Jean-Philippe Rameau (1683-1764): Pièces de Clavecin en Concerts (Les Timbres)

Inspirado pelas peças para cravo com acompanhamento de violino (6 pièces de clavecin en sonates) publicadas por Mondonville em 1738, Rameau decidiu desenvolver essa ideia em suas peças para cravo com dois acompanhantes: violino ou flauta nos agudos e viola da gamba nos graves. O violino sola, mas sola menos do que nas sonatas italianas (onde o cravo é mero acompanhante fazendo baixo contínuo), a viola passa o tempo todo de uma linha de baixo para linhas melódicas mais agudas, o cravo aparece no título mas não se sobrepõe sobre os colegas. A obra é exigente no plano técnico, com os três instrumentos dialogando de igual para igual: poucas gravações conseguiram dar esse destaque igual para as três partes, esta gravação pelo conjunto belga Les Timbres (2013) foi uma das mais elogiadas pela crítica especializada nesse sentido não só da performance mas também da delicada tarefa de gravar e mixar tudo sem que um instrumento abafe o outro.

Outra característica dessa e outras obras de Rameau é o espírito dançante, teatral, sorridente, diferente do tipo de seriedade de outros barrocos que já davam alguns passos iniciais no espírito romântico e sentimental (penso aqui em C.P.E. Bach e mesmo em algumas obras de seu pai como o Concerto para Cravo em ré menor). Os títulos dos movimentos, como “La timide, Les Tambourins, L’Indiscrète” (A Tímida, Os tamborins, A indiscreta) ou mesmo a autobiográfica “La Rameau” já deixam claro que o clima é sempre bem humorado, com a grande complexidade do diálogo entre os três instrumentos aparecendo apenas em uma audição mais atenta, pois na primeira impressão o que se destaca – sobretudo nesta gravação por Les Timbres – é o tom de leveza constante. Música para esquecer por uma hora e nove minutos todas as tristezas, as contas a pagar e os deputados do centrão que se reelegeram.

Jean-Philippe Rameau (1683-1764): Pièces de Clavecin en Concerts (Paris, 1741)

1-3. Premier Concert
1 La Coulicam: Rondement
2 La Livri: Rondeau Gracieux
3 La Vezinet: Gaiment, sans vîtesse

4-7. Deuxième Concert
1 La Laborde: Rondement
2 La Boucon: Air Gracieux
3 L’Agacante: Rondement
4 Menuets I & II

8-10. Troisième Concert
1 La Poplinière: Rondement
2 La Timide: Rondeaux gracieux I & II
3 Tambourins I & II en Rondeau

11-13. Quatrième Concert
1 La Pantomime: Loure vive
2 L’Indiscrète: Rondeau, Vivement
3 La Rameau: Rondement

14-16. Cinquième Concert
1 La Forqueray: Fugue
2 La Cupis: Air tendre
3 La Marais: Rondement

Yoko Kawakubo – violon de Pierre Jaquier, fait à Cucuron (France) d’après des instruments crémonais do XVIIIe siècle
Myriam Rignol – viole de gambe à 8 cordes de Tilman Muthesius faite à Potsdam (Allemagne) d’après un instrument de Benoist Fleury (Paris, 1759)
Julien Wolfs – clavecin fait par Jean-Luc Wolfs-Dachy à Lathuy (Belgique) d’après un instrument de Henri Hemsch (Paris, 1751)
Enregistré: novembre 2013 à Beaufays (Belgique)

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Escultura de Rameau em 1760, quando o compositor se aproximava dos 80 anos

Pleyel

Peter Maxwell Davies (1934-2016), Malcolm Williamson (1931-2003), Jonathan Harvey (1939-2012): Obras para órgão (Kevin Bowyer)

Sir Peter Maxwell Davies, the Master of the Queen’s Music, has said that ‘God Save the Queen’ is “very boring” and should be replaced with a new “more stirring” anthem, which he’s offered to write. “The national anthems of other countries, such as France and Germany, are a lot more impressive and tend to have a more galvanising effect on their peoples”, he told The Daily Telegraph. “Benjamin Britten’s arrangement of our anthem was probably the best there has ever been, but he didn’t honestly have a lot to work with.”
Following his victory at the German Grand Prix on Sunday, racing driver Lewis Hamilton also complained about the national anthem, saying it was much shorter than other nation’s anthems. He wanted his moment of glory on the podium to last longer than the 44 seconds it took to play one verse of ‘God save the Queen’. Felipe Massa, a Brazillian race driver, gets to savour Francisco Manuel da Silva’s composition for two minutes, substantially longer than the British anthem. (The Telegraph, 2011)

Max Reger, o maior compositor para órgão do início do século XX, colocava Bach em um pedestal. Alguns modernistas dos anos 1920, por outro lado, tinham a necessidade de esculhambar todos os antecessores para poderem se afirmar. Na música de alguns grandes compositores do fim do século XX, o confronto entre velho e novo ganha outros contornos. Messiaen, por exemplo, nunca fez música neobarroca ou neoclássica, mas sua linguagem única devia muito ao canto gregoriano e aos sons atemporais da natureza: pássaros, córregos, vento…

Neste disco de hoje temos um compositor que nos anos 1960 era considerado iconoclasta e irônico – Em Darmstadt [a Meca do serialismo dos hiper-sérios Boulez e Stockhausen], eu caí em disgraça ao rir em um ou dois concertos”, disse ele – e que em 2004 foi nomeado Master of Music da rainha, cargo chapa-branca que não o impediu de falar que achava o hino God Save the Queen muito chato ou monótono, a depender da tradução. Maxwell-Davies é alguém que equilibra e faz dialogar o canto coral e as dissonâncias, criando um efeito de humor. Um vanguardista que foi se radicar no remoto norte da Escócia. Ou, usando uma palavra bem inglesa: um excêntrico.

As Three Organ Voluntaries de Maxwell Davies se baseiam em melodias escocesas do século XVI. A primeira das três (Salmo 124) é apresentada de forma singela pelos graves dos pedais e, quando parece que tudo vai correr dentro dos padrões, entra um outro registro agudo, lembrando sinos totalmente dissonantes, enquanto os graves continuam cantando o salmo, tudo isso coexistindo em curiosa harmonia até o final. As outras duas melodias (O God Abufe [grafia escocesa para o inglês above] e All Sons of Adam) não convivem com tanta dissonância assim, mas há sempre um registro com som estranho ou uma nota ‘fora do lugar’ para quebrar as expectativas neorrenascentistas.

Na sonata para órgão, composta em 1982, cada um dos quatro movimentos se desenvolve a partir de um mesmo fragmento de cantochão cantado tradicionalmente na quinta-feira santa. O primeiro movimento se resume a alguns segundos de melodia cantabile, o segundo é um contraponto um pouco mais longo, o terceiro, uma meditação lenta e o último, uma toccata virtuosa em que a dissonância e os centros tonais se alternam. Esse procedimento é o mesmo das Partitas Corais e Fantasias Corais de Böhm, Buxtehude e Bach: primeiro a apresentação do canto sacro, depois as variações com grau crescente de complexidade e de liberdade.

Desde 1625 já existia o cargo então chamado Master of the King’s Musick – sim, com k – , ocupado por uma só pessoa de cada vez, assim como seu  equivalente literário, o título de “Poet Laureate”. O australiano Malcolm Williamson foi o antecessor de Maxwell Davies no cargo: segundo alguns críticos, a nomeação teve motivos menos musicais e mais de manutenção do soft power inglês sobre as ex-colônias do Commonwealth (a tristeza de australianos e canadenses com a morte recente da rainha lembra o clássico livro A Servidão Voluntária, não é? E o que dizer do luto do pessoal da Barra da Tijuca? Deixa pra lá…)

O cargo foi ocupado por alguns compositores interessantes e também uma penca de ingleses pomposos e tediosos como Bax e Elgar. Williamson foi o último a ser nomeado até a morte (a Rainha Elizabeth II redefiniu as expectativas sobre “até a morte”) e, a partir de Maxwell Davies, o cargo passou a ter a duração fixa de dez anos. Desde 2014 é ocupado por Judith Weir, a primeira mulher a receber esse título.

Jonathan Harvey (1939-2012):
1. Fantasia (8:49)
2 Laus Deo (3:02)

Malcolm Williamson (1931-2003):
3-4. Two Epitaphs For Edith Sitwell
No. 1 Adagio (3:090
No. 2 Adagio (2:09)
5. Vision Of Christ-Phoenix (9:02)

Peter Maxwell Davies (1934-2016):
6. Fantasia on O Magnum Mysterium (14:16)
7-10. Three Voluntaries, Op. 61
I. Psalm 124 (after David Peebles) (3:04)
II. O God Abufe (after John Fethy) (1:16)
III. All Sons Of Adam (2:09)
10. Reliqui Domum Meum (3:19)
11-14. Organ Sonata
I. Movement 1 (0:41)
II. Movement 2 (1:54)
III. Movement 3 (13:50)
IV. Toccata (9:01)

Kevin Bowyer, organist
Recorded at the Marcussen Organ – Chapel of Saint Augustine, Tonbridge School, Kent, England
Released: 1997

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Sir Peter Maxwell Davies, Master of the Queen’s Music, sobre o hino nacional britânico: “é muito chato”

Pleyel

Frédéric Chopin (1810-1849): 24 Prelúdios, op. 28 (Guiomar Novaes)

Nas postagens do colega Ranulfus, de tempos do defunto rapidshare e que repostamos há alguns dias com links novos, ele trazia os Noturnos, Estudos, duas Baladas e outras pérolas de Chopin e dizia que faltavam os Prelúdios  por Guiomar Novaes. De fato até hoje essa importante gravação, sua primeira pela gravadora Vox, ainda em Mono, parece nunca ter sido editada em CD. Várias são as digitalizações que se encontra no Youtube ou em outros lugares, tanto do LP como de gravações ao vivo de recitais em que Guiomar tocou todos os prelúdios ou uma seleção com alguns, por exemplo aqui na Sala Cecília Meireles, Rio de Janeiro, em um dos últimos anos de sua carreira.

Todo(a) pianista tem fotos com a mão no rosto, já repararam?

Chopin foi sempre o compositor mais presente nos recitais de Guiomar Novaes desde a década de 1900 até a de 1970 e é possível que os prelúdios tenham sido a obra que ela mais tocou ao vivo em sua longa carreira. (Antes de sua despedida para estudar em Paris em 1909, Guiomar já tinha se apresentado publicamente 51 vezes só na cidade de São Paulo, como nos informa F.P. Binder, também responsável por constatar a presença constante de Chopin no seu repertório desde 1902 quando a criança-prodígio se apresentou com oito anos.)

Pois hoje é o dia em que esses Prelúdios por Guiomar entram aqui no acervo deste blog, pois finalmente encontramos uma digitalização satisfatória: pouco chiado, som rico do piano embora, é claro, não dê pra esquecer que é uma gravação de mais de 70 anos atrás. E o que comentar sobre esse repertório que cai como uma luva nas mãos da pianista? É difícil falar alguma coisa além do óbvio: atenção cuidadosa aos detalhes da partitura sem segurar o andamento para isso (o 15º Prelúdio, “gota d’água”, de andamento sostenuto, ela faz em menos de 5 min. sem jamais soar correndo), cantabile admirável tanto nas melodias da mão direita como na mão esquerda que muitos críticos destacavam como seu maior trunfo, enfim uma gravação IM-PER-DÍ-VEL. Deixo vocês com um resumo das notas do LP, por Harold Schonberg:

Os Prelúdios de Chopin têm um esquema bachiano. Em uma carta para a condessa polonesa Delfina Potocka, Chopin escreveu “Temas estão caindo sobre mim como enxames de abelhas. Eu não paro de anotá-los. Você poderia rir desses curtos fragmentos, mas eu decidi juntá-los; eles formarão Prelúdios. Só não sei se vou conseguir juntar quarenta e oito deles como Bach. Acredito que não chegarei a esse número, que é demais para minha impaciência polonesa. O fato de que eles são simples e curtos não significa que não me deram muito trabalho. Você não acreditaria que no outro dia eu passei mais tempo neles do que na Balada [nº 1]. … Pretendo colocá-los no mundo como Prelúdios embora não sejam páreo para os de Bach, muito menos serão seguidos por fugas, que não seriam tarefa para mim.”

Então é evidente que Chopin tinha Bach em mente. Outros aspectos devem ser lembrados: assim como no Cravo Bem Temperado (que Chopin tocava e reverenciava), os vinte e quatro Prelúdios cobrem cada um dos tons maiores e menores. Além disso o primeiro, em dó maior, é um elogio implícito ao primeiro de Bach. Chopin trabalhou bastante tempo nesses prelúdios: a publicação foi em 1839, mas a carta citada mostra que os primeiros entre eles são contemporâneos da Balada em sol menor, de 1835.

Fotografia de Chopin de 1846 ou 47. O original foi provavelmente destruído na II Guerra Mundial. Esta cópia foi encontrada na década de 80.

Em outra carta para sua amiga Delfina Potocka, Chopin escreveu: “Bach nunca vai ficar velho (…) Se alguma época negligenciar Bach, isso ficará evidenciado em superficialidade, estupidez e mal gosto.”

Alguns biógrafos inventaram histórias sentimantais sobre esses Prelúdios em conexão com George Sand e sua viagem a Mallorca com o compositor. Chopin talvez tenha levado as obras para poli-las na viagem, mas em 1838, quando o casal passou o outono e inverno na ilha mediterrânea, pouca coisa restava a completar.

Harold Charles Schonberg (Nova Iorque, 1915 – 2003), autor das notas acima que você pode conferir na contracapa do LP, escreveu ainda em seu livro The Great Pianists que Novaes foi a mais importante pupila de Isidor Philipp, e devemos lembrar que a lista de alunos daquele professor incluiu pianistas como Youra Guller, Yvonne Loriod, Nikita Magaloff e Federico Mompou. Contemporâneo e amigo de Debussy, Philipp se formou com pianistas que conheceram Chopin, além de ser um pupilo de Saint-Saëns e, em geral, propor um Chopin menos exageradamente romântico do que o de outros franceses como Alfred Cortot. (Reparem que Chopin passou os últimos 18 anos quase todos em Paris e deixou mais alunos e amigos lá do que na Polônia…)

Esse tipo de genealogia Chopin-Philipp-Novaes explica um pouco da arte de Guiomar, mas só um pouco, porque como qualquer grande intérprete, ela tinha ideias próprias, que se formavam menos como ideias racionais – ela não gostava de dar entrevistas, muito menos de escrever suas opiniões para publicar – e mais como ideias musicais mesmo, de aparência espontânea mas fruto de longo estudo e reflexão, ideias que sempre soavam adequadas às obras que tocava, de forma que o mesmo H. Schonberg escreveu ainda que “parte do seu apelo era a sua naturalidade no teclado. Ela era um desses poucos pianistas que dava a impressão de que o instrumento era uma extensão dos seus braços. Um estilo mais natural, relaxado, sem esforço aparente não podia ser encontrado em mais ninguém.” Nelson Freire, como já contei aqui, tinha uma história engraçada: um fã chegou para Guiomar maravilhado com a poesia de seu Chopin, as cores infinitas de seu Debussy e perguntou como ela fazia tudo aquilo. Guiomar simplesmente olhou para ele e disse: “Está tudo escrito!” Como se fosse só pegar as partituras e ler… Ranulfus chamou isso de milagre, eu chamo de mistério* da simplicidade.

Frédéric Chopin (1810-1849): 24 Préludes, Op. 28

I. Agitato
II. Lento
III. Vivace
IV. Largo
V. Allegro molto
VI. Lento assai
VII. Andantino
VII. Molto agitato
IX. Largo
X. Allegro molto
XI. Vivace
XII. Presto
XIII. Lento
XIV. Allegro
XV. Sostenuto
XVI. Presto con fuoco
XVII. Allegretto
XVIII. Allegro molto
XIX. Vivace
XX. Largo
XXI. Cantabile
XXII. Molto agitato
XXIII. Moderato
XXIV. Allegro appassionato

Piano: Guiomar Novaes (1894-1979)
LP VOX VL 6170 (1950)
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*Mistério no sentido etimológico: do grego antigo mystērion, de mystēs, “aquele que foi iniciado”, por sua vez de myein, “fechar a boca”, origem do português “mudo”; provavelmente relacionado a rituais praticados apenas por iniciados, que deviam guardar silêncio a respeito com pessoas não iniciadas; fora desses ritos pagãos, seguiu no grego e latim medieval dos teólogos significando verdades aprendidas por revelação divina ou intuição, cujo significado preciso seria inexplicável. Para o Papa Francisco, “O mistério da Santíssima Trindade é um imenso mistério, que excede a capacidade de nossas mentes, mas que fala para o coração”

O Instituto Piano Brasileiro tem mais de 40 retratos de Guiomar Novaes: quase sempre de cabelos curtos e muitas vezes com colares elegantes

Pleyel

.: interlúdio :. Discografia completa de Alice Coltrane (1937-2007) com Pharoah Sanders (1940-2022)

O saxofonista Pharoah Sanders caminhou para uma outra dimensão ontem, na Califórnia, aos 81 anos, cercado de amigos e familiares. Além uma longa carreira solo dedicada ao jazz, ele também colaborou com muita gente, desde o último grupo de John Coltrane (de 1965 a 67) até um álbum que muitos consideraram o melhor de música instrumental de 2021, com a London Symphony Orchestra e o DJ/instrumentista/compositor Floating Points, álbum que você encontra no link abaixo ou no Spotify, Tidal e similares.

