

Propaganda enganosa?
Talvez.
O fato é que Beethoven começou a esboçar uma sinfonia em Mi bemol maior mesmo antes de completar a Nona, assim como iniciou a “Pastoral” durante o obsessivo trabalho na Quinta. No início do mesmo 1827 em que morreria, ele ofereceu o que seria sua Décima Sinfonia à mesma Sociedade Filarmônica de Londres que lhe encomendara a sinfonia anterior. Há relatos de seu sempre inconfiável factotum Schindler – alguém que lhe foi indiscutivelmente próximo, mas que frequentemente falsificava documentos para dar a impressão de ser mais íntimo do compositor do que de fato era – dando conta de queBeethoven esboçava temas em Mi bemol maior e Dó menor alguns dias antes de cair no leito de morte. Uma outra fonte menos atochadora, o amigo Karl Holz, afirma que Beethoven lhe tocou os esboços duma nova sinfonia naquele mesmo ano cujo fim não chegaria a ver.
Ainda assim, quando o musicólogo e estudioso beethoveniano Barry Cooper surgiu com esquetes da alegada Décima Sinfonia e os planos de publicar uma versão passível de apresentação, houve frenesi e algum escândalo. Segundo Cooper, o material legado pelo renano, mesmo que espalhado por diversos cadernos de esboços e criptografados pela medonha caligrafia do compositor, fazia sentido o bastante para se perceber que à mesma obra. Ademais, organizavam-se em torno dum Andante em Mi bemol maior e dum Allegro em Dó menor e, assim, correspondiam à descrição daquilo que Beethoven tocara para Holz.
Nas palavras de Cooper,
Como a maioria dos esboços de Beethoven para outras obras, aqueles da Décima sinfonia estão espalhados em vários conjuntos de manuscritos diferentes (quatro principais, e mais alguns acessórios, foram identificados até agora). Como de costume, eles não têm rótulos e são quase ilegíveis para quem não conhece bem a caligrafia idiossincrática de Beethoven. Consequentemente, foi somente na década de 1980 que os primeiros deles foram identificados com alguma certeza. Nesse ínterim, rumores sobre a Décima Sinfonia, iniciados principalmente por Holz e Anton Schindler, alimentaram especulações de que poderia haver um manuscrito completo escondido em algum lugar ou, alternativamente, que a sinfonia nunca havia sido iniciada e que os rumores eram infundados. Agora, porém, temos clareza e mais de 50 esboços são conhecidos, embora muitas perguntas ainda permaneçam sem resposta e seja bastante possível que mais esboços ainda sejam descobertos. Todos os esboços são muito fragmentários, nenhum contendo mais do que cerca de 30 compassos de música contínua; mas, para alguém familiarizado com os métodos normais de rascunho de Beethoven, eles dão uma ideia clara do tipo de movimento que ele tinha em mente. Além disso, eles contêm um material muito bom. Portanto, parece muito valioso tentar torná-los disponíveis para apresentações, preenchendo-os em uma versão de concerto, em vez de deixá-los em arquivos onde podem ser úteis apenas a alguns especialistas. Afinal, os esboços representam sons em vez de formas no papel e não podem ser avaliados completamente até que sejam ouvidos – e de preferência ouvidos num ambiente orquestral apropriado. O presente autor [Cooper] já estudara os esboços de Beethoven para inúmeras outras obras, em conexão com um livro que ele estava a escrever [Beethoven and the Creative Process, Oxford University Press] e, portanto, sentiu que estava em uma posição melhor do que a maioria dos estudiosos para tentar completar o primeiro movimento, embora a tarefa a princípio parecesse impossivelmente assustadora. Ao todo são cerca de 250 compassos de esquetes para o primeiro movimento. Alguns se duplicam ou se contradizem, deixando menos de 200 utilizáveis; mas muitos deles podem ser usados mais de uma vez, por meio de repetições e reprises, como ocorre em todas as sinfonias de Beethoven (por exemplo, um tema esboçado para a exposição recorrerá na recapitulação). Os esboços, portanto, nos fornecem bem mais de 300 compassos, enquanto os 200 ou mais compassos restantes (dum total de 531) tiveram que ser adaptados dos mesmos temas básicos por vários meios (por exemplo, por transposição e sequência) e desenvolvidos da maneira normalmente própria a Beethoven. Assim, todo o material temático básico é de Beethoven; mas a harmonia apropriada teve que ser adicionada em lugares onde estava a faltar, e o movimento teve que ser orquestrado no estilo de Beethoven (com a ajuda de apenas algumas pistas dadas nos esboços), e passagens de ligação baseadas nos temas de Beethoven foram inseridas onde necessário.
O resultado, obviamente, não é o que Beethoven teria escrito e, em certos lugares em particular, ele provavelmente teria sido mais criativo. Também soa mais típico do período intermediário do que o Beethoven tardio, embora isso possa ser devido às conexões estreitas com as primeiros sonatas para piano. Não obstante, minha realização fornece pelo menos uma impressão aproximada do movimento que ele tinha em mente na época dos esboços e certamente está muito mais próxima da Décima Sinfonia de Beethoven do que qualquer coisa ouvida anteriormente. Portanto, é provável que ela seja extremamente interessante para qualquer pessoa que queira saber o que ele planejou para a sinfonia que viria após a Nona; além disso, também pode ser apreciada como uma peça musical, de uma forma que os esquetes fragmentários por si próprios nunca poderiam ser.”
Muito convincente, não?
O trabalho de Cooper foi publicado em 1988 e estreado por Walter Weller e a Royal Liverpool Philharmonic Orchestra, num evento organizado pela Sociedade Filarmônica de Londres que, 161 anos após a oferta de Beethoven, recebia a encomenda que lhe foi proposta. A primeira gravação foi feita por Wyn Morris à frente da London Symphony, acompanhada da gravação duma palestra de Cooper explicando o seu trabalho, e que pode ser encontrada no vídeo mais abaixo. Eu a escutei sem muito entusiasmo: parecia uma coleção de retalhos (o que, enfim, é verdade) com alguns meros gestos que permitiam reconhecer seu compositor, um balão semivazio que não ia a lugar algum.
No começo deste 2020, no entanto, descobri esta gravação do escocês Walter Weller, que teve distinta carreira em Viena antes de assumir a direção de orquestras em sua ilha natal. Weller parece resgatar aquilo de Beethoven que há no considerável esforço feito por Cooper, e chega muitas vezes até a convencer. Esse coto da Décima surge, ainda que sem o desenvolvimento coeso tão próprio do compositor, tanto com acenos para o passado, quanto com cromatismos que flertam com o futuro remoto, como se o Beethoven da “Eroica” e da “Quinta”, e principalmente o da “Pastoral” e da Nona – cujas citações são bastante óbvias nesse movimento – dialogasse com o Beethoven da “Grande Fuga” e o “proto-jazz” da Sonata Op. 111, e ambos tentassem um consenso para seguirem adiante. Se não é uma audição imperdível, parece-me pelo menos recomendável aos beethovemaníacos entre vós outros.
Completando o disco, mais uma gravação – inda outra – do Concerto Triplo, que acabou por ser o “arroz de festa” de nossa série, na qual faz sua quinta e (esperamos!) última aparição.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Concerto em Dó maior para violino, violoncelo, piano e orquestra, Op. 56
Composto entre 1803-05
Publicado em 1807
Dedicado a Joseph Franz Maximilian, príncipe Lobkowitz
1 – Allegro
2 – Largo (attacca)
3 – Rondo alla polacca
Kalichstein–Laredo–Robinson Trio:
Joseph Kalichstein, piano
Jaime Laredo, violino
Sharon Robinson, violoncelo
English Chamber Orchestra
Sir Alexander Gibson, regência
Sinfonia no. 10 em Mi bemol maior, Unv. 3
Completada e orquestrada por Barry Cooper (1949)
4 – Andante – Allegro – Andante
City of Birmingham Symphony Orchestra
Walter Weller, regência
O destemido Cooper, que certamente não tem medo de tomates, descreve aqui
(em inglês) o processo de estudo de esboços de Beethoven e da organização de
sua versão da Sinfonia no. 10

