Olivier Messiaen (1908-1992): Quarteto para o fim do Tempo; Tema e variações

Claude Samuel: Um dia, quando eu disse que você era um compositor, você acrescentou: “Eu sou um ornitólogo e um ritmista.” Em que sentido o segundo desses títulos deve ser entendido?

Olivier Messiaen: Eu sinto que o ritmo é a parte primordial e talvez essencial da música. Eu acho que provavelmente existia antes da melodia e da harmonia, e na verdade tenho uma preferência secreta por esse elemento.

C.S.: Se você não se importar, vamos ver alguns exemplos concretos. O que é música rítmica?

O.M.: Resumindo, a música rítmica é música que despreza repetição e divisões iguais, e isso se inspira nos movimentos da natureza, movimentos de durações livres e desiguais. Há um exemplo muito marcante de música não-rítmica que é considerada rítmica: marchas militares. A marcha com seu andamento cadencial, com sua sucessão ininterrupta de valores de notas absolutamente iguais, é antinatural. A marcha genuína na natureza é acompanhada por um fluxo extremamente irregular; é uma série de quedas, mais ou menos evitadas, ocorrendo entre batidas.

C.S.: Então, a música militar é a negação do ritmo?

O.M.: Absolutamente.

C.S.: Você pode nos dar alguns exemplos de música rítmica interessante no repertório clássico ocidental?

O.M.: O maior ritmista da música clássica é certamente Mozart. O ritmo dele tem uma qualidade de movimento, mas pertence principalmente ao campo da acentuação, derivada da palavra falada e escrita. Se a colocação exata dos acentos não for observada, a música mozarteana é completamente destruída.

C.S.: Vamos continuar a nossa pesquisa de compositores rítmicos com uma parada obrigatória em Debussy.

O.M.: Conversamos sobre a orquestração de Claude Debussy e seu amor pela natureza – vento e água. Este amor levou-o diretamente à irregularidade em durações de notas que mencionei, característica do ritmo e permitindo-lhe evitar repetições

C.S.: A sua linguagem rítmica foi modificada em toda a sua própria evolução?

O.M. Sim. Uma das minhas primeiras obras importantes ritmicamente foi o Quarteto para o fim do Tempo. Nela eu usei um sistema rítmico baseado em valor acrescentado de tempo, números primos, diminuições seguidas pelo aumento, diminuições e aumentos inexatos, e uma série de procedimentos que tomei emprestados da música indiana antiga.

Messiaen escreveu o Quarteto para o fim do tempo enquanto era mantido prisioneiro de guerra pelos alemães em 1940-42. Mais de uma vez ele deixou claro que se tratava do fim “do tempo” e não “dos tempos”, como aparece em algumas traduções em português ou inglês. Inspirado no livro do Apocalypse, a obra, no entanto, não aponta para o fim dos tempos ou os horrores das guerras, e sim para a ideia de eternidade e de fim do Tempo, um pouco como nos famosos relógios de Dalí.

Esse fim do Tempo é expressado pelo compositor de diversas formas: ritmicamente, as notas são frequentemente acrescentadas pela metade de seu valor, em seguida diminuídas, os andamentos raramente são constantes e a irregularidade é muitas vezes inspirada no canto dos pássaros. Sobre eles, Messiaen escreveu na introdução ao quarteto: “os pássaros são o oposto do Tempo, eles simbolizam nosso desejo por luz, por estrelas, por arco-íris e por vocalises de alegria.”

PQPBach postou mês passado uma gravação bastante recente do Quarteto, com músicos jovens e fantásticos. Esta que trago hoje foi gravada na presença do compositor e o álbum tem também Tema e Variações para piano e violino, obra de 1932. O grande destaque nas duas peças é a pianista Yvonne Loriod (1924-2010), que tem como principais atrativos um toque extremamente suave, mesmo nos fortissimos, e uma capacidade de expressar com clareza as vozes dos pássaros. Além de tocar e gravar várias obras de Messiaen para piano solo, com orquestra e grupos de câmara, Loriod também foi pioneira ao tocar na França 22 concertos de Mozart, o 2º concerto de Bartók e a 2ª sonata de Boulez (estreia mundial). Foi professora de pianistas como Pierre-Laurent Aimard, Paul Crossley, Roger Muraro e Peter Donohoe, que continuam tocando e gravando a música do século XX e às vezes até um pouco da do XXI.

PS: Sobre o título do quarteto, o crítico português Paulo Carvalho discorda da minha tradução e, sem focar na polêmica por dois “s” a mais ou a menos, copio aqui o belíssimo texto dele:

O original, Quatuor pour la Fin du Temps, exigiria que se traduzisse “para o fim do tempo”, tal como no inglês se traduz “for the end of time” e no alemão “auf das Ende der Zeit”. Contudo, o tempo a que aqui se alude é, como se disse, o tempo do Apocalipse (apocalipse significa revelação), tempo que em português recebe, geralmente, a designação de “fim dos tempos” — tal como se utiliza “plenitude dos tempos” para designar o tempo propício, kairologico, da encarnação do Verbo. “Os tempos”, no plural, é uma expressão feliz, na medida em que dá conta de uma continuidade, de uma infinidade de momentos históricos que se sucederam, séculos, que sequencial e geneticamente estiveram ligados — tal como na música os compassos, ou a métrica regular. O título aponta para o fim de ambos: fim da História (não esqueçamos que se estava em plena Segunda Grande Guerra e que o mundo estava prestes a conhecer a dupla infâmia dos campos de concentração nazis e das Bombas Atómicas), fim da História do homem tal como o conhecêramos até então, e fim da música metrificada, da música “a tempo”. De facto, não é insignificante ou abstrusa esta referência ao tempo da e na música. A música ocidental conhecida começa praticamente com o Canto Gregoriano, um canto que, quando passou a escrita, não compreendia a divisão de compasso. Porque a interpretação, não era ainda interpretação, mas acto (de louvor e adoração, levado a cabo por monges); não era ainda leitura de uma pauta, mas percurso simultaneamente íntimo e plural, ad libitum, ao sabor da memória e do presente nu do canto. Digamos que a gramática musical não pretendia ainda abranger (pode-se dizer: medir) o pulsar da música, o tempo sem tempo do acto musical. Ao levar ao extremo a métrica irregular, prescindindo na prática da barra de compasso, Messiaen retoma esta tradição perdida, apelando para o eterno presente do som (o tempo kairologico, por oposição ao tempo cronológico do metrónomo), da vibração sonora ela mesma e da sua cor — ele que confessava padecer de sinestesia, pelo que via música nas cores e cores na música. Um dado importante para compreender toda a simbólica da obra…