Nosso foco aqui hoje, porém, se volta para uma grande, imensa dupla de instrumentistas, aquela formada por Alice Coltrane e Pharoah Sanders, dois seres humanos que parecem ter canalizado as mesmas energias musicais enraizadas em referências pan-africanas pinçadas com muito ecletismo – com espaço para antigo Egito, yoga, hinduismo… – e sobretudo preocupadas com um tipo de expressão musical que desafia os rótulos, talvez porque o tipo de união mística que eles buscavam vai além das divisões nossas de cada dia… aliás, Expression (1967) é o nome do último álbum gravado por John Coltrane com seu último quinteto, que incluía Alice e Pharoah. Após o sucesso do álbum Karma (1969) com a longa e mística gravação The Creator has a master plan, o nome de Sanders aparece na capa do álbum Journey In Satchidananda que já postamos aqui:

https://pqpbach.ars.blog.br/2022/03/26/interludio-alice-coltrane-1937-2007-journey-in-satchidananda-1970/

Mas, mesmo sem o nome na capa, Pharoah tem uma participação importantíssima também em dois outros álbuns de estúdio de Alice Coltrane, além de uma gravação de rádio ao vivo no Carnegie Hall. Sua tendência a explorar o limite dos agudos do sax (tenor?) permite identificá-lo facilmente quando ele toca com outros saxofonistas como Joe Henderson e Archie Shepp. Na biografia de Sun Ra – pioneiro do afrofuturismo, corrente que aliás se aplicaria a Sanders se este fosse do tipo que se encaixa em qualquer rótulo – consta que foi aquele pianista que convenceu o jovem Farrell Sanders a usar o nome Pharoah. E mais não digo, porque o importante mesmo é ouvir essa música que vai muito além dos conceitos e definições. Deixo apenas as palavras de mais algumas pessoas que também foram profundamente impactadas pelo respirar tão especial de Pharoah Sanders:

“What I like about him is the strength of his playing, the conviction with which he plays. He has will and spirit, and those are the qualities I like most in a man.” – John Coltrane
(“O que eu gosto nele é a força, a convicção com que ele toca…” – John Coltrane)

“Pharoah Sanders, Whose Saxophone Was a Force of Nature, Dies at 81” – The New York Times

“Even at his most beatific, Pharoah Sanders brings a sense of holy destruction to his playing. The Creator has a master plan, but the journey isn’t always gentle.” – Jason P. Woodbury
(“Mesmo no seu momento mais espiritual, Pharoah Sanders traz um elemento de destruição sagrada quando toca. ‘The Creator has a master plan’, mas a jornada não é sempre tranquila.” – Jason P. Woodbury)

“Pharoah is more abstract, more transcendental.” – Alice Coltrane
(“Pharoah é mais abstrato, mais transcendental.” – Alice Coltrane)

“Em suas obras com Alice Coltrane e Phyllis Hyman, ele tocou com mulheres negras por décadas. Como um par e colaborador. Não são todos que veem as mãos de Alice Coltrane no desenvolvimento do free jazz, jazz cósmico/espiritual, fusion… ela era um par perfeito para os ouvidos de Pharoah e John. Eles ouviam Alice.” – Lynnée Denise (@lynneedenise)

Alice Coltrane – A Monastic Trio (1968, 1998 remaster)
1. Lord, Help Me to Be
2. The Sun
3. Ohnedaruth
4. Gospel Trane
5. I Want to See You
6. Lovely Sky Boat
7. Oceanic Beloved
8. Atomic Peace
9. Altruvista

Tracks 1-3: Ben Riley — drums, Jimmy Garrison — bass, Pharoah Sanders — tenor saxophone, bass clarinet, flute, Alice Coltrane — piano
Tracks 4-9: Rashied Ali — drums, Jimmy Garrison — bass, Alice Coltrane — piano, harp
Recorded at the Coltrane home studio, Dix Hills, New York, 1968

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Alice Coltrane – Ptah – The El Daoud (1970)
1. Ptah, the El Daoud
2. Turiya and Ramakrishna
3. Blue Nile
4. Mantra

Alice Coltrane — harp (track 3), piano
Pharoah Sanders — tenor sax (right channel), alto flute (track 3), bells
Joe Henderson — tenor sax (left channel), alto flute (track 3)
Ron Carter — bass
Ben Riley — drums
Recorded at the Coltrane home studio in Dix Hills, New York on 26 January 1970

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Pharoah Sanders e Joe Henderson

Alice Coltrane – Carnegie Hall ’71
1. Africa (28:35)

Live at the Carnegie Hall, New York, February 21, 1971
FM radio soundboard

Alice Coltrane – piano, harp
Pharoah Sanders – ts, ss, fl, perc, fife
Archie Shepp – ts, ss, perc
Jimmy Garrison – b
Cecil McBee – b
Clifford Jarvis – d
Ed Blackwell – d
Tulsi – tamboura
Kumar Kramer – harmonium

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Pharoah Sanders, Frankfurt, 2013

Pleyel

Lars Vogt (1970-2022)

Uma triste e inesperada notícia: o falecimento do pianista Lars Vogt, aos 51 anos, diagnosticado com um câncer em 2021. Há alguns anos PQP Bach tinha dito sobre ele: “O pianista Lars Vogt tem o rosto desenhado a facão, mas tem a alma e emite sons de um anjo. Ao menos quando senta no piano e usa os dedos.”

Já Vassily havia listado sua gravação das sonatas para violino e piano de Schumann, com Christian Tetzlaff, como uma das melhores gravações junto com a de Argerich/Kremer. E René elogiou as gravações dos concertos 1 e 2 de Beethoven com Simon Rattle, lá em 1994 no início da carreira de Vogt: um jovem pianista com um jovem maestro tocando os concertos do jovem Beethoven.

Claude Debussy (1862-1918): Prélude à l’après-midi d’un Faune, Nocturnes, La Mer, Images, Rapsódia para clarinete, Jeux, etc (Haitink/Concertgebouw) #DEBUSSY160

Toscanini faz um La Mer grandioso, mas apressa demais os Noturnos. Ansermet tem ideias geniais mas nem sempre sua orquestra está à altura. Haitink com a Orquestra do Concertgebouw de Amsterdam, pelo contrário, não erram jamais em suas gravações de Debussy. Onde é preciso suavidade, mistério, eles fazem isso com um colorido instrumental de primeira. E onde é preciso suor e potência, ou brilho e desejo, enfim, nada fica faltando.

De forma que, entre as gravações quase completas das obras de Debussy, esta aqui de Haitink é sempre uma das mais lembradas. É verdade que Jean Martinon gravou em Paris uma coleção maior, que hoje cabe em 4 CDs pois inclui obras de juventude (Fantasia para piano e orquestra…) e orquestrações de amigos de Debussy (Ravel, Koechlin, Büsser…) Então Martinon e Haitink dividem o pódio. É tudo tão bem feito que não vou mais me arriscar a comentar. Seguem abaixo as notas do encarte do disco.

Debussy e Satie: os dois eram amigos. O Buda no meio, não sei.

Pianista de formação, Debussy poderia se tornar um segundo Chopin, compondo quase exclusivamente para o piano, se não fosse sua sensibilidade exacerbada para as sonoridades mais raras, inclusive ao piano, o que o levaria a escrever para orquestra de uma maneira tão pessoal, buscando para cada instrumento o colorido mais incomum. Para o compositor Pierre Lalo – que hoje tem uma ou duas obras ainda lembradas, mas naquele tempo se achava em posição de dar lições ao compositor quatro anos mais velho que ele – isso era um defeito. Lalo escreveu em 1910, sobre Iberia: “Que abuso das percussões e madeiras, esses oboés e clarinetes e seu eterno som nasal! Esses metais sempre fechados [com surdina], esses instrumentos, nenhum deles empregado na sua função verdadeira e seu timbre normal, mas que sempre parecem rir com afetação, com uma voz de palhaço!”

Embora o objetivo fosse falar mal, a crônica de Lalo descreve bem o gosto de Debussy pelas madeiras, enquanto ele evita sempre fazer berrar os metais, defeito que ele via nos wagnerianos tão detestados, como Mahler. Ao mesmo tempo, as percussões deviam trazer alguns barulhos à memória (ressaca em La Mer) mais do que batidas fortes.

A orquestra de Debussy tem origem nos hábitos do fim do século XIX, mas com a presença de um timbre particular, como os címbalos antigos no fim do Prelúdio ao entardecer de um fauno, o coro feminino das Sereias (Noturnos) ou o oboé d’amour de Gigues. Uma invenção contínua sobre os timbres condiciona não somente a orquestração, mas também a forma, por assim dizer sui generis. Seu objetivo é reproduzir as atmosferas da vida e do mundo ao seu redor, transpostas com uma sensibilidade extrema para o plano musical, o que o compositor nomeava “a carne nua da emoção”. Não poderíamos definir melhor o conteúdo do “Prelúdio”, estreado triunfalmente em 22 de dezembro de 1894 e o único vestígio que sobrou de um tríptico planejado sobre “Églogue” do poeta Mallarmé (1842-1898), que evoca os desejos eróticos de um pequeno deus dos rebanhos no calor de uma tarde siciliana, assim como sua comunhão íntima com a paisagem. Para Ravel, era a obra musical mais perfeita jamais composta, tal era a ausência de “ligações” entre as seções.

“Gamins de Wissant”, por Virginie Demont-Breton (1859-1935)

A ideia de tríptico domina também as obras seguintes: os Três Noturnos, finalizados em 1899, concebidos inicialmente como “Cenas ao crepúsculo” para violino e orquestra. La Mer, estreado em 1905 em um ambiente de incompreensão geral, se assemelha mais a uma sinfonia edificada segundo os princípios de Franck, faltando somente a seção lenta: se Debussy não nos presenteou com um estático “luar no mar” (“clair de lune en mer”) como o fizeram outros, e ele mesmo na precedente Sirènes, é porque ele encontrou ali no elemento marinho uma maneira de empurrar a orquestra para o instante fugidio. Um dos grandes méritos dessa obra maior do século XX é associar o sentimento e a emoção do Prelúdio com a visão do universo explorada nos Noturnos, mas com uma objetividade mais explícita, pois para Debussy, não se tratava tanto de ver o mar quanto de recolher dele uma ambiência efetiva graças às sensações diversas provocadas pela música: gritos de gaivotas, ondas, vento violento ou gosto salgado.

E finalmente Images (1905-1912, não confundir com as Images para piano, da mesma época), tríptico que tem no meio um outro tríptico dedicado à Espanha. Para o compositor Manuel de Falla, Iberia “ensinou aos compositores espanhóis formas mais sutis de usarem seu próprio folclore”, embora a obra não cite nenhuma melodia espanhola. Já o movimento final de Images, “Rondes de printemps” (algo como cirandas de primavera), cita “Nous n’irons plus au bois”, canção infantil que Debussy dizia prefirir mil vezes ás Valquírias de Wagner. Em 1904, por encomenda da firma Pleyel, ele compôs Dança sagrada e dança profana para harpa, com o acompanhamento suave dedicado somente às cordas.

Jeux, sua última peça orquestral, foi escrita rapidamente, no verão de 1912, para os Ballets Russes, que já haviam estreado em Paris o Pássaro de Fogo de Stravinsky (1910), obra muito admirada por Debussy. Aqui, o colorido instrumental é mais do que nunca um fator predominante, com uma música elusiva, misteriosa, não-narrativa, não-cíclica, avançando de um momento para outro sem recapitulação. Jeux se manteve como uma das obras mais importantes para os vanguardistas do século XX, mas o balé foi um fracasso de público, o que não chega a ser uma surpresa, pois essa última obra-prima de Debussy, sem os elementos necessários para um sucesso teatral, tem a clareza luminosa e indecifrável de um sonho.

(Compilado das notas por Max Harrison e Bruno Gousset)

Claude Debussy (1862-1918):
CD1
01 – Berceuse Héroïque
Images pour Orchestre:
02 – I. Gigues
03-05 – II. Iberia: Par les rues et par les chemins; Les parfums de la nuit; Le Matin d’un jour de fête
06 – III. Rondes de Printemps
07 – Jeux (poème dansé)
08 – Marche Ecossaise

CD2
01 – Prélude à l’après-midi d’un faune
Nocturnes
02 – I. Nuages
03 – II. Fêtes
04 – III. Sirènes
La Mer
05 – I. De l’aube à midi sur la mer
06 – II. Jeux de vagues
07 – III. Dialogue du vent et de la mer
08 – Rapsodie pour orchestre avec clarinette principale
09 – Danses pour Harpe et Orchestre à Cordes – I. Danse Sacrée
10 – Danses pour Harpe et Orchestre à Cordes II. Danse Profane

Bernard Haitink
Eduard van Beinum (CD1 Track 1)
Royal Concertgebouw Orchestra
Recordings: 1959 (Beinum), 1976, 1977, 1979 (Haitink)

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Bônus:

Décadas depois de gravar Debussy no Concertgebouw de Amsterdam, Haitink gravaria em Paris a única ópera do compositor francês: Pelléas et Mélisande.
Gravação ao vivo no ano 2000, com uma sonoridade muito delicada, apropriada a esta ópera cheia de personagens misteriosos que não sabemos bem de onde vêm nem para onde vão. Uma ópera com florestas sombrias, fontes miraculosas e muitas pérolas orquestrais que Haitink e seus músicos e cantores apresentam sem a grandiosidade de Karajan/Berlim e Abbado/Viena ou a clareza vocal e orquestral de um regente francês que daqui a alguns dias aparecerá aqui no blog com aquela que meu colega Alex DeLarge considerou a maior gravação desta ópera (e eu concordo… daqui a uns dias neste mesmo canal!) Mas essa gravação que trago hoje é forte concorrente ao 2º ou 3º lugar pela sutileza e refinamento das partes orquestrais. Ao mesmo tempo, por ser ao vivo, temos ruídos da vida real como o virar de páginas da partitura…

Claude Debussy:
Pelléas et Mélisande
Orchestre National de France, direção Bernard Haitink
Solistas: Wolfgang Holzmair (Pelléas) – Anne Sofie von Otter (Mélisande) – Laurent Naouri (Golaud) – Alain Vernhes (Arkel) – Hanna Schaer (Geneviève) – Florence Couderc (Yniold) – Jérôme Varnier (Le Berger, Le Médecin)
Choeur de Radio France
Live Recording: mars 2000, Théatre des Champs-Élysees, Paris, France

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Bernard Haitink (1929-2021), um dos maiores maestros da era das gravações

Pleyel

Claude Debussy (1862-1918): La Mer, Ibéria, Prélude à l’après-midi d’un Faune, 2 Nocturnes (Toscanini/NBC) #DEBUSSY160

Segundo testemunhas, Debussy teria dito: “Em minha opinião a inutilidade da sinfonia desde Beethoven já foi amplamente demonstrada.”

Mas La Mer, composta entre 1903 e 1905, é claramente uma sinfonia em três movimentos, apenas o cuidadoso subtítulo “Esboços sinfônicos” aponta para a diferença.

Se La Mer está apenas parcialmente na tradição sinfônica, não é tampouco um poema tonal tradicional. No 1º movimento encontramos a calma superfície das águas, o aparecimento do sol e a força crescente da luz (com uma intensificação gradual da dinâmica, ou seja, instrumentos tocando mais forte). No 2º movimento há uma contínua invenção na movimentação das melodias, imprevisíveis como as ondas, simplesmente uma brincadeira das ondas. No 3º movimento um diálogo entre o vento e o mar com todas suas nuances alternando rapidamente.

Em La Mer, nenhuma história está sendo contada, nenhuma ação narrada. Temos sobretudo a impressão de que a música se tornou como a natureza. Essa parece ter sido a intenção de Debussy, pois em suas próprias palavras, a música parecia destinada “não a expressar a natureza com uma maior ou menos fidelidade, mas a criar uma harmonia misteriosa entre natureza e imaginação”.

(Texto acima por Wolfgang Dömling, Professor na Universidade de Hamburgo, 1993)

Como descreveu muito bem o professor alemão citado, La Mer não tem um enredo definido, apenas cenas que cada um pode ouvir e preencher com sua própria imaginação. Arturo Toscanini (1867-1957) claramente tinha ideias bem formadas sobre como devia soar La Mer. Ele fez dessa obra um de seus cavalos de batalha em sua longa e internacional carreira. Entre as suas várias gravações da obra (incluindo uma de 1935 em Londres, esta de 1950 nos EUA e outra de 1953) há algumas mudanças, mas sobretudo a continuidade das convicções do maestro sobre como devia soar Debussy, convicções que vinham desde a década de 1900. Sob a batuta de Toscanini, com sua ênfase nos metais, o mar raramente parece calmo, sereno ou brincalhão: mais comuns são os momentos de navegação, de fanfarras marinheiras, enfim, um mar povoado de barcos e com ondas às vezes ameaçadoras. Ao mesmo tempo, com esse clima de marinheiros e fanfarras, a predominância dos metais nunca soa wagneriana ou mahleriana, falha que Debussy não perdoaria. Toscanini regeu bastante Wagner, mas compartilhava com Debussy o desprezo por Mahler: ele não gravou nenhuma das sinfonias do vienense.

