Olivier Messiaen (1908 – 1992): Des Canyons aux étoiles… (Chung, Muraro)

Olivier Messiaen foi um continuador dos caminhos trilhados por Claude Debussy, que morreu em 1918 e, como em tantos outros casos, tornou-se muito mais conhecido e respeitado logo após sua morte, quando Messiaen era um estudante em formação. Debussy escrevia que as mais belas descobertas musicais eram as impressões que nos trazem “o barulho do mar, a curva de um horizonte, o vento nas folhas, o grito de um pássaro” (Monsieur Croche et autres écrits, 1901-1914). Católico e amante dos pássaros, Messiaen dedicou boa parte de sua música a Deus e suas criações divinas. Aqui apresentamos uma de suas mais importantes obras: Des Canyons aux étoiles… (Dos cânions às estrelas), música em doze movimentos inspirada nos cânions em Utah, EUA. Há representações musicais das imensas rochas em tons alaranjados, do céu estrelado e de vários pássaros. Realmente um mundo absurdamente criativo esse que Messiaen imaginou.

Coloco esta obra como um complemento instrumental da Paixão Segundo Mateus, pois ressalta que não apenas as pessoas podem ser divinas, mas a própria natureza rochosa, o deserto, os pássaros, as estrelas numa noite escura sem poluição luminosa… Essa religiosidade e reverência à criação são ingredientes tão tocantes e profundos que abalam as convicções de um ateu melômano… bem, pelo menos durante a audição dessa música tão sincera. Talvez eu arrisque uma pergunta polêmica: A música religiosa pode ser sentida e apreciada em sua totalidade por um ouvinte ateu? Philippe Herreweghe disse que fez duas gravações da Paixão Segundo São Mateus: a primeira, quando era um “believer” (já postada aqui) e a segunda (aqui), quando virou ateu. Ele disse que “é possível que tão contrastantes fases em minha vida tenham atingido essas interpretações”. Alguém arrisca dizer qual a melhor? Já um amigo ateu me confessou ouvir Bach da mesma maneira que Bruckner ouvia Wagner, sem entender o texto. No caso de “Des Canyons aux étoiles…”, não há menção explícita do seu catolicismo, por isso, ouvintes de outras crenças vão se sentir em terreno seguro e os ateus podem trocar Deus por Natureza. Os cânions, se vocês não se lembram, são ribanceiras ou falésias esculpidas por rios na escala de tempo geológica, ou seja, de milhões de anos. Essas grandes estruturas e o céu estrelado nos remetem a escalas de tempo e espaço muito diferentes das nossas micro-preocupações usuais…

Bryce Canyon com neve (Fonte: Wikimedia commons)

Mas ao contrário do que possa parecer essa introdução meio nonsense, a música que ouviremos é moderníssima, muitas vezes brutal, com sonoridades estranhas, sons produzidos por ventos. Pode ser confundidao com um concerto para piano gigantesco, mas para Messiaen, a forma “concerto para piano” em três movimentos e com demonstrações de técnica e bravura era coisa do passado e era necessário inovar: aqui, como em obras anteriores (Turangalîla-Symphonie, Réveil des Oiseaux, Oiseaux exotiques), o piano faz intervenções solistas, sobretudo no campo agudo e muitas vezes representando o canto dos pássaros.

A orquestração também é inovadora, com apenas 13 cordas (6 violinos, 3 violas, 3 cellos, 1 contrabaixo) e muitos sopros e percussões. Nesse sentido, de entender que as formas de orquestração, de ritmo e de estrutura da música ocidental precisavam progredir, Messiaen era bastante moderno, e por isso era respeitado pelos vanguardistas das gerações seguintes como Boulez, Stockhausen, Murail, Almeida Prado… Todos esses, em algum momento, foram seus alunos. Mas ao contrário de atonais mais radicais como Boulez ou Schoenberg, Messiaen não proibia os acordes mais comuns em sua música: acordes maiores ou menores aparecem aqui ou ali, com uma função decorativa. Ao contrário da ideia de progressão harmônica em que as dissonâncias se resolvem em consonâncias, para Messiaen tanto os acordes dissonantes como os consonantes interessam pelos timbres, cores, atmosferas que eles trazem, ou seja: nenhum tipo de som ou intervalo é proibido, mas é evitado o procedimento – típico na tradição europeia e levado à perfeição por exemplo por Beethoven – de se usar os intervalos para alternar tensão (busca por resolução) e relaxamento (resolução tonal).

Já ouviram um coral de pássaros ou de sapos? Essa música não se estrutura em acordes consonantes ou dissonantes. Messiaen foi ao mesmo tempo um inovador moderníssimo e o dono um ouvido muito atento a sons do vento e outros tão antigos quanto os canyons de Utah. Dizia ele sobre os pássaros: “Eles cantaram muito antes de nós. E inventaram a improvisação coletiva, pois cada pássaro, junto com os outros, faz um concerto geral”.