Quatuor pour la fin du Temps (1941)

1. I. Liturgie de cristal (liturgia de cristal)
2. II. Vocalise, pour l’Ange qui annonce la fin du Temps (vocalise, para o Anjo que anuncia o fim do Tempo)
3. III. Abîme des oiseaux (abismo dos pássaros)
4. IV. Intermède (interlúdio)
5. V. Louange à l’éternité de Jésus (aclamação da eternidade de Jesus)
6. VI. Danse de la fureur, pour les sept trompettes (dança de furor, para os sete trompetes)
7. VII. Fouillis d’arcs-en-ciel, pour l’Ange qui annonce la fin du Temps (desordem de arcos-íris, para o Anjo que anuncia o fim do Tempo)
8. VIII. Louange à l’immortalité de Jésus (aclamação da imortalidade de Jesus)

Thème et variations (1932)

9. Thème. Modéré
10. Variation I. Modéré
11. Variation II. Un peu moins modéré
12. Variation III. Modéré, avec éclat
13. Variation IV. Vif et passionné
14. Variation V. Très modéré

Piano – Yvonne Loriod
Violin – Christoph Poppen
Cello – Manuel Fischer-Dieskau
Clarinet – Wolfgang Meyer

Recorded at Church of Our Lady of Lebanon, Paris November, 1990 (in the presence of the composer)

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Quatuor_1990
Pleyel

Olivier Messiaen (1908-1992): Obras para órgão, CD 2 de 6

– O que é um símbolo? Para o dicionário Littré, é “uma figura ou uma imagem empregada como representação de outra coisa”. (…)
Santo Agostinho declara claramente: “Uma coisa expressa por alegoria é certamente mais expressiva, mais agradável, mais imponente do que quando a descrevemos em termos técnicos.”
– É também a ideia de Mallarmé – pintar, não a coisa, mas o efeito que ela produz – e esse encontro do santo e do poeta, em um terreno ao mesmo tempo análogo e diferente, é no mínimo bizarro.
(J.K. Huysmans, 1898)

No Evangelho de São João, o que é espiritual é chamado ‘verdadeiro’. ‘Verdadeira luz’, ‘verdadeiro pão do céu’. Então, há uma certa falsidade no esquecimento do espiritual. Especialmente na música. Pois a música – digam o que disserem – continua sendo a mais imaterial das artes. Sejamos ‘verdadeiros’, nós músicos.
Quer dizer que essa música deve ser obrigatoriamente uniforme, limitada a certos assuntos, com um estilo e uma linguagem mais ou menos obsoletos? Não, não, mil vezes não! O tema religioso abrange todos os temas: é Deus e toda a criação. Quanto à linguagem, é claro que para ser ‘verdadeira’, ela deve ser a expressão atual e original de uma época e de uma personalidade. Sem fazer do passado tábua rasa, é preciso ver o presente e buscar o futuro. Se os grandes sentimentos mudam pouco, a sua expressão se renova constantemente. Quem tentar fazer um falso Bach jamais vai criar uma obra duradoura e ‘verdadeira’.
(Messiaen em artigo de 1939)

A associação entre a música francesa do século XX e a pintura impressionista é embromação, conversa fiada. O que realmente interessava Debussy era o simbolismo de poetas como Baudelaire e Mallarmé (autor de L’Après-midi d’un faune, entre outros). “Pintar, não a coisa, mas o efeito que ela produz”, era essa a estética de Debussy e também a de Messiaen, que pensavam a música como forma de expressar sensações e ideias, de preferência as ideias mais difíceis de se expressar verbalmente mas inteligíveis a partir do canto dos pássaros e do som do órgão, do piano ou da orquestra.

Ascensão, vitral de Max Ingrand (1908-1969)
Ascensão, vitral de Max Ingrand (1908-1969)

A música para órgão de Messiaen é sempre carregada de muito simbolismo espiritual e as obras deste segundo CD estão entre as mais profundamente ligadas à fé católica do compositor. Os quatro movimentos de L’Ascension têm como tema a ascensão de Cristo, enquanto Les Corps Glorieux (Os Corpos em Glória) trata da vida após a morte segundo a teologia católica, representando musicalmente citações bíblicas como “semeia-se corpo animal, ressuscitará corpo espiritual” (Coríntios I 15:44) e “a fumaça do incenso subiu com as orações dos santos” (Apocalypse 8:4). Para expressar isso tudo, Messiaen utiliza desde o canto gregoriano medieval até as inovações harmônicas e rítmicas mais complexas, mostrando que a música religosa não precisa se limitar aos modos maior e menor.

Ainda que os assuntos possam parecer densos e assustar os ateus e agnósticos, é possível ignorar os símbolos e apenas apreciar a beleza das combinações de timbres do órgão, muitas vezes com características orquestrais (L’Ascension também tem uma versão para orquestra). Pelos timbres e cores, pela harmonia, pela originalidade, são obras indispensáveis para quem quer conhecer o órgão do século XX.

L’Ascension
01. Majesté du Christ demandant sa gloire à son Père
02. Alleluias sereins d’une âme qui désire le Ciel
03. Transports de joie d’une âme devant la gloire du Christ qui est la sienne
04. Prière du Christ montant vers son Père

Les Corps Glorieux
05. Subtilité des Corps Glorieux
06. Les eaux de la Grâce
07. L’ange aux parfums
08. Combat de la Mort et de la Vie
09. Force et agilité des Corps Glorieux
10. Joie et clarté des Corps Glorieux
11. Le Mystère de la Sainte-Trinité

Recorded in 1979/80
Grandes Orgues de la Cathédrale Saint Pierre, Beauvais, France

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Vitral de J. Bazaine (1904-2001)
Vitral de J. Bazaine (1904-2001)

Pleyel

Olivier Messiaen (1908-1992): Obras para órgão, CD 1 de 6

Muito se escreveu sobre Olivier Messiaen. Pouco em português. A seguir algumas traduções.