Nos Noturnos e no Fauno, Toscanini também tem ideias muito particulares que lhe trouxeram sucesso com essas obras desde 1904, mas que não alcançaram uma unanimidade entre os ouvintes da era das gravações: ele despacha as Nuvens (1º mov. dos noturnos) em 5 minutos e meio, como se um forte vento estivesse as empurrando com força… Também o fauno corre um pouco apressado. Mas há momentos de parada pra respirar, como o sublime instante em que as cordas tocam um crescendo e tomam as rédeas entre 4:20 e 5:00, com uma respiração em tempo rubato cheia de elegância. Toscanini não havia caído de para-quedas nesse repertório, muito pelo contrário, tinha intimidade com aquelas obras que regeu quando ainda eram desconhecidas na Itália, e foi muito elogiado pelo próprio Debussy:

Em seu livro The real Toscanini, Cesare Civetta descreve a relação de Toscanini com Debussy e La Mer: “Debussy enviou a Toscanini a partitura completa de La Mer, com uma dedicação escrita à mão de uma página inteira, onde Debussy escreve: ‘Até agora achava que eu tinha escrito uma boa composição, no melhor das minhas capacidades. Agora eu sei que criei algo ainda melhor com a sua ajuda.’ Ele escreveu ‘com sua ajuda’ porque Toscanini explicou a Debussy vários detalhes pouco claros na partitura e lhe relatou as mudanças que ele fizera na orquestração, mudanças que Debussy aprovou.”

Vocês sabem que quem conta um conto aumenta um ponto, além disso Debussy deve ter se sentido grato a um maestro que divulgava sua música nos tradicionalíssimos Teatro alla Scala de Milão (estreia italiana da ópera Pelléas et Mélisande em 1908) e Teatro Regio de Turim (Prélude à l’après-midi d’un faune em 1904, Nuages em 1906). Se talvez haja algo de exagerado nesse relato, o fato é que há também cartas de Debussy a Toscanini, sempre elogiosas, assim como uma carta a um amigo em que Debussy o chama de “grande mágico” e de maior responsável pelo sucesso de La Mer em Turim em 1911:

Sua cordial lembrança e o relato que o senhor me faz da estreia de La Mer me trouxeram muito prazer… Quanto ao sucesso ele é, creia-me bem, inteiramente devido a este grande mágico chamado Toscanini! Não tenho antipatia dos “bons burgueses” de sua velha Turim por me terem olhado com maus olhos antes; e que eles gostem mais de Debussy por Toscanini do que da presença real de Debussy no fundo é apenas “nacionalismo” à terceira potência! (Carta de Claude Debussy a Leone Sinigaglia, 1911)
Votre cordial souvenir et le récit que vous me faites de la création de La Mer m’ont fait un grand plaisir… Quant au succès il est, croyez-le bien, entièrement dû à ce grand magicien qui s’appelle Toscanini ! Je n’en veux nullement aux « bons bourgeois » de votre vieux Turin de m’avoir fait grise mine ; et qu’ils aiment mieux Debussy à travers Toscanini que la présence réelle de Debussy n’est en somme que du « nationalisme » à la troisième puissance !
Claude Debussy (Lettre à Leone Sinigaglia, 1911)
Your account of the première de La Mer has given me a great pleasure… About the success it is, believe me, entirely due to this great magician called Toscanini! I don’t care if, before, the “good bourgeois” of Torino didn’t smile at me; and the fact that they like better Debussy by Toscanini than Debussy’s real presence is just some “nationalism” to the third potency! (Claude Debussy, 1911)

“Toscanini y a mis toute son âme, toute son intelligence, et toute sa volonté. Sa création de votre admirable chef-d’œuvre a été prodigieuse. Le public, méfiant au commencement (vous pouvez le penser ! Vous connaissez ça) a été conquis. […] Grand nombre de « nos bons bourgeois de la vieille ville de Turin » aiment Debussy !”

Lettre de L. Sinigaglia à Debussy, [Turin, 30 septembre 1911] (Carta respondida por Debussy acima. Ambas citadas por Malvano, 2012: Claude Debussy à l’Exposition internationale de Turin en 1911)

Em resumo: em La Mer todas as escolhas do grande mágico chamado Toscanini (palavras de Debussy) parecem perfeitas e inevitáveis, ao menos enquanto o ouvimos e estamos sob seu encanto. Nas outras obras, mesmo discordando de algumas escolhas do maestro, reconhecemos aqui uma gravação histórica de valor inestimável.

Arturo Toscanini, o maestro que fez a estreia italiana do Fauno em 1904 e da ópera Pelléas, em 1908

Claude Debussy (1862-1918):
La Mer
01. I: De l’aube à midi sur la mer
02. II: Jeux de vagues
03. III: Dialogue du vent et de la mer
04. Prélude à l’après-midi d’un faune
Ibéria (from Images)
05. I: Par les rues et par les chemins
06. II: Les parfums de la nuit
07. III: Le Matin d’un jour de fête
Nocturnes 1 & 2
08. I: Nuages
09. II: Fêtes
Recorded: 1950 (1-3), 1948, 1952, 1953
Arturo Toscanini, NBC Symphony Orchestra

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O mar de Toscanini é agitado! (Foto: “Fillette sur le Rocher”, 1888, por Virginie Demont-Breton, 1859-1935)

Pleyel

Claude Debussy (1862-1918): Nocturnes, La Mer, Images, Jeux, La boîte à joujoux, Épigraphes antiques, Sarabande (Armin Jordan, Orquestras Suisse Romande e de Basel) #DEBUSSY160

Theodor W. Adorno (Frankfurt, 1903–1969) afirma que a música de Debussy é marcada pela desconfiança de que o gesto grandioso usurpa um nível espiritual que depende justamente da ausência de tal gesto.
“A preponderância da sonoridade sensual na assim chamada música impressionista envolve, melancolicamente, dúvidas acerca da inabalável confiança alemã na potência autônoma do espírito.” (Intr. Soc. da Música, p.300)

A obra de Debussy é toda voltada para a contemplação interior, a intimidade, a pureza das frases e o desenrolar das ideias musicais por dez ou vinte minutos, não mais do que isso, em oposição à grandiloquência e exageros da música germânica de Wagner e Bruckner. Assim como muitos colegas de sua geração, ele teve um flerte inicial com as inovações harmônicas de Wagner, mas depois passou a combater a enorme influência wagneriana em toda a Europa do fim do século XIX.

Debussy ao piano no verão de 1893, na casa de campo do seu amigo Chausson, calvo, em pé, virando a página

Ernest Chausson, compositor amigo de Debussy, é outro que passou pelo mesmo processo: no caso dele, a influência de Wagner se faz ainda mais notável em sua música, mas ele escreveu, em 1886: “É preciso de deswagnerizar” (« Il faut se déwagnériser »).

A admiração inicial por Wagner levou os jovens Chausson e Debussy a irem a Bayreuth assistir às óperas do alemão, que faziam enorme sucesso naquela época (ao contrário de Bruckner e Mahler, cujas sinfonias seriam mais celebradas postumamente). E ir a Bayreuth não era, para eles, como ir logo ali na Normandia ou na Bélgica. Hoje o trajeto Paris-Bayreuth dura 8 horas de trem, quase 9 de carro, e certamente os meios de transporte e estradas da época eram bem mais lentos.

Sorte nossa que hoje essas disputas parecem algo muito antigo – enquanto a música soa atual! – de forma que podemos gostar de ambos os lados: ouvir hoje um Fauré e amanhã um Wagner, hoje os prelúdios de Debussy e amanhã as sinfonias gigantescas e devocionais de Bruckner.

Após longos anos de formação e de pouco sucesso, Debussy conseguiu se “deswagnerizar” e teve um primeiro sucesso de público com o Prélude à l’après-midi d’un faune (1894). Em seguida vieram suas duas outras grandes obras-primas orquestrais, Nocturnes (1899, estreias em 1900-1901) e La Mer (1905). Vieram em seguida Images, tendo como peça principal Iberia, certamente inspirada por Albéniz, e finalmente Jeux, partitura para balé que é sua obra mais moderna e de mais difícil apreensão. As outras obras aqui gravadas por Armin Jordan são partituras orquestradas por três pessoas que Debussy conheceu bem. A sarabanda da suíte Pour le piano (1901) foi orquestrada por Ravel. E as duas outras obras, Six épigraphes antiques (Seis epígrafes antigas) e La boîte à joujoux (A caixa de brinquedos), escritas nos últimos anos de vida, Debussy provavelmente tinha a intenção de orquestrar, não sabemos se uma intenção séria interrompida pela doença ou uma intenção assim como quem diz “vou fazer” sem muita convicção. Em todo caso, o que se sabe é que o maestro Ernest Ansermet (1883-1969, fundador da Orchestre de la Suisse Romande) orquestrou as eígrafes, que lembram um pouco as imagens e prelúdios para piano, com referências ao vento, à noite e à chuva. Já o maestro e comporitor André Caplet (1878-1925) orquestrou a caixa de brinquedos, obra de caráter infantil… quem entende um pouco de francês vai entender o diminutivo carinhoso de jouet (brinquedo) comendo a última sílaba, como os franceses o fazem para metrô (métropolitain), dodô (dormir) e restô (restaurant).

Nocturnes é a partitura que Debussy mais retocou após a estreia. Foram vários anos retocando pequenos detalhes aqui e ali, de modo que há mais de uma opção para os maestros escolherem. Quando Ernest Ansermet, em 1917 viu a partitura cheia de mudanças anotadas a caneta e a lápis, ele perguntou ao compositor qual era a versão correta. Debussy respondeu: “Não sei mais, todas são possíveis. Então leve essa partitura e use as que lhe parecerem melhores.” (Fonte: Ernest Ansermet: une vie de musique – Jean-Jacques Langendorf, 2004)

A partitura que a orquestra da Suisse Romande utiliza sob a batuta de Armin Jordan, sem dúvida, é a “versão Ansermet”, ou seja, inclui as mudanças manuscritas que Debussy adicionou nas décadas de 1900 e 1910. O suíço Charles Dutoit, que quando jovem conheceu Ansermet, também parece usar essa mesma versão da partitura em sua gravação com a Orquestra de Montréal. Já outras gravações, como as de Martinon (em Paris), Svetlanov (em Londres) e Haitink (em Amsterdam) utilizam outras versões, mais fiéis à original assinada por Debussy em 1899. Dá pra perceber as diferenças, já desde o clarinete no primeiro compasso do terceiro Noturno, Sirènes (Sereias). Este movimento, ao que parece, foi o que Debussy mais revisou ao longo de vários anos, movido pela enigmática dificuldade de encaixar o som da orquestra e o do coro de mulheres cantando sempre distantes – as sereias na Odisseia, ao contrário da feiticeira Circe e da ninfa Calipso, não encostam em Ulisses, apenas cantam no mar enquanto os gregos navegam.

1897: Debussy em pose relaxada, fumando com Zohra ben Brahim (amante de seu amigo Pierre Louÿs)

Claude Debussy (1862-1918)
1 Nocturnes: No. 1, Nuages (1899)
2 Nocturnes: No. 2, Fêtes (1899)
3 Nocturnes: No. 3, Sirènes (1899)
4 Épigraphes antiques: No. 1, Pour invoquer Pan, dieu du vent d’été (1914) (Orch. Ansermet)
5 Épigraphes antiques: No. 2, Pour un tombeau sans nom (1914) (Orch. Ansermet)
6 Épigraphes antiques: No. 3, Pour que la nuit soit propice (1914) (Orch. Ansermet)
7 Épigraphes antiques: No. 4, Pour la danseuse aux crotales (1914) (Orch. Ansermet)
8 Épigraphes antiques: No. 5, Pour l’Égyptienne (1914) (Orch. Ansermet)
9 Épigraphes antiques: No. 6, Pour remercier la pluie au matin (1914) (Orch. Ansermet)
10 Pour le piano: II. Sarabande (1901) (Orch. Ravel)
11 La boîte à joujoux: I. Prélude. Le sommeil de la boîte (1913) (Orch. Caplet)
12 La boîte à joujoux: II. Le magasin de jouets (1913) (Orch. Caplet)
13 La boîte à joujoux: III. Le champ de ba taille (1913) (Orch. Caplet)
14 La boîte à joujoux: IV. La bergerie à vendre (1913) (Orch. Caplet)
15 La boîte à joujoux: V. Après fortune faite (1913) (Orch. Caplet)
16 La boîte à joujoux: VI. Épilogue (1913) (Orch. Caplet)

Orchestre de la Suisse Romande (1-3)
Sinfonie Orchester Basel (4-16)
Armin Jordan

Claude Debussy (1862-1918)
1 La Mer: I De l’aube à midi sur la mer (1905)
2 La Mer: II. Jeux de vagues (1905)
3 La Mer: III. Dialogue du vent et de la mer (1905)
4 Images pour orchestre, Pt. 1 “Gigues” (1912)
5 Images pour orchestre, Pt. 2 “Ibéria”: I. Par les rues et par les chemins (1912)
6 Images pour orchestre, Pt. 2 “Ibéria”: II. Les Parfums de la nuit (1912)
7 Images pour orchestre, Pt. 2 “Ibéria”: II. Le Matin d’un jour de fête (1912)
8 Images pour orchestre, Pt. 3 “Rondes de printemps” (1912)
9 Jeux (1913)
Orchestre de la Suisse Romande (1-9)
Armin Jordan

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As capas dos álbuns originais lançados pela Erato

Pleyel

Chausson (1855-1899): Viviane, Poemas para soprano e para violino / Lekeu (1870-1894): Fantasia, Adagio para cordas / Dukas (1865-1935): Aprendiz de feiticeiro / Debussy (1862-1918): Fantasia para piano, Rapsódia para clarinete, Prélude à l’après-midi d’un faune (Armin Jordan, Orquestras Suisse Romande e Monte-Carlo) #DEBUSSY160

As obras desta e da minha próxima postagem, em gravações por orquestras de países francófonos – Suíça, França, Mônaco – são todas do período que em francês costumam chamar Belle Époque (Bela época). Um período entre a Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) e as terríveis duas Guerras Mundiais (a partir de 1914), que retrospectivamente – para as gerações que viveram essas guerras, sem falar na crise de 29 – foi visto como uma era de ouro por gente como Marcel Proust (1871-1922): “os verdadeiros paraísos são os paraísos perdidos”, disse ele, ou seja, a gente só dá valor depois que perde.

Aqui um parêntesis: o economista Thomas Piketty afirma que “todas as sociedades europeias na Belle Époque se caracterizam por uma fortíssima concentração dos patrimônios.” Ou seja, foi uma bela época sobretudo para uma minúscula fração de pessoas que viviam de renda e podiam passar a semana entre várias soirées, salões, óperas e concertos. O 1% mais rico da sociedade detinha 60% do patrimônio na França e quase 70% na Inglaterra, concentração maior do que em meados do século XIX. As bombas da 1ª Guerra e as falências de 1929, entre outros fatores político-econômicos, significariam uma grande destruição de patrimônios dos ricos, com uma redução na concentração de renda ao longo do século XX e a emergência das classes médias, porém a tendência é de novo aumento nessa concentração no nosso século XXI. Se vocês querem saber os motivos, terão de ler as 900 pgs. do livro que Pikkety publicou em 2013: O Capital no Século XXI.

Em todo caso, em termos musicais, a Belle Époque é o período em que surgem grandes obras francesas que até hoje estão no repertório clássico: a Sinfonia com órgão e os concertos de Saint-Saëns, a Sonata para violino de Franck e suas Variações Sinfônicas, o Réquiem de Fauré e seus Quartetos e Quintetos com piano, quase todas as obras de Debussy e as primeiras de Ravel. Além de outros compositores com uma ou duas obras ainda lembradas, como Chausson, Chabrier, Dukas, d’Indy, Boulanger…

Sempre fico feliz quando ouço algum regente que gravou a Fantasia para piano e orquestra de Debussy. Grandes maestros como Haitink, Ansermet, Boulez e Karajan não a gravaram. O próprio Debussy desprezou a obra – na estreia, quando ele ainda era um compositor bem pouco famoso, queriam tocar só um dos três movimentos, de forma que ele se irritou e enfiou a partitura na gaveta – e ela só foi estreada de fato por Alfred Cortot em 1919, um ano após a morte do compositor. Felizmente outros gigantes como Jean Martinon (com Ciccolini) e Ivan Fischer (com Kocsis) gravaram essa obra. Mais recentemente, Barenboim e Argerich. Faço questão de citar esses maestros porque na minha irrelevante opinião essa partitura de 1890 tem, cronologicamente, a primeira das primorosas orquestrações de Debussy, um pouco abaixo do Fauno, de La Mer e Nocturnes, mas no mesmo nível de Jeux, Images e das Danças para harpa e orquestra.

