Scott Joplin ‘o rei do ragtime’ (1867-1917), post 2/2: ópera Treemonisha (1910)

Dou continuidade aqui ao diálogo transcrito e explicado em post anterior:

… Não posso dizer que minha vida em Nova York tenha sido ruim. Não faltou sucesso pra meus ragtimes, nem um casamento novo e melhor. O problema foi minha ópera, Treemonisha, que ninguém queria ouvir.

… Foram anos e anos de composição. Não era ragtime, não era comédia: era uma ópera séria, com grandes partes de coro escritas no melhor contraponto… e ninguém queria ouvir. Um negro podia compor ragtime, diziam; que quisesse escrever ópera era muita pretensão.

… Todos os meus esforços foram em vão. O desgosto apertou o gatilho da doença, e fui perdendo a razão. Fui internado, e morri sem ouvir Treemonisha soando no ar nem ao menos uma vez.

Músicos que eram, os membros do grupo compreendiam bem. Por uns instantes só alguns suspiros furaram o silêncio, até que o próprio Scott Joplin sorriu e disse:

– Mas no fundo estou vingado. Sessenta anos depois de minha morte Treemonisha foi montada, e com sucesso. Foi gravada em disco, e o mundo todo pôde conhecer.

– E é uma bela ópera, posso garantir – disse um dos músicos. – Seu estilo é único; não há no mundo obra que se pareça com ela.

Já outro deles falou assim:

– Sou amigo de Gunther Schuller, o musicólogo que recuperou a partitura e regeu a montagem. Como se vê no nome, é de origem alemã, como seu primeiro professor. Não lhe parece curioso?

– Sem dúvida. É um traço bem curioso do meu destino.

– Isso não rouba a pureza negra da sua música?

– Esse tipo de idéia é uma grande bobagem. Neste mundo há lugar pra tudo:
Scott Joplin http://i52.tinypic.com/2vcsz7q.jpgpara a expressão de todas as culturas “em estado puro”, e também pra todas as combinações que se possa imaginar.

… As coisas mais ricas, que abrem caminhos novos para a humanidade, acontecem onde os diferentes se encontram e, em vez de brigar ou de um calar a boca do outro, resolvem cantar juntos, com diferença e tudo. E aí, de repente, sem que ninguém possa prever como será, um caminho novo nasceu!

“Bravo, isso mesmo, é isso aí!”, aplaudiu todo o grupo – e nossos amigos sentiram que era hora de prosseguir.

Como dito no post anterior, o diálogo procede do livro O dia em que Túlio descobriu a África (R.Rickli, 1997, esgotado, disponível em PDF AQUI). Cabe registrar que a orquestração realizada pelo próprio Scott Joplin nunca foi encontrada, apenas a redução para piano cuja impressão ele pagou do próprio bolso. Gunther Schuller, autor de estudos clássicos e aprofundados sobre as origens do jazz, foi o primeiro a orquestrá-la e regeu sua estréia em 1972 – produção que foi lançada em vinil em 1976, e é a reproduzida aqui. De lá para cá foram feitas outras orquestrações e gravações, mas não cheguei a conhecer.

O arquivo postado inclui reprodução de capas e o libreto completo da ópera – também da autoria de Joplin, e por isso não vejo necessidade de maiores detalhes aqui.

Scott Joplin: Treemonisha – ópera em 3 atos (1910)
para solistas, coro, orquestra e ballet.
Gunther Schuller regendo o coro e orquestra da Houston Grand Opera Production
Carmen Balthrop, Betty Allen, Curtis Rayam: solistas principais
Gravação original: Deutsche Grammophon, 1976

. . . . . BAIXE AQUI – download here

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Ranulfus
publicação original: 31.08.2010

Scott Joplin ‘o rei do ragtime’ (1867-1917), post 1/2: Piano Rags com Jeremy Rifkin

Scott Joplin ‘o rei do ragtime’ (1867-1917), post 1/2: Piano Rags com Jeremy Rifkin

Para apresentar este post e o seguinte, permitam-me transcrever aqui um diálogo ficcional entre um grupo de músicos e dois personagens reais de diferentes séculos: o Chevalier de Saint-George (de quem postei aqui 6 CDs não faz muito tempo) e o estadunidense Scott Joplin (1867-1917), de um livro com intenções paradidáticas (mais detalhes no final).

– … permita-me dizer, Monsieur le Chevalier: a fama é uma senhora muito injusta. Escolhe alguns nomes para perpetuar, e deixa outros iguais ou melhores no esquecimento. É uma barbaridade que seus concertos sejam tão pouco executados nos tempos modernos, pois não são em nada inferiores aos de Mozart e Haydn.

Mais non, Monsieur! Agradeço sua intenção de me consolar, mas evidentemente o que o senhor diz não pode ser verdade! – protestou o Cavaleiro.