O Sr. Messiaen atuou, neste recital de órgão, no aspecto duplo de compositor e intérprete. Como organista, Messiaen possui uma técnica superior e sem defeitos. Como compositor, ele se afirma como um músico excelentemente dotado e do qual podemos esperar obras fortes, logicamente equilibradas, quando ele se desfizer de uma certa juventude que seria aliás injusto criticar atualmente.
(Crítica no jornal Le Ménestrel de 1935)

A obra principal deste concerto foi a de Olivier Messiaen, que mostra nesse autor uma sinceridade e uma sensibilidade singulares nos dias de hoje; inspiração mística, mas servida de meios expressivos absolutamente novos, em termos melódicos e rítmicos, tendendo à simplicidade primitiva do canto gregoriano.
(Crítica no jornal Le Ménestrel de 1939)

Há dez anos diziam que o compositor tinha se fehado em um sistema e estava condenado a se repetir. A evolução de sua técnica ao longo desses dez anos provou o contrário e mostrou a liberdade ativa que ele não cessou de desenvolver durante este período.
(Claude Rostand, escritor, em 1957)

Ele achou sua voz muito depressa, mesmo antes da guerra. Era um professor muito bom e eu gostava de suas obras mais ambiciosas. Mas às vezes você se depara com uma frase melódica convencional ou mesmo banal, ou ele terminava a obra com um acorde de dó maior, o que me deixava confuso.
(Pierre Boulez, compositor, em 2008)

Ele não era obcecado pela forma nem pela técnica, apesar de dominá-las perfeitamente, mas pela essência e pela profundidade.
(Myung-Whun Chung, maestro, em 2011)

Organista na igreja Trinité em Paris de 1931 a 1992, Messiaen foi o principal compositor para órgão da nossa época. Trouxe para o instrumento incontáveis inovações rítmicas, melódicas e harmônicas e de combinações de timbres. Há uma excelente gravação das suas obras completas pelo francês Olivier Latry, mas prefiro a da inglesa Jennifer Bate, que era a organista preferida do compositor nas últimas décadas de sua vida. Ele ouviu todos os discos e os recebeu com entusiasmo. Em 1983 o idoso Messiaen pediu para Jennifer substitui-lo em todos os recitais de órgãos agendados para ele.

As obras deste primeiro disco foram compostas antes dos 30 anos mas, como dito por Boulez acima, Messiaen já tinha achado sua própria voz. Ele tinha o costume de escrever introduções às obras, informando os ouvintes, por exemplo, que o ciclo La nativité do Seigneur (O Nascimento do Senhor) tem cinco ideias principais:
(1) Nossa predestinação realizada pela encarnação do Verbo divino (movimento 3, Intenções eternas),
(2) Deus presente entre nós (mov. 7, Jesus aceita o sofrimento e 9, Deus entre nós),
(3) Três nascimentos: eterno do Verbo (mov. 4, O Verbo), temporal do Cristo (mov. 1, A Virgem e a Criança), espiritual dos cristãos (mov. 5, As Crianças de Deus),
(4) A descrição de algumas figuras lendárias e poéticas da festa de Natal: os Anjos, os Magos e os Pastores (mov. 2, 6 e 8)
(5) No total, nove movimetos em homenagem à maternidade da virgem.

Messiaen também deixou anotações descrevendo cada movimento:

i. A Virgem e a Criança – Baseada no uso harmônico de alguns modos cromáticos. No meio da peça, é usado tema do canto Gregoriano Puer natus est, cantado no dia de Natal.
ii. Os Pastores – Primeiro, a luz sagrada no presépio. Após algumas notas de flauta, os pastores vão embora, tocando uma melodia de curioso ritmo em suas flautas.
iii. Intenções Eternas – Os mesmos modos cromáticos da 1ª peça. Uma frase simples, cantabile, cheia de mistério.
iv. O Verbo – “Aquilo que era desde o princípio” – A primeira parte trata da geração eterna do Verbo, expressada pelo pedal fortissimo. Na segunda seção, o Verbo é ouvido, em um longo solo de corneta, baseado em ragas hindus, nas sequências do canto gregoriano e nos corais-prelúdios de Bach.
v. As Crianças de Deus – Uma alegre fanfarra representando o nascimento espiritual é seguida pelas crianças chamando o Pai.
vi. Os Anjos – Uma dança paradisíaca. A exaltação de espíritos não corpóreos.
vii. Jesus aceita o sofrimento – O sacrifício, anunciado pelos acordes iniciais, é reafirmado no registro grave de fagote. Nos últimos compassos a aceitação da vítima divina sobe aos céus.

Adoração dos Magos, Rubens, 1618
Adoração dos Magos, Rubens, 1618

viii. Os Magos – Uma peça noturna. O movimento de uma caravana. Os Reis Magos se aproximam aos poucos, iluminados pela estrela. Os pedais do órgão fazem a linha melódica.
ix. Deus entre nós – Três temas são apresentados no início. O primeiro, uma descida do céu para a terra. O segundo, a união espiritual. O terceiro, a exaltação da alma. Os temas se desenvolvem, finalizando com uma toccata alegre e vigorosa.

O Banquete Celeste e a Aparição da Igreja Eterna foram compostas entre os 20 e os 24 anos de Messiaen, mas já têm características do seu estilo: andamento lento, ricas cores cromáticas usadas para expressar ideias espirituais.