Nesta gravação com Jordan, a Fantasia para piano e orquestra (assim como a Rapsódia para orquestra com clarinete) são muito bem defendidas pela Orquestra da Ópera de Monte-Carlo (Mônaco), orquestra tradicional, que estreou obras de Honegger e de Fauré e foi fundada em 1856 no principado famoso pelas corridas de F1. No Fauno de Debussy, ele está em Genebra com a Orquestra da Suisse Romande (que significa a parte da Suíça que fala francês), orquestra fundada em 1918 pelo maestro Ernest Ansermet, que a dirigiu até 1967. Ansermet conheceu Debussy e suas gravações provavelmente estão entre as mais próximas de como o compositor queria que as obras soassem. E a orquestra Suisse Romande, claro, manteve após Ansermet uma profunda ligação com a obra de Debussy.

Já no poema sinfônico Aprendiz de Feiticeiro (1897), one-hit-wonder de Dukas, Jordan está em Paris com a Nova Orquestra Filarmônica da Radio France. É esse percurso entre Paris, lagos da Suíça e sul da França que Jordan fez quase toda a vida. Nascido em Lausanne (Suíça) em 1932, ele não precisou ir morar nos EUA como dezenas de grandes maestros das duas gerações anteriores (Szell, Reiner, Munch, Toscanini, Monteux). Morreu em 2006, cinco dias após um mal súbito que teve enquanto regia a ópera O Amor das Três Laranjas, de Prokofiev, em Basel (Basileia, Suíça).

Também sempre fico feliz quando encontro alguma gravação de Lekeu, compositor de morte muito precoce, que deixou para a posteridade uma grande sonata para violino, algumas obras orquestrais e  mais alguns esboços. No Adagio para cordas ele mostra sua voz muito característica e melancólica, que conheço bem da sua sonata para violino, estreada por Ysaye em 1893, mesmo ano em que Lekeu contraiu a febre tifóide que o vitimaria no começo do ano seguinte. Na Fantasia sobre temas da região de Angers, no oeste da França, Lekeu começa com fanfarras alegres, mas lá pelo 4º minuto se inicia novamente a melancolia romântica que o aproxima de românticos tardios como Tchaikovsky e Wagner. Ao mesmo tempo que sua personalidade musical é notável, também fica aquele ar de mistério: o que exatamente ele queria dizer, que caminhos tomaria se vivesse mais algumas décadas?

Viviane, de 1882, é uma das primeiras obras de Chausson, muito influenciada por Wagner. A orquestração do Poema do amor e do mar é um pouco mais distante da sonoridade de Wagner, e mais próxima do estilo orquestral de Debussy e de Fauré. O Requiem de Fauré (1988) já tinha sido estreado e o Fauno de Debussy seria estreado no ano seguinte, em 1894. Mas sabendo que Chausson era então amigo de Debussy (depois eles brigariam por causa de uma das várias mulheres por quem Debussy se apaixonou perdidamente) e frequentador dos mesmos salões, podemos imaginar que Chausson tenha ouvido uma versão preliminar do Fauno enquanto ele próprio orquestrava seu Poema em 1893. Há uma versão para tenor e uma para soprano. Aqui, quem canta é a diva Jessye Norman, aos 36 anos de idade. E nas melodias vocais, bem como às vezes na orquestra nos momentos dominados pelas cordas, Chausson retoma com força a sonoridade wagneriana. No Poema para violino e orquestra (1896), ela também alterna entre as polaridades francesa e alemã. É como se Wagner fosse um vício para esses franceses como Chausson, Fauré e Debussy: fugiam dele mas depois voltavam com evidente prazer.

As fotos acima são capas dos discos originais dos anos 1980 e 90. A gravadora francesa Erato, sumida desde 2001, ressurgiu em 2013 como um braço da Warner e lançou esta caixa de Armin Jordan em 2016, caixa da qual selecionamos apenas alguns CDs. Talvez voltemos algum dia com outras raridades de Jordan/Erato: Chabrier, Fauré, Franck…

O jovem Guillaume Lekeu

Ernest Chausson (1855-1899); Guillaume Lekeu (1870-1894)
1 Chausson: Viviane Op. 5 (1882)
2 Chausson: Poème de l’amour et de la mer Op. 19 : I. La fleur des eaux (1893)
3 Chausson: Poème de l’amour et de la mer Op. 19 : II. Interlude (1893)
4 Chausson: Poème de l’amour et de la mer Op. 19 : III. La mort de l’amour (1893)
5 Chausson: Poème pour violon et orchestre Op. 25 (1896)
6 Lekeu: Fantaisie sur deux airs populaires angevins (1892)
7 Lekeu: Adagio pour quatuor d’orchestre, Op. 3 (1891)
Jessye Norman, soprano (2-4)
Jean Moulière, violin (5)
Sinfonieorchester Basel (1)
Orchestre Philharmonique de Monte-Carlo (2-7)
Armin Jordan

Paul Dukas (1865-1935), Claude Debussy (1862-1918)
1 Dukas: L’apprenti sorcier (1897)
2 La procession nocturne, Op. 6 (1910)
3 Debussy: Fantaisie pour piano et orchestre: I. Andante – Allegro (1890)
4 Debussy: Fantaisie pour piano et orchestre: II. Lento e molto espressivo (1890)
5 Debussy: Fantaisie pour piano et orchestre: III. Allegro molto (1890)
6 Debussy: Première rapsodie pour clarinette (1911)
7 Debussy: Prélude a l’après-midi d’un faune (1894)
Anne Queffélec, piano (3-5)
Antony Morf, clarinette (6)
Nouvel Orchestre Philharmonique de Radio France (1)
Orchestre Philharmonique de Monte-Carlo (2-6)
Orchestre de la Suisse Romande (7)
Armin Jordan

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O auditório exclusivo da PQP Corp. em Monaco, que de vez em quando emprestamos para a Orquestra de Monte-Carlo

Pleyel

.: interlúdio :. John Coltrane: Olé Coltrane, Ballads

A música de John Coltrane’s é um grito de revolta contra a frieza do nosso mundo.” (Willie Gschwedner, resenha de um concerto em 27/11/1962)

Aqui, dois álbuns de Coltrane que, apesar de muito diferentes, foram gravados a poucos meses de distância. Ele e seus parceiros deram uma no cravo e outra na ferradura. Em Olé Coltrane temos jazz bastante inovador, em um formato maior do que o seu habitual quarteto, expandido aqui com dois músicos nos sopros: Eric Dolphy (flauta e sax) e Freddie Hubbard (trompete). E igualmente importante: aqui temos dois baixos, um de cada lado da gravação em stereo. Olé, faixa que ocupava todo o lado A do LP, utiliza harmonias que acenam para a música espanhola, como havia feito Miles Davis um ano antes (Sketches of Spain). E com um amplo protagonismo para os dois baixistas (Reggie Workman e Art Davis), que têm tempo para mostrar uma ampla gama de sonoridades, tanto usando os dedos como também com arco. No lado B – ao contrário dos discos pop – a sonoridade é mais familiar, com melodias assobiáveis como a de Aisha, melodia introduzida pelo sax alto de Eric Dolphy, enquanto Coltrane explora camadas mais subterrâneas, aqui no sax tenor (que ele usa no lado B, enquanto no lado A era o sax soprano).

Os baixistas Reggie Workman (foto) e Art Davis tocam escandalosamente bem na faixa-título de Olé

Olé Coltrane (1961)
1. Olé (John Coltrane) – 18:13
2. Dahomey Dance (John Coltrane) – 10:49
3. Aisha (McCoy Tyner) – 7:37

John Coltrane — soprano saxophone on “Olé”; tenor saxophone on “Dahomey Dance” and “Aisha”
Freddie Hubbard — trumpet
Eric Dolphy — flute on “Olé”; alto saxophone on “Dahomey Dance” and “Aisha”
McCoy Tyner — piano
Reggie Workman — bass
Art Davis — bass on “Olé” and “Dahomey Dance”
Elvin Jones — drums
Recorded May 25, 1961, New York City

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Já em Ballads, Coltrane e seu grupo acenaram para um público que apreciava musicais da Broadway e filmes de Hollywood, o que eles já haviam feito em My Favorite Things. Esse álbum me lembra o tipo de jazz que vinha à minha cabeça quando muito jovem, combinando com vinhos tintos ou um pesado whisky sem gelo, em reunião de pessoas de classe média alta com uma bela vista para as montanhas ou para o mar. Não por acaso, todos os standards gravados em Ballads são de compositores brancos (tipo de análise mais comum hoje em dia do que nos anos 1960, quando isso poderia passar batido num álbum de jazz gravado por músicos negros. Hoje não passa mais como detalhe.)

Com o baixo e a bateria aqui bastante “quadradinhos” fazendo o ritmo – ao contrário de Olé Coltrane em que o ritmo é tudo menos previsível – quem brilha nos arranjos é o pianista McCoy Tyner, com sua chance de tocar de forma mais suave, menos percussiva do que na maioria dos álbuns que ele gravou. Quando o sax está fazendo as melodias que podemos facilmente cantarolar (“Too young to go steady…”), o piano vai enchendo os espaços vazios com blue notes e outras intervenções de extremo bom gosto e, como já dito acima, sem chocar os ouvidos mais conservadores. Se a música de John Coltrane e de seus fiéis escudeiros passou por mudanças, jornadas em busca de novos sons e expressões, e é claro que passou por muito disso, também devemos lembrar que o olhar estritamente evolucionista é uma apreensão rasa: assim, entre o John Coltrane de Olé (1961) e o de A Love Supreme (1964), temos o de Ballads.

Ballads (1963)
1. Say It (Over and Over Again)”(Jimmy McHugh) – 4:18
2. You Don’t Know What Love Is (Gene DePaul) – 5:15
3. Too Young to Go Steady (Jimmy McHugh) – 4:23
4. All or Nothing at All (Arthur Altman) – 3:39
5. I Wish I Knew (Harry Warren) – 4:54
6. What’s New? (Bob Haggart) – 3:47
7. It’s Easy to Remember (Richard Rodgers) – 2:49
8. Nancy (With the Laughing Face) (Jimmy Van Heusen) – 3:10

John Coltrane – tenor saxophone
McCoy Tyner – piano
Jimmy Garrison (#1-6, 8), Reggie Workman (#7) – bass
Elvin Jones – drums
Recorded December 21, 1961; September 18 and November 13, 1962

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McCoy Tyner e John Coltrane em 1963

Pleyel

Peteris Vasks (1946): Obras para Piano (R. Zarins)

Minimalismo: uma palavra de significado meio vago, que encaixa com muitos fenômenos musicais diferentes, mas é a palavra que temos para descrever boa parte da música de concerto das últimas décadas. O bom inimigo do ótimo. A palavra tem sido usado para compositores bastante diferentes entre si, como:

– O hippie californiano Terry Riley, com sua inspiração no improviso do jazz e das ragas hindus e na sonoridade dos sintetizadores;
– O também norte-americano Philip Glass, grande compositor de trilhas sonoras;
– O polonês Henryk Górecki, que na década de 1970 adotou um estilo mais simples e teve um sucesso estrondoso com sua 3ª Sinfonia, que vendeu milhões de cópias;
– O estoniano Arvo Pärt, estudioso do cantochão medieval e famoso por suas obras corais com repetições modais e hipnóticas que parecem andar em círculos;

E também Pēteris Vasks, nascido na Letônia, país vizinho à Estônia de Pärt. Ambos têm em comum a religiosidade cristã, que foi abafada durante o período soviético. E como vocês sabem, o que é proibido é mais gostoso. Um pouco mais jovem que esses outros citados, Vasks aparece nesse disco recente com uma obra de juventude, uma mais recente e uma novíssima, composta durante o período da pandemia de COVID-19.

Na obra de juventude, Cycle, em quatro partes, Vasks apresenta um tema em cada movimento e depois não se preocupa muito em desenvolvê-lo, tampouco faz repetições infinitas como Riley ou Glass. O que ele faz é dissecar a melodia em suas partes, usando para isso não só o teclado do piano, mas também ataques nas cordas do instrumento, técnica que surgiu por volta de 1920 com o norte-americano Henry Cowell e depois muito utilizada por John Cage. Graves assustadores, agudos brilhantes, temos um amplo espectro sonoro sustentado sobre ideias melódicas mais ou menos simples.

Seguindo a cronologia do compositor, a obra intermediária, estreada aos poucos entre 1980 e 2008, reflete as quatro estações, do ponto de vista de um habitante de terras muito mais frias do que a Itália de Vivaldi. Lendo as palavras do compositor no encarte do álbum, ficamos sabendo, por exemplo, que a primavera inclui ainda alguns momentos de neve alternando com o nascer do sol na floresta… E que no fim do último movimento (outono), temos também as primeiras neves que antecedem o inverno. A vida é assim na Letônia: três estações com neve, uma sem.

E a primeira obra do álbum, cronologicamente a mais recente, também está ligada ao mundo animal e vegetal: “A voz do Cuco – Elegia de Primavera”. Nas notas do álbum, ficamos sabendo inclusive que Vasks continuou a composição dessa peça enquanto estava se recuperando da COVID-19, ainda antes das vacinas chegarem… Felizmente Vasks conseguiu atravessar esses mares revoltos e terminar sua composição, que ele resume assim: “Em Amatciems, onde temos nossa casa de campo, há muitos cucos. Um pássaro maravilhoso.”

PĒTERIS VASKS (b. 1946): Piano Works
1. Cuckoo’s Voice. Spring Elegy (Dzeguzes balss. Pavasara elēģija) (2021)*
2-5. Cycle (Zyklus) (1976)*
I. Prologue 3:21
II. Nocturne 3:59
III. Drama 3:11
IV. Epilogue 5:24
6-9. The Seasons (Gadalaiki)
I. White Scenery (Baltā ainava) (1980)
II. Spring Music (Pavasara mūzika) (1995)
III. Green Scenery (Zaļā ainava) (2008)
IV. Autumn Music (Rudens mūzika) (1981)
*World première recordings
Reinis Zariņš, piano

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O compositor e o pianista

Pleyel

Frédéric Chopin (1810-1849): Mazurkas (Cor de Groot) / Variações “Là ci darem la mano”, Op. 2 (Moreira Lima)

A mazurka é um tipo de dança folclórica polonesa de compasso ternário. Nesta gravação das Mazurkas, Cor de Groot utiliza um piano Pleyel, que era a marca preferida por Chopin. Para casa de campo de George Sand em Nohant, por exemplo, foram encomendados dois instrumentos Pleyel: um piano de cauda para Chopin e um piano de armário para Sand e sua filha Solange. Entre os convidados em Nohant estava o pintor Eugène Delacroix, que descreveu em uma carta:

« Par instants, il vous arrive, par la fenêtre ouverte sur le jardin, des bouffées de musique de Chopin, (…) qui se mêlent au chant des rossignols et au parfum des roses. » Auprès de son ami Pierret, Delacroix se félicitait de sa vie de couvent: «Nous attendions Balzac qui n’est pas venu, et je n’en suis pas fâché. C’est un bavard (…). J’ai des tête-à-tête à perte de vue avec Chopin que j’aime beaucoup et qui est homme d’une distinction rare. »

“De vez em quando, pela janela que dá para o jardim, nos chegam sopros de música de Chopin, (…) que se misturam com o canto dos rouxinóis e o perfume das rosas.” Com seu amigo Pierret, Delacroix felicitou-se por seu isolamento: “Estávamos esperando por Balzac que não veio, e não lamento. Ele é um falador (…). Tenho incontáveis encontros a dois com Chopin, de quem gosto muito e que é um homem de rara distinção.”

Frédéric Chopin por Eugène Delacroix

Como vocês sabem, a escritora George Sand teve uma ligação apaixonada e tumultuosa com Chopin por cerca de dez anos. Gosto de imaginar essas mazurkas na casa de George Sand, seja essa casa de campo ou sua casa em Paris, a poucos minutos a pé de Montmartre e do Moulin Rouge (mas o famoso cabaré só abriria em 1889). Com companhias como Delacroix e Balzac… (mas talvez o genial autor das Ilusões Perdidas, viciado em café e fã de Beethoven, não tivesse a calma suficiente para apreciar essas obras.) É nesse tipo de ambiente que as mazurkas de Chopin soam bem, e não em salas de concerto imensas. O que foi dito nesta postagem sobre as obras de Brahms para piano a quatro mãos vale também aqui: o piano Pleyel do século XIX combina perfeitamente com o caráter íntimo das mazurkas, com seu gosto agridoce feito de alegrias suaves e de dores inconfessáveis.

O holandês Cor de Groot (1914-1993) mostra aqui que, entre os charmes das mazurkas, estão os ornamentos: trinados, mordentes e outros tipos de alternância entre notas próximas, que no timbre muito característico do piano Pleyel chegam a lembrar de longe o som dos ornamentos no cravo de Bach ou Scarlatti. É música para se ouvir com amigos, familiares e outras pessoas queridas, não combina com os grandes palcos.