Olivier Messiaen (1908-1992): Des canyons aux étoiles… (1974)

As gravações de Messiaen por Chung têm sempre o som mais leve, etéreo, flutuando

Part 1:
1. Le Désert (The desert)
2. Les orioles (The orioles)
3. Ce qui est écrit sur les étoiles (What is written in the stars)
4. Le Cossyphe d’Heuglin (The white-browed robin-chat)
5. Cedar Breaks et le don de crainte (Cedar Breaks and the gift of awe)

Part 2:
6. Appel interstellaire (Interstellar call)
7. Bryce Canyon et les rochers rouge-orange (Bryce Canyon and the red-orange rocks)

Mockingbird, ou sabiá-do-norte (Mimus polyglottos), solista do 9º movimento e parente do sabiá-da-praia da América do Sul

Part 3:
8. Les Ressuscités et le chant de l’étoile Aldebaran (The resurrected and the song of the star Aldebaran)
9. Le Moqueur polyglotte (The mockingbird)
10. La Grive des bois (The wood thrush)
11. Omao, leiothrix, elepaio, shama (Omao, leiothrix, ʻelepaio, shama)
12. Zion Park et la cité céleste (Zion Park and the celestial city)

Roger Muraro (piano); Francis Petit (xylorimba); Renaud Muzzolini (glockenspiel); Jean-Jacques Justafré (horn)
Orchestre Philharmonique de Radio France, Myung-Whun Chung (conductor)
Recording: Paris, Maison de Radio France, Salle Olivier Messiaen, July 2001

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE

A postagem original é de 2008, 3º ano de existência do blog. CDF, irmão de PQP e FDP, anda meio sumido, qualquer dia ele aparece!

C.D.F. Bach (2008) / Pleyel fez algumas mudanças e palpites (2022)

9 comments / Add your comment below

  1. Caro PQP!
    A resposta para sua pergunta é SIM! Sou agnóstico e tenho um profundo respeito e admiração pela música sacra. Ela é na maioria das vezes bela, forte e sensível. Do meu ponto de vista a manifestação religiosa nada mais é do que o culto ao homem, só que de forma invertida como nos lembra Feuerbach. Deus é a síntese de todos nossos desejos, nosso instrumento mágico que “realiza” e/ou “antecipa” nossas potenciais capacidades ainda não efetivadas, ou seja, Deus é a mais sublime criação humana. Quando fazemos música a Deus e/ou aos deuses estamosna verdade fazendo música para nós mesmos. Abraços do ERASMO

  2. Excelente comentário do Erasmo.

    Meu caro CDF, concordo in-tei-ra-men-te quando você fala em Messaien como o mais importante criador musical das últimas décadas. É incrível que fale francês…

    Minha resposta é SIM, pois acreditamos e vivenciamos o que nos é contado, seja uma história visceral e maldosa de Thomas Bernhard, seja uma história de iluminação, seja uma música de devoção à Cristo. E creio que qualquer pessoa possa acreditar numa mentira com sinceridade, por alguns minutos ou para sempre. Então, tanto faz ser ou não religioso.

    Abraço.

  3. Oh 21º
    Por mais idiota que possa parecer minha resposta ela não o é:
    Você não é Ateu!
    Aliás, não existem Ateus.
    O máximo que você poderia fazer (para comprovar a sua descrença)seria deslocar Deus la de cima(que lugar horrível escolheram para que ele morasse)colocando-o em seu coração.

    …na “bondade” de alguns seres humanos.
    …na “esperança” de que um dia você venha a compreender o incompreensível.
    …no “belo” esforço que representa o simples ato de viver, batendo ou não qualquer record olímpico,
    …na “emoção” de uma pequena frase musical.
    …na “existência” de um mundo interior inexplicável (mesmo que sua única reação tenha sido a de ficar contando os segundos nos quais você ficou olhando seu filho se afogar).
    …na “realidade” dos Canion de um Universo infinito, infinito tão inexplicável quanto o é quem o criou.
    …na existência da “vida”…
    …ou mesmo na existência de um único “Francês Genial” (e olhe que os há a centenas a merecerem nossa admiração).
    Quem sabe?
    …no “sentimento” de beleza que nos traz um florzinha qualquer ou mesmo na “confiança” de que o bem existe…

    Ou seja, meu caro 21º, o máximo que você conseguirá fazer é parar de procurar Deus com o seu consciente e continuar a sentí-lo com o seu coração, alma, amor,espírito, caridade, bondade ou qualquer outra linda oração que represente o bem, tão incompreensível quanto qualquer coisa Divina.