La Nativité du Seigneur
1. La Vierge et l’Enfant
2. Les Bergers
3. Desseins éternels
4. Le Verbe
5. Les Enfants de Dieu
6. Les Anges
7. Jésus accepte la souffrance
8. Les Mages
9. Dieu parmi nous

10. Le Banquet Céleste
11. Apparition de l’Eglise éternelle

Recorded in 1979
Grandes Orgues de la Cathédrale Saint Pierre, Beauvais, France

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Messiaen antes dos cabelos caírem
Messiaen antes dos cabelos caírem

Feliz Natal!
Pleyel

Olivier Messiaen (1908-1992): Quarteto para o Fim dos Tempos

Olivier Messiaen (1908-1992): Quarteto para o Fim dos Tempos

IM-PER-DÍ-VEL !!!

Meus amigos, este disco foi muito famoso durante alguns dias. Acontece que na capa esteve escrito MESSIEAN  e não MESSIAEN. Houve uma gritaria geral, os franceses reclamaram de desrespeito à cultura e à língua francesas… E, enfim, a Sony recolheu o todos os exemplares do CD e relançou-o corretamente. Sabem?, não sou um apaixonado por Janine Jansen, mas acho que devo rever meus conceitos. Ela e um extraordinário grupo de músicos nos trazem aquela que talvez seja a melhor versão desta obra de fundamental do século XX. Tudo canta aqui, principalmente os pássaros, onipresentes na obra do compositor francês.

Quarteto para o Fim dos Tempos foi estreado diante de todos os prisioneiros no pátio gelado do campo de concentração de Stalag VIII A de Görlitz, na fronteira sudoeste da Polônia. Era o dia 15 de janeiro de 1941 e nevava. Há pouco mais de um ano, aproximadamente, a França entrara na Segunda Guerra Mundial. Messiaen fora chamado para servir o exército e, poucos meses depois, em maio de 1940, durante uma ofensiva alemã, foi capturado e levado para o campo de concentração.

O Quarteto foi estreado por Messiaen ao piano, mais Henri Akoka (clarinete), Jean le Boulaire (violino) e Étienne Pasquier (violoncelo). Nenhum dos três era músico profissional. Acontece que o oficial nazista responsável pelo campo de Stalag gostava de música e, quando soube da presença de Messiaen, permitiu que o compositor trabalhasse a fim de realizar um recital com música inédita. Seu nome era Karl-Albert Brüll, um apreciador da música do compositor. Ele proporcionou a Messiaen “condições ‘excepcionais” de trabalho. Deu-lhe lápis, borrachas e papel de música. Também foi-lhe permitido isolar-se num quarto vazio com um guarda de plantão à porta. Tudo a fim de evitar que ele fosse incomodado.

Messiaen escreveu, para os únicos outros instrumentistas que lá estavam presos (um violoncelista, um violinista e um clarinetista), um breve trio que foi posteriormente inserido na obra como quarto movimento. Depois, com a chegada de um piano, Messiaen compôs o resto da obra, assumindo o instrumento.

O católico Messiaen propôs que sua obra fosse uma meditação sobre o Apocalipse de João (10, 1-7). A partitura é encabeçada com o seguinte excerto: “Vi um anjo poderoso descer do céu envolvido numa nuvem; por cima da sua cabeça estava um arco-íris; o seu rosto era como o Sol e as suas pernas como colunas de fogo. Pôs o pé direito sobre o mar e o pé esquerdo sobre a terra e, mantendo-se erguido sobre o mar e a terra levantou a mão direita ao céu e jurou por Aquele que vive pelos séculos dos séculos, dizendo: não haverá mais tempo; mas nos dias em que se ouvir o sétimo anjo, quando ele soar a trombeta, será consumado o mistério de Deus”.

A estruturação do Quarteto em oito movimentos é explicada por Messiaen da seguinte forma: “Sete é o número perfeito, a criação em seis dias santificada pelo sábado divino; o sete deste repouso prolonga-se na eternidade e se converte no oito da luz inextinguível e da paz inalterável”.

Essa música emergiu de horror e teve sua estreia no frio, com guardas e prisioneiros como público. Então, você pode esperar tristeza e brutalidade? Nem tanto. O intensamente religioso Messiaen busca tocae o sublime e o êxtase. E este CD deve ter a melhor versão disso.

Olivier Messiaen (1908-1992): Quatuor pour la fin du Temps
1 I. Liturgie de cristal 02:43
2 II. Vocalise, pour l’Ange qui annonce la fin du Temps 05:01
3 III. Abîme des oiseaux 08:10
4 IV. Intermède 01:42
5 V. Louange à l’éternité de Jésus 08:48
6 VI. Danse de la fureur, pour les sept trompettes 06:04
7 VII. Fouillis d’arcs-en-ciel, pour l’Ange qui annonce la fin du Temps 07:28
8 VIII. Louange à l’immortalité de Jésus 07:23

Personnel:
Martin Fröst, clarinet
Lucas Debargue, piano
Janine Jansen, violin
Torlief Thedeen, cello

BAIXE AQUI — DOWNLOAD HERE

Jansen
Jansen, Fröst, Thedeen e Debargue

PQP

O órgão de Olivier Messiaen (1908-1992) ao vivo em Amsterdam

Messiaen2

A Holanda está à frente de seu tempo em vários aspectos. As bicicletas, o sistema de saúde pública de alto nível, a política quanto às drogas (questão de saúde, não de polícia), a música… Mahler, por exemplo, teve sucessos em Amsterdam enquanto outras regiões da Europa ainda viravam o rosto e fingiam que não (ou)viam. Mengelberg (maestro titular no Concertgebouw) regia Mahler desde 1902, sendo ridicularizado por alguns críticos.

O Orgelpark fica de frente para o Vondelpark (principal parque de Amsterdam) e pretende integrar o órgão na cultura musical do século XXI dando um novo papel para o instrumento. Afastando-se da função tradicional do órgão que serve ao edifício (a igreja), no Orgelpark o edifício serve ao órgão e sua música.

orgelpark-5-orgaos
Orgelpark: 5 órgãos de tubos. Daqui a uns 300 anos teremos uma sala assim no Brasil

Marcel Verheggen estudou com organistas holandeses, com o italiano Luigi-Ferdinando Tagliavini e o francês Daniel Roth. Atualmente é organista em uma basílica medieval em Maastricht. Ele toca as seis primeiras obras deste programa de rádio que trago a vocês: a Aparição da Igreja Eterna, a Ascensão (João, 17:1, 17:6, 17:11; Salmo 46) e o Banquete Celeste (João, 6:56). São peças de juventude, de profunda espiritualidade como toda a música de Messiaen. Pra quem é de Bíblia, coloquei os trechos que aparecem como subtítulo de cada obra, lembrando que o Evangelho de João é considerado o mais místico e espiritual. Não esperem música gospel aqui, o negócio é denso.

