excedem. Excedem ao nível do milagre. Hugo Diaz foi um dos maiores músicos de todos os tempos. Seu instrumento, a Harmônica, é algo muito particular e pouco popular se comparado aos outros instrumentos. Muito usual no blues, gênero no qual inúmeros nomes se assomam – porém destaco Paul deLay – a Harmônica (ou Gaita de boca – que não me ouçam os profissionais) floresce entre as fronteiras da música chamada popular e folclórica e o Jazz, gênero este que conta com o monumental Toots Thielemans em justo e inegável destaque. No Brasil temos os formidáveis Mauricio Einhorn e Rildo Hora, lembrando o ancestral e vistuosíssimo Edu da Gaita. Quando ouvimos Hugo Diaz não ouvimos uma Harmônica da maneira como usualmente a reconhecemos. Ouvimos “Hugo Diaz”. Assim como ocorre com o trompete em Louis Armstrong, Chet Baker e Miles Davis; ou na guitarra de Django Reinhardt e no sax-soprano de Sidney Bechet; nos acordeons de Sivuca e Dominguinhos. Encontramos o artista em toda sua inteireza. Seu sotaque, sua marca e timbre, sua expressão integral e presença quase física. Ele e instrumento são unos. No caso de Hugo isto se reforça também devido à coadjuvância dos seus ruídos. Diaz resfolega, grunhe, rosna, geme, soluça – lembro aos assépticos puristas de que Glenn Gould sem as suas intervenções naso-vocálicas não seria o mesmo. Diaz é artista que se arrebata e nos arrebata. Extrapola as possibilidades do seu instrumento. Nos induz à curiosidade de saber o que irá fazer na próxima faixa. Arrisca, anda na corda bamba dos sons, encontra soluções como verdadeiro mestre improvisador. Diaz briga. Briga e vence, muitas vezes não arremata o último acorde, deixa o ‘coup de grâce’ para os seus brilhantes acompanhadores. Em faixas como Vida Mia alguém desavisado poderia indagar que espécie de instrumento é aquele. Em suma, Diaz faz o que bem quer com seu instrumento e com a música. Ouvimos sons inéditos, em seu instrumento e, para mim, na música. É um mestre supremo, que com todo mérito e razão foi celebradíssimo em seu tempo e contexto e produziu fartamente. Victor Hugo Diaz nasceu a 10 de agosto de 1927 em Santiago de Estero, Argentina e se foi em Buenos Aires, em 1977. De família humilde, Hugo ficou cego aos 5 anos devido a uma bolada de futebol (esporte abominável para mim). Mais tarde uma cirurgia lhe restituiria apenas parte da visão, ou seja, Diaz se inscreve no rol dos gênios musicais cegos ou, que assim como o “amigo Hermeto, não exerga mesmo muito bem.” Aos 7 anos já se apresentava na rádio local. Embora conhecido principalmente por suas performances de Tango, sua música tem profundas raízes rurais, sobretudo na música folclórica de sua província natal: zambas, milongas camperas, chacareiras. Apesar do seu sucesso, sempre foi fiel aos músicos acompanhantes de sua juventude, como os Irmãos Abalo e o percussionista Domingo Cura. Numa turnê em 1953 encontrou Toots Thielemans, com mútua admiração. Nos Estados Unidos tocou com Louis Armstrong e Oscar Peterson – que desgraça não terem gravado, eu daria um olho para ouvir isso. Seu maior legado no repertório de Tango foi gravado nos anos 70. Seu último álbum foi dedicado a Gardel, em 1975. Hugo foi casado com Victória Cura, irmã do seu compadre percussionista. Sua filha Maria Victória – Maria ‘Mavi’ Diaz, tornou-se uma ressaltada representante do Rock Argentino. Trago, portanto, dois discos de Hugo Diaz. Agradeço ao harmonicista Diego Orrico por me apresentar a este soberbo artista. E, conforme dizia o Sr. Nogueira Pessoa, “sentir? sinta quem lê!” – ou quem quiser ouvir.
Mas, somente “porque hoje é Sábado” me lembrei do formidável Vinícius de Moraes. Conta-se que pouco tempo antes do poeta ser tolhido pelas Musas de volta ao Olimpo, um jornalistazinho insolente o abordou com uma indagação, se teria medo da morte. O poeta de olhos sábios e diluídos numa atmosfera de poesia e whisky, respondeu: “Não sinto medo da morte, mas saudades da vida.” Ora, neste histórico momento de Quarentena sentimos muitas saudades, se não da vida em si, das esquinas da mesma e dos seus botecos. E por virtude desta alvissareira lembrança de nosso poeta, trago um dos seus textos do livro “Para uma menina com uma flor” – “Depois da Guerra.” O que teria a ver Vinícius com Hugo Diaz? Para mim tudo, em poesia e intensidade. Mais explicações ficam a cargo da “Tonga da Mironga do Kabuletê.” E… não saiam de casa, fiquem ouvindo Hugo Diaz e lendo o velho Vini.
