O post de hoje traz um disquinho para você mandar para aquele bonitão, aquela bonitona que diz que hoje em dia nada mais presta, que as coisas não são mais como eram, que não se fazem mais grandes músicos como antigamente e pipipi popopó. Nascido em Kyoto, no Japão, em 1994, Wataru Hisasue começou a tocar piano aos 5 anos de idade — e que bom que começou, porque olha, como toca esse rapaz… Wataru estudou na Alemanha — ele atualmente reside em Berlim — e na França e desde então vem colecionando prêmios: Aoyama (Japão), Massarosa (Itália), Lyon (França) e o da emissora ARD, na Alemanha. Os mais recentes dessa lista foram o Prêmio Liszt-Bartok e o Prêmio Beethoven da editora G. Henle Verlag, durante o 16º Concurso Géza Anda, em Zurique, na Suíça. Vem se apresentando, como solista e recitalista, pelo Japão e pela Europa. A participação dele, no primeiro dia de competição, pode ser vista a partir de +- 1h13m:
E num recital no Bechstein Centrum, na capital alemã, em 2022:
Esse disco, lançado em 2021, foi a estreia discográfica de Wataru (outros títulos devem aparecer aqui pelo blog no futuro). Eu particularmente gosto muito do arco formado pelo repertório, que passa por Domenico Scarlatti (1685-1757), Felix Mendelssohn Bartholdy (1809-1847), Maurice Ravel (1875-1937) e Olivier Messiaen (1908-1992). Um disco para se ouvir alto, de janelas abertas, num cair da tarde de sol preguiçoso, e se maravilhar com essa proeza da aventura humana no planeta que é a existência deste maravilhoso instrumento chamado piano.
Enfim, nem vou ficar aqui gastando muito o verbo, recomendo é que baixem o disco e se deliciem com o toque refinado e cálido, com o volume de som, com o olhar para o detalhe sem perder a pulsação do todo. Apesar de joven, Wataru toca com a maturidade e a verdade de alguém que viu os séculos e os milênios, profundamente humano. Meu xodó nesse disco é o Gaspard de la nuit, uma das coisas mais belas, incandescentes e geniais escritas para essa floresta de lã e aço. Wataru é um tremendo pianista, e que bom é saber que sua carreira está apenas em seus primeiros raios de sol.
Felix Mendelssohn Bartholdy (1809-1847) Fantasie in F-Sharp Minor, Op. 28, MWV u 92 “Sonate écossaise” 1- I. Con moto agitato
2 – II. Allegro con moto
3 – III. Presto
Domenico Scarlatti (1685-1757)
4 – Sonata in A-Flat Major, Kk. 172 5 – Sonata in G Major, Kk. 169 6 – Sonata in F Minor, Kk. 481
Olivier Messiaen (1908-1992) 20 regards sur l’enfant-Jésus, I/27 (excerpts)
7 – No. 5, Regard du Fils sur le Fils
8 – No. 8, Regard des hauteurs
Maurice Ravel (1875-1937)
Gaspard de la Nuit, M. 55 9 – I. Ondine
10 – II. Le gibet
11 – III. Scarbo
Felix Mendelssohn Bartholdy (1809-1847) Lieder ohne Worte, Book 4, Op. 53 12 – No. 1 in A-Flat Major, MWV U 154
Lieder ohne Worte, Book 5, Op. 62
13 – No. 6 in A Major, MWV U 161 “Frühlingslied”
Admiradores do canto coral, o post de hoje é para vocês. Nada mais, nada menos que uma caixa com 6 cds trazendo o crème de la crème do trabalho que o regente Eric Ericson desenvolveu ao longo de décadas à frente de dois coros na capital sueca: o Coro da Rádio de Estocolmo (hoje Coro da Rádio Sueca) e o Coro de Câmara de Estocolmo, fundado por ele.
Correndo o risco de soar exagerado, essa caixinha é o tipo de coisa que eu botaria na sonda Voyager para que os habitantes extraterrestres do cosmos soubessem que, apesar de ter dado um tanto errado como espécie, a humanidade teve seus momentos de extrema beleza, de uma verdade essencial. Um troço assim como aquele gol do Maradona contra os ingleses em 86, a Annunziata de Antonello da Messina ou o filé à francesa do Degrau.
Não sei bem explicar o porquê, tem alguma coisa na música coral que me pega fundo na alma. Talvez seja algo verdadeiramente animal, instintivo – nos sentimos tocados quando ouvimos nossos semelhantes emitindo sons em conjunto. As Paixões de Bach, a Nona de Beethoven, o Réquiem de Mozart, para ficar só em algumas das mais consagradas páginas do repertório de concerto, todas têm aquele(s) momento(s) em que o coro descortina sua avalanche sonora e a gente se agarra na cadeira, como que soterrado por tamanha beleza, tamanho feito humano. A voz humana tem esse poder, mexe com a gente, sei lá, em nível celular…
Pois esta caixinha de seis discos faz um voo panorâmico amplo, percorrendo mais de cinco séculos de música coral europeia: de Thomas Tallis (1505?-1585) a Krzystof Penderecki (1933-2020). Os seis discos são divididos em dois trios: os três primeiros levam o nome de Cinco Séculos de Música Coral Europeia e trazem obras de: Badings, Bartók, Brahms, Britten, Byrd, Castiglioni, Debussy, Dowland, Edlund, Gastoldi, Gesualdo, Ligeti, Martin, Monteverdi, Morley, Petrassi, Pizzetti, Poulenc, Ravel, Reger, Rossini, Schönberg, R. Strauss e Tallis. Os três restantes, por sua vez, são agrupados como Música Coral Virtuosa e o repertório consiste em Jolivet, Martin, Messiaen, Monteverdi, Dallapiccola, Penderecki, Pizzeti, Poulenc, Reger, R. Strauss e Werle.
O texto de Michael Struck-Schloen sobre o repertório que integra o encarte é bem bom e vale a extensa transcrição, em livre tradução deste blogueiro:
“Cinco séculos de música coral europeia (cds 1 – 3) A seleção estritamente pessoal de Ericson do vasto repertório de música coral europeia dos séculos XVI a XX para a lendária produção de 1978 da Electrola pode surpreender, a princípio, pelas muitas lacunas que contém. Não há nada da audaciosamente complexa música coral do Barroco Protestante, de Schütz a Bach, nem obras do início do período Romântico, quando grandes mestres como Schubert e Mendelssohn contribuíram para a era dourada da tradição coral burguesa. As obras desses discos não foram selecionadas tendo em mente uma completude enciclopédica, mas por sua flexibilidade e brilhantismo, por sua mistura de cores e suas características tonais gerais.
A riqueza e o desenvolvimento da tradição coral europeia são melhor iluminadas quando agrupamos as obras de acordo com sua procedência ao invés de seu período de composição. A música coral europeia foi profundamente influenciada desde o início pelo som e expressão específicos do idioma utilizado; e, no século XIX, as harmonias e ritmos típicos da música tradicional folclórica também começaram a desempenhar um papel importante. As Quatro Canções Folclóricas Eslovacas (1917) e as Canções Folclóricas Húngaras (1930), de Béla Bartók, demonstram bem essa tendência rumo a uma identificação nacional, bem como os primeiros coros Manhã e Noite, de György Ligeti, escritos em 1955, um ano antes de ele escapar do regime comunista de sua Hungria natal.
Os quatro exemplos de música sacra a capella alemã incluídos aqui merecem o título dado por Brahms de Quatro Canções Séries já somente pela escolha do texto. Em uma de inflação tanto da intensidade expressiva como dos recursos musicais utilizados – como demonstrado por Paz na Terra (1907) de Schönberg e o Moteto Alemão (1913) de Richard Strauss para quatro solistas e coral de 16 vozes –, havia também um claro renascimento no interesse por antigos ideais composicionais e estilísticos. Assim, a esparsa ttécnica coral praticada por Schütz e seus contemporâneos foi a principal fonte de inspiração para os Motetos, op. 110 de Max Reger, trabalhando com textos biblicos (1909), ou para Fest- e Gedenksprüche com que um Brahms de 56 anos de idade reconheceu a liberdade que a sua Hamburgo natal o concedeu.
A mais importante revolução na história da música vocal entre a Renascença e Schönberg foi a introdução na Itália, por volta de 1600, do canto solo dramático. Esse novo estilo, que atendia pelo despretensioso nome de “monodia”, pavimentou o caminho para o gênero inteiramente novo da ópera, e também diminuiu gradativamente a importância do coral de múltiplas vozes ao norte dos Alpes. Dessa forma, os madrigais de Gesualdo e Monteverdi, com suas harmonias distintas, são na verdade música solo em conjunto, fazendo deles terreno fértil para grupos vocais ágeis e esguios como o Coro de Câmara de Estocolmo. Enquanto as extravagantes Péchés de ma vieillesse de Rossini foram escritas para quarteto e octeto vocais, o quarteto desacompanhado teve que esperar até o século XX para ser redescoberto como um meio expressivo em si mesmo. Ildebrando Pizzeti faz uma referência deliberada ao contraponto renascentista em suas duas canções Sappho, de 1964, enquanto seu conterrâneo Goffredo Petrassi explora uma ampla gama de técnicas corais modernas, de glissandi ilustrativos ao caos dissonante, em seus corais Nonsense (publicados em 1952) baseados em versos de Edward Lear.
Em uma época em que uma carga expansiva e sobrecarregada de som era a ordem do dia no trabalho coral alemão, compositores franceses ofereceram narrativas caprichosas e a poesia colorida da natureza. As Trois Chansons (1915) de Maurice Ravel, com textos dele mesmo, são uma mistura cativante de atrevida sabedoria popular e engenhosa simplicidade, enquanto Debussy incorpora antigos textos franceses em uma linearidade arcaica em suas Trois Chansons de Charles d´Orléans (1904). As Chansons bretonnes do compositor holandês Henk Badings são brilhantes estudos vocais no idioma francês, enquanto os coros Ariel do grande compositor suíço Frank Martin são importantes estudos preliminares para sua ópera A Tempestade. Não bastassem esses belos trabalhos, é a cantata para 12 vozes A Figura Humana (1943), de Francis Poulenc, a obra-prima do grupo francês: oito complexos movimentos corais a partir de textos do poeta comunista francês Paul Eluards que são o grito pessoal de protesto do compositor contra a ocupação nazista na França.
A Itália não foi o único reduto da música vocal no limiar do Barroco: a Inglaterra também manteve um alto nível em seus diversos esplendorosos corais de catedrais e na exclusiva Capela Real em Londres. O grande Thomas Tallis e seu pupilo William Byrd foram ambos membros da Capela Real, e Tallis serviu sob nada menos que quatro monarcas: Henrique VIII, Eduardo VI, Maria I e Elizabeth I. Enquanto a fama de Tallis reside em sua música coral de ingenuidade contrapuntística e grande destreza técnica, Byrd e seu pupilo Thomas Morley possuíam um alcance mais amplo, escrevendo refinadas séries de madrigais em estilo italiano. Esses, ao lado das canções usualmente melancólicas de John Dowland (“Semper Dowland, semper dolens“), representam o florescer supremo da música vocal elizabetana. Após a música vocal inglesa atingir seu pico barroco com as obras de Henry Purcell, o “sceptrd` Isle” teve que esperar até o século XX com o compositor Benjamin Britten para renovar a bela tradição coral do país com peças como seu Hino para Santa Cecília (1942).
As obras do pós-guerra incluídas nessa seleção não se prestam a serem rotuladas em nenhum escaninho nacional. Elegi, do compositor e professor sueco Lars Edlund, a intrincada Lux aeterna (1966) para 16 vozes de György Ligeti e Gyro de Niccolò Castiglione representam a vanguarda internacional no período posterior à Segunda Guerra Mundial, em que estilos individuais contavam mais que escolas locais.
Música coral virtuosa (cds 4 – 6) Música coral virtuosa: o título da lendária produção da Electrola lançada em 1978 não foi escolhido apenas para ressaltar a perfeição técnica de tirar o fôlego do Coro da Rádio de Estocolmo e de seu irmão, o Coro de Câmara de Estocolmo. O termo “virtuoso” também se aplica ao repertório gravado: as peças corais italianas do cd 4 são ampla evidência dos tesouros aguardando descoberta por alguém com ouvidos tão sensíveis como Eric Ericson.
A abertura aqui fica por conta de Claudio Monteverdi, cuja Sestina, de 1614, sobre a morte de uma soprano da corte de Mantua ergue o sarrafo no que se refere ao estilo vocal italiano e à riqueza harmônica. Como muitos compositores italianos do século XX, de Gian Francesco Malipiero a Luca Lombardi, Luigi Dallapiccola sentiu-se em dívida para com o novo e expressivo estilo vocal introduzido por Monteverdi. Os dois primeiros corais de seus Sei cori di Michelangelo il Giovane (1933-36) apresentam, em sagaz antítese, os coros das esposas infelizes (malmaritate) e o dos maridos infelizes (malammogliati). Mais heterogêneos em estilo são os três coros que Ildebrando Pizzetti dedicaram ao Papa Pio DII em 1943, para marcar seu 25º jubileu como sumo pontífice. O noturno no poema Cade la sera de D´Annunzio se desdobra em largos arcos que preenchem o espaço tonal, enquanto os textos bíblicos inspiram Pizzetti a um estilo mais arcaico e austero.
Lars Johan Werle, que chefiou por muitos anos o departamento de música de câmara da Rádio Sueca, apresentou um cartão de visitas em nome da música coral sueca contemporânea – que somente desenvolveu uma tradição autônoma sob a influência de Ericson e seus corais – com seus Prelúdios Náuticos de 1970. O compositor adorna a combinação do tratamento experimental das vozes com idéias precisas sobre articulação e a transformação do texto em música com expressões marítimas. Em contraste com este virtuoso estudo, Krzystof Penderecki escreveu seu Stabat Mater em 1962, no antigo estilo de música sacra funeral. O gênio altamente individual com que Penderecki procede da abertura com sinos em uníssono, atravessando uma intrincada polifonia tecida por três corais de 16 vozes, até o casto, luminoso acorde em puro ré maior do Gloria lhe renderam o status de um dos principais compositores jovens da Polônia na estreia de sua Paixão de São Lucas, em 1966, da qual o Stabat Mater faz parte.
Um dos focos das atividades dos dois corais, ao lado da música italiana de Gabrieli a Dallapiccola, sempre foi o repertório alemão a capella do Romantismo tardio, cujos antípodas característicos foram Max Reger e Richard Srauss. Enquanto Reger trabalhou para promover uma renovação da música litúrgica protestante no espírito de Bach, como fica evidente em seus Acht Gesänge (“Oito hinos”) de 1914, Strauss enxergava no coral de múltiplas vozes um equivalente vocal do grandioso entrelaçamento de seu estilo instrumental. Essa tendência da música coral de Strauss está documentada nessas duas peças, separadas por quase quatro décadas: sua adaptação para o poema Der Abend (“A noite”, de 1897), de Friedrich Schiller, e a caprichosamente ocasional Die Göttin im Putzzimmer (“A deusa no quarto de limpeza”), de 1935, com seus ecos da bucólica ópera Daphne, de Strauss.