A última obra (Oração após a comunhão, de 1984) consegue ser ainda mais densa, ainda que mais tonal… Um organista e compositor de 75 anos, que já passou por duas guerras mundiais, pensa de forma diferente de um de 20. Um tema descendente de quatro notas insiste em se repetir enquanto em outro registro do órgão soam acordes que preenchem todo o espaço do Concertgebouw de Amsterdam. No final, o público demora a bater palmas, ninguém tinha certeza: acabou ou é só um acorde mais demorado?

Leo van Doeselaar é outro organista holandês. Em 2016 suas passagens pelo Concertgebouw  incluíram concertos com orquestra e coro (Cantatas, Magnificat e  Matthäus-Passion de Bach, Missa de Rossini, obras de Kodaly e dos contemporâneos Escaich, Manneke e Glanert) e recitais solo,  um com transcrições de Bach, Händel e Dukas, além deste Messiaen em um concerto da série “Matinês de sábado”.

Imaginem que privilégio, acordar tarde no sábado, almoçar (ou dar uma passada em um coffee shop) e em seguida ir ao Concertgebouw ouvir um pouquinho de Messiaen pra começar bem o fim de semana?

Olivier Messiaen (1908-1992)

1. Apparition de l’église éternelle (1932) (10:28)
2. L’ascension: Majesté du Christ demandant sa gloire à son Père (1933) (8:03)
3. L’ascension: Alleluias sereins d’une âme qui désire le Ciel (1933) (8:46)
4. L’ascension: Transports de joie d’une âme devant la gloire du Christ qui est la sienne (1933) (5:29)
5. L’ascension: Prière du Christ montant vers son Père (1933) (9:35)
6. Le banquet céleste (1928) (8:17)

Marcel Verheggen – organ
Orgelpark, Amsterdam, February 21, 2015
Verschueren organ (2009, in the style of Cavaillé-Coll)

7. Livre du Saint Sacrement: Prière après la communion (1984) (7:55)

Leo van Doeselaar – organ
Concertgebouw, Amsterdam, February 13, 2016
Maarschalkerweerd organ (1891)

Fonte: Dutch Radio 4

BAIXE AQUI (DOWNLOAD HERE) ou aqui (or here)

vondelpark1970s
Nos anos 70 Messiaen tocava órgão na igreja todos os domingos, enquanto isso os hippies do Vondelpark se conectavam com o sagrado de outras formas…

Pleyel

Alain / Dutilleux / Ravel / Messiaen: Solitaires – French works for solo piano

Alain / Dutilleux / Ravel / Messiaen: Solitaires – French works for solo piano

Da literatura francesa para piano solo da primeira metade do século XX, Kathryn Stott escolheu quatro “solitaires” — obras que, sob formas muito próprias, brilham muito, cada uma ocupando um lugar único na produção de cada compositor escolhido. O disco abre com o breve Prelúdio e fuga de Jehan Alain, composto em 1935. Alain, que morreu aos 29 anos durante a 2ª Guerra Mundial, é principalmente lembrado como um compositor de música de órgão e, de fato, preparou uma versão desta fuga para esse instrumento. Ele considerava o prelúdio demasiadamente pianístico e compôs um novo para a versão de órgão. Alain é acompanhado pela única sonata para piano de Henri Dutilleux, escrita para a esposa do compositor, Geneviève Joy, que também deu a primeira apresentação da obra em 1948. Nas próprias palavras de Dutilleux a música é “apresentada sobretudo como uma visão, um sonho. E, ao escutar, deve-se deixar levar sem constrangimento e sem se preocupar com análises”. Interessante forma de evitar a crítica… Composto em 1914-17, Le Tombeau de Couperin é a última obra de Maurice Ravel para piano solo — uma suite inspirada pelos grandes clavecinistas franceses do barroco. Os seis movimentos são homenagens dedicadas a amigos do compositor que morreram durante os anos iniciais da Primeira Guerra Mundial. Fechando o disco temos Le baiser de l’Enfant-Jésus do monumental afresco Vingt regards sur l’Enfant-Jésus (1944), de Olivier Messiaen. O próprio Messiaen descreveu esta obra como algo “que não visa nada além de ser tão suave quanto o coração do céu…”. Sei lá, entende? Kathryn Stott é uma incrível pianista e está perfeitamente à vontade neste repertório nada fácil e pouco explorado.

Alain / Dutilleux / Ravel / Messiaen: Solitaires – French works for solo piano

Jehan Alain
Prélude et fugue for piano, JA87A (1935) 4’21
01 Prélude (JA87) 3’10
02 Fugue (JA57A) 1’11

Henri Dutilleux
Piano Sonata (1946–48) 24’45
03 I. Allegro con moto 7’48
04 II. Lied. Assez lent 6’05
05 III. Choral et Variations (I–IV) 10’52

Maurice Ravel
Le tombeau de Couperin, suite for piano (1914–17) 24’43
06 I. Prélude. Vif 3’02
07 II. Fugue. Allegro moderato 3’33
08 III. Forlane. Allegretto 5’55
09 IV. Rigaudon. Assez vif 3’08
10 V. Menuet. Allegro moderato 4’51
11 VI. Toccata. Vif 4’14

Olivier Messiaen
from Vingt regards sur l’Enfant-Jésus (1944)
12 XV. Le baiser de l’Enfant-Jésus 13’28

Kathryn Stott, piano

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Temos mais de 1500 compositores, mas esta é a estreia de Jehan Alain por aqui.
Temos mais de 1500 compositores, mas esta é a estreia de Jehan Alain por aqui.

PQP

Olivier Messiaen (1908-1992): Et exspecto resurrectionem mortuorum

Olivier Messiaen (1908-1992): Et exspecto resurrectionem mortuorum

IM-PER-DÍ-VEL !!!

