
Retorno após breve hiato, e não sem despertar questionamentos sobre se eu tomara chá de sumiço, ou se faria um prolongado retiro no Hades no feitio daquele que fez as senhoras e senhores terem um refresco de mim por quase quatro anos. Agradeço a preocupação e, talvez decepcionando aqueles que esperavam postais do Hades, esclareço que estava em férias em lugar bem distante e numa cicloviagem um pouco exigente demais para meus jamones, de tal maneira que, ao encerrar cada dia, quase nada restava de meus miolos, fritos pelo sol do trópico de Câncer, além duma pasta molenga e pouco apropriada a escrever sobre Beethoven.
Confesso, entretanto, que houve outro motivo, que me deixou talvez tão hesitante quanto ficou Beethoven em estrear sua primeira sinfonia: eu não tinha A MENOR IDEIA de como abordar uma postagem sobre uma sinfonia de Beethoven, fosse esta ou qualquer outra, na integral que lhes prometemos ao longo deste ano da Peste e do #BTHVN250.
Explico:
Tomemos como exemplo as trinta e duas sonatas para piano: há várias integrais, muitas das quais já publicadas neste blogue, e também sonatas gravadas em pequenos lotes, ou integrais inacabadas (os “torsos de integrais”, nas palavras do querido René Denon). Ainda que muitos pianistas as incluam avulsamente em seus recitais e gravações, são relativamente poucos os que se dedicam a tocar ou gravar o conjunto completo, certamente porque seu escopo – tanto de duração quanto de exigências técnicas e expressivas – é grande demais para caber num punhado de discos e ou de apresentações. Assim, e dentro da proposta de lhes trazer nesta série somente gravações inéditas no PQP Bach, não tive dificuldades de achar muito material, e abundante, para contemplar as sonatas para piano nesta celebração do BTHVN250.
As sinfonias são um caso muito diferente. Todo regente que se preza deseja registrar o seu ciclo completo, o que leva a uma abundância discográfica das nove meninas. Mais que isso, há encarniçadas e provavelmente insolúveis discussões sobre qual a melhor gravação do ciclo, muito mais do que as trinta e duas sonatas sonhariam em suscitar. Adicionando a este bolo de discórdia algumas camadas extras de complicação, menciono as várias edições das sinfonias, que tentam destrinchar as muitas correções que Beethoven – sempre o autocrítico implacável e procrastinador desorganizado – lhes incorporou ainda em vida, e via de regra com caligrafia medonha, e as incontáveis vertentes de tradição interpretativa que incidem sobre essas obras essenciais. A todas as camadas do bolo, enfim, somo a minha cobertura: eu gosto demais de vários ciclos, mas nunca algum deles me satisfez completamente, de maneira que qualquer escolha minha para oferecer-lhes seria, de antemão, insatisfatória.
A solução a que cheguei certamente não agradará a todos, e com ainda mais certeza revoltará aqueles que apreciam o cuidadoso rabalho de curadoria. Ainda assim, aqui vai ela: em vez de um ciclo, oferecer-lhes-ei doze, gravados em diferentes épocas, por renomados regentes imbuídos de diversas tradições interpretativas.