Nessa jornada de descoberta ao longo da música coral europeia do século XX, é sobre as obras-primas francesas de Poulanc e Jolivet, e particularmente de Messiaen e Martin, que os dois corais de Estocolmo lançaram uma nova luz. O espectro expressivo dos ciclos apresentados aqui é inegavelmente impressionante. Enquanto em 1936 – muito após o Grupo dos Seis ter rompido – Poulenc voltou mais uma vez à poesia de Apollinaire e Eluard em suas Sept chansons, André Jolivet combinou textos sacros egípcios, indianos, chineses, hebreus e gregos em seu Epithalame, escrito em 1953 para celebrar seu vigésimo aniversário de casamento de uma forma mística. Naquele mesmo 1936, Olivier Messiaen, então com 28 anos, juntou-se a Jolivet e Daniel Lesur para criar o grupo Jeune France (“França jovem”), mas logo partiria novamente em seu idiossincrático caminho, alternando entre catolicismo, técnicas avant-garde e uma filosofia totalizante da natureza. Em termos de conteúdo, os Cinq Rechants de Messiaen, ligados entre si por refrões (rechants), representam um homólogo vocal de sua Sinfonia Turangalîla, que parte da história de Tristão e Isolda para criar uma mitologia de amor, natureza e morte. Frank Martin, nascido em Genebra, por sua vez, considerou sua Missa (1922-6) como algo “que diz respeito apenas a mim e Deus”. É música de pureza espiritual e arcaica, cuja estreia Martin autorizou apenas quarenta anos depois de sua composição.”
Obs.: para não deixar esse post ainda mais comprido, a lista completa de movimentos, intérpretes e afins está fotografada, dentro do arquivo de download.
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Five centuries of European choral music
Disco 1 Johannes Brahms (1833-1897) Fest. und Gedenksprüche, op. 109
Max Reger (1873-1916) O Tod, wie bitter bist du, op 110/3
Arnold Schönberg (1874-1951) Friede auf Erden, op. 13
Richard Strauss (1864-1949) Deutsche Motette, op. 62
Lars Edlund (1922-2013) Elegi
Béla Bartók (1881-1945) Vier slowakische Volkslieder
Disco 2 Béla Bartók (1881-1945) Ungarische Volkslieder
György Ligeti (1923-2006) Morgen Nacht Lux aeterna
Dias atrás, escrevi aqui que Prokofiev era, em certos sentidos, o anti-Debussy de sua geração. Pois é verdade também que Messiaen, como um continuador do legado de Debussy, é mais ou menos um anti-Prokofiev. Ele não compôs balés, valsas, minuetos, nada para a dança de pés humanos: mais interessante, para ele, era ouvir o som dos pássaros, do vento sobre as águas, de sinos de igreja. Ao contrário de outros compositores que evitavam “entregar o jogo” sobre suas ideias e métodos, Messiaen deu entrevistas e escreveu livros e libretos de obras explicando essa sua busca por sons exóticos e para além da musicaldade humana.
Com a palavra, Messiaen:
“Sempre gostei dos cantos de pássaros. Quando comecei a anotá-los devia ter 17 ou 18 anos, os transcrevia muito mal. Depois tive lições em campo com ornitólogos de renome.”
“Os Choros de Villa-Lobos, que considero maravilhas de orquestração, foram para mim o ponto de partida de algumas justaposições de timbres”
[Entrevista a] Claude Samuel: Um dia, quando eu disse que você era um compositor, você acrescentou: “Eu sou um ornitólogo e um ritmista.” Em que sentido o segundo desses títulos deve ser entendido?
Olivier Messiaen: Eu sinto que o ritmo é a parte primordial e talvez essencial da música. Eu acho que provavelmente existia antes da melodia e da harmonia, e na verdade tenho uma preferência secreta por esse elemento.
C.S.: Se você não se importar, vamos ver alguns exemplos concretos. O que é música rítmica?
O.M.: Resumindo, a música rítmica é música que despreza repetição e divisões iguais, e isso se inspira nos movimentos da natureza, movimentos de durações livres e desiguais. Há um exemplo muito marcante de música não-rítmica que é considerada rítmica: marchas militares. A marcha com seu andamento cadencial, com sua sucessão ininterrupta de valores de notas absolutamente iguais, é antinatural. A marcha genuína na natureza é acompanhada por um fluxo extremamente irregular; é uma série de quedas, mais ou menos evitadas, ocorrendo entre batidas.
C.S.: Então, a música militar é a negação do ritmo?
O.M.: Absolutamente.
C.S.: Você pode nos dar alguns exemplos de música rítmica interessante no repertório clássico ocidental?
O.M.: O maior ritmista da música clássica é certamente Mozart. O ritmo dele tem uma qualidade de movimento, mas pertence principalmente ao campo da acentuação, derivada da palavra falada e escrita. Se a colocação exata dos acentos não for observada, a música mozartiana é completamente destruída.
C.S.: Vamos continuar a nossa pesquisa de compositores rítmicos com uma parada obrigatória em Debussy.
O.M.: Conversamos sobre a orquestração de Claude Debussy e seu amor pela natureza – vento e água. Este amor levou-o diretamente à irregularidade em durações de notas que mencionei, característica do ritmo e permitindo-lhe evitar repetições.
Mais do que um criador de melodias, Olivier Messiaen considerava-se um pesquisador de ritmos: “Tratado de ritmo, de cor e de ornitologia” é o nome do livro em vários tomos que ele escreveu entre 1949 e 1992. O ritmo, portanto, vem em 1º lugar nessa longa obra na qual explica os aspectos importantes de seu método de composição, que, aliás, ele não pretendia impor aos seus alunos (Murail, Stockhausen, Boulez, Almeida Prado… cada um seguiu seu caminho). Os ritmos complexos apaixonavam Messiaen: ele dava como exemplo a simetria das asas das borboletas, compara com a simetria em catedrais góticas e em ritmos simétricos que, diz ele, “os Hindus foram os primeiros a notar e usar, ritmicamente e musicalmente, esse princípio”.
Neste CD que completa as gravações do piano de Messiaen pelo norueguês Håkon Austbø, a obra mais importante e mais longa é La fauvette des jardins: embora o título principal faça referência a um pequeno passarinho europeu, os títulos dos três movimentos mostram que, ao invés de um foco exclusivo neste bicho, a obra evoca uma ampla paisagem de noite e depois de dia: (I) a noite, (II) o lago verde e violeta, (III) ondulações da água. Como Debussy (La cathédrale engloutie para piano, Sirènes para coro e orquestra, La Mer para orquestra), Messiaen se diverte criando cenas aquáticas com meios musicais.
Olivier Messiaen:
1. Les offrandes oubliées (1931)
2. Fantaisie burlesque (1932)
3. Pièce pour le tombeau de Paul Dukas (1935)
4. Rondeau (1943)
5. Prélude (1964)
6-8. La fauvette des jardins (1970-72):
I. (la nuit)
II. (le lac vert et violet…)
III. (ondulations de l’eau…)
Iniciamos o mês dedicado às mulheres com uma pianista que arrasta multidões em todos os países por onde passa. Yuja Wang já apareceu neste blog quando era um jovem talento promissor, apareceu depois, ainda jovem mas já mais experiente, fazendo música de câmara. Hoje trazemos uma obra que ela ainda não gravou em disco, mas já apresentou dezenas de vezes com grandes maestros como Dudamel e Salonen: a Turangalîla-Symphonie de Messiaen. A gravação, em alta qualidade, é proveniente da transmissão ao vivo do Festival de Salzburg (2022).
Estreada em 1949, essa sinfonia em dez movimentos curtos tem uma parte importante e difícil para piano, inspirada em uma outra grande pianista, Yvonne Loriod, com quem Messiaen iria se casar apenas uns dez anos depois. Ele explicava que, desde que conheceu Loriod durante a 2ª Guerra, ele sabia que podia escrever “as maiores excentricidades” para piano, sabendo que ela iria dar conta. Sobre a Turangalîla, o compositor afirmou que esta obra tinha uma parte para piano bastante desenvolvida, “destinada a ‘diamantear’ a orquestra com linhas brilhantes, cachos de acordes [1], cantos de pássaros, o que faz da obra quase um concerto para piano e orquestra”. Ênfase no quase, pois Messiaen não compôs nenhum concerto nos moldes tradicionais, e nenhuma outra sinfonia em quatro movimentos: ele preferia formas inovadoras como esta sinfonia em 10 movimentos. Importante notar ainda que as partes para cordas soam espantosamente brilhantes com a Filarmônica de Viena. Esse legato agudo de violinos e violas não é uma constante em Messiaen: nas obras orquestrais seguintes – Réveil des oiseaux (1953), Oiseaux exotiques (1956) – ele usaria uma orquestra sem cordas e o brilho ficaria com as madeiras e com os “diamantes pianísticos”
[1] Messiaen falava em “cachos de acordes” no piano como quem fala em cachos de bananas ou de uvas. A citação é do livro “Messiaen” publicado em 1957 por Claude Rostand: Turangalîla-Symphonie est surtout une partition frappante par sa conception et sa réalisation sonore. […] des jeux de timbres, célestas et vibraphones rappelant les gamelang indous; une batterie extrêmement riches; une onde Martenot pour les effets expressifs; une partie de piano solo très développée, très difficile, “destinée à diamanter l’orchestre de traits brillants, de grappes d’accords, de chants d’oiseaux et qui en fait presque un concerto pour piano et orchestre”
Olivier Messiaen (1908-1992): Turangalîla-Symphonie
1 Introduction. Modéré, un peu vif
2 Chant d’amour Nr.1: Modéré, lourd
3 Turangalîla Nr.1: Presque lent, reveur
4 Chant d’amour Nr.2: Bien modéré
5 Joie du sang des étoiles. Vif, passionné, avec joie
6 Jardin du sommeil d’amour. Très modéré, très tendre
7 Turangalîla Nr.2: Un peu vif
8 Développement de l’amour: Bien modéré
9 Turangalîla Nr.3: Bien modéré
10 Final: Modéré, presque vif, avec une grande joie
Wiener Philharmoniker, Esa-Pekka Salonen (conductor)
Yuja Wang – piano
26 August 2022 im Großes Festspielhaus Salzburg
Após sua experiência no front e como prisioneiro de guerra, Messiaen voltou para Paris e compôs três obras bastante distantes de qualquer comentário mais engajado sobre os horrores da 2ª Guerra, talvez por buscar na religião a sanidade que tantos soldados tinham perdido. Essas três obras são: Visões do amém (1943), para dois pianos; 20 olhares sobre o menino Jesus, para piano (1944); Três pequenas liturgias (1944), para orquestra com importantíssima participação do piano. São três obras em que os truques de mágica pianística se repetem e se complementam, sendo interessante ouvi-las em sequência, mais ou menos como é interessante ouvir as Sinfonias 3 e 4 de Mahler e os ciclos de Lieder que ele compôs na mesma época e que se repetem nas sinfonias (guardadas as proporções entre dois compositores tão diferentes como Mahler e Messiaen).
Entre os truques, invenções e manias pianísticas de Messiaen, o pianista francês Pierre-Laurent Aimard chama atenção para um que, confesso, eu não havia reparado, mas é daquelas coisas que, uma vez que lhe abrimos os olhos, podemos enxargá-la por todos os lados: me refiro aos frequentes sons de sinos nas Visions de l’amen. Com a palavra, Aimard:
Eu toquei as Visions de l’Amen desde os quinze anos, virei as páginas quando Yvonne Loriod e Messiaen as executaram, as estudei com ele e toquei incontáveis vezes – inevitavelmente transportado pela força irresistível da visão de Messiaen.
Se ter uma casa realmente significa alguma coisa, então esta obra é minha casa.
Os inúmeros sinos que intoxicam o Amém da Criação e o da Consumação encontrarão um complemento musical nas composições do profético Enescu, do poético Knussen e do radical Birtwistle. Elas ressoam para nos mostrar o quanto o som do sino, esse choque inicial com desdobramentos harmônicos infinitos, é emblemático da música de Messiaen. (Pierre-Laurent Aimard)
Olivier Messiaen (1908-1992): Visons de l’amen
1 I. Amen de la Création
2 II. Amen des étoiles, de la planète à l’anneau
3 III. Amen de l’agonie de Jésus
4 IV. Amen du Désir
5 V. Amen des Anges, des Saints, du chant des oiseaux
6 VI. Amen du Jugement
7 VII. Amen de la Consommation
Tamara Stefanovich, piano I
Pierre-Laurent Aimard, piano II
George Enescu (1881-1955)
8 Carillon Nocturne (from Suite No. 3, Op. 18 “Pièces Impromptues”) (piano: Aimard)
Oliver Knussen (1952-2018)
9 Prayer Bell Sketch, Op. 29 (piano: Stefanovich)
Harrison Birtwistle (1934-2022)
10 Clock IV (from Harrison’s Clocks) (piano: Aimard)
PS: O amém é aquele mesmo, pronunciado no fim das orações… Com o significado mais imediato de “que assim seja” e outros por extensão, o “amém” deu asas à imaginação de Messiaen nessa obra de mais de 40 minutos.
Minha mulher é violinista e um dia estava começando a estudar o Quarteto para o Fim dos Tempos de Olivier Messiaen. Ela lia a partitura e me dizia que achava bonito, mas que não via lógica naquilo. Um dia, eu lhe falei sobre o amor do compositor francês pelos pássaros. Falei nos diversos movimentos do Quarteto para o qual ela se preparava que falavam de oiseaux, e em uma grande obra para piano chamada de Catálogo dos Pássaros. Quando olhei para o lado, notei que ela ficara congelada. É claro, ali estava o segredo para entender aquela música. Bastava ouvir os pássaros. Nos dias que se sucederam e até hoje, a cada visita nossa ao Parque da Redenção, ela ouve os pássaros e diz, sorrindo: “Messiaen”.
Olivier Messiaen (1908-1992): Catálogo dos pássaros (Catalogue d’oiseaux)
Disc 1
1. Catalogue d’oiseaux / Book 1 – 1. Le Chocard des Alpes
2. Catalogue d’oiseaux / Book 1 – 2. Le Loriot
3. Catalogue d’oiseaux / Book 1 – 3. Le Merle bleu
4. Catalogue d’oiseaux / Book 2 – 4. Le Traquet stapazin
5. Catalogue d’oiseaux / Book 3 – 5. La chouette hulotte
6. Catalogue d’oiseaux / Book 3 – 6. L’Alouette Lulu
Disc 2
1. Catalogue d’oiseaux / Book 4 – 7. La Rousserolle effarvatte
2. Catalogue d’oiseaux / Book 5 – 8. L’Alouette calandrelle
3. Catalogue d’oiseaux / Book 5 – 9. La Bouscarle
4. Catalogue d’oiseaux / Book 6 – 10. Le Merle de roche
Disc 3
1. Catalogue d’oiseaux / Book 7 – 11. La Buse variable
2. Catalogue d’oiseaux / Book 7 – 12. Le Traquet rieur
3. Catalogue d’oiseaux / Book 7 – 13. Le Courlis cendré
4. La Fauvette des jardins
Olivier Messiaen foi um continuador dos caminhos trilhados por Claude Debussy, que morreu em 1918 e, como em tantos outros casos, tornou-se muito mais conhecido e respeitado logo após sua morte, quando Messiaen era um estudante em formação. Debussy escrevia que as mais belas descobertas musicais eram as impressões que nos trazem “o barulho do mar, a curva de um horizonte, o vento nas folhas, o grito de um pássaro” (Monsieur Croche et autres écrits, 1901-1914). Católico e amante dos pássaros, Messiaen dedicou boa parte de sua música a Deus e suas criações divinas. Aqui apresentamos uma de suas mais importantes obras: Des Canyons aux étoiles… (Dos cânions às estrelas), música em doze movimentos inspirada nos cânions em Utah, EUA. Há representações musicais das imensas rochas em tons alaranjados, do céu estrelado e de vários pássaros. Realmente um mundo absurdamente criativo esse que Messiaen imaginou.