Et exspecto resurrectionem mortuorum (E eu espero a ressurreição dos mortos) é uma obra para orquestra de sopros e percussão de Olivier Messiaen, escrita em 1964 e estreada no ano seguinte. É composta por cinco movimentos. Encomendada pelo Ministro da Cultura (há isso na França) e escritor André Malraux para lembrar os mortos das duas guerras mundiais, a peça foi escrita para ser executada em grandes espaços como igrejas, catedrais e ao ar livre. Messiaen inspirou-se na paisagem dos Alpes com suas grandes montanhas, mas também nas imagens imponentes das igrejas góticas e românicas, assim como nos monumentos religiosos antigos do México e do Egito Antigo. Também também estudou A Ressurreição, parte da Summa Teológica de Tomás de Aquino. A peça utiliza seções de madeiras, metais e percussão. A seção de cordas é totalmente omitida.

A voz musical poderosamente expressiva de Olivier Messiaen usa a força da fé religiosa e da natureza. Ah, Le tombeau resplendissant e Hymne são obras da juventude de Messiaen, também cheias de mistério e simbolismo.

Olivier Messiaen (1908-1992): Et exspecto resurrectionem mortuorum

1. I. Des profondeurs de l’abime, je crie vers toi, Seigneur: Seigneur, ecoute ma voix! 04:26
2. II. Le Christ, ressuscite des morts, ne meurt plus; la mort n’a plus sur lui d’empire 06:13
3. III. L’heure vient ou les morts entendront la voix du Fils de Dieu … 04:57
4. IV. Ils ressusciteront, glorieux, avec un nom nouveau, dans le concert joyeux des etoiles et les acclamations des fils du Ciel 09:21
5. V. Et j’entendis la voix d’une foule immense … 07:34

Le tombeau resplendissant
6. Le tombeau resplendissant 18:13

Hymne
7. Hymne 15:11

Orchestre National de Lyon
Jun Märkl

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Olivier Messiaen reclama da arbitragem
Olivier Messiaen reclama da arbitragem

 

PQP

Oliver Messiaen (1900-1992): Vingt regards sur l`enfant Jésus

Oliver Messiaen (1900-1992): Vingt regards sur l`enfant Jésus

Para acomodar as melancias, diria que Bartók é o maior compositor da primeira metade do século XX e Messiaen o melhor da segunda, apesar de terem nascido no intervalo de 19 anos… pouco tempo, né? Espero que Strava não fique muito triste e mesmo eu, um admirador do grande Shosta, dou lugar ao enorme talento deste católico francês. Não, não tenho nada em comum com ele e acho realmente purgante o poético título de 20 Olhares sobre o Menino Jesus, porém tudo muda no momento em que Håkon Austbø — pronuncia-se Rpsnggsgschnello — senta-se frente o piano. Quem sabe um apelido diferente para esta obra de nosso grande carola? Por que ele não chamou a obra Catálogo de Pássaros da Noite, por exemplo? (Não esqueçam de seu fantástico Catalog d’oiseaux). Estava lendo sobre a obra hoje (sábado à tarde). Ninguém fala sobre seu significado metafísico ou espiritual, só falam na profundidade e na qualidade musical, etc.

MESSIAEN: Vingt Regards sur l’Enfant Jesus

Disc 1

1. I. Regard du Pere 00:08:09
2. II. Regard de I’etoile 00:03:10
3. III. L’echange 00:03:25
4. IV. Regard de la Vierge 00:05:21
5. V. Regard du Fils suer le Fils 00:08:15
6. VI. Par lui tout a ete fait 00:10:50
7. VII. Regard de la Croix 00:04:21
8. VIII. Regard des hauteurs 00:02:23
9. IX. Regard du temps 00:02:45
10. X. Regard de I’Esprit de joie 00:08:50

Disc 2

1. XI. Premiere communion de la Vierge 00:07:38
2. XII. La parole toute – puissante 00:02:32
3. XIII. Noel 00:04:22
4. XIV. Regard des Anges 00:05:09
5. XV. Le baiser de I’enfant Jesus 00:14:07
6. XVI. Regard des prophetes des bergers et des mages 00:03:10
7. XVII. Regard du silence 00:05:36
8. XVIII. Regard de I’onction terrible 00:07:04
9. XIX. Je dors, mais mon coeur veille 00:11:01
10. XX. Regard de I’Eglise d’amour 00:14:35

Håkon Austbø, piano

Total Playing Time: 02:12:43

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Messiaen, meio louquinho, mas que tremendo compositor!
Messiaen, meio louquinho, mas que tremendo compositor!

PQP

Olivier Messiaen (1908-1992) – Quarteto para o Fim dos Tempos

Dedico este post a um cristão meu amigo.

Já que Clara Schumann e Rameau estão vivendo uma febre de música francesa, aproveito para falar sobre o fim do mundo.

Brincadeira, claro. Publico a seguir uma das maiores e mais importantes obras de nosso tempo. E francesa. Deixo o comentário desta gravação – realizada em 1979 na presença de Messiaen e distribuída com sua autorização – a cargo do crítico português Paulo Carvalho. Encontrei-a aqui.

O Quarteto para o Fim dos Tempos, de Olivier Messiaen, é daquelas obras que, uma vez escutadas, se impõem ao ouvinte (auditor, no original): quem a escuta não esquece a experiência e, se é melómano, a ela voltará muitas vezes — algumas certamente para se interrogar sobre o que procura de facto na Música. Porque se está aqui na presença de uma música da estirpe do Requiem de Mozart-Süssmayr, do Quarteto de Cordas n.º 8 de Chostakovitch, do Andante tranquillo da Música para Cordas, Percussão & Celesta de Bartók; uma música que celebra o homem e que o condena, que na sua consumação o enaltece e que na tragicidade pungente que lhe é intrínseca decreta a necessidade da sua ultrapassagem; uma música sumamente humana, mas para lá de todos os equívocos do humanismo. E, se isto parece um exagero aplicado a um mero produto artístico, então que se ouça até ao fim — mas mesmo até ao fim — o último andamento do Quarteto, intitulado Louange à l’Immortalité de Jésus. Mas não será preciso esperar por tanto: ao quinto andamento, uma espécie de versão desta loa, já o fôlego terá falhado.