Esses dois discos fazem parte de uma daquelas caixas de vários CDs, neste caso, da gravadora Brilliant Classics, famosa por comprar e relançar gravações de outros selos. Assim, por um desses acasos, as 41 mazurkas gravadas por Cor de Groot (ele não gravou as últimas, op.67 e 68, sabe-se lá por quê) são seguidas por uma obra de juventude de Chopin. As Variações sobre “Là ci darem la mano”, para piano e orquestra (opus 2) foram escritas ainda na Polônia, em 1827, sobre um tema da ópera Don Giovanni de Mozart.

A interpretação dessa obra tão pouco tocada fica a cargo do pianista brasileiro Arthur Moreira Lima e da Orquestra Filarmônica de Sofia, na Bulgária. Enquanto a orquestração é leve e mozartiana, Moreira Lima faz uma leitura intensa, não hesitando em levar ao pé da letra as marcações do compositor como “con forza e prestissimo” ou “risoluto“. Nada poderia ser mais diferente do caráter íntimo, familiar, ao pé do ouvido, das mazurkas por Cor de Groot. Essa escolha da Brilliant Classics de juntar esses dois repertórios é ao mesmo tempo estranha, contraditória e interessante. Após o Chopin sofisticado, tocando para amigos da alta sociedade parisiense como Sand e Delacroix e mais algumas condessas e marquesas, o Chopin jovem virtuose dos palcos – um Chopin raro, pois foram poucas as suas apresentações em grandes teatros, ao contrário de Liszt ou Mozart que tocaram concertos com orquestras até perder a conta.

No diário de Clara Wieck (futura Clara Schumann) em 1831 ela anotou: “As Variações op. 2 de Chopin, que aprendi em oito dias, são a peça mais difícil que já vi ou toquei até agora.” Robert Schumann, seu futuro marido, escreveu, no mesmo ano e sobre a mesma obra: “Tirem os chapéus, cavalheiros: um gênio!”

Frédéric Chopin (1810-1849): Mazurkas quase completas / Variações “Là ci darem la mano”, Op. 2

41 Mazurkas: Op. 6, Op. 7, Op. 17, Op. 24, Op. 30, Op. 33, Op. 41, Op. 50, Op. 56, Op. 59, Op. 63
Cor de Groot – Grand Piano Pleyel 1847

Variations On “La Ci Darem La Mano” From Mozart’s Don Giovanni, In B Flat Major Op. 2 For Piano And Orchestra
Arthur Moreira Lima – Piano; Orquestra Filarmônica de Sofia, Dimitri Manolov

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Piano Pleyel (1843) que Chopin tocava na casa da Condessa Natalia Obreskoff. Entre os pertences da condessa, se encontram manuscritos de duas mazurkas assinados pelo compositor

Outra excelente gravação de Chopin em piano de época: este álbum de Lubimov tocando um piano Erard (1837). E no aniversário de Moreira Lima, não deixem de ouvi-lo nas Valsas de Esquina recém-postadas…

E vamos às curiosidade inúteis das cenas da vida parisiense: assim como o Moulin Rouge, a loja da Pleyel, 20, rue Rochechouart, fica a menos de 15 minutos a pé da casa parisiense de George Sand. Esta casa, aliás, hoje é o “Museu da Vida Romântica” – Musée de la Vie Romantique

Hoje é aniversário de 82 anos de Arthur Moreira Lima. Parabéns!

Pleyel

Sergei Prokofiev (1891-1953): Sonata para Piano nº 9, Visions Fugitives, Toccata, Estudos, etc. (Raekallio)

A nona e última sonata para piano de Prokofiev foi composta entre 1945 e 47, poucos anos após as “sonatas de guerra”. Mas é bastante diferente daquelas: mais introspectiva, alternando entre melodias líricas tranquilas e assobiáveis e algumas passagens mais apressadas, ela não tem arroubos de virtuosismo tão impressionantes quanto as sonatas nº 6 e 7. Lembra um pouco as últimas sonatas de Beethoven no sentido de ser uma música mais madura, um pouco difícil de se gostar, mas com muitas recompensas para quem se aventurar. Foi dedicada a Sviatoslav Richter e aparentemente era uma das preferidas dele, que a manteve no seu repertório por muito tempo, junto com as sonatas nº 2, 4, 6, 7 e 8.
Compostas em 1915-1917, as Visões Fugitivas de Prokofiev são peças curtas e poéticas, assim como os Prelúdios de Debussy e os Gitanjali-Hymner de Langgaard, todos eles publicados na mesma década. Mas ao contrário das miniaturas de Debussy e de Langgaard, com títulos poéticos como “A catedral submersa”, “A porta do vinho” ou “Vento sem repouso”, as curtas obras de Prokofiev têm apenas os nomes dos andamentos (“Ridicolosamente”, “Allegretto tranquillo”, “Con una dolce lentezza”…) de forma que elas podem significar o que o pianista e o ouvinte quiserem que elas signifiquem. E a ordem das peças tradicionalmente foi livre: pianistas como V. Sofronitsky, S. Richter, E. Gilels e mais recentemente N. Freire e D. Thai-Son, todos esses selecionaram umas 8 ou 10 dessas peças em seus recitais. Os três primeiros conheceram Prokofiev, então supomos que o compositor aprovava essa seleção que, para alguns puristas, pode parecer estranha.

Sobre os Sarcasmos, op. 17, e os Contos de uma velha avó, op. 31, sejamos sinceros: pouca gente se lembra deles a não ser nesse tipo de integral. Os Estudos são apenas um pouco mais conhecidos. Já a Toccata, op. 11 é uma peça de bravura escolhida por muitos jovens pianistas: V. Horowitz e M. Argerich a gravaram aos 26 e aos 19 anos respectivamente.

Sobre as 10 Peças de Romeu e Julieta, Op. 75, a história é longa e mereceria ser contada em detalhes. Mas vou resumir: essa versão para piano é correlata à 1ª versão do balé, de 1935, jamais encenado por um motivo que chocou o regime soviético: era um Romeu e Julieta alegre e com desfecho positivo em que o casal ia embora dançando, felizes para sempre. Alguém no regime stalinista deve ter achado que o final era uma crítica a fulano ou sicrano… Podemos (ou melhor, não podemos!) imaginar as paranoias que rolavam naquele contexto. Enfim, a obra não foi encenada, o dramaturgo responsável pelo libretto (Adrian Piotrovsky) ficou mal falado e, após outro escândalo com um balé de Shostakovich, foi preso e fuzilado em novembro de 1937. Como dizia o poeta: “Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas.”

Isso para não acharmos que a vida de Prokofiev foi moleza. Mas não esperem aqui uma música pesada e fria como o ar em Moscou: ao contrário de algumas das sinfonias de Prokofiev que expressam uma seriedade maior, aqui o clima é frequentemente saltitante e as interpretações de Raekallio pendem sempre para os andamentos rápidos.

A escrivaninha e demais móveis de Prokofiev nos anos 1940-50

Sergey Prokofiev (1891-1953) – Complete Piano Sonatas, Visions Fugitives, etc. – CDs 3-4 de 4

CD 3
1-4 – Sonata No.9 in C major Op.103: I. Allegretto, II. Allegro strepitoso, III. Andante tranquillo, IV. Allegro con brio, ma non troppo presto
5-8 – 4 Etudes, Op. 2: I. Allegro, II. Moderato, III. Andante Semplice, Presto, IV. Presto Energico
9 – Toccata In D Minor, Op. 11
10-14 – Sarcasms, Op. 17

CD 4
1-20 – Visions Fugitives, Op. 22
21-24 – Old Grandmother’s Tales, Op. 31
25-34 – 10 Pieces From Romeo And Juliet, Op. 75

Matti Raekallio, piano
Original releases: 1988-1999

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Piano Bechstein que pertenceu a Sergey Prokofiev

As fotos nesta postagem são da casa onde Prokofiev viveu de 1947 a 53. Hoje é um museu. Saiba mais em https://www.moscovery.com/sergei-prokofiev-museum/

Pleyel

Sergei Prokofiev (1891-1953): Sonatas para Piano, nº 1 a 8 (Raekallio)

Ao contrário de gente como Dutilleux, Berg, Bacewicz ou Shostakovich, que compuseram apenas uma ou duas sonatas para piano, Prokofiev nos deixou nove sonatas. Ouvi-las em sequência nos diz muito sobre sua trajetória musical.

A 1ª sonata (1907-1909) é praticamente uma sonata de Scriabin composta por Prokofiev. O uso nervoso das dissonâncias e do cromatismo, assim como a forma concentrada em um único movimento, lembra muito as últimas sonatas desse compositor russo 20 anos mais velho que Prokofiev, como a 7ª (aqui) ou a 9ª (aqui). É um Prokofiev que não soa exatamente como Prokofiev, mas não deixa de ser fascinante e é uma pena que pouca gente toque essa sonata de juventude.

A 2ª sonata, estreada pelo compositor ao piano em 1914, já tem várias características que costumamos associar a Prokofiev: o sarcasmo e a presença de algumas passagens mecânicas, meio industriais, típicas daquele período em que Villa-Lobos e Honneger tentavam expressar musicalmente o andar de um trem.

A 3ª e a 4ª sonata foram finalizadas em 1917, pouco antes da 1ª Sinfonia (“Clássica”), mas se baseiam em melodias antigas, daí o subtítulo “de velhos cadernos”. A 3ª, concentrada em um só movimento, é mais agressiva, enquanto a 4ª é mais calma e neoclássica.

A 5ª, também um pouco introvertida e neoclássica, é uma das raras composições para piano solo do período em que Prokofiev circulava entre Paris e os Estados Unidos, fugindo das guerras revolucionárias do período pós-1917. Nesse período, ele se dedicou mais a obras para os palcos: balés e óperas, além dos brilhantes Concertos para Piano nº 3, 4 e 5.

As chamadas “sonatas de guerra”, nº 6, 7 e 8, foram compostas a partir de 1939 (pouco antes da URSS entrar na 2ª Guerra). Prokofiev já vivia em Moscou desde 1936 e essas obras logo alcançaram um imenso sucesso de público e de crítica, junto com a 5ª sinfonia e o balé Cinderella (ambos de 1944). Na 6ª sonata, a valsa lenta (Tempo di valzer lentissimo) é um dos seus momentos mais sublimes e nesta gravação, Raekallio toca menos lento do que outros, como Pogorelich, mas ele faz a valsa se desenrolar com um tempo rubato, uma respiração muito suave, mesmo que não tão devagar.

A 7ª sonata consegue ser, ao mesmo tempo, intelectualmente estimulante e exibicionista, deixando plateias boquiabertas com as proezas pianísticas, sobretudo no último andamento, “precipitato” em 7/8, com harmonias que lembram também o jazz. A 8ª sonata, mais calma e com melodias muito bonitas, começa “andante dolce”, depois “sognando” e apenas no 3º movimento, “vivace”, temos um pianismo exuberante.

O pianista finlandês Matti Raekallio mostra aspectos novos dessas sonatas: não é uma daquelas gravações integrais em que a música soa meio uniforme e mecânica, pelo contrário, as sonoridades são bem variadas, às vezes pesadas e extravagantes, às vezes com um fraseado sutil que lembra a voz humana.

Sergey Prokofiev (1891-1953) – Complete Piano Sonatas, Visions Fugitives, etc. – CDs 1-2 de 4
CD 1
1 – Sonata No.1 in F minor Op.1 – Allegro
2 – Sonata No.2 in D minor Op.14 – I. Allegro, ma non troppo
3 – II. Scherzo. Allegro marcato
4 – III. Andante
5 – IV. Vivace
6 – Sonata No.3 in A minor Op.28 – Allegro tempestoso
7 – Sonata No.4 in C minor Op.29 – I. Allegro molto sostenuto
8 – II. Andante assai
9 – III. Allegro con brio, ma non leggiero
10 – Sonata No.5 in C major Op.38 – I. Allegro tranquillo
11 – II. Andantino
12 – III. Un poco allegretto

CD 2
1 – Sonata No.6 in A major Op.82 – I. Allegro moderato
2 – II. Allegretto
3 – III. Tempo di valzer lentissimo
4 – IV. Vivace
5 – Sonata No.7 in B-flat major Op.83 – I. Allegro inquieto
6 – II. Andante caloroso
7 – III. Precipitato
8 – Sonata No.8 in B-flat major Op.84 – I. Andante dolce. Allegro moderato
9 – II. Andante sognando
10 – III. Vivace

Matti Raekallio, piano
Original releases: 1988-1999

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Retrato de Prokofiev por Anna Ostroumova – Paris, 1926

Pleyel

Grażyna Bacewicz (1909-69): Sonata, Sonatina, Estudos, etc. (Ewa Kupiec, piano)

Grażyna Bacewicz (1909-69) nasceu em Łódź, cidade de onde também vieram Artur Rubinstein e Roman Polanski. Ela foi aluna de Nadia Boulanger em Paris e muito admirada por seu colega polonês Witold Lutosławski (1913-1994).

Bacewicz tocava piano e principalmente violino: foi spalla na Orquestra da Rádio Polonesa de 1936 a 1938. Depois, passou a se dedicar mais à composição: sua obra inclui sete concertos para violino (os cinco primeiros, com ela como solista na estreia), sete quartetos de cordas, dois quintetos com piano… e obras para piano solo, normalmente estreadas pela própria compositora como pianista, exceto as últimas obras (10 Estudos; Pequeno Tríptico), de um período em que sua saúde precocemenete piorou após um acidente de carro em 1954. Após o acidente ela tocou bem menos violino e piano, mas continuou compondo. Suas obras para piano recentemente foram gravadas em um álbum muito elogiado pela crítica:

Ela creditou sua produtividade a ter um ‘motorek’, ou motorzinho, que a mantevinha em atividade. Ela era rápida, enérgica, focada. E embora haja um risco em confundir biografia e música, é difícil não ouvir esse impulso propulsor nos Dez Estudos, executados com convicção pelo pianista sueco Peter Jablonski.
Ele faz parte de uma série de pianistas que deram a devida atenção a Bacewicz, incluindo a gravação de 2011 de Krystian Zimerman, e discos recentes de Ewa Kupiec, Morta Grigaliūnaitė e Joanna Sochacka. (BBC Music, abril de 2022)

Os Estudos aqui gravados lidam com uma variedade de desafios técnicos frequentemente encontrados na música para piano da primeira metade do século XX. Jablonski é sensível ao caráter expressivo inato de cada estudo, destacando a coloração sutil e a vitalidade rítmica.
Bacewicz se expressa de forma sucinta, e Jablonski elucida suas estruturas tensas com clareza e precisão. (Gramophone, 2022)

Ouvi o disco de Jablonski e também ouvi o da pianista polonesa Ewa Kupiec. Gostei dos dois, mas alguns dos elogios dos críticos ingleses (“sensível ao caráter expressivo inato de cada estudo”…) me parecem se aplicar mais ainda à gravação realizada na Alemanha no ano 2000 por Ewa Kupiec.

De fato, Bacewicz tem uma tendência às construções sucintas e a curta Sonatina (1955), gravada por Kupiec (e que não aparece no álbum de Jablonski) é uma das obras que mais me encantam aqui, junto com os Estudos (1955-57) e a Sonata nº 2 (1953). Essa última já apareceu neste blog na interpretação do também polonês Krystian Zimerman, mais majestosa e grandiosa, enquanto Ewa Kupiec acentua mais as dissonâncias. Se vocês quiserem explorar mais a discografia de Ewa Kupiec, saibam que ela gravou os Concertos de Chopin com o maestro Stanislaw Skrowaczewski (1923-2017), teve um duo por muito tempo com a violinista Isabelle Faust e gravou (com Faust e também com orquestras) muita gente do século XX, incluindo Schnittke, Lutosławski, Janáček… Muita música para sairmos daquele arroz com feijão de sempre.

Grażyna Bacewicz (1909-1969): Obras para Piano
1-3 Sonata No. 2 (1953)
4 Scherzo. Vivace (1934)
5 Rondino (1953)
6-8 Sonatina (1955)
9-16 Children’s Suite (1933)
17-19 Drei Burlesken (1935)
20-21 2 Etüden (1955)
22-24 Kleines Triptychon (1965)
25-34 10 Etüden (1956-1957)

Ewa Kupiec, piano
Recording: SWR Kammermusikstudio, Germany, 2000

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Bacewicz com seu outro instrumento favorito. Um charme no olhar e um penteado típico da época…

Pleyel

Almeida Prado (1943-2010): Concertos e Aurora para Piano e Orquestra; Cartas Celestes I (Rubinsky/OFMG; Scopel)

No panorama de obras para piano do século XX que tenho trazido ao blog, depois dos nomes de Villa-Lobos (proibido aqui no blog até que sua música chegue ao domínio público), de Nazareth (com várias postagens recentes: aqui, aqui, aqui) e de Mignone, logo me veio à mente o de Almeida Prado, que andava sumido aqui do blog há uns anos… Então preparei logo uma dobradinha: sua obra mais famosa, Cartas Celestes nº I, e uma série de obras para piano e orquestra recentemente gravadas.