Coloco esta obra como um complemento instrumental da Paixão Segundo Mateus, pois ressalta que não apenas as pessoas podem ser divinas, mas a própria natureza rochosa, o deserto, os pássaros, as estrelas numa noite escura sem poluição luminosa… Essa religiosidade e reverência à criação são ingredientes tão tocantes e profundos que abalam as convicções de um ateu melômano… bem, pelo menos durante a audição dessa música tão sincera. Talvez eu arrisque uma pergunta polêmica: A música religiosa pode ser sentida e apreciada em sua totalidade por um ouvinte ateu? Philippe Herreweghe disse que fez duas gravações da Paixão Segundo São Mateus: a primeira, quando era um “believer” (já postada aqui) e a segunda (aqui), quando virou ateu. Ele disse que “é possível que tão contrastantes fases em minha vida tenham atingido essas interpretações”. Alguém arrisca dizer qual a melhor? Já um amigo ateu me confessou ouvir Bach da mesma maneira que Bruckner ouvia Wagner, sem entender o texto. No caso de “Des Canyons aux étoiles…”, não há menção explícita do seu catolicismo, por isso, ouvintes de outras crenças vão se sentir em terreno seguro e os ateus podem trocar Deus por Natureza. Os cânions, se vocês não se lembram, são ribanceiras ou falésias esculpidas por rios na escala de tempo geológica, ou seja, de milhões de anos. Essas grandes estruturas e o céu estrelado nos remetem a escalas de tempo e espaço muito diferentes das nossas micro-preocupações usuais…
Mas ao contrário do que possa parecer essa introdução meio nonsense, a música que ouviremos é moderníssima, muitas vezes brutal, com sonoridades estranhas, sons produzidos por ventos. Pode ser confundidao com um concerto para piano gigantesco, mas para Messiaen, a forma “concerto para piano” em três movimentos e com demonstrações de técnica e bravura era coisa do passado e era necessário inovar: aqui, como em obras anteriores (Turangalîla-Symphonie, Réveil des Oiseaux, Oiseaux exotiques), o piano faz intervenções solistas, sobretudo no campo agudo e muitas vezes representando o canto dos pássaros.
A orquestração também é inovadora, com apenas 13 cordas (6 violinos, 3 violas, 3 cellos, 1 contrabaixo) e muitos sopros e percussões. Nesse sentido, de entender que as formas de orquestração, de ritmo e de estrutura da música ocidental precisavam progredir, Messiaen era bastante moderno, e por isso era respeitado pelos vanguardistas das gerações seguintes como Boulez, Stockhausen, Murail, Almeida Prado… Todos esses, em algum momento, foram seus alunos. Mas ao contrário de atonais mais radicais como Boulez ou Schoenberg, Messiaen não proibia os acordes mais comuns em sua música: acordes maiores ou menores aparecem aqui ou ali, com uma função decorativa. Ao contrário da ideia de progressão harmônica em que as dissonâncias se resolvem em consonâncias, para Messiaen tanto os acordes dissonantes como os consonantes interessam pelos timbres, cores, atmosferas que eles trazem, ou seja: nenhum tipo de som ou intervalo é proibido, mas é evitado o procedimento – típico na tradição europeia e levado à perfeição por exemplo por Beethoven – de se usar os intervalos para alternar tensão (busca por resolução) e relaxamento (resolução tonal).
Já ouviram um coral de pássaros ou de sapos? Essa música não se estrutura em acordes consonantes ou dissonantes. Messiaen foi ao mesmo tempo um inovador moderníssimo e o dono um ouvido muito atento a sons do vento e outros tão antigos quanto os canyons de Utah. Dizia ele sobre os pássaros: “Eles cantaram muito antes de nós. E inventaram a improvisação coletiva, pois cada pássaro, junto com os outros, faz um concerto geral”.
Olivier Messiaen (1908-1992): Des canyons aux étoiles… (1974)
Part 1:
1. Le Désert (The desert)
2. Les orioles (The orioles)
3. Ce qui est écrit sur les étoiles (What is written in the stars)
4. Le Cossyphe d’Heuglin (The white-browed robin-chat)
5. Cedar Breaks et le don de crainte (Cedar Breaks and the gift of awe)
Part 2:
6. Appel interstellaire (Interstellar call)
7. Bryce Canyon et les rochers rouge-orange (Bryce Canyon and the red-orange rocks)
Part 3:
8. Les Ressuscités et le chant de l’étoile Aldebaran (The resurrected and the song of the star Aldebaran)
9. Le Moqueur polyglotte (The mockingbird)
10. La Grive des bois (The wood thrush)
11. Omao, leiothrix, elepaio, shama (Omao, leiothrix, ʻelepaio, shama)
12. Zion Park et la cité céleste (Zion Park and the celestial city)
Roger Muraro (piano); Francis Petit (xylorimba); Renaud Muzzolini (glockenspiel); Jean-Jacques Justafré (horn)
Orchestre Philharmonique de Radio France, Myung-Whun Chung (conductor)
Recording: Paris, Maison de Radio France, Salle Olivier Messiaen, July 2001
Os “20 Olhares sobre o menino Jesus” foram compostos em 1944 e estreados em março de 1945. Portanto, vieram pouco depois do famoso Quarteto composto em um campo de prisioneiros de guerra. Naquele momento, Messiaen já estava de volta em Paris, vivendo toda a ansiedade daquele período de guerra, alguns colegas deviam imaginar que ele faria como Honneger (sinfonia nº 3), Prokofiev (sinfonia nº 5), Shostakovich (sinfonia nº 7) e comporia uma sinfonia grandiosa, talvez uma homenagem aos mortos ou talvez um grande hino à paz antevendo o fim das guerras… Mas ele não fez nada disso: pelo contrário, evitou comentar o dia-a-dia em que vivia e voltou-se para temas espirituais, tanto nos “20 Olhares” para piano solo, estreados por Yvonne Loriod, como nas “Visões do Amém” para dois pianos, estreadas por Loriod e Messiaen dois anos antes, na Paris ainda ocupada pelos nazistas contra os quais ele havia lutado cinco anos antes.
Na década anterior Messiaen já tinha composto um outro ciclo de temática natalina, com diversas cenas ao redor do recém-nascido Jesus: La Nativité (1935) foi sua segunda obra de fôlego para órgão, depois de L’Ascension e antes de Les Corps Glorieux. Em La Nativité, com a rica palheta de timbres do órgão, Messiaen traz personagens que reaparecerão nos “20 olhares”: os anjos, os pastores, os reis magos, o verbo/logos divino (“no princípio, era o verbo…”)
Talvez devido à resposta negativa às referências religiosas por uma parte da crítica e público franceses, no fim dos anos 1940 Messiaen reduz as referências cristãs explícitas na maior parte de suas obras. Mas ele continuaria profundamente religioso: a obsessão do compositor nas décadas seguintes com pássaros e paisagens naturais é, para ele, um permanente fascínio pela criação divina. Viriam assim o “Catálogo de pássaros” (1956-58) para piano solo e obras para piano e orquestra como o “Despertar dos pássaros” (1953), os “Pássaros exóticos” (1956) e “Des canyons aux étoiles…” (1974).
Voltando cronologicamente para os “20 Olhares”, temos portanto um Messiaen que usa a música para fazer referências a temas religiosos, algo que artistas de vários séculos também fizeram: para ficarmos no menino Jesus, há centenas de quadros famosos com os nomes “Adoração dos Pastores” ou “Adoração dos Reis Magos” (Giotto, Caravaggio, Rubens, El Greco, Rembrandt…) Para pintar essas cenas com música instrumental, Messiaen faz uso de alguns temas que voltam ciclicamente, como o “Tema de Deus” e o “Tema da estrela e da cruz”. E o toque suave da pianista Yvonne Loriod, a mesma que estreou a obra, traz aqui características de um certo pianismo francês muito tributário da famosa frase de Debussy: “é preciso fazer esquecer que o piano tem martelos”. Não significa que tudo seja tocado pianissimo, pelo contrário, há rompantes de muita energia – por exemplo nos graves impressionantes dos movimentos 12 e 16, respectivamente representando o Verbo onipotente e o olhar dos profetas – mas sempre com um cuidado para evitar as sonoridades percussivas, de forma que a música parece sempre flutuar acima do chão. Nesse sentido do cuidado permanente para evitar sonoridades “pesadas” ou “duras” Loriod lembra um pouco o estilo perfeccionista de Michelangeli nos prelúdios de Debussy que reativamos dias atrás.
Os “20 Olhares” aparecem neste blog pela segunda vez: a primeira foi na interpretação do norueguês Håkon Austbø, que estudou essas obras com Loriod e também tem muito a dizer. Como sempre, repito aqui: façam as comparações e constatem que as grandes obras merecem ser ouvidas com diversas roupas e sotaques.
Oliver Messiaen (1908-1992): Vingt regards sur l’enfant Jésus
1. Regard du Père
2. Regard de I’étoile
3. L’echange
4. Regard de la Vierge
5. Regard du Fils suer le Fils
6. Par lui tout a été fait
7. Regard de la Croix
8. Regard des hauteurs
9. Regard du temps
10. Regard de I’Esprit de joie
11. Première communion de la Vierge
12. La Parole toute-puissante
13. Noël
14. Regard des Anges
15. Le baiser de I’enfant Jesus
16. Regard des prophètes, des bergers et des mages
17. Regard du silence
18. Regard de I’onction terrible
19. Je dors, mais mon coeur veille
20. Regard de I’Eglise d’amour
O Quarteto para o Fim dos Tempos foi estreado diante de todos os prisioneiros no pátio gelado do campo de concentração de Stalag VIII A de Görlitz, na fronteira sudoeste da Polônia. Era o dia 15 de janeiro de 1941 e nevava. Menos de dois anos antes, em setembro de 1939, a França entrara na Segunda Guerra Mundial. Messiaen fora chamado para servir o exército e, poucos meses depois, em maio de 1940, durante uma ofensiva alemã, foi capturado e levado para o campo de concentração.
O Quarteto foi estreado por Messiaen ao piano, mais Henri Akoka (clarinete), Jean le Boulaire (violino) e Étienne Pasquier (violoncelo). Nenhum dos três era músico profissional. Acontece que o oficial nazista responsável pelo Stalag gostava de música e, quando soube da presença de Messiaen, deixou que o compositor trabalhasse a fim de fazer um concerto. Seu nome era Karl-Albert Brüll, um apreciador da música do compositor. Ele proporcionou a Messiaen “condições ‘excepcionais” de trabalho. Deu-lhe lápis, borrachas e papel de música. Também foi-lhe permitido isolar-se num quarto vazio com um guarda de plantão à porta a fim de evitar que fosse incomodado.
Messiaen escreveu, para os únicos outros instrumentistas que lá estavam presos (um violoncelista, um violinista e um clarinetista), um breve trio que foi posteriormente inserido na obra como quarto movimento. Depois, com a chegada de um piano, Messiaen compôs o resto da obra, assumindo o instrumento.
O católico Messiaen propôs que sua obra fosse uma meditação sobre o Apocalipse de João (10, 1-7). A partitura é encabeçada com o seguinte excerto: “Vi um anjo poderoso descer do céu envolvido numa nuvem; por cima da sua cabeça estava um arco-íris; o seu rosto era como o Sol e as suas pernas como colunas de fogo. Pôs o pé direito sobre o mar e o pé esquerdo sobre a terra e, mantendo-se erguido sobre o mar e a terra levantou a mão direita ao céu e jurou por Aquele que vive pelos séculos dos séculos, dizendo: não haverá mais tempo; mas nos dias em que se ouvir o sétimo anjo, quando ele soar a trombeta, será consumado o mistério de Deus”.
A estruturação do Quarteto em oito movimentos é explicada por Messiaen da seguinte forma: “Sete é o número perfeito, a criação em seis dias santificada pelo Sábado divino; o sete deste repouso prolonga-se na eternidade e se converte no oito da luz inextinguível e da paz inalterável”.
Olivier Messiaen (1908-1992): Quarteto para o Fim dos Tempos
(para piano, clarinete, violino e violoncelo)
1. Liturgia de cristal 3:01
2. Vocalise, para o anjo que anuncia o fim dos tempos 5:30
3. Abismo dos pássaros 8:48
4. Intermezzo 1:48
5. Louvor à eternidade de Jesus 9:58
6. Dança da fúria para as sete trombetas 5:40
7. Turbilhão de arco-íris, para o anjo que anuncia o fim dos tempos 8:19
8. Louvor à imortalidade de Jesus 9:14
Gil Shaham, violino
Paul Meyer, clarinete
Jian Wang, violoncelo
Myung-Whun Chung, piano
O Quarteto para o fim dos tempos para piano, clarinete, violino e violoncelo foi composto a partir de maio de 1940 no campo de prisioneiros Stalag VIIIA e executado pela primeira vez no mesmo local no dia 15 de janeiro de 1941 para 5000 prisioneiros. A partitura é encabeçada com o seguinte excerto do Apocalipse de São Jõao (10, 1-7): “Vi um anjo poderoso descer do céu envolvido numa nuvem; por cima da sua cabeça estava um arco-íris; o seu rosto era como o Sol e as suas pernas como colunas de fogo. Pôs o pé direito sobre o mar e o pé esquerdo sobre a terra e, mantendo-se erguido sobre o mar e a terra levantou a mão direita ao céu e jurou por Aquele que vive pelos séculos dos séculos, dizendo: não haverá mais tempo; mas nos dias em que se ouvir o sétimo anjo, quando ele soar a trombeta, será consumado o mistério de Deus”.
A estruturação da obra em oito movimentos é explicada por Messiaen da seguinte forma: “Sete é o número perfeito, a criação em seis dias santificada pelo Sábado divino; o sete deste repouso prolonga-se na eternidade e se converte no oito da luz inextinguível e da paz inalterável”.
1 – Liturgia de cristal
“Principia com o despertar dos pássaros entre três e quatro horas da manhã. Um melro ou um rouxinol solista improvisa, acompanhado por um conjunto de trilos perdidos no alto das árvores. Esta cena transposta para o plano religioso significa o silêncio harmonioso do céu”.
2 – Vocalise, para o anjo que anuncia o fim dos tempos
Este movimento divide-se em três partes. “A primeira e a terceira parte , muito breves, evocam o poder desse anjo. A segunda parte representa as harmonias intangíveis do céu. No piano, doces cascatas de acordes envolvem o canto monótono do violino e do violoncelo”.
3 – Abismo dos pássaros
“O abismo é o tempo, com suas tristezas e aborrecimentos. Os pássaros, pelo contrário, simbolizam o nosso desejo de luz, de estrelas, de arco-íris e de demonstração de júbilo”.
4 – Intemédio
“Scherzo, de caráter menos íntimo que os outros movimentos, mas relacionado com eles por citações rítmicas e melódicas”.
5 – Louvor à eternidade de Jesus
Neste número, “Jesus é considerado um quarto Verbo. Uma grande frase, extremamente lenta do violoncelo, exprime com amor e devoção a eternidade deste Verbo poderoso e doce, para quem os anos jamais terão fim. Majestosamente, se extenue numa espécie de tenra e suprema distância”.
6 – Dança do furor para as sete trombetas
Do ponto de vista rítmico é a peça mais característica da série. “Os quatro instrumentos, sempre em uníssono, imitam os gongos e trombetas do Apocalipse. Em toda a obra é a única alusão ao aspecto cataclísmico do juízo final”.