“Depois da Guerra vão nascer lírios nas pedras, grandes lírios cor de sangue, belas rosas desmaiadas. Depois da Guerra vai haver fertilidade, vai haver natalidade, vai haver felicidade. Depois da Guerra, ah meu Deus, depois da Guerra, como eu vou tirar a forra de um jejum longo de farra! Depois da Guerra vai-se andar só de automóvel, atulhado de morenas todas vestidas de short. Depois da Guerra, que porção de preconceitos vão se acabar de repente com respeito à castidade! Moças saudáveis serão vistas pelas praias, mamães de futuros gêmeos, futuros gênios da pátria. Depois da Guerra, ninguém bebe mais bebida que não tenha um bocadinho de matéria alcoolizante. A coca-cola será relegada ao olvido, cachaça e cerveja muita, que é bom pra alegrar a vida! Depois da Guerra não se fará mais a barba, gravata só pra museu, pés descalços, braços nus. Depois da Guerra, acabou burocracia, não haverá mais despachos, não se assina mais o ponto. Branco no preto, preto e branco no amarelo, no meio uma fita de ouro gravada com o nome dela. Depois da Guerra ninguém corta mais as unhas, que elas já nascem cortadas para o resto da existência. Depois da Guerra não se vai mais ao dentista, nunca mais motor no nervo, nunca mais dente postiço. Vai haver cálcio, vitarnina e extrato hepático correndo nos chafarizes, pelas ruas da Cidade. Depois da Guerra não haverá mais Cassinos, não haverá mais Lídices, não haverá mais Guernicas. Depois da Guerra vão voltar os bons tempinhos do carnaval carioca com muito confete, entrudo e briga. Depois da Guerra, pirulim, depois da Guerra, vai surgir um sociólogo de espantar Gilberto Freyre. Vai se estudar cada coisa mais gozada, por exemplo, a relação entre o Cosmos e a mulata. Grandes poetas farão grandes epopéias, que deixarão no chinelo Camões, Dante e Itararé. Depois da Guerra, meu amigo Graciliano pode tirar os chinelos e ir dormir a sua sesta. Os romancistas viverão só de estipêndios, trabalhando sossegados numa casa na montanha. Depois da Guerra vai-se tirar muito mofo de homens padronizados pra fazer penicilina. Depois da Guerra não haverá mais tristeza: todo o mundo se abraçando num geral desarmamento. Chega francês, bate nas costas do inglês, que convida o italiano para um chope Alemão. Depois da Guerra, pirulim, depois da Guerra, as mulheres andarão perfeitamente à vontade. Ninguém dirá a expressão “mulher perdida”, que serão todas achadas sem mais banca, sem mais briga. Depois da Guerra vão se abrir todas as burras, quem estiver mal de cintura, logo um requerimento. Os operários irão ao Bife de Ouro, comerão somente o bife, que ouro não é comestível. Gentes vestindo macacões de fecho zíper dançarão seu jiterburgue em plena Copacabana. Bandas de música voltarão para os coretos, o povo se divertindo no remelexo do samba. E quanto samba, quanta doce melodia, para a alegria da massa comendo cachorro-quente! O poeta Schmidt voltará à poesia, de que anda desencantado e escreverá grandes livros. Quem quiser ver o poeta Carlos criando, ligará a televisão, lá está ele, que homem magro! Manuel Bandeira dará aula em praça pública, sua voz seca soando num bruto de um megafone. Murilo Mendes ganhará um autogiro, trará mensagens de Vênus, ensinando o povo a amar. Aníbal Machado estará são como um perro, numa tal atividade que Einstein rasga seu livro. Lá no planalto os negros nossos irmãos voltarão para os seus clubes de que foram escorraçados por lojistas da Direita (rua). Ah, quem me dera que essa Guerra logo acabe e os homens criem juízo e aprendam a viver a vida. No meio tempo, vamos dando tempo ao tempo, tomando nosso chopinho, trabalhando pra família. Se cada um ficar quieto no seu canto, fazendo as coisas certinho, sem aturar desaforo; se cada um tomar vergonha na cara, for pra guerra, for pra fila com vontade e paciência – não é possível! Esse negócio melhora, porque ou muito me engano, ou tudo isso não passa, de um grande, de um doloroso, de um atroz mal-entendido!”
HUGO DIAZ – “TANGOS”:
HUGO DIAZ – “TANGOS” e “GRANDES OBRAS” – coletânea:
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