Nascido em Santos/SP, Almeida Prado é um desses compositores que apresentam exigências imensas a todos os músicos da orquestra, ou quase todos. Além, é claro, do que ele exige aqui da pianista Sonia Rubinsky que, após gravar pela Naxos todo o piano solo de Villa-Lobos, aumenta com este álbum sua discografia pela mesma gravadora.

Assim como nas Cartas Celestes, no Concerto para Piano nº 1 (escrito em 1983 por encomenda de Antonio Guedes Barbosa) o compositor não parece preocupado com o suor que os músicos passarão para criar os mundos musicais que ele imagina, e isso é talvez um dos motivos para este concerto ser tão pouco tocado: é muito comum que, ao escolherem música contemporânea para sua programação, as orquestras dêem preferência a concertos mais fáceis ou para formações menores.

A gravação de Sonia Rubinsky com a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, portanto, estreou as obras em disco, brilhando solitária e nos mostrando os vários motivos para outras orquestras e solistas não terem coragem de se aventurar: Rubinsky tira do piano incontáveis sons que exigem uma longa dedicação à exploração dos timbres do seu instrumento. E a orquestra, como já falamos, não leva o acompanhamento na flauta, pelo contrário.

As Cartas Celestes I já foram gravadas por outros grandes pianistas como Roberto Szidon, mas a gravação ao vivo do então jovem pianista Aleyson Scopel em 2008 é tão boa que depois ele seria convidado pela Naxos para gravar a integral das Cartas Celestes para piano. A gravação que trazemos aqui é a primeira, ao vivo. O próprio Almeida Prado descreveu assim a interpretação dessa obra por Scopel: “Saíram diretamente do Céu! Chuvas de meteoros, radiantes constelações, nebulosas resplandecentes, e um vigor transcendental marcaram a genial interpretação deste imenso pianista. Maravilhoso!”

Deixo o compositor seguir na sua descrição da obra:

“Cartas Celestes é das minhas obras a mais tocada, e a mais comunicativa para o público. Composta em 1974, para o Planetário Municipal de São Paulo, foi posteriormente re-escrita. Utilizei 24 acordes diferentes como as 24 letras do alfabeto grego, e com isso os relacionai às estrelas que formam as constelações. Nesta obra procuro retratar o céu do Brasil na Primavera. Para confecção sonora deste grande mural celeste, utilizei os recursos mais extravagantes possíveis e inusitados.
O piano é uma máquina que fabrica as mais variadas cores para os meteoros, as constelações, os aglomerados, as nebulosas, e o êxtase solar final, onde o piano parece explodir de tal intensidade e vertiginosa velocidade no agudo.”

“Ao fazer uma obra, você não pode dizer assim: ‘eu vou compor uma obra-prima’. A obra-prima não é uma coisa premeditada. Ela acontece independente da sua vontade. Por exemplo, As Cartas Celestes número um, que considero a minha obra-prima, aconteceu por acidente. Foi uma encomenda do José Luiz Paes Nunes, em 1974, que impunha condições de rapidez. Me inspirei no livro do Rogério Mourão e fiz uma música de fundo para ser descartável. E a obra ficou. É a mais tocada das minhas peças e a mais celebrada. Eu não tive culpa.” (Almeida Prado)

O pianista José Eduardo Martins, que conheceu bem o compositor e estreou mais de uma obra dele, nos dá mais algumas pistas:
“Esse debruçar maior em França deu-se sob a orientação de Nadia Boulanger e de Oliver Messiaem, dois ícones na música no século XX. Em Darmstadt soube apreender conteúdos de György Ligeti e Lukas Foss. Seria todavia Messiaen o compositor que mais fortemente marcaria a escrita de Almeida Prado, assim como acentuaria no músico santista o olhar místico, pois parte considerável da obra de nosso pranteado autor tem forte conotação religiosa. A inclinação ao sagrado está traduzida nos vários gêneros musicais, orquestra e câmara. Seria entretanto nas criações para coro e sobretudo na vasta produção para piano – seu instrumento eleito – que Almeida Prado revelaria por inteiro esse olhar místico, que perduraria durante décadas até os dias finais.”
Fonte: O blog de José Eduardo Martins.

José Antônio de Almeida Prado (1943-2010):

Piano Concerto no. 1 (1982-83)
1 Apelo I –
2 I. Heróico, épico (variações) –
3 Monólogo (cadência) –
4 Interlúdio –
5 II. Transparente floral
6 III. Granítico, intenso (tocata)
7 Interlúdio: Onírico, entre a realidade e a fantasia –
8 Memorial
9 Apelo II

10. Aurora (1975)

Concerto Fribourgeois (1985)
11 Introduzioni –
12 Recitativo I
13 Passacaglia –
14 Recitativo II –
15 Toccata furiosa
16 Recitativo III
17 Arioso
18 Moto perpetuo

Sonia Rubinsky, piano
Orquestra Filarmônica de Minas Gerais – Fabio Mechetti
Recorded: May 2019, Sala Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil
World Premiere Recordings

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Sonia Rubinsky fazendo a clássica pose de pianista (mão no rosto)

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Almeida Prado: Cartas Celestes I (1974)

1. Pórtico do Crepúsculo
2. Via Láctea
3. Pórtico da Aurora

Aleyson Scopel ao vivo na Sala Cecília Meireles – Rio de Janeiro
9 de novembro de 2008

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Almeida Prado nos anos 1970 (Jornal do Brasil)

Pleyel

Francisco Mignone (1897-1986): 12 Valsas de esquina (Arthur Moreira Lima, piano)

Os pais eram imigrantes da Itália e ele que ajudava a família. Ele começou a trabalhar com dez anos de idade tocando nas ruas para sobreviver.
[…] da composição ele não ganhava dinheiro. O Mignone escrevia pelo prazer de compor, ele não tinha aquele jeito social de levar a música dele para tocar em recital. Ele sentia um grande vazio quando não compunha.

(M.J.Mignone, viúva do compositor, entrevista a Fernando Reis, 2010)

Compostas entre 1938 e 1943, as Valsas de Esquina de Mignone homenageiam as serestas, choros e concertos noturnos improvisados nas esquinas brasileiras. Homenagem que nunca soa nacionalista no sentido da grandiloquência ingênua, pelo contrário, as influências populares passam para dentro da escrita de Mignone com um ar de simplicidade que não é fácil de ser alcançado. Como nos conta o próprio compositor: “essas Valsas de Esquina, que parecem escritas de um jato só, algumas levaram meses até eu conseguir elaborar e tornar simples, sem parecer uma coisa vazia. Foi muito difícil.”

Vejamos também o que Mignone disse sobre as várias interpretações possíveis das suas valsas. O maestro Roberto Duarte relata que uma vez…

cheguei cedo e fiquei a tocar uma valsa dele ao piano, a Oitava Valsa. Ele chegou por trás de mim, não falou nada e, quando acabei, ele bateu no meu ombro: “Bravo! Bravo! Muito bem!” Alguns meses depois, eu chego atrasado e ele estava tocando a mesma Oitava Valsa, completamente diferente da que eu havia tocado. Disse-lhe: “Maestro, noutro dia eu estava tocando essa valsa, o senhor me elogiou, e disse ‘Muito bem. Você tocou muito bem, meu filho’, mas o senhor toca completamente diferente!” E ele disse: “Mas eu sou outra pessoa. Não quero que minhas composições sejam executadas de uma única maneira. Cada um é um intérprete. Se eu quisesse que minhas composições fossem executadas de uma só maneira, teria gravado todas elas e jogado as partituras fora.” Esse era Mignone.

Entre as principais gravações dessas obras, há algumas valsas avulsas por Arnaldo Estrella com um cantabile que ninguém imita. Há também a gravação pelo próprio Mignone, em 1957 pelo selo Festa, LP que recomendamos fortemente que vocês garimpem nos sebos e similares, pois a digitalização hoje disponível no Spotify não foi bem feita. E, finalmente, a gravação das doze valsas por Arthur Moreira Lima: junto com os discos dedicados pelo pianista a Nazareth, aqui fica clara a fluência de Moreira Lima neste idioma muito brasileiro. Abaixo, temos as notas escritas por Luiz Paulo Horta no primeiro lançamento do disco de Moreira Lima em 1982:

A valsa chegou ao Brasil nos tempos de D. Pedro I pelas mãos de um compositor austríaco, Sigismund Neukomm, professor do Imperador (que também compôs as suas valsas); e saiu da Corte para os salões, espalhando-se por todas as camadas da população. Tanto se podia ver um Carlos Gomes escrever uma Valsa de Bravura, para concerto, como um anônimo, certamente mineiro, rabiscar a Saudades de Ouro Preto.

Lá pelo fim do século, a valsa já estava completamente abrasileirada, sentindo a influência do choro e puxando, por sua vez, a modinha para o compasso 3/4. Nas mãos de Nazareth, ela se torna um delicadíssimo retrato da nossa belle époque – música de salão transformada por um artista genial. Nazareth punha um ouvido em Chopin e outro no que estavam fazendo os chorões. E em Nazareth, o Mignone que Manuel Bandeira chamaria “o rei da valsa” encontrou uma de suas primeiras (e constantes) inspirações.

Rua do Ouvidor, Rio de Janeiro (Marc Ferrez, ca.1890)

Mignone tinha 16 anos quando foi premiado em concurso de composição com uma valsa: Manon. Mais ou menos nessa época pôde ver Nazareth numa loja de música, onde o grande artista, que ninguém imaginava ser um gênio, lia à primeira vista as músicas para piano em que os fregueses pudessem estar interessados – isto é, fazia o papel que pertence hoje ao toca-discos. Um pouco mais tarde, Mignone seguiria para a Europa, onde a sua veia italiana ia ser reforçada por anos de estudo em Milão.

Mas antes disso ele foi seresteiro – e assim é que começaram a nascer as Valsas de Esquina. “Como flautista – contou a sua primeira mulher – ele ia pelas ruas da capital paulista, altas horas da noite, tocando chorinhos acompanhado pelos violões e cavaquinhos dos demais companheiros. Isso influiu para que ele, mais tarde, compusesse uma série de valsas, denominadas ‘de esquina’, em que a maneira popular transparece lindamente expressa”.

Vendedor de vassouras em rua do centro da cidade de São Paulo (Vincenzo Pastore, ca.1910)

Mignone dá a sua própria versão: o nome dessas valsas, segundo ele, foi dado por Mário de Andrade, pois “lembram aquelas valsas que, à noite, debaixo dos bruxoleantes lampiões a gás das esquinas, os chorões tocavam em suas serenatas às amadas que, atrás das venezianas ou cortinas, ficavam ouvindo. As esquinas serviam de refúgio, caso aparecesse um parente na rua para afugentar os boêmios perturbadores do silêncio noturno”…

Mignone aproveitou, nessas valsas, modelos da época, e até mesmo a sua experiência de músico popular – quando compunha sob o pseudônimo de Chico Bororó. Mas já na primeira valsa, em dó menor, ele mostra que tinha chegado a um estilo novo, que combina a simplicidade do popular com a sofisticação do clássico. O canto começa na mão esquerda – como nos bordões do violão – o que produz um efeito meio sério, meio brincalhão. Mignone libertava-se da sua fase internacionalista, de todas as paisagens estrangeiras, e voltava a ser um poeta perambulando pelas esquinas.

As doze Valsas de Esquina, compostas nos doze tons menores, são ao mesmo tempo simples e misteriosas. A melodia é simples; mas a harmonia é sutilmente construída.

Francisco Mignone (1897-1986): 12 Valsas de esquina
Valsa Nº 1 em dó menor: Soturno e seresteiro
Valsa Nº 2 em mi bemol menor: Lento e mavioso
Valsa Nº 3 em lá menor: Com entusiasmo
Valsa Nº 4 em si bemol menor: Vagaroso e seresteiro
Valsa Nº 5 em mi menor: Cantando, e com naturalidade
Valsa Nº 6 em fá sustenido menor: Tempo de valsa movimentada
Valsa Nº 7 em sol menor: Moderadamente
Valsa Nº 8 em dó sustenido menor: Tempo de valsa caipira
Valsa Nº 9 em lá bemol menor: Andantino mosso
Valsa Nº 10 em si menor: Lento, romântico e contemplativo
Valsa Nº 11 em ré menor: Moderato
Valsa Nº 12 em fá menor: Moderato – Vivo
Arthur Moreira Lima, piano

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Francisco Mignone, circa 1957

Pleyel

Rued Langgaard (1893-1952): Gitanjali-Hymner, Fantasi-Sonate e outras obras para piano

Nascido em Copenhagen e filho de dois pianistas, Rued Langgaard foi um compositor solitário, idealista, que não pertenceu a nenhum grupo como por exemplo os seus contemporâneos franceses “Les Six” ou os que se juntaram em Viena ao redor de Schoenberg. Langgaard teve lições de contraponto com o compositor Carl Nielsen (1865-1931) por cerca de um mês, mas aparentemente os dois não se entenderam bem e seus caminhos não se cruzariam mais.

Langgaard em Ribe (1951); Abaixo, o órgão da catedral

Aos 18 anos, foi organista assistente em uma igreja em Copenhage e, apenas aos 46, conseguiu um emprego fixo em uma importante e antiga catedral, mas em uma cidade pequena do interior da Dinamarca, onde ele era considerado um músico excêntrico, introvertido, com roupas estranhas e descabelado.

Não que ele necessariamente tenha se importado com o que os dinamarqueses achavam dele. Sua música foi razoavelmente bem recebida na Alemanha, com várias apresentações em Berlim e Karlshue. A principal influência na música para piano de Langgaard parece ser o também alemão Robert Schumann (1810-1856), especialmente em aspectos rítmicos e nas obras compostas de várias miniaturas pianísticas em sequência.

Harmonicamente, porém, a linguagem tonal expandida de Langgaard está mais próxima daquela que utilizavam, no início do século XX, os grandes pianistas-compositores Alexander Scriabin (1872-1915) e Ferruccio Busoni (1866-1924). Ainda assim, a influência do piano de Schumann parece predominar, e falo aqui apenas da música para piano, pois Langgaard compôs 16 sinfonias que pouca gente ouviu, e ainda uma “Música das Esferas” para coro e orquestra. Esta última (Sfærernes Musik), estreada na Alemanha em 1921 e esquecida pouco depois, foi redescoberta em 1968 pelo compositor György Ligeti, então no auge de sua fama como vanguardista inovador. Impressionado com o fato de que várias técnicas da sua própria música microtonal tinham sido utilizadas por Langgaard 50 anos antes, Ligeti disse: “Então, sou um seguidor de Langgaard”. E foi assim que, 16 anos depois de sua morte, o organista da pequena cidade de Ribe (8 mil habitantes) tornou-se um dos grandes compositores dinamarqueses, talvez hoje o segundo mais famoso depois de Carl Nielsen.

Assim como o fazia Schumann, Langgaard nomeou suas obras para piano com títulos poéticos e bastante românticos, como Vanvidsfantasi (Imaginação insana) ou Hél-Sfærernes Musik (Música das esferas do inferno, composta 30 anos após a outra obra orquestral que seria apreciada por Ligeti).

No caso dos Gitanjali-Hymner, Gitanjali – que em Bengali significa “Oferenda Lírica” – é uma coleção de poemas publicados em 1910 pelo poeta indiano Rabindranath Tagore, Prêmio Nobel de Literatura de 1913. Também foi Tagore quem deu a Gandhi o apelido Mahatma (“grande alma” em sânscrito), que muitos hoje supõem ter sido seu nome de batismo. Os títulos dos movimentos dessa obra de Langgaard, como “canção distante” e “silêncio de verão”, são inspirados no poeta indiano.

Rued Langgaard (1893-1952): Gitanjali-Hymner, Fantasi-Sonate, etc.

1-10. Gitanjali-Hymner, efter Tagore [Hinos de Gitanjali, por Tagore] (1918-1920)
I. Din Musiks Glands [Luz da música]
II. Himlen sukker [Estrondos do céu]
III. Den fjerne Sang [Canção Distante]
IV. Sejlfærd [Navegando à vela]
V. Sommerhvisken [Silêncio de verão]
VI. Himmel-Ensomhed [Solidão do céu]
VII. Den hvileløse Vind [Vento sem repouso]
VIII. Tavshedens Hav [O Mar do Silêncio]
IX. Regnfulde Blade [Chuva de folhas]
X. Gyldne Strømme [Córregos Dourados]

11. Fantasi-Sonate [Sonata-Fantasia] (1916)
Molto agitato e con passione

Langgaard tocou órgão desde jovem

12. Nat paa Sundet [Noite sobre o som] (1907)

13. Hél-Sfærernes Musik [Música das esferas do inferno] (1948) Mouvement unique : Efterhaanden vanvittigt Tempo

14-16. Vanvidsfantasi [Fantasia insana] (1914-16, rev. 1947-49)
I. Vanvidsefteraarsnat, II.Efteraarsengel, III. Vanvidsgang

Berit Johansen Tange, piano

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Catedral de Ribe, edifício medieval e provavelmente o mais alto da cidade

Pleyel

Alexander Scriabin (1871-1915): Prelúdios, Poemas, Polonaise (Lisitsa, piano)

No release de imprensa da pianista ucraniana consta o seguinte: Valentina Lisitsa é não só a primeira “Youtube Star” da música clássica; sobretudo, ela é a primeira artista clássica que converteu seu sucesso na internet em uma carreira de concertista nas principais salas da Europa, América do Norte e do Sul e Ásia.