7 – Turbilhão de arco-íris, para o anjo que anuncia o fim dos tempos
Repetem-se aqui trechos do segundo movimento. “O poderoso anjo aparece e sobretudo o arco-íris que o cobre (arco-íris: símbolo da paz, da sabedoria e de uma vibração luminosa e sonora”).
8 – Louvor à imortalidade de Jesus
“Este segundo louvor dirige-se especialmente à segunda natureza de Jesus, a Jesus-homem, ao Verbo feito carne, ressuscitado para nos dar a vida. É todo amor. A lenta ascensão até o extremo agudo é a elevação do homem até o seu Deus, do Filho de Deus até o Pai, da criatura divinizada até o Paraíso”.
Olivier Messiaen (1908-1992): Quarteto para o fim dos tempos (Nash)
1. No. 1, Liturgie de cristal
2. No. 2, Vocalise pour l’ange qui annonce la fin du temps
3. No. 3, Abime des oiseaux
4. No. 4, Intermede
5. No. 5, Louange a l’eternite de Jesus
6. No. 6, Danse de la fureur, pour les sept trompettes
7. No. 7, Fouillis d’arcs-en-ciel, pour l’ange qui announce la fin du temps
8. No. 8, Lourange a l’immortalite de Jesus
Neste CD de música francesa da grande ECM, Fauré dá o esqueleto… Ou melhor, voltemos ao começo. Imaginemos um navio. O corpo, ou estrutura, do navio é chamado de casco. Aqui, o casco é Fauré. Já a quilha é como a espinha dorsal do navio: uma viga central que percorre a parte inferior, desde a proa até a popa. Ela o impede de tombar para os lados. Este é Ravel. Enquanto isso, o convés é como o andar de um edifício. Os navios geralmente possuem vários conveses. Os camarotes de passageiros, as salas de motores e de controle e os espaços para cargas costumam ocupar conveses diferentes. Quem nos recebe aqui é Messiaen. Ou seja, ancorados em Fauré-Chopin, equilibrados por Ravel e com Messiaen regendo os pássaros que acompanham a partida da viagem, Alexander Lonquich nos dá um banho de sensibilidade e competência.
Fauré compôs seus 5 improvisos em dois períodos distintos de sua carreira, em 1881-83 e 1906-09. Inspirados no exemplo de Chopin, os brilhantes improvisos iniciais (Op. 25, 31 e 34) assemelham-se a estudos líricos que parecem improvisações, mas são dispostos de forma simétrica com uma coda. Em contraste, o improviso Op. 91 e 102 são concebidos com muito mais ousadia em sua sonoridade, harmonia e virtuosismo.
Os Préludes pour pianoé uma das primeiras obras para piano de Messiaen compostos em 1928-1929, quando o compositor tinha 20 anos. Messiaen considerou ser seu primeiro trabalho de algum valor. A composição é baseada nostraz uma influência decisiva dos prelúdios de Debussy. As peças foram estreadas pelo compositor em uma apresentação privada que ocorreram em 28 de janeiro de 1930.
Gaspard de La Nuit é uma suíte para piano composta por Maurice Ravel em 1908. Foi inspirada em uma série de poemas em prosa fantásticos do escritor Aloysius Bertrand. No poema, o autor relata uma série de surpreendentes visões e aventuras protagonizadas pelo “Gaspar da Noite”. Trabalhando sob o encanto do texto evocativo de Bertrand, Ravel baseou seu Gaspard em três desses contos. O título do primeiro movimento, Ondine, refere-se a um legendário espírito feminino das águas (já viram o fime?) que tenta seduzir um jovem e arrastá-lo para sua morada no fundo de um lago. O segundo movimento, intitulado Le Gibet (em português, “O patíbulo”), transmite uma atmosfera apropriadamente densa. O terceiro movimento, Scarbo, é o nome de um gnomo que corre quase à velocidade da luz e assume a forma que desejar. Ravel declarou que almejava alcançar com este “Scarbo” uma obra ainda mais difícil de ser executada do que “Islamey”, do compositor russo Mily Balakirev. Não há dúvidas de que Scarbo é uma das peças mais difíceis de que se tem notícia…
01. Gabriel Fauré – Impromptu for piano No. 3 in A flat major, Op. 34 5:03
02. Olivier Messiaen – Preludes for piano, 1. La colombe 2:11
03. Olivier Messiaen – Preludes for piano, 2. Chant d’extase dans un paysage triste 6:47
04. Olivier Messiaen – Preludes for piano, 3. Le nombre leger 1:43
05. Olivier Messiaen – Preludes for piano, 4. Instants defunts 4:43
06. Olivier Messiaen – Preludes for piano, 5. Les sons impalpables du reve 3:21
07. Olivier Messiaen – Preludes for piano, 6. Cloches d’angoisse et larmes d’adieu 8:37
08. Olivier Messiaen – Preludes for piano, 7. Plainte calme 3:23
09. Olivier Messiaen – Preludes for piano, 8. Un reflet dans le vent 5:08
10. Gabriel Fauré – Impromptu for piano No. 1 in E flat major, Op. 25 4:04
11. Gabriel Fauré – Impromptu for piano No. 4 in D flat major, Op. 91 4:43
12. Gabriel Fauré – Impromptu for piano No. 2 in F minor, Op. 31 3:54
13. Maurice Ravel – Gaspard de la nuit, for piano 1. Ondine 6:42
14. Maurice Ravel – Gaspard de la nuit, for piano 2. Le Gibet 7:28
15. Maurice Ravel – Gaspard de la nuit, for piano 3. Scarbo 9:37
16. Gabriel Fauré – Impromptu for piano No. 5 in F sharp minor, Op. 102 2:09
Hoje fazem 113 anos que o compositor francês Olivier Messiaen nasceu no sul da França, na cidade de Avignon, famosa por sua arquitetura medieval. Em algumas das suas primeiras obras, como Hymne (1932) e L’Ascension (1933), Messiaen utilizou orquestrações mais convencionais, para orquestra com poucos percussionistas e sem piano.
Após a 2ª Guerra, a partir de Trois petites liturgies de la présence divine (1944) e Turangalîla-Symphonie (1948), o compositor vai tentar imitar o canto dos pássaros e escreve várias obras para um tipo de orquestra muito influenciada pelo gamelão (conjunto de percussões do extremo-oriente que também despertou grande interesse em Debussy). O piano, nessas obras, de certa forma faz parte do naipe de percussões, e tem um papel essencial, fazendo alguns apartes como solo, mas jamais no sentido convencional de um concerto para piano.
Os dois pianistas dessa gravação parecem entender bem o tipo de sonoridade que exige a música de Messiaen. Roger Muraro toca em Trois petites liturgies, ele tem um toque leve e recentemente gravou os estudos de Debussy e algumas obras de Messiaen pela Harmonia Mundi.
Catherine Cournot não fica atrás, embelezando Couleurs de la cité céleste (1963) com citações ao canto de pássaros de lugares como Nova Zelândia, Brasil, Venezuela, Argentina e Canadá. A orquestração dessa última obra é bastante original: uma orquestra sem cordas, com três clarinetes, metais e percussões variadas incluindo um gongo.
O maestro Myung-whun Chung (nascido em Seul em 1953) comandou a Orquestra da Ópera de Paris de 1989 a 94 e conheceu Messiaen nos últimos anos de vida do compositor. Foi dedicatário de uma das suas últimas obras e gravou uma meia dúzia de CDs de Messiaen pela DG. Há quem prefira a regência do francês Boulez, do holandês de Leeuw, do finlandês Salonen, ou alguns da velha guarda como Dorati, mas para mim Chung é a primeira opção para as obras orquestrais de Messiaen.
Olivier Messiaen (1908-1992):
1-3. Trois Petites Liturgies de la Présence Divine
I. Antienne de la conversation intérieure (Dieu présent en nous…)
II. Séquence du Verbe, Cantique Divin (Dieu présent en lui-même…)
III. Psalmodie de l’ubiquité par amour (Dieu présent en toutes choses…)
4. Couleurs de la Cité Céleste
5. Hymne pour grand orchestre
Orchestre Philharmonique De Radio France – Myung-whun Chung
Piano: Roger Muraro (1-3), Catherine Cournot (4)
Na única oportunidade em que escutei ao vivo a música para piano de Messiaen (Peter Donohoe interpretando lindamente os ‘Vingt regards sur l’enfant Jésus’ na Sala Cecília Meireles, Rio), dois homens conversavam na fileira à minha frente:
– Ele usa clusters, dissonâncias, uma loucura, pra terminar com um acorde em dó maior! Absurdo, né? (Peço que o leitor leia as palavras em itálico com o mesmo tom blasé que merece uma pintura de Romero Brito)
Estou frontalmente em discordância. Para mim, um dos méritos de Messiaen é seu ecletismo: sem pestanejar, ele alterna entre música tonal e atonal, cita melodias medievais e cantos de pássaros – estes últimos, obviamente, não costumam cantar em 4/4.
Nas “Nove meditações sobre o mistério da Santa Trindade”, compostas em 1969, ele utiliza trechos de canto gregoriano (sobretudo no 2º movimento), cantos de pássaros (4º movimento e un peu partout), serialismos pós-Schoenberg, cromatismos pós-Debussy, acordes potentes que foram pensados por alguém que sabe bem o que funciona no órgão…
E isso tudo, ele faz não com o objetivo de seguir aqui as leis da harmonia europeia ocidental, seguir ali as leis do dodecafonismo… Muito pelo contrário, ele não se importa com essas leis. Ele utiliza todos esses procedimentos sonoros com objetivos próprios, alheios a preocupações do tipo “será que vão me achar antiquado por usar um acorde maior? As regras do campeonato permitem? Vão me cancelar?”
Do meu ponto de vista, é desprezível o homem que jura cumprir a Constituição do seu país e não cumpre. E é pouco relevante o artista que segue estritamente algum cânone de leis estéticas. Porque uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. A História faz julgamentos diferentes para quem rasga as leis do país e para quem bagunça o coreto das leis estéticas. Sic transit gloria mundi.
Olivier Messiaen (1908-1992): Méditations sur le Mystère de la Sainte Trinité
Méditation I: “Le Père des étoiles” (“The Father of the Stars”)
Méditation II: “Dieu est Saint” (“God is Holy”)
Méditation III: “La relation réelle en Dieu est réellement identique à l’essence” (“The relation really existing in God is really the same as His essence”)
Méditation IV: “Je suis, Je suis !” (“I am, I am!”)
Méditation V: “Dieu est immense”, “Dieu est éternel”, “Dieu est immuable”, “le Souffle de l’Esprit”, “Dieu le Père tout-puissant”, “Notre Père”, “Dieu est amour” (“God is immense”, “God is eternal”, “God is immutable”, “The breath of the Spirit”, “God is Father all powerful”, “Our Father”, “God is love”)
Méditation VI: “Dans le Verbe était la Vie et la Vie était la Lumière…” (“In the Word was Life, and that Life was the Light…”) (Evangelho Segundo João, I.4)
Méditation VII: “Le Père et le Fils aiment, par le Saint-Esprit, eux-mêmes et nous” (“The Father and the Son love, through the Holy Spirit, each other and us”)
Méditation VIII: “Dieu est simple”, “Les Trois sont Un” (“God is simple”, “The Three are One”).
Méditation IX: “Je suis Celui qui suis” (“I am Who I am”)
Colin Andrews – órgão construído por C.B. Fisk
St. Paul’s Episcopal Church, Greenville, North Carolina, USA
Martha chegou aos quarenta com a reputação consolidada: uma das maiores pianistas do seu tempo, um fenômeno que abarrotava todas as salas de concerto, e tão célebre pelos recitais que dava quanto por aqueles que cancelava. Sua aversão tanto à cultura do espetáculo quanto ao estrelato levou-a, ao longo da década, a evitar a imprensa e os holofotes. Pouco a pouco, também, trocou as aparições solo por colaborações com amigos que, como veríamos nas décadas seguintes, seriam mantidas por toda a vida. Isso, naturalmente, refletiu-se em seu legado discográfico nos anos 80: muitos duos, alguns concertos, apenas um (e derradeiro) álbum solo – e, o mais incrível, nenhum Chopin.
Um dos mais fieis escudeiros de Martha, o leto-israelense Mischa Maisky (1948) é tão próximo da Rainha que ela escolheu ser sua vizinha quando mudou-se para Bruxelas. Maisky é, claro, um ótimo violoncelista, mas tende sempre a romantizar bastante as coisas, embora sua vizinha, felizmente, quase sempre lhe sirva de antídoto aos excessos de sacarose. O arranjo para violoncelo da sonata de Franck – um dos xodós de Martha, que a gravou tantas vezes, sempre com parceiros diferentes – é muito atraente, e as obras de Debussy que fecham o disco me fazem lamentar, como já fizera quando comentei a gravação com Gitlis, que a Rainha não tenha gravado mais coisas do pai da Chouchou.
César-Auguste-Jean-Guillaume-Hubert FRANCK (1822-1890)
Arranjo de Jules Delsart (1844-1900) Sonata em Lá maior para violoncelo e piano 1 – Allegretto ben moderato
2 – Allegro
3 – Ben moderato: Recitativo-Fantasia
4 – Allegretto poco mosso
Claude-Achille DEBUSSY (1862-1918) Sonata em Ré menor para violoncelo e piano
5 – Prologue: Lent – Sostenuto e molto risoluto
6 – Sérénade et Final (Modérément animé – Animé)
La Plus que Lente, valsa para piano
Arranjo para violoncelo e piano de Mischa Maisky (1948)
7 – Molto rubato con morbidezza
Dos Prelúdios para piano, Livro I: 8 – No. 12: Minstrels: Modéré (arranjo de Mischa Maisky para violoncelo e piano)
Martha e Nelson Freire (1944-2021) eram amigos desde os tempos de estudantes em Viena. Sobretudo, e com o devido perdão pelo lugar-comum, eram almas gêmeas e o demonstravam sobejamente quando tocavam em duo. Eu jurava que este disco, que inaugurou a parceria deles em estúdios de gravação, já fazia parte do acervo do PQP Bach. Enganei-me: ele só foi, em verdade, citado pelo patrão numa outra postagem com os dois, em que ele contou de seu breve encontro com a deusa para um autógrafo em Porto Alegre, e da espirituosa mensagem que ela deixou em seu LP.
Sergey Vasilyevich RACHMANINOFF (1873-1943)
Suíte para dois pianos no. 2 em Dó maior, Op. 17 1 – Introduction
2 – Valse
3 – Romance
4 – Tarantella
Joseph Maurice RAVEL (1875-1937) La valse, Poème Chorégraphique pour Orchestre Transcrição para dois pianos do próprio compositor
5 – Mouvement de valse viénnoise
Witold Roman LUTOSŁAWSKI (1913-1994)
Variações sobre um tema de Paganini, para dois pianos 6 – Tema – Variações I-XII – Coda
Nelson Freire, piano
Gravado em La Chaux-de-Fonds, Suíça, em agosto de 1982
Grande amigo de Martha, o cipriota Nicolas Economou (1953-1993) certamente estaria a dividir os palcos com ela até hoje, não tivesse sucumbido jovem ao alcoolismo e, por fim, a uma desgraça automobilística. O destaque dessa gravação, a única que fizeram, é a hábil transcrição de Economou para a suíte de “O Quebra-Nozes” de Tchaikovsky, dedicada a Stéphanie e Semele, as caçulas da dupla.
