Claude Samuel: Um dia, quando eu disse que você era um compositor, você acrescentou: “Eu sou um ornitólogo e um ritmista.” Em que sentido o segundo desses títulos deve ser entendido?
Olivier Messiaen: Eu sinto que o ritmo é a parte primordial e talvez essencial da música. Eu acho que provavelmente existia antes da melodia e da harmonia, e na verdade tenho uma preferência secreta por esse elemento.
C.S.: Se você não se importar, vamos ver alguns exemplos concretos. O que é música rítmica?
O.M.: Resumindo, a música rítmica é música que despreza repetição e divisões iguais, e isso se inspira nos movimentos da natureza, movimentos de durações livres e desiguais. Há um exemplo muito marcante de música não-rítmica que é considerada rítmica: marchas militares. A marcha com seu andamento cadencial, com sua sucessão ininterrupta de valores de notas absolutamente iguais, é antinatural. A marcha genuína na natureza é acompanhada por um fluxo extremamente irregular; é uma série de quedas, mais ou menos evitadas, ocorrendo entre batidas.
C.S.: Então, a música militar é a negação do ritmo?
O.M.: Absolutamente.
C.S.: Você pode nos dar alguns exemplos de música rítmica interessante no repertório clássico ocidental?
O.M.: O maior ritmista da música clássica é certamente Mozart. O ritmo dele tem uma qualidade de movimento, mas pertence principalmente ao campo da acentuação, derivada da palavra falada e escrita. Se a colocação exata dos acentos não for observada, a música mozarteana é completamente destruída.
C.S.: Vamos continuar a nossa pesquisa de compositores rítmicos com uma parada obrigatória em Debussy.
O.M.: Conversamos sobre a orquestração de Claude Debussy e seu amor pela natureza – vento e água. Este amor levou-o diretamente à irregularidade em durações de notas que mencionei, característica do ritmo e permitindo-lhe evitar repetições
C.S.: A sua linguagem rítmica foi modificada em toda a sua própria evolução?
O.M. Sim. Uma das minhas primeiras obras importantes ritmicamente foi o Quarteto para o fim do Tempo. Nela eu usei um sistema rítmico baseado em valor acrescentado de tempo, números primos, diminuições seguidas pelo aumento, diminuições e aumentos inexatos, e uma série de procedimentos que tomei emprestados da música indiana antiga.
Messiaen escreveu o Quarteto para o fim do tempo enquanto era mantido prisioneiro de guerra pelos alemães em 1940-42. Mais de uma vez ele deixou claro que se tratava do fim “do tempo” e não “dos tempos”, como aparece em algumas traduções em português ou inglês. Inspirado no livro do Apocalypse, a obra, no entanto, não aponta para o fim dos tempos ou os horrores das guerras, e sim para a ideia de eternidade e de fim do Tempo, um pouco como nos famosos relógios de Dalí.
Esse fim do Tempo é expressado pelo compositor de diversas formas: ritmicamente, as notas são frequentemente acrescentadas pela metade de seu valor, em seguida diminuídas, os andamentos raramente são constantes e a irregularidade é muitas vezes inspirada no canto dos pássaros. Sobre eles, Messiaen escreveu na introdução ao quarteto: “os pássaros são o oposto do Tempo, eles simbolizam nosso desejo por luz, por estrelas, por arco-íris e por vocalises de alegria.”
PQPBach postou mês passado uma gravação bastante recente do Quarteto, com músicos jovens e fantásticos. Esta que trago hoje foi gravada na presença do compositor e o álbum tem também Tema e Variações para piano e violino, obra de 1932. O grande destaque nas duas peças é a pianista Yvonne Loriod (1924-2010), que tem como principais atrativos um toque extremamente suave, mesmo nos fortissimos, e uma capacidade de expressar com clareza as vozes dos pássaros. Além de tocar e gravar várias obras de Messiaen para piano solo, com orquestra e grupos de câmara, Loriod também foi pioneira ao tocar na França 22 concertos de Mozart, o 2º concerto de Bartók e a 2ª sonata de Boulez (estreia mundial). Foi professora de pianistas como Pierre-Laurent Aimard, Paul Crossley, Roger Muraro e Peter Donohoe, que continuam tocando e gravando a música do século XX e às vezes até um pouco da do XXI.