Seu repertório é imenso: já gravou todas as sonatas de Beethoven, todos os concertos de Rachmaninoff, toda a obra de Tchaikovsky para piano… E neste ano de 2022 ela já lançou, por sua nova gravadora, três discos: Scriabin, Ravel/Rach, Chopin.

Neste disco dedicado a Scriabin, Lisitsa passou longe das obras mais conhecidas: nenhuma sonata e nenhum estudo. Ao invés disso, ela escolheu os Prelúdios e Poemas, mas mesmo o poema mais famoso (Op.32 nº 1, favorito de Horowitz e Freire), ela não tocou. Ou seja, um programa raro, cheio de surpresas.

O Scriabin de Lisitsa tem um certo peso, densidade emocional e andamentos pendendo para o lento, o que a coloca em uma tradição de intérpretes russos como Sokolov, Richter, Gilels… Nos prelúdios, por exemplo, esses andamentos se traduzem em uma música muito diferente da de Gieseking (aqui), que gravou os Prelúdios opus 11 com um pianismo suave, apressado e despreocupado, com resultados excepcionais. Aqui com Lisitsa é um Scriabin mais próximo dos acordes de Rachmaninof: batendo como poderosos sinos de igreja.

E aqui – ao contrário de suas gravações completas de Beethoven e Tchaikovsky – Valentina Lisitsa não faz todos os prelúdios, ela cria seu recital escolhendo a dedo os prelúdios e poemas que lhe interessam, como também o faziam Sofronitsky (genro de Scriabin), Horowitz e provavelmente a maioria dos pianistas da época do compositor. Basta lembrarmos que os Prelúdios de Debussy foram sendo estreados em grupos de quatro ou três… (Livro I: Nº 1, 2, 10, 11 por Debussy, 25/5/1910. Nº 5, 8, 9 por Ricardo Viñes, 14/1/1911. Nº 3, 4, 6, 12 por Debussy, 29/3/1911)

Alexander Scriabin (1871-1915): Prelúdios, Poemas, Polonaise

1. 3 Pieces, Op. 2: Prelude No. 2 in B Major 1:06
2. 24 Preludes, Op. 11: Prelude No. 2 in A Minor 2:24
3. 24 Preludes, Op. 11: Prelude No. 4 in E Minor 2:32
4. 24 Preludes, Op. 11: Prelude No. 5 in D Major 1:37
5. 24 Preludes, Op. 11: Prelude No. 10 in C-Sharp Minor 1:18
6. 24 Preludes, Op. 11: Prelude No. 14 in E-Flat Minor 0:49
7. 24 Preludes, Op. 11: Prelude No. 15 in D-Flat Major 2:38
8. 24 Preludes, Op. 11: Prelude No. 16 in B-Flat Minor 2:02
9. 24 Preludes, Op. 11: Prelude No. 20 in C Minor 1:14
10. 4 Preludes, Op. 22: Prelude No. 1 in G-Sharp Minor 1:44
11. 2 Preludes, Op. 27: Prelude No. 1 in G Minor 1:54
12. 3 Preludes, Op. 35: Prelude No. 2 in B-Flat Major 3:40
13. Poème satanique, Op. 36 4:44
14. Prelude and Nocturne for the Left Hand, Op. 9: No. 1, Prelude 3:32
15. Poème, Op. 41 4:23
16. Polonaise in B-Flat Minor, Op. 21 5:59
17. 2 Dances, Op. 73: Flammes sombres 1:53
18. Poème tragique, Op. 34 2:54

Valentina Lisitsa, piano

PS: normalmente gosto de inserir a data da gravação. Neste caso, tenho minhas dúvidas se a gravação é posterior a seu contrato com a Naïve ou se remonta a 2015, quando Lisitsa tocou e gravou muito Scriabin quando do seu centenário de morte. Talvez tenha ficado na gaveta.
PS2: cuidado com a ordem das faixas 15 e 16, em alguns sites o Poema op.41 foi listado como Polonaise e vice-versa.

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Alexander Scriabin por Leonid Osipovic Pasternak (1909)

O autor do Poema do Êxtase não deve nada à escola nacionalista russa, aos “Cinco” [grupo que incluía Mussorgsky e Rimsky-Korsakov]; ele aparece à primeira vista, por seu vocabulário sonoro, como um europeu. É a falha percebida por alguns críticos, que buscam exositmo. Ora, exótico ele é, mas em um outro plano: este europeu refinado ataca as próprias bases da cultura estética ocidental. O “extatismo”, a exaltação mística, o entusiasmo heróico dessa alma bêbada são a negação mesma do espírito realista, do espírito de ordem, de medida e de compromisso ao qual se aspira em Europa…
(trecho de artigo de 1925 do escritor Boris Schlœzer, russo emigrado para a França)

Pleyel

Peggy Glanville-Hicks (1912-1990) e Alan Hovhaness (1911-2000): Concertos para piano (Keith Jarrett)

Este é um daqueles álbuns em que o intérprete é mais famoso do que os compositores. Keith Jarrett foi campeão de vendas desde os anos 1970 com seus álbuns de jazz, tanto os improvisos sozinho ao piano como os álbuns com seu trio americano e seu quarteto europeu. Mas ele também gravou Bach, Mozart, Shostakovich e estes dois concertos compostos em meados do século XX.

Glanville-Hicks

Peggy Glanville-Hicks (29 de dezembro de 1912 – 25 de junho de 1990) foi uma compositora australiana. Também foi crítica musical do New York Herald Tribune. Sua ópera Sappho, composta em 1963 para a Ópera de São Francisco, teria Maria Callas cantando o papel-título da poetisa lésbica grega, mas os empresários rejeitaram o projeto de última hora (em nome da moral e bons costumes?)

Seu “Concerto Etrusco”, para piano e orquestra de câmara (1956), para os meus ouvidos alterna entre momentos interessantes e outros que se parecem com trilha sonora de Hollywood, ou seja, meio previsível… Deu mais vontade de ouvir a ópera Sappho, que finalmente foi gravada em 2012, ano do centenário da compositora.

Hovhaness

Muito menos previsível é o Concerto “Lousadzak” (1944) de Hovhaness, nascido em Massachusetts, EUA, em uma família de origem Armênia. A música Armênia e de outras tradições asiáticas é muito iportante na obra de Hovhaness, como se nota já desde o início orquestral do concerto. O piano demora um pouco para entrar e tem vários momentos tocando sozinho com frases repetitivas e hipnóticas, o que Jarrett tira de letra. A harmonia não segue progressões de acordes: são vários trechos modais sobre a mesma base harmônica, mas sempre com novidades.

20th Century concertos (Jarrett, Davies)
Peggy Glanville-Hicks:
Etruscan Concerto
1. Promenade
2. Meditation
3. Scherzo
Keith Jarrett (p) Dennis Russell Davies (dir) Brooklyn Philharmonic, 1992

Alan Hovhaness:
4. Lousadzak (Coming of Light), op. 48
Keith Jarrett (p) Dennis Russell Davies (dir) American Composers Orchestra, 1989

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Keith Jarrett ficou emocionado, e não foi só ele

Pleyel

Oliver Messiaen (1908-1992): Vingt regards sur l’enfant Jésus (Yvonne Loriod, piano)

Os “20 Olhares sobre o menino Jesus” foram compostos em 1944 e estreados em março de 1945. Portanto, vieram pouco depois do famoso Quarteto composto em um campo de prisioneiros de guerra. Naquele momento, Messiaen já estava de volta em Paris, vivendo toda a ansiedade daquele período de guerra, alguns colegas deviam imaginar que ele faria como Honneger (sinfonia nº 3), Prokofiev (sinfonia nº 5), Shostakovich (sinfonia nº 7) e comporia uma sinfonia grandiosa, talvez uma homenagem aos mortos ou talvez um grande hino à paz antevendo o fim das guerras… Mas ele não fez nada disso: pelo contrário, evitou comentar o dia-a-dia em que vivia e voltou-se para temas espirituais, tanto nos “20 Olhares” para piano solo, estreados por Yvonne Loriod, como nas “Visões do Amém” para dois pianos, estreadas por Loriod e Messiaen dois anos antes, na Paris ainda ocupada pelos nazistas contra os quais ele havia lutado cinco anos antes.

Rembrandt: Adoração
dos pastores 1646

Na década anterior Messiaen já tinha composto um outro ciclo de temática natalina, com diversas cenas ao redor do recém-nascido Jesus: La Nativité (1935) foi sua segunda obra de fôlego para órgão, depois de L’Ascension e antes de Les Corps Glorieux. Em La Nativité, com a rica palheta de timbres do órgão, Messiaen traz personagens que reaparecerão nos “20 olhares”: os anjos, os pastores, os reis magos, o verbo/logos divino (“no princípio, era o verbo…”)

Talvez devido à resposta negativa às referências religiosas por uma parte da crítica e público franceses, no fim dos anos 1940 Messiaen reduz as referências cristãs explícitas na maior parte de suas obras. Mas ele continuaria profundamente religioso: a obsessão do compositor nas décadas seguintes com pássaros e paisagens naturais é, para ele, um permanente fascínio pela criação divina. Viriam assim o “Catálogo de pássaros” (1956-58) para piano solo e obras para piano e orquestra como o “Despertar dos pássaros” (1953), os “Pássaros exóticos” (1956) e “Des canyons aux étoiles…” (1974).

Adoração dos Magos, Rubens, 1618

Voltando cronologicamente para os “20 Olhares”, temos portanto um Messiaen que usa a música para fazer referências a temas religiosos, algo que artistas de vários séculos também fizeram: para ficarmos no menino Jesus, há centenas de quadros famosos com os nomes “Adoração dos Pastores” ou “Adoração dos Reis Magos” (Giotto, Caravaggio, Rubens, El Greco, Rembrandt…) Para pintar essas cenas com música instrumental, Messiaen faz uso de alguns temas que voltam ciclicamente, como o “Tema de Deus” e o “Tema da estrela e da cruz”. E o toque suave da pianista Yvonne Loriod, a mesma que estreou a obra, traz aqui características de um certo pianismo francês muito tributário da famosa frase de Debussy: “é preciso fazer esquecer que o piano tem martelos”. Não significa que tudo seja tocado pianissimo, pelo contrário, há rompantes de muita energia – por exemplo nos graves impressionantes dos movimentos 12 e 16, respectivamente representando o Verbo onipotente e o olhar dos profetas – mas sempre com um cuidado para evitar as sonoridades percussivas, de forma que a música parece sempre flutuar acima do chão. Nesse sentido do cuidado permanente para evitar sonoridades “pesadas” ou “duras” Loriod lembra um pouco o estilo perfeccionista de Michelangeli nos prelúdios de Debussy que reativamos dias atrás.

Yvonne Loriod (1924-2010)

Os “20 Olhares” aparecem neste blog pela segunda vez: a primeira foi na interpretação do norueguês Håkon Austbø, que estudou essas obras com Loriod e também tem muito a dizer. Como sempre, repito aqui: façam as comparações e constatem que as grandes obras merecem ser ouvidas com diversas roupas e sotaques.

Oliver Messiaen (1908-1992): Vingt regards sur l’enfant Jésus
1. Regard du Père
2. Regard de I’étoile
3. L’echange
4. Regard de la Vierge
5. Regard du Fils suer le Fils
6. Par lui tout a été fait
7. Regard de la Croix
8. Regard des hauteurs
9. Regard du temps
10. Regard de I’Esprit de joie
11. Première communion de la Vierge
12. La Parole toute-puissante
13. Noël
14. Regard des Anges
15. Le baiser de I’enfant Jesus
16. Regard des prophètes, des bergers et des mages
17. Regard du silence
18. Regard de I’onction terrible
19. Je dors, mais mon coeur veille
20. Regard de I’Eglise d’amour

Yvonne Loriod, piano
Gravado em Paris, 1973

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Yvonne Loriod, Zubin Mehta, Daniel Barenboim e Olivier Messiaen (Paris, c. 1970)

Pleyel

.: interlúdio :. Freddie Hubbard — 5 álbuns (1960-1963)

.: interlúdio :. Freddie Hubbard — 5 álbuns (1960-1963)

O nosso companheiro de longa data Carlinus tem sido responsável por várias pérolas musicais em tantos anos de postagens no Ser da Música. Em homenagem ao blog recém-sumido-e-ressuscitado, pedi a ele autorização para repostar essa série de cinco álbuns, uma das descobertas que fiz lá no blog dele. São os primeiros cinco álbuns de Freddie Hubbard (1938-2008), lançados pela gravadora Blue Note. Eu, que conhecia Freddie apenas pelos brilhantes solos de trompete no disco Olé Coltrane (1961), baixei tudo correndo.

Desses cinco, meu preferido é o primeiro álbum, no qual o jovem trompetista já chega com um estilo muito particular, melódico, mais hard bop do que free jazz, para mencionarmos algumas classificações que, de qualquer jeito, sempre estão bem aquém do que o jazz de fato é. Nesse álbum de estreia, como classificar a assobiável Gypsy Blue com seu diálogo entre Freddie e o sax de Tina Brooks? Também dignas de nota são as intervenções de McCoy Tyner. No ano seguinte, Freddie e McCoy se juntariam novamente nos álbuns de John Coltrane Africa/Brass e Olé Coltrane.

Também gosto do último disco, Hub-Tones. Ali, nos temas Prophet Jennings (um jazz rapidinho) e Lament for Booker (um slow blues), o trompete de Freddie toca em sofisticado contraponto com a flauta de James Spaulding. Para um ouvinte carioca é impossível não lembrar dos contrapontos do mestre Pixinguinha (1897-1973). Acompanhando Freddie Hubbard, temos ainda alguns jovens talentos que depois se tornariam famosos, como Wayne Shorter e Herbie Hancock. E também alguns que já eram veteranos na época, como os saxofonistas Jimmy Heath e Hank Mobley.

Freddie Hubbard — 5 original Blue Note albums

Tina Brooks (1932-1974)

Open Sesame (1960)
01. Open Sesame
02. But Beautiful
03. Gypsy Blue
04. All Or Nothing At All
05. One Mint Julip
06. Hub’s Nub
Freddie Hubbard – trumpet
Tina Brooks – tenor saxophone
McCoy Tyner – piano
Sam Jones – bass
Clifford Jarvis – drums

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McCoy Tyner (1938-2020) e John Coltrane em 1963

Goin’ up (1961)
01. Asiatic Raes
02. The Changing Scene
03. Karioka
04. A Peck A Sec.
05. I Wished I Knew
06. Blues For Brenda
Freddie Hubbard – trumpet
Hank Mobley – tenor saxophone
McCoy Tyner – piano
Paul Chambers – bass
Philly Joe Jones – drums

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Jimmy Heath (1926-2020)

Hub Cap (1961)
01. Hub Cap
02. Cry Me Not
03. Luana
04. Osie Mae
05. Plexus
06. Earmon Jr.
Freddie Hubbard – trumpet
Julian Priester – trombone
Jimmy Heath – tenor saxophone
Cedar Walton – piano
Larry Ridley – bass
Philly Joe Jones – drums

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Wayne Shorter (1933-) em 1969

Ready for Freddie (1962)
01. Arietis
02. Weaver Of Dreams
03. Marie Antoinette
04. Birdlike
05. Crisis
Freddie Hubbard – trumpet
Bernard McKinney – euphonium
Wayne Shorter – tenor saxophone
McCoy Tyner – piano
Art Davis – bass
Elvin Jones – drums

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James Spaulding (1937-)

Hub-Tones (1963)
01. You’re My Everything
02. Prophet Jennings
03. Hub-Tones
04. Lament For Booker
05. For Spee’s Sake
Freddie Hubbard – trumpet
James Spaulding – alto saxophone, flute
Herbie Hancock – piano
Reggie Workman – bass
Clifford Jarvis – drums

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Freddie Hubbard: “Jazz isn’t like pop, where you sell millions of records with a hit. Jazz is like classical music. If people like you, they’ll remember you and you’ll last forever.”

Pleyel

D. Shostakovich (1906-1975), E. Denisov (1929-1996), S. Rachmaninoff (1873-1943) – Obras para Cello e Piano (Laferrière, Vitaud)

Em um CD de 2005 já postado por PQP, temos uma gravação de referência da Sonata de Shosta para violoncelo e piano, por Martha Argerich e Micha Maisky. O que essa dupla faz na sonata é uma barbaridade! O temperamento fogoso de Martha cai muito bem na obra escrita pelo jovem Shosta em 1934, pra não falar da fluência de Micha – educado em Leningrado e depois aluno de Rostropovich em Moscou – na linguagem do compositor.