Sergey RACHMANINOFF Danças Sinfônicas, Op. 45, para dois pianos
1 – Non allegro
2 – Andante con moto
3 – Lento assai – Allegro vivace – Lento assai. Come prima – Allegro vivace
Pyotr Ilyich TCHAIKOVSKY (1840-1893) Suíte do balé “O Quebra-Nozes”, Op. 71a
Transcrição para dois pianos de Nicolas Economou (1953-1993)
4 – Ouverture-miniature: Allegro giusto
5 – Danses Caractéristiques – Marche: Tempo di Marcia viva
6 – Danses Caractéristiques – Danse de la Fée Dragée: Andante non troppo
7 – Danses Caractéristiques – Danse Russe – Trépak: Tempo di Trepak, molto vivace
8 – Danses Caractéristiques – Danse Arabe: Allegretto
9 – Danses Caractéristiques – Danse Chinoise: Allegro moderato
10 – Danses Caractéristiques – Danse des Mirlitons: Moderato assai
11 – Valse Des Fleurs: Tempo de Valse
Nicolas Economou, piano
Gravado em Munique, Alemanha Ocidental, em março de 1983
Martha sequer completara quarenta e dois anos quando nos legou seu último registro solo em estúdio. Enfastiada do processo de gravação, e num resmungo crescente quanto a solidão nos recitais e sessões (e eu acho que sua expressão amuada na capa diz-lhes mais do que eu seria capaz de lhes contar), deixou-nos um Schumann emblemático antes de se calar para sempre como recitalista em discos. Horowitz, com quem ela quisera ter aulas, ficaria faceiro com a jamais-aluna se ouvisse a endiabrada “Kreisleriana” e as “Cenas Infantis” tocadas assim, com a verve e o colorido que lhe eram tão característicos.
Robert Alexander SCHUMANN (1810-1856) Kinderszenen, para piano, Op. 15 1 – Von fremden Ländern und Menschen
2 – Kuriose Geschichte
3 – Hasche-Mann
4 – Bittendes Kind
5 – Glückes genug
6 – Wichtige Begebenheit
7 – Träumerei
8 – Am Kamin
9 – Ritter vom Steckenpferd
10 – Fast zu ernst
11 – Fürchtenmachen
12 – Kind im Einschlummern
13 – Der Dichter spricht
Kreisleriana, Fantasias para piano, Op. 16 14 – Äußerst bewegt
15 – Sehr innig und nicht zu rasch
16 – Sehr aufgeregt
17 – Sehr langsam
18 – Sehr lebhaft
19 – Sehr langsam
20 – Sehr rasch
21 – Schnell und spielend
Gravado em Munique, Alemanha Ocidental, em abril de 1983
Beethoven é, confessadamente, o compositor favorito de Martha, mas, em vivo contraste com seu amado Schumann, não o gravou muito quanto diz gostar dele. Se ela não tivesse abandonado as gravações solo, talvez encarasse a empreitada de registrar algumas sonatas do renano, como sói acontecer com os pianistas em maturidade artística. Por outro lado, os dois primeiros concertos para piano de Ludwig, seus cavalos de batalha como compositor-pianista recém-chegado a Viena, são figurinhas fáceis nos concertos da Rainha e em suas gravações ao vivo. Essa aqui, com a orquestra do Concertgebouw sob o patriarca dos Järvi, é uma das melhores, à qual se segue uma bonita “Patética” de Tchaikovsky, conduzida por aquele discreto gigante que atendia por Antal Doráti.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Concerto para piano e orquestra no. 2 em Si bemol maior, Op. 19 1 – Allegro con brio
2 – Adagio
3 – Rondò. Molto allegro
Koninklijk Concertgebouworkest Neeme Järvi, regência
Gravado em Amsterdã, Países Baixos, em novembro de 1983
Pyotr TCHAIKOVSKY
Sinfonia no. 6 em Si menor, Op. 74, “Patética”
4 – Adagio – Allegro non troppo
5 – Allegro con grazia
6 – Allegro molto vivace
7 – Finale — Adagio lamentoso
Koninklijk Concertgebouworkest Antal Doráti, regência
Gravado em Amsterdã, Países Baixos, em novembro de 1983
Não é todo mundo que tem dois parças letões. Mas Martha não é todo mundo e tem, além de Mischa Maisky, um outro nativo de Riga como parceiro musical de toda vida. Gidon Kremer (1947) ganhou rápida notoriedade depois de deixar a União Soviética e, com imenso repertório e interpretações muito originais, transformou-se num queridinho de plateias e gravadoras. Gosto dele, apesar de não ser seu fã incondicional, mas, assim como acontece com Maisky, acho que Martha consegue lhe domar os arroubos mercuriais, de modo que as parcerias com ela estão entre suas melhores gravações. Este é o primeiro dos quatro discos com a integral das sonatas de Beethoven, e essas gravações das sonatas da juventude do renano deixam muito óbvio que os dois estão tão entrosados e à vontade quanto os vemos na capa do disco.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827) Três sonatas para violino e piano, Op. 12
Sonata no. 1 em Ré maior 1 – Allegro con brio
2 – Tema con variazioni: Andante con moto
3 – Rondo: Allegro
Sonata no. 2 em Lá maior 4 – Allegro vivace
5 – Andante, più tosto allegretto
6 – Allegro piacevole
Sonata no. 3 em Mi bemol maior 7 – Allegro con spirito
8 – Adagio con molta espressione
9 – Rondo: Allegro molto
Gidon Kremer, violino
Gravado em Munique, Alemanha Ocidental, em novembro de 1984
Martha voltou a unir-se a Maisky para este registro das sonatas para gamba e cravo de Sebastião Ribeiro, e o resultado é surpreendente. Não pela qualidade dos intérpretes, que é notória – embora Martha aqui dome uma vez mais os esguichos de sacarose do vizinho -, e sim pelo quão convincentes estas sonatas soam sob mãos tão pouco barrocas. A transparência e clareza do Bach da Rainha permeiam toda a gravação, e acho Maisky perfeito, quase gambístico, nos movimentos rápidos da sonata em Sol menor.
Johann Sebastian BACH (1685-1750) Três sonatas para viola da gamba e cravo obbligato, BWV 1027-29
Sonata no. 1 em Sol maior, BWV 1027
1 – Adagio
2 – Allegro ma non tanto
3 – Andante
4 – Allegro moderato
Este disco pode ser descrito como uma “baguncinha entre amigos”: Martha trouxe Nelson e Mischa, e Kremer trouxe Isabelle van Keulen e Elena Bashkirova, sua ex-esposa e então recém-mãe dos dois filhos de Daniel Barenboim, que, por sua vez, ainda era casado com Jacqueline du Pré. Antes que isso vire a “Quadrilha” de Drummond, afirmo-lhes que o resultado é bem divertido: Martha e Nelson se esbaldam na idiomática escrita pianística de Saint-Saëns, Maisky aproveita a chance de confeitar o belíssimo Le Cygne, e Kremer e Bashkirova, alternando-se entre seus instrumentos e narração, trazem interesse às pouco gravadas peças que completam o disco (e se a história do touro Ferdinand lhes parecer familiar, certamente será porque vocês já a viram aqui)
Charles-Camille SAINT-SAËNS (1835-1921)
O Carnaval dos Animais, Grande Fantasia Zoológica 1 – Introdução e Marcha Real do Leão
2 – Galinhas e Galos
3 – Hémiones (asnos selvagens da Mongólia) – Animais velozes
4 – Tartarugas
5 – O Elefante
6 – Cangurus
7 – Aquário
8 – Personagens de orelhas compridas
9 – O cuco nas profundezas dos bosques
10 – Aviário
11 – Pianistas
12 – Fósseis
13 – O Cisne
14 – Final
Martha Argerich e Nelson Freire, pianos
Gidon Kremer e Isabelle van Keulen, violinos
Tabea Zimmermann, viola
Mischa Maisky, violoncelo
Georg Hörtnagel, contrabaixo
Irena Grafenauer, flauta
Eduard Brunner, clarinete
Edith Salmen-Weber, glockenspiel Markus Steckeler, xilofone
Alan RIDOUT (1934-1996), texto de Munro Leaf
15 – Ferdinand the Bull, para narrador e violino solo
Elena Bashkirova, narração
Gidon Kremer, violino
Frieder MESCHWITZ (1936) Tier-Gebete (“Preces dos Animais”), para narrador e piano Texto: “Prières Dans L’Arche”, de Carmen Bernos de Gasztold, traduzido para o alemão por A. Kassing e A. Stöcklei
16 – A Prece do Boi
17 – A Prece do Rato
18 – A Prece do Gato
19 – A Prece do Cão
20 – A Prece da Formiga
21 – A Prece do Elefante
22 – A Prece da Tartaruga
23 – A Prece da Girafa
24 – A Prece do Macaco
25 – A Prece do Galo
26 – A Prece do Velho Cavalo
27 – A Prece da Borboleta
Gidon Kremer, narração
Elena Bashkirova, piano
Alan RIDOUT, texto de David Delve 28 – Little Sad Sound
Gidon Kremer, narração
Alois Posch, contrabaixo
Gravado em Munique, Alemanha Ocidental, em abril de 1985
O segundo ato em disco da longa parceria entre Martha e nosso saudoso Nelson foi esta gravação da versão de concerto da sonata para dois pianos e percussão de Béla Viktor János, que a tocou pela primeira e única vez em público, com a esposa Ditta e sob a regência do compatriota Fritz Reiner, em sua última aparição como concertista, em 1943. Se Nelson e Martha nunca juntaram as escovas de dentes, a impressão que se tem ao escutar esse registro com a Concertgebouw sob o ótimo David Zinman é bem diferente: Ditta e Béla ficariam com inveja da liga que los sudamericanos dão ao originalíssimo tecido sonoro criado pelo magiar genial.
Béla Viktor János BARTÓK (1881-1945) Concerto para dois pianos, percussão e orquestra 1 – Assai lento – Allegro molto
2 – Lento, ma non troppo
3 – Allegro ma non troppo
Nelson Freire, piano II
Jan Labordus e Jan Pustjens, percussão
Zoltán KODÁLY (1882-1967)
4 – Danças de Galanta (Galántai táncok), para orquestra
Koninklijk Concertgebouworkest
David Zinman, regência
Gravado em Amsterdã, Países Baixos, em agosto de 1985
Martha devora aqui, como é costumeiro, aquele seu outro cavalo de batalha – o Concerto em Sol de Ravel – num disco dedicado a Maurice e ao israelense Gary Bertini (1927-2005), um ótimo regente que nos legou um excelente ciclo de sinfonias de Mahler – do qual vocês poderão ter boa ideia pelo capricho com que ele burila a sensacional segunda suíte de Daphnis et Chloé.
Maurice RAVEL
Suíte no. 2 do balé Daphnis et Chloé 1 – Lever du jour
2 – Pantomime 3 – Danse générale
Concerto para piano e orquestra em Sol maior 4 – Allegramente
5 – Adagio assai
6 – Presto
7 – La Valse, poema coreográfico para orquestra
Kölner Rundfunk-Sinfonie-Orchester
Gary Bertini, regência
Gravado ao vivo em Colônia, Alemanha Ocidental, em dezembro de 1985
Marthita e Danielito foram as duas mais famosas Wunderkinder portenhas nos anos 40. A emigração dos Barenboim para Israel e os diferentes rumos que os prodígios tomaram em suas carreiras fizeram com que se revissem e gravassem só já consagrados e maduros. Essa gravação de Noches em los Jardines de España é minha favorita, pelo que Martha traz de colorido e, surpreendentemente, de sobriedade à parte pianística, integrando seu piano à massa orquestral como se dela fosse só uma parte, e não a briosa solista de costume. Completa o disco um registro da mais efetiva das orquestrações da suíte Iberia de Albéniz, que, apesar de muitas belezas, não é muito minha praia, fã que sou do pianismo magistral da obra original.
Manuel de FALLA y Matheu (1876-1946) Noches en los Jardines de España, para piano e orquestra 1 – En el Generalife: Allegretto tranquillo e misterioso
2 – Dansa Lejana: Allegretto giusto – En los Jardines de la Sierra de Córdoba: Vivo
Isaac Manuel Francisco ALBÉNIZ y Pascual (1860-1909)
De Iberia, suíte para piano (orquestração de Enrique Fernández Arbós)
3 – Evocación
4 – El Puerto
5 – El Albaicin
6 – Fête-Dieu à Séville
7 – Triana
Em mais um álbum que reflete sua risonha capa, Martha e Kremer divertem-se em suas leituras dessas sonatas-irmãs de Beethoven, paridas em números de opus separados tão só por uma mundana questão de papel. O letão e a argentina, intérpretes tão originais quanto impulsivos, emprestam uma bem-vinda inquietude aos tantos gestos temperamentais de Ludwig, sempre o nervosinho. Acima de tudo, o que Martha faz desses discos instiga a imaginação, quando nela pomos a Rainha a tocar algumas das quase trinta sonatas do renano que jamais trouxe a público.
Ludwig van BEETHOVEN
Sonata em Lá menor para violino e piano, Op. 23
1 – Presto
2 – Andante scherzoso, più allegretto
3 – Allegro molto
Sonata em Fá maior para violino e piano, Op. 24, “Primavera” 4 – Allegro
5 – Adagio molto espressivo
6 – Scherzo: Allegro molto
7 – Rondo: Allegro ma non troppo
Mais Kremer, e ainda mais sorrisos. À curiosa escolha do repertório – dois concertos compostos por um Mendelssohn adolescente – soma-se a distinta companhia da Orpheus, uma orquestra de câmara notória por ser conduzida não por regentes, mas por seus próprios músicos, através dum original e participativo processo criativo. A Orpheus, que não é muito afeita a superestrelas, parece ter aberto uma exceção à turma de Martha (pois também gravou com Mischa Maisky), com bons resultados. Aqui, a temperamental dupla de solistas está quase irreconhecível em sua dedicação à transparência e ao equilíbrio clássico dessas peças que só surpreenderão quem desconhece o considerável compositor que Felix já era quando moleque.
Jakob Ludwig Felix MENDELSSOHN Bartholdy (1809-1847) Concerto para piano, violino e orquestra de cordas em Ré menor, MWV O4 1 – Allegro
2 – Adagio
3 – Allegro molto
Concerto para violino e orquestra de cordas em Ré menor, MWV O3 4 – Allegro
5 – Andante
6 – Allegro
O status de superestrela garantiu a Martha gravidade suficiente para atrair outros astros à sua órbita e promover festivais centrados em sua presença, como os de Beppu (Japão) e Lugano (Suíça), bem como em sua Buenos Aires natal. Aqui, ela é parte duma constelação granjeada por Gidon Kremer para o festival de Lockenhaus, na Áustria, capitaneado por ele. A participação de Martha resumir-se-ia ao duo que abre o disco, com a participação de Alexandre Rabinovitch (mais – mas MUITO mais – sobre ele em breve), mas resolvi encerrá-lo com uma breve peça de Kreisler tocada com o capitão Kremer, transplantada de outro disco. O recheio é muito, e muito bom Schubert, com destaque para dois pouco ouvidos trios.