Vassily

IM-PER-DÍ-VEL !!!
O dia em que uma missa solene composta por mim for apresentada durante as cerimônias solenizadas para Vossa Alteza Imperial será o dia mais glorioso da minha vida; e Deus me iluminará para que meus pobres talentos possam contribuir para a glorificação desse dia solene.



Certa vez, há muitos anos, o irmão de um amigo estava num bar com um pequeno palco e um violão à disposição daqueles que quisessem fazer um pouco de música. Ele, um bom violonista, animou-se e lá foi tocar algumas coisinhas. Recebeu aplausos sinceros e, enquanto voltava ao seu lugar, viu o dono do estabelecimento afobar-se rumo ao microfone:






Sou ávido ouvinte da chamada interpretação historicamente informada, a ponto de ter uma discografia historicamente informada paralela à de interpretações, assim digamos, convencionais. A música de Beethoven, que esteve por décadas além dos limites de exploração da turma dos instrumentos originais, foi por ela enfim acolhida, e a produção pianística de Ludwig, tão fundamental ao repertório, não ficou de fora, e o mundo viu surgirem muitas atraentes leituras das sonatas, tocadas em fortepianos por mestres como Paul Badura-Skoda e Ronald Brautigam.













Beethoven foi um gênio da Música e mestre não menos consumado da arte de enrolar. Uma de suas obras-primas nessa menos votada arte foi a maneira com que levou a composição das três últimas sonatas para piano. Como vimos ontem, ele recebeu a encomenda dessas sonatas em 1820, enquanto se dedicava à Missa Solemnis. Pois bem: depois de entregar a primeira sonata, já com atraso, avisou ao encomendante que as outras duas se seguiriam “sem demora”, só para – claro – deixá-las de lado e mergulhar novamente no árduo trabalho de composição da Missa, no qual também se atrasara. Só um ano depois de completar a Op. 109, enfim, ele iniciou a Op. 110, concluindo-a no Natal de 1821.



As três últimas sonatas para piano de Beethoven, pináculos da literatura para o instrumento, foram inspiradas pela mesma costumeira musa de outras tantas obras suas: a Pindaíba.





Faixa-bônus: o movimento final da Hammerklavier,
Pedimos vênia hoje ao grande homenageado do ano e à sua mastodôntica Grande Sonata para o Piano de Martelos – que voltará, com muita gala, amanhã – para focarmos numa sua maiúscula intérprete.![J. S. Bach / Hoyoul / Hellingk / Lechner / Sweelinck / Selle / Schein / Schütz / Bernhardt / Förtsch / Graupner / Stölzel: Deutsche Barock Kantaten (VIII) (Ricercar Consort) [2CD]](https://pqpbach.ars.blog.br/wp-content/uploads/2020/11/Disputa_del_Sacramento_Rafael.jpg)






As cinco sonatas para violoncelo e piano de Beethoven repartem-se bem ao longo de sua trajetória criativa. As 