Composta sob o signo da convulsão e do colapso, entre o Verão de 1940 e o início de 1941, aquando da prisão do autor, então membro das forças armadas francesas, pelas forças alemãs, no campo de detenção de Görlitz, na Silésia — a obra propõe-se ser uma meditação sobre o Apocalipse de João, mais exactamente sobre a passagem: “Eu vi um anjo pleno de força, descendo do céu, revestido de uma nuvem, tendo sobre a cabeça um arco-íris. O seu rosto era como o sol, seus pés como colunas de fogo. Pousou o seu pé direito sobre o mar e o seu pé esquerdo sobre a terra, e, mantendo-se sobre o mar e sobre a terra, elevou a mão para o Céu e jurou por Aquele que vive pelos séculos dos séculos, dizendo: não haverá mais Tempo: mas no dia da trombeta do sétimo anjo, o mistério de Deus se consumará.” (Ap.10, 1-ss.)

São conhecidas as motivações místicas de Messiaen, mas estas, não sendo secundárias para a compreensão de uma música frequentemente difícil para o auditor de obras menos exigentes, não devem impedir — bem pelo contrário — de fazermos desta sua obra leituras mais mundanas; não nos devem distrair, por exemplo, de realçar a diversidade de efeitos “físicos” que uma tal música é susceptível de provocar no auditor: desde o enlevo lírico ao alvoroço convulsivo ou à perturbação angustiante, desde a meditação à dança (de ritmos não habituais, bem entendido), desde a melancolia ao êxtase.

A obra foi concebida em oito partes ou andamentos, símbolo da eternidade ou da cesura do tempo. A inusitada composição instrumental do quarteto (violino, violoncelo, clarinete e piano) ter-se-á devido não tanto a um desejo do autor quanto a uma adequação à circunstância de serem os instrumentos que existiam ao seu dispor no campo de detenção. Não seriam, ao que parece, instrumentos de grande qualidade — o que não impediu que o compositor, mais tarde, se tivesse referido à primeira audição, ocorrida ainda no campo, nestes termos: “nunca eu fui escutado com tanta atenção e compreensão”.

1. Liturgie de cristal (3’01)

O clarinete, logo suportado por salpicos assimétricos de acordes no piano, abre o andamento com uma melodia quase bucólica no que é seguido por outra de natureza idêntica ao violino, enquanto o violoncelo num registo agudo vai distendendo lânguidas notas que dão ao todo uma cor diluída, um ambiente. O diálogo entre clarinete e violino (dir-se-ia entre dois pássaros) vai decorrendo ao sabor de um sem-tempo plácido, crescendo pouco a pouco em intensidade, mas sem nunca chegar a um paroxismo. A peça não termina propriamente: como que se extingue num sopro. O que não é de todo arbitrário, pois esta é baseada numa estrutura lógica e complexa (de “cristal”) que, se consumada, demoraria cerca de duas horas a tornar ao ponto de partida. Uma clara interrogação sobre a experiência moderna do tempo útil.

2. Vocalise, pour l’Ange qui annonce la fin du temps (5’06)

O piano irrompe enérgica e abruptamente com aglomerados de notas (clusters), pontuado ou interrompido ora pelo clarinete, ora pelos dois instrumentos de corda. A tensão aumenta sobretudo entre as cordas e o piano, mas resolve-se dali a pouco numa conclusão do piano, primeiro subtil e graciosa, depois peremptória, sublinhada pelo clarinete. Eis a introdução para o vocalizo que se seguirá após uma curta pausa e que estará a cargo do violino e do violoncelo, tocando à distância de oitavas longas e suaves notas, iluminadas pelos pingos de água do arco-íris ao piano. A atmosfera criada é misteriosa e leve, quase insustentável, ficando deliciosamente insuportável à medida que os segundos se escoam. Para tal contribuem as notas insistentes e cadenciadas do piano. A música torna-se então esparsa, soluçante, conhecendo pausas, silêncios que se vão introduzindo, fracturando um discurso que inicialmente, apesar de incomum, se previa lógico. Até que o silêncio se instala — para pouco depois ser invadido por um quase tutti que remata o andamento com violência.

3. Âbime des oiseaux (7’31)

E é chegada a vez de um completamente imprevisto — tratando-se a obra de um quarteto — solo de clarinete. Um longo solo de clarinete de mais de sete minutos, alternando entre dois estados: um, de longas notas, maximamente em registo grave, representando o abismo, a negação, as experiências humanas da angústia, da opressão e da morte; outro, de notas breves, saltitantes, soltas e agudas, anunciando a alegria e a participação do homem na experiência da eternidade. Seja ela o que for. Acresce dizer que Messiaen era um ornitólogo amador e que neste quarteto, como em muitas das suas obras, incorpora o profundo conhecimento que tinha do canto dos pássaros. Aliás, chega a dedicar obras inteiras a esse canto, como é o caso do monumental Catalogue des Oiseaux (1956-57).

4. Intermède (1’46)

Fazendo uso de uma imagética cara à linguagem apocalíptica, este andamento poderia perfeitamente ter recebido o nome de “racapitulação e anúncio”, porque é precisamente disso que se trata, uma recapitulação fragmentária de temas dos andamentos precedentes e anúncio embrionário de outros temas nos andamentos que se seguirão. Além disso, é um scherzo composto ele mesmo por sete movimentos (bastante coloridos pela alternância entre a agitação e a graciosidade). “Sete é o número perfeito, a criação de 6 dias santificada pelo sabbat divino; o 7 deste repouso prolonga-se na eternidade e torna-se o 8 da luz indefectível, da inalterável paz”, diz Messiean. Curioso é que neste andamento germinal, musicalmente genésico, o compositor não usa o seu instrumento, o piano, imobilizando-se, por assim dizer, na escuta — ou na contemplação.