Franz Peter SCHUBERT (1797-1828) Rondó em Ré maior para piano a quatro mãos, D. 608
1 – Allegretto
Martha Argerich e Alexandre Rabinovitch, piano
2 – 25 Winterreise, ciclo de canções sobre poemas de Wilhelm Müller, D. 911
Robert Holl, baixo
Oleg Maisenberg, piano
Trio em Mi bemol maior para piano, violino e violoncelo, D. 897, “Notturno”
26 – Adagio
Oleg Maisenberg, piano
Gidon Kremer, violino
Clemens Hagen, violoncelo
Trio em Si bemol maior para violino, viola e violoncelo, D. 581
27 – Allegro moderato
28 – Andante
29 – Menuetto: Allegretto
30 – Rondo: Allegretto
Natural de Baku, no Azerbaijão, mas educado na Rússia e radicado na Suíça, o pianista, compositor e regente Alexandre Rabinovitch será figurinha fácil na próxima década de vida artística de nossa Rainha. Nessa gravação, eles encaram a travessia da monumental suíte “Visões do Amém”, de Olivier Messiaen, composta durante a ocupação nazista da França (e depois de sua indesejável temporada em Görlitz) e destinada à interpretação do próprio compositor e de sua esposa, Yvonne Loriod. Messiaen criou as partes para piano especificamente para os temperamentos dos dois, destinando ao piano de Yvonne as “dificuldades rítmicas, os clusters, tudo que tem velocidade, charme e qualidade de som” e a seu próprio “a melodia principal, elementos temáticos, tudo o que demanda emoção e força”. A descrição de Yvonne lhes pareceu familiar? Pois escutem a gravação e me contem quem tocou a parte de Mme. Loriod.
Olivier Eugène Prosper Charles MESSIAEN (1908-1992) Visions de l’Amen, para dois pianos (1943)
1 – Amen de la Création
2- Amen des étoiles, de la planète à l’anneau
3 – Amen de l’agonie de Jésus
4 – Amen du Désir
5 – Amen des Anges, des Saints, du chant des oiseaux
6 – Amen du Jugement
7 – Amen de la Consommation
Alexandre Rabinovitch, piano II
Gravado em Londres, Reino Unido, em dezembro de 1989
Um de meus discos para uma ilha deserta: a maravilhosa gravação do Concerto em Sol de Ravel (1984), pareada com o no. 3 de Prokofiev. Duas das especialidades da Rainha, sob a batuta de um de seus bruxos, Claudio Abbado.
Numa outra empreitada com Gidon Kremer, gravada em 1985, Martha encara peças contemporâneas que, se já foram interpretadas com mais “sotaque”, são tão boas que sempre merecem a audição. Minha favorita entre as gravações desse álbum é a de Messiaen.
Dois cavalos de batalha argerichianos, interpretados com o brilho de sempre pela Rainha, a despeito do som orquestral cavernoso e pouco congenial (1985)
Minha gravação favorita das sonatas para violoncelo e piano de Beethoven deve quase tudo a Martha: foi seu brilho no finale daquela obra-prima, a sonata Op. 69, que primeiro me chamou a atenção para seu nome, quando eu era um garoto de poucos fios de barba a escutar a gravação, no mesmo 1990 em que foi lançada.
Nicolas Economou toca “Martha My Dear”, dos Beatles, para a própria, no início dos anos 80.
Um bonito disco de gatinhos. Ou seja, são peças juntadas de vários compositores segundo critérios que um ateu não entende bem, mas que deve ser a tal Trindade, — Pai, Filho e Espírito Santo –, sem mulheres envolvidas. Mas são elas, sopranos e contraltos, as estrelas de um disco que inclui algumas joias extraordinárias como a faixa 6 de Duruflé, a 11 e a 22 de Fauré e a 18 de Brahms. As duas últimas quase me levaram às lágrimas e isto é raro neste coração seco de tanta irreligião. (Brincadeira, é um alívio ser assim em nosso país fundamentalista). O disco me deu enorme saudade da música praticada nas igrejas da Inglaterra e da Alemanha, que tanto ouvi em meus turismos-sinfônicos por aqueles países. É o esplendor, mas agora não dá pra viajar.
O Coral do Trinity College de Cambridge é misto e sua função principal é a de cantar serviços corais na capela Tudor do Trinity College, Cambridge. Em janeiro de 2011, a revista Gramophone nomeou-o como o quinto melhor coro do mundo.
2 Never Weather-Beaten Sail
Composed By – Parry*
3:22
Psalms Of David
Composed By – Schütz*
3 Der Herr Sprach Zu Meinem, Herren 3:21
4 I Was Glad
Composed By – Purcell*
4:08
5 Ubi Caritas
Composed By – Duruflé*
2:30
6 Tota Pulchra Es
Composed By – Duruflé*
2:24
Lobet Den Herrn
Composed By – Bach*
7 I Lobet Den Herrn BWV.320 4:56
8 II Hallelujah! 1:18
9 Seigneur, Je Vous En Prie
Composed By – Poulenc*
1:23
10 Exultate Deo
Composed By – Poulenc*
2:47
11 Requiem – In Paradisum
Composed By – Fauré*
3:37
Der Geist Hilft Unsrer Schwachheit Auf, BWV.226
Composed By – J.S. Bach*
12.1 I Der Geist Hilft Unsrer Schwachheit Auf 3:25
12.2 II Der Aber Die Herzen 2:12
12.3 III Du Heilige Brunst 1:45
13 Hear My Prayer
Composed By – Purcell*
2:57
14 Judas Mercator
Composed By – Victoria*
2:12
15 Unus Ex Discipulis
Composed By – Victoria*
2:31
16 O Sacrum Convivium!
Composed By – Messiaen*
4:34
17 Eternal Father
Composed By – Stanford*
6:28
18 Geistliches Lied
Composed By – Brahms*
4:50
19 There Is No Rose
Composed By – Anon*
2:18
20 Of The Father’s Heart
Composed By – Anon*
2:29
21 Sweet Was The Song
Composed By – Anon*
2:19
22 Requiem – Sanctus
Composed By – Fauré*
3:26
The Choir Of Trinity College Of Cambridge
Richard Marlow
O mestre Leonardo não deixou de notar os muitos apetrechos de falcoaria jogados próximos da grande cadeira onde se assentava o ainda jovem imperador, cercado pelos sábios que o acompanhavam e faziam parte de seu entourage. A diferença de idade entre eles, de quase 24 anos, não atrapalhou a conversa que tiveram sobre as suas próprias formações – o quanto aprenderam com os sábios tanto do oriente quanto do ocidente.
Fibonacci, aos 55 anos, era o mais importante matemático daquela época e o livro que escrevera em 1202, Liber abaci, havia sido dedicado a Michael Scotus, o astrólogo do Imperador do Sacro Império Romano, Frederico II. Além de Michael, estavam por lá Theodorus Physicus, um filósofo, e Domenicus Hispanus, que havia sugerido o encontro ao imperador, naquela estada da corte em Pisa, em 1225. Alguns problemas foram propostos ao grande matemático por Johannes Palermo, outro sábio presente. Três destes problemas foram posteriormente incluídos com suas cuidadosas resoluções no livro Flos (Flores), escrito por Fibonacci e enviado ao imperador. Os problemas foram cuidadosamente escolhidos da literatura árabe. Um deles consistia em resolver a equação
que fora tirada de um livro de Omar Khayyam. Note que não se usava coeficientes negativos. E a equação fora proposta literalmente, uma vez que a simbologia que usamos hoje seria desenvolvida bem depois dos dias de Fibonacci. A resposta para este problema foi encontrada por aproximação e Fibonacci usou a representação sexagesimal para escrevê-la. Sua resposta foi 1.22.7.42.33.4.40 (elegante, não?) que significa
1.3688081075 em decimais, correta a resposta até a nona casa decimal. As soluções por radicais das equações de terceiro grau só seriam descobertas posteriormente por Tartaglia e Cardano, mas isto é outra história!
Em qual língua eles falaram e sobre o que realmente falaram só podemos conjecturar. Frederico falava nove línguas, latim, árabe e grego entre elas. Era versado em poesia e deixou um tratado sobre falcoaria. Se você se dispor a descobrir um pouco de seus feitos, ficará surpreso. Certamente eles tinham muitos temas para conversar.
Decidi terminar esta série de postagens sobre Fibonacci mencionando seu encontro com Frederico II para chamar um pouco a atenção para este interessantíssimo personagem e lembrar a importância do papel das figuras que conseguiram aproximar culturas diferentes.
Frederico II enrolou o que pode, mas finalmente embarcou com seus exércitos rumo a Jerusalém, para cumprir sua promessa de realizar alguma Cruzada. No lugar de grandes batalhas, Frederico estabeleceu conversas diplomáticas com al Kamil, o Sultão do Egito, e conseguiu a retomada de Jerusalém, sem derramamento de sangue. Durante estes movimentos pela Terra Santa, houve intensa troca de desafios matemáticos entre os sábios do imperador e os sábios locais…
Quanto a Fibonacci, a última notícia que temos é de um decreto editado pela República de Pisa no ano de 1240, no qual um salário foi estabelecido ao
… sério e sábio Mestre Leonardo Bigollo
como reconhecimento de suas contribuições para o desenvolvimento dos conhecimentos matemáticos e de matemática financeira.
Assim nos despedimos também do grande Leonardo de Pisa ou Leonardo Bigollo, vulgo Fibonacci, cuja sequência 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, … inspirou este grupo de artistas ingleses que na busca das harmonias musicais tem nos oferecido alguns discos muito interessantes.
Este é o último disco da série de postagens, mas certamente não o último do conjunto, traz uma única peça musical que também tem uma grande história. O Quatuor pour la fin du temps (Quarteto para o Fim dos Tempos) foi escrito por Messiaen em 1940-41 quando ele era prisioneiro de guerra dos alemães em um campo na Silésia. A obra foi inspirada por uma passagem do Livro das Revelações, que fala de um anjo anunciando o fim dos tempos. Entre os prisioneiros havia um clarinetista, Henri Akoka, para o qual Messiaen iniciou a obra escrevendo um solo, chamado Abîme des oiseaux. Posteriormente um violinista, Jean Le Boulerie e um violoncelista, Étienne Pasquier, se uniram a eles e o projeto cresceu. A obra foi composta num período em que eles enfrentavam condições dificílimas e Messiaen recebeu alguma ajuda de um guarda do campo, chamado Karl Albert Brull. A estreia da peça se deu frente aos prisioneiros do campo, em 15 de janeiro de 1941 (80 anos daqui a três dias). Alguns meses depois Messiaen foi libertado devido a intervenção de Marcel Dupré. A combinação de instrumentos não era original, mas não é muito comum. Certamente não é Vivaldi nem Tchaikovsky, mas espero que esta obra composta em um momento de turbulência, de alguma forma, sirva de exemplo para nós, lembrando que mesmo os mais difíceis tempos passam, mesmo deixando suas marcas e cicatrizes.
Olivier Messiaen (1908 – 1992)
Quatuor pour la fin du temps
Liturgie de cristal
Vocalise, pour l’Ange qui annonce la fin du Temps
Abîme des oiseaux
Intermède
Louange à l’Éternité de Jésus
Danse de la fureur, pour les sept trompettes
Fouillis d’arcs-en-ciel, pour l’Ange qui annonce la fin du Temps
Na coletânea de ensaios Os testamentos traídos, de 1993, Milan Kundera disseca as culturas mais periféricas da Europa, tomando como exemplo sua Tchecoslováquia natal. “A intensidade muitas vezes assombrosa de sua vida cultural pode fascinar um observador”. Porém, “No seio dessa intimidade calorosa, um inveja o outro, todos vigiam a todos”. Se um artista ignora as regras locais, a rejeição pode ser cruel, a solidão, esmagadora”. Claro que cada uma destas pequenas nações tinha seu círculo de compositores locais e, dentre eles, o(s) representante(s) nacionais. Sibelius na Finlândia, Bartók na Hungria, Grieg na Noruega, Dvorak, Smetana e Janáček na Tchecoslováquia, Nielsen na Dinamarca, Elgar e Vaughan Williams naquele grande país quase sem música até o século XX, Villa-Lobos no Brasil (sim, Vanderson, sei que não fazemos parte da Europa), etc.
Este CD trata de Bartók e Janáček, dois compositores estranhos e inicialmente mal vistos pelas escolas alemã, francesa e italiana, mas que dominam este disco capitaneado pela argentina Argerich e pelo, penso, letão Gidon Kremer. O francês Messiaen entra meio que de lambuja, pois as principais obras são as dos selvagens. Bartók já foi melhor interpretado, mas, meu jesuiscristinho, que sonata fantástica! O mesmo vale para o Janáček. Por tudo isso, trata-se de um CD
Bartók: Sonata Nº 1 para Violino e Piano (1921) / Janáček: Sonata para Violino e Piano (1914-1921) / Messiaen: Tema e Variações para Violino e Piano (1932)
Béla Bartók (1881-1945) Sonata for violin and piano No. 1
01. Sonata for Violin and Piano No.1, Sz. 75 – Allegro appassionato Gidon Kremer 12:44
02. Sonata for Violin and Piano No.1, Sz. 75 – Adagio Gidon Kremer 10:15
03. Sonata for Violin and Piano No.1, Sz. 75 – Allegro Gidon Kremer 9:29
Leos Janácek (1854-1928) Sonata for violin and piano
04. Violin Sonata – 1. Con moto Gidon Kremer 4:52
05. Violin Sonata – 2. Ballada. Con moto Gidon Kremer 4:59
06. Violin Sonata – 3. Allegretto Gidon Kremer 2:47
07. Violin Sonata – 4. Adagio Gidon Kremer 4:00
Olivier Messiaen (1908) Thema and Variations
08. Theme and Variations for Violin and Piano – Thème. Modéré Gidon Kremer 1:17
09. Theme and Variations for Violin and Piano – Variation 1. Modéré Gidon Kremer 1:30
10. Theme and Variations for Violin and Piano – Variation 2. Un peu moins modéré Gidon Kremer 0:47
11. Theme and Variations for Violin and Piano – Variation 3. Modéré, avec éclat Gidon Kremer 0:51
12. Theme and Variations for Violin and Piano – Variation 4. Vif et passionné Gidon Kremer 1:08
13. Theme and Variations for Violin and Piano – Variation 5. Très modéré Gidon Kremer 1:54
Este álbum traz duas importantes obras de música de câmara — o Quarteto para o Fim dos Tempos (Messiaen) e Quatrain II (Takemitsu) — ambas para um invulgar grupo instrumental: clarinete, violino, violoncelo e piano. Em setembro de 1939 a França entrou na Segunda Guerra Mundial. Messiaen foi chamado às armas e poucos meses depois, em maio de 1940, durante uma ofensiva alemã, foi capturado pelo inimigo. Junto a outros prisioneiros, foi levado ao campo de prisioneiros Stalag VIII-A de Görlitz (na fronteira sudoeste da Polônia), onde permaneceu por um ano. O oficial nazista responsável pelo Stalag era amante de musica e, quando soube de Messiaen (como de outros três prisioneiros músicos), deixou que o compositor trabalhasse a fim de fazer um concerto no próprio campo. Messiaen escreveu, para os musicistas que conheceu na prisão (um violoncelista, um violinista e um clarinetista), inicialmente um breve trio (posteriormente inserido na obra como quarto movimento) e depois, com o acréscimo de um piano (tocado pelo próprio Messiaen), escreveu o Quarteto.
Quatuor pour la fin du temps foi concluído no início do novo ano e foi apresentado no dia 15 de janeiro de 1941, sob a neve e em condições muito difíceis, diante de todos os prisioneiros do Stalag VIII-A, reunidos em um pátio gelado. Os outros músicos que participaram da estreia foram Henri Akoka (clarinete), Jean le Boulaire (violino) e Étienne Pasquier (violoncelo). Nenhum dos três era músico profissional. O Quatuor pour la fin du temps foi inspirado no décimo capítulo do Livro do Apocalipse e é dedicado ao Anjo do Apocalipse. Provavelmente, o Quarteto não evoca o “fim dos dias” — ou o desaparecimento da civilização humana –, mas sim o início da Eternidade. Este pano de fundo religioso é acompanhado por uma grande riqueza de imagens que alimentaram a criatividade de Messiaen, como ritmos hindus, métricas gregas, cantos de pássaros e breves elementos emprestados de outros compositores.