PS: Sobre o título do quarteto, o crítico português Paulo Carvalho discorda da minha tradução e, sem focar na polêmica por dois “s” a mais ou a menos, copio aqui o belíssimo texto dele:
O original, Quatuor pour la Fin du Temps, exigiria que se traduzisse “para o fim do tempo”, tal como no inglês se traduz “for the end of time” e no alemão “auf das Ende der Zeit”. Contudo, o tempo a que aqui se alude é, como se disse, o tempo do Apocalipse (apocalipse significa revelação), tempo que em português recebe, geralmente, a designação de “fim dos tempos” — tal como se utiliza “plenitude dos tempos” para designar o tempo propício, kairologico, da encarnação do Verbo. “Os tempos”, no plural, é uma expressão feliz, na medida em que dá conta de uma continuidade, de uma infinidade de momentos históricos que se sucederam, séculos, que sequencial e geneticamente estiveram ligados — tal como na música os compassos, ou a métrica regular. O título aponta para o fim de ambos: fim da História (não esqueçamos que se estava em plena Segunda Grande Guerra e que o mundo estava prestes a conhecer a dupla infâmia dos campos de concentração nazis e das Bombas Atómicas), fim da História do homem tal como o conhecêramos até então, e fim da música metrificada, da música “a tempo”. De facto, não é insignificante ou abstrusa esta referência ao tempo da e na música. A música ocidental conhecida começa praticamente com o Canto Gregoriano, um canto que, quando passou a escrita, não compreendia a divisão de compasso. Porque a interpretação, não era ainda interpretação, mas acto (de louvor e adoração, levado a cabo por monges); não era ainda leitura de uma pauta, mas percurso simultaneamente íntimo e plural, ad libitum, ao sabor da memória e do presente nu do canto. Digamos que a gramática musical não pretendia ainda abranger (pode-se dizer: medir) o pulsar da música, o tempo sem tempo do acto musical. Ao levar ao extremo a métrica irregular, prescindindo na prática da barra de compasso, Messiaen retoma esta tradição perdida, apelando para o eterno presente do som (o tempo kairologico, por oposição ao tempo cronológico do metrónomo), da vibração sonora ela mesma e da sua cor — ele que confessava padecer de sinestesia, pelo que via música nas cores e cores na música. Um dado importante para compreender toda a simbólica da obra…
Quatuor pour la fin du Temps (1941)
1. I. Liturgie de cristal (liturgia de cristal)
2. II. Vocalise, pour l’Ange qui annonce la fin du Temps (vocalise, para o Anjo que anuncia o fim do Tempo)
3. III. Abîme des oiseaux (abismo dos pássaros)
4. IV. Intermède (interlúdio)
5. V. Louange à l’éternité de Jésus (aclamação da eternidade de Jesus)
6. VI. Danse de la fureur, pour les sept trompettes (dança de furor, para os sete trompetes)
7. VII. Fouillis d’arcs-en-ciel, pour l’Ange qui annonce la fin du Temps (desordem de arcos-íris, para o Anjo que anuncia o fim do Tempo)
8. VIII. Louange à l’immortalité de Jésus (aclamação da imortalidade de Jesus)
Thème et variations (1932)
9. Thème. Modéré
10. Variation I. Modéré
11. Variation II. Un peu moins modéré
12. Variation III. Modéré, avec éclat
13. Variation IV. Vif et passionné
14. Variation V. Très modéré
Piano – Yvonne Loriod
Violin – Christoph Poppen
Cello – Manuel Fischer-Dieskau
Clarinet – Wolfgang Meyer
Recorded at Church of Our Lady of Lebanon, Paris November, 1990 (in the presence of the composer)
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