Pensei inicialmente em publicar um ciclo antigo, outro contemporâneo, e mais outro em instrumentos originais. Entre os antigos, Wilhelm Furtwängler esteve desde sempre firme em meus planos, e não demorou que eu me perguntasse se não valeria a pena também incluir o ciclo de seu contemporâneo Arturo Toscanini, outro virtuose da batuta, ao qual era inevitavelmente comparado, obra a obra. Falar deles lembrou-me do venerando Günter Wand que, perguntado se regeria a Nona Sinfonia como Furtwängler ou como Toscanini, respondeu nos rins: “como Beethoven”. Heribert von Karajan (sim, Heribert: googleiem para conferir) não estava em meus planos, mas inevitavelmente perguntariam – quiçá brandindo-me ancinhos e tochas – sobre ele. Em reconhecimento à sua enorme importância para a indústria discográfica, que incluiu vários registros completos do ciclo, praticamente uma a cada grande revolução nas técnicas de gravação (e também, claro, porque aqueles Porsches todos não saíam de graça), resolvi incluir aquele que considero o melhor, feito nos anos 60 com seus inseparáveis Berliners. Lembrei também dos brilhantes magiares que levaram as orquestras dos Estados Unidos a seus pináculos e incluí integrais de Fritz Reiner e Georg Solti, e que jamais – nunca, em hipótese alguma – deveria esquecer do maior regente vivo, Bernard Haitink, e de sua inseparável orquestra do Concertgebouw. Tampouco deixaria de lado duas gravações recentes das quais muito gosto – a de Riccardo Chailly com a orquestra do Gewandhaus de Leipzig, talvez o conjunto que responda mais instintivamente ao seu regente entre todas em atividade, e aquela de Simon Rattle, praticamente na saideira de sua era como diretor dos Berliners. Na turma da interpretação historicamente informada, nunca tive dúvidas de que o excelente ciclo de John Eliot Gardiner estaria neste rol, e achei por bem oferecer também uma outra integral menos conhecida e bastante estimulante, a da Hanover Band dirigida alternadamente por Roy Goodman e Monica Huggett. Por fim, e já aflito porque as doze poderiam facilmente chegar a vinte, lembrei que o patrão PQP Bach tinha botado tudo para quebrar ao postar a m a r a v i l h o s a integral de Andris Nelsons com a Wiener Philarmoniker, a melhor gravação do ciclo nos últimos anos, e aí me dei conta de que outro letão, o imenso Mariss Jansons, recentemente desaparecido, também tinha deixado sua série, que aqui está numa sentida homenagem ao suave mestre.
Contaram doze? Pois bem, aqui vão elas. Claro que, por ter ouvido todas, adoraria para comentá-las uma a uma, e mesmo compará-las. Nossa travessia beethoveniana, entretanto, é ainda muito longa, e o tempo de que disponho, bastante curto. Prometo-lhes que, depois de 17 de dezembro, quando a série estiver completa, voltarei às postagens das sinfonias para, quem sabe, transformá-las em guias de gravações comparadas tão bom quanto aqueles que o colega Das Chucruten já publicou, inclusive da Pastoral. Por ora, escolham as que mais apetecerem, comparem-nas, e deixem-me saber o que pensaram delas nos comentários.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Sinfonia no. 1 em Dó maior, Op. 21
Composta entre 1795-1800
Publicada em 1801
Dedicada ao barão Gottfried van Zwieten
1 – Adagio molto – Allegro con brio
2 – Andante cantabile con moto
3 – Menuetto: Allegro molto e vivace
4 – Adagio – Allegro molto e vivace
Wiener Philarmoniker
Wilhelm Furtwängler
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NBC Symphony Orchestra
Arturo Toscanini
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Chicago Symphony Orchestra
Fritz Reiner
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Berliner Philharmoniker
Herbert von Karajan
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Chicago Symphony Orchestra
Sir Georg Solti
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Sinfonieorchester des Norddeutschen Rundfunks
Günter Wand
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Koninklijk Concertgebouworkest
Bernard Haitink
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The Hanover Band
Monica Huggett
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Orchestre Révolutionnaire et Romantique
John Eliot Gardiner
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Symphonieorchester des Bayerischen Rundfunks
Mariss Jansons
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Gewandhausorchester Leipzig
Riccardo Chailly
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Berliner Philharmoniker
Sir Simon Rattle
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Ah – quase me esqueci de comentar a obra. Gestada ao longo de cinco anos, e certamente com muita preocupação por conta da sombra esmagadora das sinfonias de Mozart e Haydn (que ainda vivia), a Primeira é calcada firmemente nos modelos dos mestres mais velhos, com toques claramente beethovenianos como o uso dos sopros, frequentemente formando corais independentes das cordas, e os repetidos sforzandi. Há alguns truques interessantes, como o de “esconder” a tonalidade no movimento inicial, em vez de começar com uma afirmação estrondosa da mesma (como aqueles dois portentosos acordes que abrem a Eroica), embora não houvesse audácias tonais capazes de chocar o mui conservador público do Burgtheater, no qual “Le Nozze de Figaro” e “Così fan tutte” tinham vindo à luz e onde Beethoven estrearia várias de suas obras mais importantes. Meu movimento favorito é o faceiríssimo Menuetto, que é um scherzo em tudo, menos no título. O finale, que começa com uma escala marota que se desenrola lentamente, mantém a mesma verve do minueto e leva a uma conclusão muito efusiva uma obra que, se não se pode chamar de revolucionária, certamente mostrou a Viena que a voz do renano era diferente de todas outras.