Muito conhecedor e admirador das culturas e tradições musicais asiáticas, Messiaen, por sua vez, atraiu compositores do Extremo Oriente. Toru Takemitsu admirava seus trabalhos, que influenciaram seu próprio estilo. Takemitsu compôs o Quatrain I para clarinete, violino, violoncelo, piano e orquestra, e o Quatrain II em 1976-1977 com a mesma instrumentação do Quarteto de Messiaen, sem orquestra. É uma homenagem a Messiaen. Da mesma forma que o Quarteto de Messiaen se baseia no simbolismo numérico, o Quatrain II se organiza em torno do número quatro: quatro no sentido de plenitude, equilíbrio, simetria, como uma mesa; quatro como as linhas que compõem uma estrofe de um verso; quatro instrumentos usados; quatro seções em grupos de quatro barras…
O quarteto formado por Iturriagagoitia, Apellániz, Estellés e Rosado é realmente muito bom. Estão à altura da obra a que se propuseram, que é de difícil abordagem, tanto pelo desafio técnico como pelo ontológico.
Tōru Takemitsu (1930-1996): Quatrain II / Olivier Messiaen (1908-1992): Quarteto para o Fim dos Tempos
— Tōru Takemitsu (1930-1996): Quatrain II
1. Quatrain II (15:24)
— Olivier Messiaen (1908-1992): Quarteto para o Fim dos Tempos
2. Quatuor pour la fin du temps, I/22: I. Liturgie de cristal (02:32)
3. Quatuor pour la fin du temps, I/22: II. Vocalise, pour l’Ange qui annonce la fin du temps (05:00)
4. Quatuor pour la fin du temps, I/22: III. Abîme des oiseaux (08:22)
5. Quatuor pour la fin du temps, I/22: IV. Intermède (01:44)
6. Quatuor pour la fin du temps, I/22: V. Louange à l’Éternité de Jésus (07:11)
7. Quatuor pour la fin du temps, I/22: VI. Danse de la fureur, pour les sept trompettes (06:26)
8. Quatuor pour la fin du temps, I/22: VII. Fouillis d’arcs-en-ciel, pour l’Ange qui annonce la fin du temps (07:36)
9. Quatuor pour la fin du temps, I/22: VIII. Louange à l’Immortalité de Jésus (07:23)
José Luis Estellés, clarinete
Aitzol Iturriagagoitia, violino
David Apellániz, violoncello
Alberto Rosado, piano
De acordo com a Wikipedia, Lugano é uma cidade com 65 mil habitantes, localizada no Sul da Suíça, um local paradisíaco, ao lado de um lago absolutamente magnífico.
Foi ali que Martha Argerich organizou por muitos anos um Festival de Música, revelando muitos músicos talentosos, e outros já famosos aproveitaram para desfilarem ainda mais seu talento.
A série começa com o genial Trio para Piano ‘Ghost’ de Beethoven, belamente interpretado por Martha, o Capuçon violinista, Renaud, e Mischa Maisky, que dispensa apresentações. Músicos deste nível tocando juntos, em um lugar como este, com certeza seria o passeio dos sonhos de muita gente.
CD 1:
Ludwig van Beethoven (1770-1827):
Piano Trio in D major “Ghost”, Op. 70,1
Ferruccio Busoni (1866-1924) / Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791):
Fantasie für eine Orgelwalze, arrangement for 2 pianos in F minor (after Mozart, K. 608)
Robert Schumann (1810-1856):
Andante and Variations for 2 pianos in B flat major, Op. 46
Kinderszenen, Op. 15
Martha Argerich – piano
Lilya Zilberstein – piano
Gabriela Montero – piano
Renaud Capuçon – violin
Mischa Maisky – cello
CD 2:
Ludwig van Beethoven (1770-1827):
Piano Quartet No. 2 in D major, WoO 36,2
Maurice Ravel (1875-1937):
Ma mère l’oye, suite for piano 4 hands
Mikhail Glinka (1804-1857):
Grand Sextet for piano, two violins, viola, cello and double-bass
Olivier Messiaen (1908-1992):
Theme and Variations, for violin & piano
Maurice Ravel (1875-1937):
Daphnis et Chloé, suite No. 2 (transcr. 2 pianos Lucien Garban)
Martha Argerich – piano
Alexander Mogilevsky – piano
Karin Lechner – piano
Francesco Piemontesi – piano
Sergio Tiempo – piano
Lucia Hall – violin
Alissa Margulis – violin
Lida Chen – viola
Nora Romanoff-Schwarzberg – viola
Mark Drobinsky – cello
Enrico Fagone – double bass
CD 3:
Béla Bartók (1881-1945):
Violin Sonata No.1 Sz75
Ernő von Dohnányi (1877-1960):
Piano Quintet No.1 in C minor, op.1
Witold Lutosławski (1913-1994):
Variations on a Theme by Paganini for 2 pianos
Martha Argerich – piano
Nicholas Angelich – piano
Mauricio Vallina – piano
Renaud Capuçon – violin
Dora Schwarzerg – violin
Lucia Hall – violin
Nora Romanoff-Schwarzberg – viola
Jorge Bosso – cello
Este CD, comprado após uma Editor`s Choice da Gramophone, é um acerto de cabo a rabo. Engraçado que Olivier Messiaen dizia a todos que a execução da Turangalîla deveria durar 75 minutos, não mais e não menos. Hans Rosbaud (1895-1962) a despachou em menos de 70 minutos e 80 minutos não foram suficientes para Simon Rattle (1955-)… A Turangalîla é uma estranha sinfonia escrita para piano, ondas martenot e orquestra; às vezes parece um concerto para piano para logo depois virar música discretamente eletrônica. Outras vezes é de inspiração religiosa, mas também é uma obra bastante americanizada. Aliás, não é para menos: ela foi escrita entre 1946 e 1948, por encomenda de Serge Koussevitzky para a Boston Symphony Orchestra, e estreada sob direção de Leonard Bernstein. Vocês queriam o quê?
O título da peça deriva de duas palavras de sânscrito, turanga e lîla, que em conjunto significam algo como “canção de amor e hino de alegria, movimento, ritmo, tempo, vida e morte” (curioso duas palavrinhas significarem tanta coisa, né?)
Esta complexa e esplêndida sinfonia em 10 movimentos está entre minhas absolutas preferências e a notável gravação que a Naxos nos traz é mais que satisfatória. Há muito a ouvir e sugiro o volume máximo. As ondas martenot são uma curiosidade à parte, mas as súbitas homenagens do ultra-erudito Messiaen à música americana, entremeadas de passagens dramáticas e religiosas fazem a alegria de qualquer um. Messiaen foi muito mais do que o professor de Stockhausen, Boulez e outros, foi um tremendo compositor!
Indico fortemente, é uma das mais belas composições do século XX.
E, diga-se a verdade, esta outra gravação da obra, regida por Chung, é ainda melhor! Além da gravação ter sido aprovada pelo compositor e da orquestra parecer estar tomada de eletricidade, aqui as Martenot aparecem bem mais. Neste disco de Wit (o deste post, desculpem a confusão), elas estão meio que engolidas pela orquestra.
Disc 1 Turangalîla-symphonie
1. I. Introduction 00:06:40
2. II. Chant d’ amour 1 00:08:30
3. III Turangalîla 1 00:05:21
4. IV. Chant d’ amour 2 00:11:32
5. V. Joie du sang des etoiles 00:06:19
6. VI. Jardin du sommeil 00:12:29
7. VII. Turangalîla 2 00:04:01
Disc 2
1. VIII. Developpement de l’Amour 00:12:02
2. IX. Turangalîla 3 00:05:22
3. X. Final 00:08:32
Thomas Bloch, ondas martenot
Francois Weigel, piano
Polish National Radio Symphony Orchestra
Antoni Wit, Conductor
L’ascension
4. I. Majeste du Christ demandant sa gloire a son Pere 00:05:38
5. II. Alleluias sereins d’une ame qui desire le ciel 00:06:09
6. III. Alleluia sur la trompette, Alleluia sur la cymbale 00:05:48
7. IV. Priere du Christ montant vers son Pere 00:08:59
Polish National Radio Symphony Orchestra
Antoni Wit, Conductor
Esse CD é assim apresentado no site da Gravadora BIS:
Uma breve olhada na lista de faixas é suficiente para revelar quem é o cantor – somente Anne Sofie von Otter poderia ter um programa tão variado e abrangente. E somente von Otter poderia mantê-lo unido, encontrando as ressonâncias entre essas peças muito diferentes, e trazendo-as para fora com uma rara habilidade de abraçar diferentes estilos de canto e registros expressivos: parafraseando Bernstein em A Simple Song, Anne Sofie von Otter nunca não consegue cantar como ela gosta de cantar.
De Liszt a Pärt e da Sinfonia de Ressurreição de Mahler ao Sound of Music de Richard Rodgers, von Otter é apoiado por seu acompanhante de longa data, Bengt Forsberg, aqui no órgão, em vez de seu piano habitual. Em vários pontos do programa, elas se juntam a vários amigos musicais, no órgão da Igreja de St. James, no centro de Estocolmo – a mesma igreja onde a jovem von Otter começou sua carreira como corista e, junto com Forsberg, deu um de seus primeiros shows públicos.
Com esta apresentação, o que preciso falar mais? Anne Sophie Von Otter é uma das maiores cantoras líricas de sua geração, ninguém tem dúvidas a respeito disso. Sua voz pode ser robusta e encorpada quando necessário, mas também suave e delicada. Ouçam com atenção a primeira faixa, ‘A Simple Song’, de Leonard Bernstein, e irão entender o que estou falando.
Leonard Bernstein
01 A Simple Song, from Mass
Aaron Copland
02 I’ve heard an organ talk sometimes
Charles E. Ives
03 Serenity 2’33
Gustav Mahler
04 Es sungen drei Engel
05 Urlicht
Richard Strauss
06 Traum durch die Dämmerung
07 Morgen
Arvo Pärt
08 My Heart’s in the Highlands
Maurice Duruflé
09 Pie Jesu, from Requiem
Olivier Messiaen
Trois mélodies (1930)
10 Pourquoi ? 2’03
11 Le sourire 1’44
12 La fiancée perdue
Francis Poulenc
13 Priez pour paix 2’08
Frank Martin
14 Agnus Dei, from Requiem
Arvo Pärt
15 Es sang vor langen Jahren
Franz Liszt
16 Ave Maria III (Sposalizio), S. 60
Richard Rodgers
from The Sound of Music
17 Climb ev’ry mountain
Mezzo-soprano Anne Sofie von Otter
Electric guitar Fabian Fredriksson
Organ Bengt Forsberg
Flute Sharon Bezaly
Harp Margareta Nilsson
Violin Nils-Erik Sparf
Cello Marie McLeod
Viola Ellen Nisbeth
“Os Choros de Villa-Lobos, que considero maravilhas de orquestração, foram para mim o ponto de partida de algumas justaposições de timbres” Olivier Messiaen
Stravinsky disse uma vez que a única coisa necessária para se compor como Messiaen é um tinteiro muito grande. OK, Stravinsky era um baita fofoqueiro e disse também “Por que sempre que ouço uma obra e não gosto, é de Villa-Lobos?”. Messiaen se considerava um herdeiro de Stravinsky nas explorações novas do ritmo, e de Villa-Lobos nas orquestrações, inclusive nas orquestrações para órgão, com registros se somando em combinações, muitas vezes com o objetivo de imitar as vozes dos pássaros. Mas sobre a prolixidade de Messiaen o russo não estava errado. Em 1983 estreou a única ópera do francês, São Francisco de Assis, com cinco horas de duração. Após essa ópera de longa gestação, e com mais de 70 anos de idade, surpreendeu a todos com seu último grande ciclo para órgão, o Livro do Santo-Sacramento, que dura mais ou menos uns 100 minutos.
A imensa obra se divide em três partes: os movimentos 1 a 4 são preparatórios, 5 a 11 mostram várias cenas dos evangelhos associadas à Eucaristia, e finalmente nos movimentos 12 a 18 a liturgia da Eucaristia (Santo Sacramento) é retratada musicalmente.
A. Movimentos preparatórios
I. Adoro te – adoração do milagre que vai acontecer. Uma sucessão contínua de acordes, com a irregularidade rítmica característica em Messiaen: os acordes apresentam durações muito diversas.
II. A Fonte da vida – sobre a graça concedida pelo Santo Sacramento, fonte de vida espiritual.
III. O Deus escondido – Cristo, normalmente invisível, torna-se presença visível no Santo Sacramento, isto é, no pão e no vinho. São usados os cantos de dois pássaros da Palestina.
IV. Ato de fé – Os acordes repetidos em staccato exprimem a certeza da presença real do Cristo na Eucaristia.
B. Em ordem cronológica, cenas dos Evangelhos associadas à Eucaristia
V. Puer natus est nobis – nascimento de Jesus. A melodia de canto gregoriano usada é a mesma que aparece no 1º grande ciclo para órgão de Messiaen, La Nativité. No final, o canto de um pássaro.
VI. Maná e o pão da vida – peça longa, de estilo impressionista, vem do discurso de Jesus: “Quem come este pão viverá eternamente” (João, 6:51) . Acordes agudos evocam o silêncio e a paz do deserto, onde o pão cai do céu (Êxodo, 16). Aparecem os cantos de dois pássaros do deserto.
VII. Os Ressuscitados e a luz da vida – prossegue o tema anterior e trata da promessa de ressurreição e vida eterna.
VIII. A Instituição da Eucaristia – “Este é o meu corpo. Este é o meu sangue.” (Mt 26 : 26, 28) A última ceia é um dos eventos mais retratados em quadros, mosaicos, vitrais, esculturas, e aqui ela é representada de forma solene por Messiaen.
IX. As Trevas – movimento dramático e triste, que representa três momentos: a traição e entrega de Cristo, sua crucificação e a obscuridade que cai cobre a Terra logo em seguida.
X. A Ressurreição – Cristo eleva-se com o fortissimo do órgão, acordes luminosos com todas as cores do arco-íris, escreveu Messian.
XI. Aparecimento de Cristo ressuscitado a Maria Madalena – o movimento mais longo e mais teatral do Livro. Começa com uma cena noturna meio burlesca que lembra até Bartók. Em seguida, acordes solenes simbolizam a aparição do ressuscitado a Madalena, que hesita (uma passagem em crescendo). Finalmente ela o reconhece: um fortissimo representa a revelação de ressurreição e da ascensão. A noite vai terminando lentamente, os acordes solenes do início reaparecem pianissimo enquanto a aparição vai sumindo junto com o amanhecer.
C. A liturgia da Eucaristia (Santo Sacramento) é retratada musicalmente
XII. A Transubstanciação – é o termo teológico relativo à transformação do pão e vinho no corpo e sangue de Cristo. A música, que mistura um trio dodecafônico com o canto de dois pássaros e uma melodia de canto gregoriano, representa toda a complexidade do mistério da eucaristia, que vai além do entendimento humano.