Mas hoje temos um outro álbum mais recente, com dois músicos franceses que trazem várias sutilezas, detalhes que passaram quase despercebidos naquela outra interpretação. Por exemplo o canto do violoncelo e o acompanhamento suave do piano no movimento lento (largo) belíssimo que Vitaud e Laferrière conduzem em um andamento mais calmo e sonhador que a outra dupla citada. No 2º e no 4º movimento, temos aquele piano staccato, meio moto perpetuo meio marcha, tão característico de Shosta. Poucos anos depois, ele cairia em desgraça junto ao regime soviético por causa de obras como a ópera Lady Macbeth e o balé O Parafuso (1931), este último encenado apenas um dia e logo banido por seu enredo subversivo: um trabalhador que queria sabotar o maquinário da fábrica com um parafuso. O balé O riacho límpido (1935) – no qual camponeses casados flertavam com bailarinas – também foi proibido e o autor do libretto foi preso e fuzilado. O jovem Shostakovich deu sorte e escapou por um fio.

O repertório escolhido pela dupla francesa tem também a sonata para violoncelo e piano de Rachmaninoff, composta quando este também tinha menos de 30 anos. Cheia de melancolia romântica e melodias notáveis, essa sonata – assim como os Trios Elegíacos de Rach – me agrada mais do que os exageros orquestrais dos concertos para piano. Digamos assim: um piano e um violoncelo açucarados são glicose em uma medida razoável, enquanto uma orquestra inteira assim já é demais para minha saúde. Podem me xingar nos comentários.

Shosta e Denisov em 1953

E entre as duas grandes sonatas temos o conjunto de variações de Denisov sobre um singelo tema de Schubert, tema do Impromptu D.935 nº 2, que só neste ano de 2022 já apareceu aqui no PQPBach nas gravações de Chukovskaya, Lupu e Sokolov. Usem a lupa no canto superior direito para comparar… Também à direita e mais abaixo, o nome de Edison Denisov faz sua estreia aqui. Denisov era mal visto pelo regime soviético assim como seus colegas de geração Schnittke e Gubaidulina. Ou seja: estava em boa companhia, a uma distância segura dos lambe-botas de sempre. Todo ditador tem seus puxa-sacos: me desculpem vocês a digressão, é porque hoje vi o retorno daquele senhor dono de um canal de TV brasileiro, um que sempre sorriu e bateu palma pra ditador, e me lembrei que meus avós – um tiquinho mais velhos que a geração desse puxa-saco brasileiro, de Denisov e de Gubaidulina – sempre desprezaram eSSe senhor. “Muitos se deixaram engambelar por oportunismo” (L.F. Verissimo sobre 64), mas me perdoem novamente por esses longos parênteses, talvez eles tenham a função de explicar que nenhum desses compositores aqui representados deve ser confundido com o regime russo, seja o antigo ou o novo. Este disco não tem nada a ver com essas minhas últimas frases amargas, o Shosta/Rach/Denisov da dupla francesa é puro lirismo e sensibilidade: como um bom vinho rosé, é sutil e complexo sem ser pesado.

Rach preparado para o inverno

Dmitri Shostakovich (1906-1975)
Cello Sonata in d minor, op.40
1 I. Allegro non troppo 11’51
2 II. Allegro 3’13
3 III. Largo 8’04
4 IV. Allegro 4’05
Edison Denisov (1929-1996)
5 Variations on a theme by Schubert 13’36
Sergei Rachmaninoff (1873-1943)
Cello Sonata in g minor, op.19
6 I. Lento. Allegro moderato 13’53
7 II. Allegro scherzando 6’27
8 III. Andante 5’41
9 IV. Allegro mosso 10’35

Victor Julien-Laferrière, cello
Jonas Vitaud, piano

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PS: Em um contexto de joga-pedra-na-geni-russa, Alain Lompech escreveu essas palavras abaixo na revista Classica de Abril/22, aqui mal traduzidas:

Não nos esqueçamos do seguinte: o compositor Dmitri Shostakovich (1919-1975) foi muito mal visto na década de 1970. Ele foi tratado como o compositor oficial do regime soviético. Quando foi lançado “Testemunho: Memórias de Shostakovich, observações recolhidas por Simon Volkov” (1980), alguns comentaristas afirmaram que se tratava de uma falsificação.

Do lado comunista, furiosos com um conteúdo que se sabia correto, assim como no campo dos jornalistas e críticos de música ocidentais que não aceitavam descobrir uma realidade muito diferente das conclusões que eles tiravam absurdamente de uma música que simplesmente não obedecia aos cânones obrigatórios da Segunda Escola de Viena. Nessas páginas, descobrimos um homem petrificado pelo arbítrio e que pensava em apenas uma coisa: compor.

Shostakovich e sua esposa Irina também preparados para o inverno russo

Pleyel

.:interlúdio:. Grateful Dead ao vivo em Paris, 4 de maio de 1972

Em 1967, oito grupos de rock de São Francisco conseguiram algum hype instantâneo ao aparecer no Monterey Pop Festival: Big Brother & The Holding Co., Country Joe & the Fish, the Electric Flag, the Grateful Dead, Jefferson Airplane, Moby Grape, Quicksilver Messenger Service e Steve Miller Blues Band.

The Dead (para os íntimos) eram basicamente uma banda de blues sem um cantor de blues – Pigpen tentou, Jerry Garcia nem tentou. O disco de estreia, de 67, tinha poucos destaques, espetacular apenas em sua uniformidade, e vendeu menos do que qualquer um dos outros grupos citados. Você tem que vê-los ao vivo, é o que todo mundo diz. (Robert Christgau)

Há exatos 50 anos, em sua primeira turnê na Europa, o Grateful Dead fez uma das suas apresentações mais originais e mais reverenciadas pelo séquito de fãs “deadheads”, alguns dos quais acompanhavam a banda nas turnês em que cada show era bem diferente dos outros.

Este é um show ao vivo, sem playbacks ne edições posteriores, com mais de três horas de música. Para os não iniciados na música do Grateful Dead, alguns avisos aos navegantes:

    • Melhor começar pela segunda parte do show: antes da pausa, os blues dolorosos (Hurts me too, The Stranger) e as baladas country (El Paso, Beat it on down the line) são de menos interesse exceto para os especialistas… ou então talvez sejam só para quem nasceu ao norte do México;
    • Após o intervalo, começam as jams mais saborosas: em Good Lovin’, Ron ‘Pigpen’ Mckernan comanda a banda como um grupo de câmara em improvisos livres guiados pelo frontman em tempo parcial (porque a banda nunca teve um cantor em tempo integral, sempre revezaram). As indicações “just keep it nice, easy, smooth…” e “shift gears” (troca de marcha) vão guiando os músicos. Pigpen não tinha a voz de um Howlin’ Wolf ou de um James Brown, mas ninguém imita a forma como ele conduz os músicos (duas guitarras, um baixo, um piano, um órgão e bateria) por caminhos cheios de blues, de mojo* e outras palavras intraduzíveis;
    • Esses improvisos coletivos tomavam direções realmente imprevisíveis e mudavam muito entre um show e outro. Por exemplo essa canção Good Lovin’, neste show em Paris, durou 23:18, enquanto na noite anterior havia durado 16:53; em outros shows da turnê europeia durou apenas 10 minutos;
    • Ainda sobre os improvisos coletivos guiados por Pigpen, um dos mais interessantes de toda a carreira do grupo é Turn On Your Lovelight neste show de 1970, com a participação de Janis Joplin. Pigpen e Janis eram amigos muito queridos e vizinhos em San Francisco;
Janis Joplin e Pigpen
  • Além disso, havia improvisos desses que se ouve mais frequentemente: solos de um instrumento, ou dois se revezando, enquanto a banda seguia uma harmonia e andamento previstos. Por exemplo os solos de gaita e de guitarra que se alternam em Big Boss Man, ou a estrutura de Goin’ Down the Road Feeling Bad, em que um refrão se repete alternando com vários solos dos dois guitarristas;
  • Os membros mais recentes do Grateful Dead em 1972 eram o pianista Keith Godchaux e sua esposa que faz uma participação vocal em duas ou três canções. O piano de Godchaux, mais próximo do jazz, faz uma dobradinha com o órgão Hammond B-3 de Pigpen, bem mais blues;
  • Apesar do nome e do uso de caveiras em suas capas de discos (aqui, uma gárgula parisiense), o Grateful Dead não está nada próximo do heavy metal que então nascia com bandas como Black Sabbath. A guitarra raramente (pra não dizer nunca) usa distorção, o som é mais limpo do que o blues de um Jimi Hendrix;
  • Após os blues de Pigpen, afinal chegamos ao tema do grupo sobre o qual se criou a mística mais forte: Dark Star, cantada por Jerry Garcia. Se no disco Live/Dead, de 1969, havia dois bateristas e era tudo mais percussivo e acelerado, aqui em 1972 em Paris o improviso toma rumos bem mais meditativos, mais minimalistas, com o baixo guiando boa parte do percurso. Sim, este é um daqueles discos ao vivo com solos de baixo e de bateria;
  • O baixista Phil Lesh, que esteve desde a primeira até a última formação do Grateful Dead, é o membro com mais estudos formais. Em seu período de estudante (quando tocava trompete), conheceu o também californiano Terry Riley, além dos compositores europeus Luciano Berio e Darius Milhaud quando estes deram cursos na Califórnia;
  • Em resumo é uma performance ao vivo com espaços para o inesperado e apontando para temáticas muito diversas: jazz no piano e na bateria, blues no órgão hammond e nos solos de guitarra, proximidade dos compositores minimalistas e também da divina Janis Joplin, tudo isso se misturou na região de San Francisco, que sempre viveu um certo Fla-Flu com Los Angeles, considerada pelos primeiros superficial e vendida. Com desprezo por Hollywood, mas ainda falando em nome da Califórnia, o Grateful Dead ao vivo em Paris é isso tudo na mesma noite.

Grateful Dead Live at Olympia Theater, Paris, France, 1972-05-04
Set 1
Greatest Story Ever Told, Deal, Mr. Charlie, Beat It On Down The Line, Brown Eyed Women, Chinatown Shuffle, Playin’ In The Band, You Win Again, It Hurts Me Too, He’s Gone, El Paso, Big Railroad Blues, Two Souls In Communion, Casey Jones

Set 2
Good Lovin’, Next Time You See Me, Ramble On Rose, Jack Straw, Dark Star-> Drums-> Dark Star-> Sugar Magnolia, Sing Me Back Home, Mexicali Blues, Big Boss Man, Uncle John’s Band, Goin’ Down The Road Feelin’ Bad-> Not Fade Away, Encore: One More Saturday Night

Jerry Garcia – lead guitar, vocals
Donna Jean Godchaux – vocals
Keith Godchaux – piano
Bill Kreutzmann – drums
Phil Lesh – electric bass, vocals
Ron “Pigpen” McKernan – organ, harmonica, percussion, vocals
Bob Weir – rhythm guitar, vocals

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*Mojo: Probably of Creole origin, cognate with Gullah moco (“witchcraft”), Fula moco’o (“medicine man”). 1. A magic charm or spell. 2. Supernatural skill or luck. 3. (slang) Personal magnetism; charm. 4. (slang) Sex appeal; sex drive.

Pleyel

Johannes Brahms (1833-1897): 8 Danças Húngaras, 18 Valsas, 11 Variações sobre um tema de Schumann (Jordans & Doeselaar, Piano a quatro mãos)

Depois de Bach e Beethoven, é claro que o pessoal da música historicamente informada ia chegar até o 3º B. Recentemente PQP postou os concertos de Brahms com Buchbinder e Harnoncourt, com instrumentos modernos mas concepção bastante diferente das gravações às quais estamos mais acostumados. Em 2019, András Schiff gravou os mesmos concertos utilizando um piano Blüthner de 1859. E em 2020, dois pianistas holandeses gravaram este disco para o selo belga Passacaille, utilizando um outro piano da marca alemã Blüthner (circa 1867). Essa marca de pianos com sede em Leipzig existe até hoje e é tão respeitada quanto a austríaca Bösendorfer e a alemã-americana Steinway, ainda que esta última predomine no mundo todo por motivos em parte musicais, em parte de publicidade e grana pesada.

Diferença entre um Erard (1908) de cordas paralelas e um Steinway de cordas cruzadas

Nos anos 1860 a Blüthner ainda usava cordas retas, o que dá uma sonoridade ligeiramente diferente para os harmônicos. As cordas cruzadas foram se tornando o padrão no fim do século XIX, pois permitiam acomodar cordas mais longas, o que significava mais ressonância (som mais forte) para o instrumento. Essa obsessão pela potência sonora (Freud explica?) tem a ver com o uso do piano em salas de concerto cada vez maiores. Por exemplo a principal sala de concertos de Leipzig, o Gewandhaus, tinha 500 lugares em sua primeira versão (1781), em 1842 sua versão reformada já acolhia mil pessoas e em 1884 uma nova sala com o mesmo nome tinha 1700 assentos. Após os bombardeios de 1943, o novo Gewandhaus (1977) tem 1900 lugares. Capacidade parecida com os 1739 assentos do Theatro Municipal do Rio de Janeiro quando inaugurado (1909) e com as duas mil pessoas que cabem no Concertgebouw (Amsterdam, 1888) e na Salle Pleyel (Paris, 1927).

Mas o programa de hoje não é para essas grandes salas de concerto, e por isso mesmo ele combina tão bem com a sonoridade mais delicada, mais intimista do piano Blüthner de 1867. Estamos falando de música para piano a quatro mãos, que naqueles tempos era uma ótima oportunidade para juntar lado a lado casais, mãe e filha, amigos, enfim qualquer dupla na intimidade do lar. Tanto Beethoven como Brahms têm uma série de obras publicadas para quatro mãos.

A obra-prima inquestionável de Brahms para piano a quatro mãos, já conhecida da maioria dos nossos leitores, é a série de Danças Húngaras publicadas entre 1869 e 1880. A inspiração na música popular coloca uns toques apimentados, umas pitadas de mistério e de inesperado nesse compositor que normalmente é bem mais civilizado e intelectual. As mudanças de andamento e de caráter são constantes. Vejam o que disse a revista Gramophone de março de 2022:

We have to thank Brahms for the idea of the Hungarian dance as a discrete genre. He published two volumes (for piano four hands) in 1869, and two more in 1880. It’s generally assumed that he took the idea from an 1853 concert tour in which he (aged 20) had accompanied Hungarian violinist Ede Reményi as the latter improvised in Hungarian folk style.

Years later, in the Ungärische Tänze, Brahms sincerely believed that he was arranging folk melodies (which is why he never gave them an opus number). In fact, several living composers later claimed authorship, including Reményi himself. Yet the style hongrois had been adding colour (whether original or not) to western European music for decades, for example in Haydn’s Piano Trio Hob XV:25 (1795) and Berlioz’s ‘Marche hongroise’ (1846). Liszt’s first 15 Hungarian rhapsodies (published 1851-53) had given the style a renewed currency, and it fell to 20th-century musicologists to point out that all this ear-tickling exotica was merely an (often flamboyant) imitation of a single, very particular branch of Hungarian popular music: the stylised dances performed by Roma gypsy  musicians in Budapest cafes and at aristocratic soirées.

O resto do álbum é um repertório menos conhecido de Brahms: as 18 Liebeslieder-Walzer (Valsas-canções-de-amor) foram publicadas originalmente para piano a quatro mãos e quatro solistas vocais. Entre as poucas gravações, há uma famosa, de 1937-38 com Dinu Lipatti and Nadia Boulanger ao piano e quatro cantores. Provavelmente a pedido de seu editor, Brahms arranjou essas valsas apenas para dois pianistas, sem cantores. E também fez um arranjo orquestral de algumas delas, única versão dessas valsas a ter aparecido aqui no blog. Tanto as valsas quanto as Varições sobre um tema de Robert Schumann, op.23, mostram um Brahms mais sério, com andamentos mais constantes. Especialmente nas variações sobre o tema do compositor recentemente falecido, Brahms se mostra muito reverente e respeitoso, seja por causa da ajuda que Robert Schumann deu para alavancar sua carreira, seja em respeito à viúva Clara Schumann, com quem Brahms teria passado muitas noites… tocando a quatro mãos. E vocês pensando em outra coisa, como se esse blog fosse lugar para espalhar boatos!

Até onde sabemos, trata-se da primeira gravação de Brahms a quatro mãos em um piano do século XIX. Se eu fosse você, baixava correndo por causa das Danças Húngaras, mesmo que incompletas. O resto são figurinhas raras pra completar o álbum.

Johannes Brahms (1833-1897): Música para Piano a Quatro Mãos
1-5. Hungarian Dances, WoO 1, No. 1-5
6-16. Variations on a Theme by Robert Schumann in E-Flat Major, Op. 23
17-34. Liebeslieder-Walzer, Op. 52a, No. 1-18
35-37. Hungarian Dances, WoO 1, No. 8, 11, 13

Wyneke Jordans, Leo van Doeselaar – Blüthner grand piano, Leipzig, circa 1867, stored for years in Berlin, now in the Edwin Beunk Collection (Netherlands)

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Piano Bluthner de cordas retas (circa 1867) usado nesta gravação

Pleyel