    Mas… …alguém, alguma vez, já disse que Deus é comprensível?

    …compreensível???

    …que nada 21º!!!
    Ele é… …APENAS… …sensível…

    Um grande abraço e continue a sentir que Deus está em seu espírito…
    Edson

  4. Olá, caros amigos.
    É uma bela obra, não é mesmo?
    Os timbres inesperados exercem uma importante atração descritiva sobre mim.
    Igualmente as associações dos mesmos com às bruscas mudanças de intensidade e de volume instrumental, decorrentes da junção e da “disjunção” súbita ou progressiva das sonoridades de instrumentos comuns com outros muito pouco comuns são marcantes em seus efeitos.
    Por exemplo: são claramente identificáveis as máquinas de vento e a de areia e o que significam como elementos expressivos.
    Igualmente, a parte reservada à percussão (na qual acredito podermos incluir o piano, pois, ele é tratado como tal), é de importância vital por serem bastantes raras as intervenções melódicas (no sentido comum da palavra).
    É possível identificar, também, que cada um de seus movimentos foi elaborado sem uma preocupação formal com a hierarquia. Ao ouvi-los, cada um deles assume um caráter quase que de identidade com os demais.
    No entanto, é quase impossível, ouvindo a obra uma só vez, identificar toda a riqueza de que é revestida.
    Tampouco parece possível penetrar, de imediato, em todas as cores dessa viagem descritiva que vai desde os Canyons dos Estados Unidos da América do Norte ao Universo, como um todo, em suas explosões aterradoras as quais assumem, na verdade, um caráter de grandiosidade por vezes “cataclísmica” entrecortada, aqui e ali, por tensas calmarias que irão desaguar em um movimento final da mais pura religiosidade.
    Uma religiosidade verdadeira.
    Pungente.
    Claro que os Títulos atribuídos por Messiaen a cada um dos 12 movimentos deveriam levar à percepção mais profunda do significado expressivo sonoro,pictórico e descritivo de cada um deles. Contudo, acho pouco provável que isto seja viável de imediato, salvo, por exemplo, no magnífico solo do sexto movimento ou no sentido óbvio do décimo segundo.
    Bem… …é necessário ouvir mais e mais e ainda mais e procurar deixar-se envolver pela gigantesca genialidade de Messiaen nas composições que ele faz com sonoridades muitas vezes pouco identificáveis.
    Eu penso que o mais importante é que, apenas após havermos assimilado o significado expressivo de toda essa gigantesca narração, descrição e pintura sonoras nos voltemos, por uma questão de erudição, à busca de identificar os rótulos para sabermos, então, o que produziu e como foi produzida tal e qual paleta sonora.
    As ouvimos! Claro que as ouvimos!
    …e, muitas delas, extremamente expressivas… mas …como foram mesmo produzidas?
    Um grande abraço a todos e vamos continuar com essa riqueza de postagens musicais.
    Edson

  5. Messiaen é simplesmente d-e-m-a-i-s. Estou terminando o curso de bacharelado em composição e adivinha qual é o meu tema? 🙂
    De tanto pesquisar sobre a vida dele, cada vez me apaixono mais por sua música. Não creio que você deva acreditar em algo para ouvi-lo. Isso só trará uma escuta e apreciação diferente, creio eu. Cada um ouve de um jeito e interpreta de outro, certo?
    Sugiro que você vá atrás das obras:
    – Vingt Regards sur l’Enfant Jésus (especialmente o tema que abre – Tema de Deus: “O Olhar do Pai”)
    – O Sacrum Convivium
    – Visions de l’Amen

    abraço!

  6. Desculpem por minha muito provável ignorância musical, mas não curti muito a obra desse Messiaen, tampouco captei algo poético ou divinamente inspirador, quer seja eu ateu ou crente. Talvez esteja mais habituado a ouvir a linha mais tradicional e clássica. Porém, como disse Richard Strauss:”Não existe música abstrata. Existe música boa e música ruim. Se for boa, significa alguma coisa.” Nesse contexto, posso dizer que a música de Messiaen é boa e tem sua significação mas não é excepcional.
    Para os interessados segue link Mitsuko Uchida – Box Set Schubert Piano Sonatas em FLAC site em russo):

    http://boxset.ru/mitsuko-uchida-plays-schubert-8cd-boxset

    Saúde.

  7. Olá, primeiramente parabéns pela iniciativa. Agradeço pela oportunidade de ter acesso às obras deste acervo fantástico. O link para o Cd2 do Olivier Messiaen: Des Canyons aux Etoiles foi deletado 🙁 Se possível, poderia subir o arquivo novamente, por favor? Obrigado. Abraço a todos

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