XIII. As duas muralhas de água – o autor faz um paralelo entre a presença de Deus dividindo o Mar Vermelho e a presença de Cristo nas duas metades da hóstia quebrada. Em um tutti fortissimo, a peça alterna entre uma toccata virtuosa e cantos de pássaros. No acorde final, soam juntas todas as notas da escala cromática.
XIV. Oração antes da comunhão – três melodias gregorianas representam a meditação e humildade do cristão antes de comungar.
XV. A alegria da graça – o momento da comunhão é traduzido por cantos de pássaros, do início ao fim. Três espécies típicas do Oriente Médio se alternam.
XVI. Oração após a comunhão – peça introspectiva e tonal: uma melodia com fundo harmônico. O acompanhamento usa um registro de órgão chamado voix celeste: voz celeste.
XVII. A Presença multiplicada – Jesus está presente em todas as hóstias, em todos os lugares e ao mesmo tempo. A multiplicação é representada pelo tutti do órgão (os três teclados soam juntos) e pelo uso do cânone, em que as vozes se imitam.
XVIII. Oferta e Aleluia final – o ato de oferta a Deus é cantado pela corneta e o Aleluia final, verdadeira explosão de alegria, encerra o Livro em um fortissimo dó grave no pedal.
Além do Livre, também estão incluídas aqui duas pequenas obras: Diptyque, de 1930, tem dois movimentos, um modéré (moderado) em dó menor que homenageia Marcel Dupré e um très lent (muito lento) em dó maior em homenagem a Paul Dukas. Ambos foram seus professores. Verset pour la fête de la Dédicace, de 1960, mistura canto gregoriano, cromatismo e cantos de pássaros.
Aqui chegam ao fim as obras quase completas para órgão gravadas por Jennifer Bate. O compositor Aaron Copland escreveu em seu diário: “Visitei Messiaen na sala do órgão da Trindade. Ouvi-o improvisando ao meio-dia. Desde sons diabólicos nos graves até harmonias de dança nos agudos. Como a Igreja permite isso durante a missa é um mistério.”
Pra mim a citação de Copland diz um pouco sobre a música de Messiaen e muito sobre as limitações da música tocada em igrejas, templos, etc em todo o mundo. Que Deus incompleto é esse que não aceitaria compassos compostos nem dissonâncias? Que Deus careta é esse?
CD 5
1. Diptyque
2. Verset pour la Fête de la Dédicace
Livre du Saint Sacrement (Movements 1–8)
3. I Adoro te
4. II La Source de Vie
5. III Le Dieu caché
6. IV Acte de foi
7. V Puer natus est nobis
8. VI La manne et le Pain de Vie
9. VII Les ressuscités et la lumière de Vie
10. VIII Institution de l’Eucharistie
CD 6 Livre du Saint Sacrement (Movements 9-18)
1. IX Les ténèbres
2. X La Résurrection du Christ
3. XI L’apparition du Christ ressuscité à Marie-Madeleine
4. XII La Transsubstantiation
5. XIII Les deux murailles d’eau
6. XIV Prière avant la communion
7. XV La joie de la grâce
8. XVI Prière après la communion
9. XVII La Présence multipliée
10. XVIII Offrande et Alléluia final
Jennifer Bate
CD 5 (tracks 3–10), CD 6 – Recorded in 1987
Grandes Orgues de l’Église de la Sainte Trinité, Paris, France
CD 5 (tracks 1 & 2) – Recorded in 1980/81
Grandes Orgues de la Cathédrale Saint Pierre, Beauvais, France
E, no vasto mundo offline, usei os livros:
Adams, H. Mont-Saint-Michel and Chartres (1913)
Huysmans, J-K. La Cathédrale (1898)
Rostand, C. Olivier Messiaen (1957)
Saramago, J. A Caverna (2000)
Sem dúvida, Messiaen foi um dos maiores compositores do século XX. Seu Quarteto para o Fim dos Tempos, a imensa obra para órgão, o Catálogo dos Pássaros, tudo é incontornável. E também a Sinfonia Turangalîla. Ela foi escrita no período entre os anos de 1946 e 1948, por encomenda de Serge Koussevitzky para a Boston Symphony Orchestra, e estreada pela mesma em 1949, sob direção de Leonard Bernstein. É uma das várias peças de Messiaen que utiliza Ondas Martenot. Também tem um solo sensacional para piano. Messiaen afirmou que o título da peça provém de duas palavras de sânscrito, turanga e lîla, que em conjunto significam algo como “canção de amor e hino de alegria, tempo, movimento, ritmo, vida e morte”.
É a mais colossal e a mais longa (dez movimentos) de todas as sinfonias francesas, da qual diz seu autor: “É um canto de amor e um hino à alegria. É ainda um vasto contraponto de ritmos. Ela usa, particularmente, dois procedimentos rítmicos que foram inovações quando de sua criação: os ritmos não retroativos e as personagens rítmicas.” Na altura da composição, Messiaen estava fascinado pelo mito de Tristão e Isolda, e a Sinfonia Turangalîla forma o trabalho nuclear na sua trilogia de composições relativas a temas de amor e morte, a primeira das quais é o ciclo de canções Harawi (poème d’amour et de mort) e a terceira Cinq rechants para coro sem acompanhamento instrumental.
A Turangalîla tem partitura para 12 madeiras, 4 trompas, 5 trompetes, 3 trombones, 1 tuba, piano solo, Ondas Martenot solo, glockenspiel, celesta, vibrafone e outras percussões (total de 10 percussionistas) e instrumentos de corda.
“Bem, a minha referência em Turangalîla sempre foi a gravação de Myung-Whun-Chung a frente da orquestra da ópera da Bastilha com simplesmente ninguém menos do que Yvonne Loriod ao piano e Jeanne Loriod nas Ondas Martenot.
O pessoal é a cara do Messiaen! Para encerrar , no booklet , ninguém menos do que o próprio Messiaen subscreve, dizendo que a gravação para ele é a definitiva”.
Turangalîla-Symphonie Pour Piano Principal Et Grand Orchestre (78:32)
1 I. Introduction: Modéré, Un Peu Vif 6:25
2 II. Chant D’Amour 1: Modéré, Lourd 8:14
3 III. Turangalîla 1: Presque Lent, Rêveur 5:26
4 IV. Chant D’Amour 2: Bien Modéré 11:03
5 V. Joie Du Sang Des Étoiles: Vif, Passionné, Avec Joie 6:42
6 VI. Jardin Du Sommeil D’Amour: Très Modéré, Très Tendre 12:39
7 VII. Turangalîla 2: Un Peu Vif – Bien Modéré 4:11
8 VIII. Développement De L’Amour: Bien Modéré 11:41
9 IX. Turangalîla 3: Bien Modéré 4:27
10 X. Final: Modéré, Presque Vif, Avec Une Grande Joie 7:44
Yvonne Loriod, piano
Jeanne Loriod, ondes martenot
Orchestre de la Bastille
Myung-Whun Chung
Jennifer Bate escolheu gravar as obras para órgão de Messiaen na Catedral de Beauvais, que sem dúvida tem uma acústica excepcional. É a igreja com o teto mais alto do mundo, 15 metros maior que o da Catedral Notre Dame de Paris. Dedicada a São Pedro, talvez a ideia tenha sido rivalizar com a Basílica do mesmo santo no Vaticano. Começou a ser construída em 1225 e teve seu primeiro grande colapso em 1284 após uma tempestade. Nunca foi acabada devido aos altos gastos e aos problemas estruturais para manter em pé uma igreja tão alta e pesada.
Com a palavra o escritor americano Henry Adams:
A Catedral de Beauvais é a mais surpreendente tentativa de glória arquitetônica de todos os tempos. É um edifício de pedra construído tão alto que não suporta seu próprio peso, então cai de vez em quando, ou é reforçado com vigas de madeira ou com estruturas de ferro. É muito bonito, embora incompleto. Apesar de sua beleza e ambição, muito charmosas, nós sentimos que é uma tentativa fracassada, o que não diminui seu charme, e que é a última palavra do puro Gótico.
(Carta de 1895)
Você deve primeiro tentar livrar-se da ideia tradicional de que o gótico é uma expressão intencional de melancolia religiosa. O que movia os arquitetos góticos era a necessidade de luz. Eles precisavam de luz e sempre mais luz, até que sacrificassem a segurança e o senso comum ao tentar obtê-la. Eles converteram suas paredes em janelas, levantaram os tetos, diminuíram os pilares, até que suas igrejas não pudessem mais ficar em pé. Você verá o limite em Beauvais.
Sabendo por uma enorme experiência precisamente onde as tensões viriam, os arquitetos do século 13 ampliaram a sua escala até o ponto máximo de resistência material, aliviando a carga e distribuindo o fardo até para as calhas e as gárgulas que parecem meros ornamentos. E cada centímetro de material, de cima a baixo, da cripta à abóbada, do homem a Deus, do universo ao átomo, teve sua tarefa, dando suporte onde era necessário o suporte, ou peso onde a concentração se sentia, mas sempre com a condição de mostrar visivelmente as linhas gerais que levavam à unidade e as curvas que controlavam a divergência, de modo que uma única ideia controlava todas as linhas.
(do livro Mont-Saint-Michel and Chartres)
Ou ainda, para o ateu José Saramago: “No interior de uma grande catedral vazia, se levantarmos os olhos para as abóbadas, para as obras superiores, temos a impressão de que ela é mais alta do que a altura a que vemos o céu num campo aberto.”
O órgão de Beauvais tem alguns tubos antigos que estão lá desde 1530, outros são de 1827, mas após ser bombardeado em 1940, passou por uma restauração completa em 1979. O instrumento atual é uma mistura de materiais novos e antigos, como a música de Messiaen, aliás.
Ao ouvir, aos 6:08 de Les choses visibles et invisibles (no volume 3, postado semana passada), as notas graves ocupando todo o espaço da catedral, ou ouvindo os cantos de pássaros ecoando por todos os lados como em uma floresta no 4º movimento destas Meditações, só posso elogiar a escolha do órgão e do local para a gravação dessa integral.
No encarte dos álbuns desta integral aparecem em inglês os textos que Messiaen escreveu para explicar em detalhes cada uma de suas obras. Traduzir e resumir cada um dos nove movimentos das Meditações sobre o Mistério da Santíssima Trindade seria tão difícil quanto resumir o dogma católico da Trindade. Ressalto apenas que Messiaen utiliza um tema para o Pai, um para o Filho, um para o Espírito Santo, um para o verbo ser, e por aí vai… Com passagens de canto gregoriano e outras de pássaros. Uma mistura do novo com o antigo, como definido já em 1931 pelo próprio compositor:
“Creio que hoje, ao invés de destruir o sistema tonal, é preciso enriquecê-lo.”
Méditations sur le mystère de la Sainte Trinité
1. Méditation I
2. Méditation II
3. Méditation III
4. Méditation IV
5. Méditation V
6. Méditation VI
7. Méditation VII
8. Méditation VIII
9. Méditation IX
Recorded in 1980/81
Grandes Orgues de la Cathédrale Saint Pierre, Beauvais, France
“Foram os pássaros que me levaram à superposição de andamentos. Na primavera, quando os pássaros acordam de madrugada, cada um canta em um andamento. Cinquenta vozes se superpõem em andamentos diferentes. O resultado é um caos absolutamente impenetrável, um emaranhado prodigioso, que no entanto soa harmonioso. É isso que eu quis recriar em minha música” Olivier Messiaen
Os cantos de pássaros já tinham sido usados pelos compositores franceses mais importantes dos séculos 17 e 18, Couperin e Rameau. Depois, aparecem nas obras de Beethoven (Sinfonia Pastoral), Mahler (várias sinfonias), Stravinsky (Pássaro de Fogo, Canto do Rouxinol), Villa-Lobos (Uirapuru, Bachianas nº 4). Mas foi Messiaen que fez da notação de cantos de pássaro uma ciência complexa, rigorosa e sofisticada. A partir dos anos da 2ª Guerra ele não se cansou de usar, de maneiras variadas, os cantos dos pássaros em obras como:
– Quatuor pour la fin du Temps (quarteto para o fim dotempo ou dos tempos) de 1940-41 para clarinete, violino, violoncelo e piano
– Trois petites liturgies de la présence divine, de 1943-44 para coro feminino, piano solo, percussão e orquestra de cordas
– Vingt regards sur l’Enfant-Jésus (20 olhares sobre o menino Jesus), de 1944 para piano
– Turangalîla-Symphonie, de 1946-9, para piano solo, ondas Martenot e orquestra
– 4º movimento da Messe de la Pentecôte (Missa de Pentecostes), de 1948-50, para órgão e pouco depois, 4º e 7º movimentos do Livre d’orgue, de 1951
– Le Merle noir (o melro-preto), de 1952, para flauta e piano
– Réveil des oiseaux (despertar dos pássaros), de 1953, para piano solo e orquestra
– Oiseaux exotiques (pássaros exóticos), de 1955-56, para piano solo e pequena orquestra
– Catalogue d’oiseaux (catálogo de pássaros), de 1956-59, para piano
E Messiaen continuou estudando os pássaros até pouco antes de sua morte em 1992. A 1ª obra que ouvimos aqui, Le Réveil des Oiseaux, evoca os sons dos pássaros em uma manhã de primavera da meia-noite ao meio-dia, e foi gravada por um time de respeito que inclui na regência e no piano Kent Nagano e Yvonne Loriod (ambos ex-alunos de Messiaen e ela acabou se casando com ele).
A 2ª obra, Três pequenas liturgias da presença divina, estreou em 1945 pouco após o fim da ocupação alemã de Paris e alguns dias antes do fim da guerra. Segundo relatos, as Três liturgias dividiram o meio musical de Paris em dois grupos opostos, um de entusiasmo delirante, outro de insultos violentos, confundindo o homem e a obra. Provavelmente o clima bélico do fim da guerra foi responsável por essa disputa que, segundo Claude Rostand, não era vista desde os dia áureos de Stravinsky.
Nesta obra os cantos de pássaros são mais nítidos no piano, enquanto um coro feminino canta palavras de Messiaen, que provavelmente foram o principal alvo das críticas na época, mais do que a música em si. Entre outras coisas, elas cantam que a presença divina se encontra nas estrelas, no arco-íris, nos anéis de Saturno, nas nossas células e sangue. O próprio Rostand foi um dos críticos mais ferozes mas depois deu o braço a torcer. Em 1957 ele escreveu: “a linguagem polimodal e o refinamento rítmico habituais do autor aqui são levados mais longe do que antes. A sutileza dos timbres é muito grande. O poema é de Messiaen, rimado e ritmado como a música. A partitura busca a diversidade por modulações polimodais e polirítmicas. A instrumentação é de estilo hindu ou balinês europeizado”.
Como estamos em família, nas Trois Liturgies temos ainda a cunhada do compositor, Jeanne Loriod, um dos maiores expoentes das ondas martenot, instrumento eletrônico inventado em 1928 que tem um som contínuo e foi usado em trilhas sonoras de filmes como Ghostbusters e por bandas como Radiohead e Daft Punk.
Réveil des Oiseaux
1. Minuit
2. 4 Heures du matin
3. Chants de la matinée
4. Cadenza finale du piano
Trois petites liturgies de la présence divine
5. I – Antienne de la conversation intérieure (Dieu est présent en nous…)
6. II – Séquence du verbe, cantique divin (Dieu présent en lui-même…)
7. III – Psalmodie de l’Ubiquité par amour (Dieu présent en toutes choses…)
Orchestre National de France, Kent Nagano
Piano: Yvonne Loriod
Ondes Martenot: Jeanne Loriod, Coro: Maîtrise de Radio France (faixas 5 a 7)