5. Louange à l’Eternité de Jésus (8’36)

Quem quiser saber o que é a utilização do silêncio em
música, deve ouvir o segundo andamento da obra, mas quem quiser compreender como é possível que uma música caminhe para o seu silêncio deverá escutar este movimento (dueto de piano e violoncelo) e o oitavo (dueto de piano e violino). Até ao fim: isto é, muito para lá do eco do último acorde dado ao piano, muito para lá da extensíssima nota deixada a soar pelo violino, como que alheando-se do próprio instrumento. Aconselhável é que se suspenda por algum tempo a audição (quanto, o auditor saberá) para não sofrer o violento sobressalto da peça que se segue. A indicação para os músicos “infinitamente lento, extático” é suficientemente sugestiva do que aí se ouve, mas infinitamente insuficiente para descrevê-lo. De resto, descrever tal música seria quase obsceno: no fim, há só paz e respiração. A respiração pacificada de quem escuta. E quantas peças em toda a História da Música facultam tal experiência?

6. Danse de la fureur, pour les sept trompettes (6’45)

Seguindo as indicações de dinâmica, um decidido e vigoroso tutti em uníssono, quase orquestral na cor, ocupa a primeira parte desta “dança”. Uma “música de pedra”, como a descreve o próprio Messiaen, chamando ainda a atenção que o uníssono funciona aqui como sugestão do conjunto de trombetas. As frases melódicas começam por ser curtas, desenvolvendo-se imperceptivelmente para outras mais extensas, mas sempre angulosas, de dinâmica contrastante, marcadas por um ritmo poderoso, quase frenético, que adiante se adoça numa espécie de eco ou comentário. Por pouco tempo. O tutti regressa em toda a sua força, repetindo o tema da dança do furor — até que sobrevém a bonança através de um tema que aqui e ali evoca sonoridades e escalas orientais. O andamento prossegue com uma agitação de sacudidelas e contrastes ainda mais violentos que de início, plena de aceleramentos, abrandamentos bruscos, pausas, tendo o piano por protagonista das fracções mais lentas e os restantes instrumentos das mais rápidas. Após uma breve citação do tema “da bonança”, o andamento acaba categórico como um axioma.

7. Fouillis d’arcs-en-ciel, pour l’Ange qui annonce la fin du temps (7’35)

Este andamento evoca bem toda a cor do seu título. Inicia, no entanto, com um tema pleno de melancolia (como exige um “anúncio do fim dos tempos”), uma retoma do tema do vocalizo do segundo andamento sob a forma de variação. Para o “efeito melancólico” contribui grandemente a instrumentação (o dueto do piano com o violoncelo em movimento lento, “sonhador”, conforme indicação do compositor). Este tema (ou variações do mesmo) alternará, ao longo do andamento, com momentos de vivacidade, representantes do vórtice de cores do arco-íris que no relato bíblico encima a cabeça do anjo. Nestes momentos intervêm os restantes instrumentos, quer com subtis mudanças de intensidade, quer com bruscas contravoltas nos tempos musicais.

8. Louange à l’Immortalité de Jésus (8’14)

Similar ao quinto andamento na estrutura e no tipo de instrumentos utilizados: o piano e as cordas em dueto, neste caso o violino. Celebra-se aqui a ressurreição de Cristo, como vencedor do tempo.

Uma última nota. O título da obra, bem como a tradução que lhe dei de início, carecem de uma explicação mais aprofundada. O original, Quatuor pour la Fin du Temps, exigiria que se traduzisse “para o fim do tempo”, tal como no inglês se traduz “for the end of time” e no alemão “auf das Ende der Zeit”. Contudo, o tempo a que aqui se alude é, como se disse, o tempo do Apocalipse (apocalipse significa revelação), tempo que em português recebe, geralmente, a designação de “fim dos tempos” — tal como se utiliza “plenitude dos tempos” para designar o tempo propício, kairologico, da encarnação do Verbo. “Os tempos”, no plural, é uma expressão feliz, na medida em que dá conta de uma continuidade, de uma infinidade de momentos históricos que se sucederam, séculos, que sequencial e geneticamente estiveram ligados — tal como na música os compassos, ou a métrica regular. O título aponta para o fim de ambos: fim da História (não esqueçamos que se estava em plena Segunda Grande Guerra e que o mundo estava prestes a conhecer a dupla infâmia dos campos de concentração nazis e das Bombas Atómicas), fim da História do homem tal como o conhecêramos até então, e fim da música metrificada, da música “a tempo”. De facto, não é insignificante ou abstrusa esta referência ao tempo da e na música. A música ocidental conhecida começa praticamente com o Canto Gregoriano, um canto que, quando passou a escrita, não compreendia a divisão de compasso. Porque a interpretação, não era ainda interpretação, mas acto (de louvor e adoração, levado a cabo por monges); não era ainda leitura de uma pauta, mas percurso simultaneamente íntimo e plural, ad libitum, ao sabor da memória e do presente nu do canto. Digamos que a gramática musical não pretendia ainda abranger (pode-se dizer: medir) o pulsar da música, o tempo sem tempo do acto musical. Ao levar ao extremo a métrica irregular, prescindindo na prática da barra de compasso, Messiaen retoma esta tradição perdida, apelando para o eterno presente do som (o tempo kairologico, por oposição ao tempo cronológico do metrónomo), da vibração sonora ela mesma e da sua cor — ele que confessava padecer de sinestesia, pelo que via música nas cores e cores na música. Um dado importante para compreender toda a simbólica da obra…

Quatuor pour la Fin du Temps, de Olivier Messiaen

1. Liturgie De Cristal
2. Vocalise Pour L’ange Qui Annonce La Fin Du Temps
3. Abîme Des Oiseaux
4. Intermède
5. Louange à L’éternité De Jésus
6. Danse De La Fureur Pour Les Sept Trompettes
7. Fouillis D’arc-en-ciel Pour L’ange Qui Annonce La Fin Du Temps
8. Louange De L’immortalité De Jésus

Claude Desurmont (clarinete),
Luben Yordanoff (violino),
Albert Tetard (violoncelo),
Daniel Barenboim (piano).

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P.Q.P. Bach.