– Jamais buscaria consolá-lo com falsidades, Chevalier! É minha opinião sincera, e quem é do ofício e conhece sua música só pode concordar, estou certo.

“Sim, sim, é verdade”, apoiaram vários dos presentes, para evidente alegria do Cavaleiro. Era porém muito educado para permitir que a própria glória ocupasse mais que um momento na roda de amigos, de modo que logo desviou:

– Mas parece que a sua vida também foi das mais interessantes, Mr. Joplin! Gostaríamos muito de ouvi-lo!

– Nem de longe tão interessante como a sua, Chevalier. E, sinto dizer, não muito feliz.

– Ora – interveio um músico moderno – sua música teve grande sucesso popular, tanto na sua época quanto anos mais tarde. Quem não conhece a famosíssima The Entertainer, pelo menos da trilha sonora do filme Golpe de Mestre? – Cantarolou:

– Justamente: todo mundo conhece meus “ragtimes”, alegres, dançantes, mas a música de maior fôlego, quem conhece? Minhas óperas, quem quis ouvir?

– Fale um pouco da sua vida, Mr. Joplin. Assim poderemos entender melhor.

– Está bem, já que insistem…

… Nasci em 1868 no interior do Texas, respirando música: meu pai, ex-escravo, tocava violino – country music, bem entendido – enquanto minha mãe tocava banjo e cantava. Desde o início, porém, foi o teclado que me fascinou: onde existisse um piano na vizinhança, lá ia eu investigar.

… Minha mãe dava todo apoio que podia. Quando ficou sozinha e teve de se empregar em casas de família pra nos sustentar, pedia licença pra eu estudar no piano da patroa…

Por um instante tremulou na lembrança de Túlio a figura de sua própria mãe, Dona Aurora, e os olhos ameaçaram se molhar.

– E parece que o barulho de minhas experiências chamou atenção, e foi assim que o Professor apareceu. Era um alemão excêntrico que vivia lá em Texarkana, e me ofereceu aulas de piano e harmonia. Na verdade deu mais: deu pistas em todas as áreas do mundo do conhecimento, explodindo os limites do acanhado horizonte de Texarkana.

… Não que minha vida tenha ficado cosmopolita da noite pro dia! Adolescente, saí tocando pelos bares, às vezes pelos piores lugares, para ter o que comer.

Túlio ouviu na cabeça a voz de Milton Nascimento cantando: “foi nos bailes da vida, ou num bar em troca de pão / que muita gente boa pôs o pé na profissão / de tocar um instrumento e de cantar / não se importando se quem pagou quis ouvir…”

– De vila em vila, cidade em cidade, fui chegando às maiores: Saint Louis, Chicago… Em Sedalia fiquei alguns anos e consegui me matricular em cursos de harmonia avançada e composição. Vendia aqui e ali meus ragtimes, até que em 1899 o Maple Leaf Rag explodiu no mundo todo. Virei o “Rei do Ragtime”. Casei, podia estar tranqüilo pra sempre.

… Mas eu queria mesmo era escrever para o palco, realizar coisas de fôlego. Achei que agora as portas estariam abertas, mas… mesmo sendo o Rei do Ragtime, de todos os lados só ouvia “não”.

… A muito custo montei uma pequena ópera-rag, cujo manuscrito depois se perdeu. Minha filha morreu, meu casamento acabou, saí pelo mundo de novo, fui parar em Nova York, onde vivi até 1917 – quer dizer, pelo resto da vida.

O diálogo (do livro O dia em que Túlio descobriu a África, de R.Rickli, 1997, esgotado, disponível em PDF AQUI) prosseguirá no post seguinte. Por enquanto deixo vocês com uma seleção de “piano rags”, ou ragtimes, tocados por Joshua Rifkin – mas não sem advertir que tenho certeza de que a música do “Ernesto Nazareth dos Estadis Unidos” pode ser tocada com muito mais bossa.

Não se trata da velocidade: Scott Joplin passou a vida advertindo os compradores de suas partituras contra a tentação de tocar acelerado; “o tempo do ragtime não é rápido”, insistia sempre. O branco Rifkin segue o conselho de Joplin quanto a isso, mas afora isso toca tudo inacreditavelmente igual. Só que essa é a única versão que consegui, e quero crer que “ruim com ela, pior sem ela”, espero que vocês concordem.

Joshua Rifkin plays Scott Joplin’a piano rags
01 Maple leaf rag
02 The entertainer
03 The ragtime dance
04 Gladiolous rag
05 Fig leaf rag
06 Scott Joplin’s new rag
07 Euphonic sounds
08 Elite syncopations
09 Bethena
10 Paragon rag
11 Solace
12 Pineapple rag
13 Weeping willow rag
14 The cascades
15 Country club
16 Stoptime rag
17 Magnetic rag

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O grande Scott Joplin
O grande Scott Joplin

Ranulfus