#BTHVN250, por René Denon
Vassily
Sim, esta postagem está queimando a ordem de publicação das obras de Lud Van, mas é por um excelente motivo: adorei esta gravação, e não queria que os leitores-ouvintes perdessem a oportunidade de ouvi-la o quanto antes.





















O último volume da aventura fortepianística beethoveniana de PBS segue com o mesmo piano Graf usado no volume anterior e termina, bem, pelo fim. Talvez Beethoven, já completamente surdo, tivesse em sua visionária mente um som bastante distinto destes Grafs, Walters e Broadwoods que ouvimos. Se o som dos modernos pianos de concerto, com seus cepos de aço e mais de sete oitavas, agradaria o legendário turrão, nunca saberemos. Podemos supor que sim, pela insistência com que batia na tecla (desculpem o trocadilho) da ampliação da extensão e da robustez dos instrumentos. O fato é que esta finaleira de PBS é tão boa quanto o volume de abertura, e o som eventualmente tilintante dos agudos e os zumbidos dos baixos, somados aos, como os chama o patrão PQP, ruídos de marcenaria, trazem frescor e riqueza tímbrica para essa genial trinca de obras, que é e sempre será moderna.
Beethoven só compôs a (prometo ser comedido com adjetivos hiperbólicos) colossal sonata Op. 106 porque o fortepiano tinha sido aperfeiçoado também em feitio colossal, não só pela ampliação de sua extensão para seis oitavas e meia, quanto por fortalecimento em sua estrutura que, se ainda não reforçada por metal, como nos pianos modernos, era incomparavelmente mais robusta que a daqueles instrumentos em que o compositor fora iniciado ao teclado, décadas antes. Muito desses avanços devem-se a construtores como Conrad Graf, cujo ateliê em Viena forneceria instrumentos, entre tantos outros, para Liszt e Chopin, além do próprio Beethoven, que ganhou um fortepiano especial de Graf, com uma corda extra junto a cada tecla, chegando a quatro cordas por nota. A intenção era facilitar-lhe as coisas ante a surdez, mas esta já era tão profunda que Ludwig quase não mais se aproximava do teclado para compor. A única obra para piano que publicaria depois do presente seria o arranjo para quatro mãos da Grande Fuga (Op. 134). Depois de sua morte, o piano foi devolvido a Graf, e acabou na Beethoven-Haus de Bonn, onde, claro, é conhecido como o “piano de Beethoven” – o que não é mentira, mas também não é uma verdade vibrante.
Ontem, um piano boêmio. Hoje, o piano do morávio Georg Hasska. Tem cinco oitavas e meia, em vez das meras cinco a que Beethoven se acostumara desde que foi apresentado a um pianoforte, e nelas Ludwig se esbalda em algumas de suas obras mais originais. Embora haja no disco sonatas mais votadas – como aquelas alcunhadas “A Caça” e “Les Adieux” -, meu xodó será sempre a Op. 78, aquela de menos votada alcunha, “À Thérèse”, um primor de concisão e criatividade suprassumamente beethovenianas.


































Depois de alguns de vocês transformarem-me em bonequinho de voodoo por ter trazido duas postagens em sequência com pianistas malditos na interpretação de Beethoven, redimo-me em alto estilo enquanto desinfeto as agulhadas. Ninguém me espetará, espero, por postar Murray Perahia. Sua seleção de repertório para esta gravação é perfeita: abre com a sonata em Lá bemol maior, com suas belíssimas variações iniciais e a marcha fúnebre, prossegue com o par de diminutas sonatas do Op. 14, e encerra com a majestosamente serena sonata Op. 28, alcunhada “Pastoral”.