O instrumento mais próximo do meu coração é o piano, por mais que dezenas de outros disputem minha preferência: flauta, reco-reco, cuíca, órgão, sintetizador… Não tem jeito, desde bebê gorducho tenho fotos em um velho e desafinado piano de armário da família, não um Pleyel francês mas um Bentley inglês. Não me considero um pianista, mas uns dias atrás me sentei em frente a um Essenfelder em um bar praiano e, após algumas cervejas, acompanhei o amigo que tocava violão, tudo no improviso, apenas dando uma olhada nos acordes que ele tocava… posso dizer que não fiz muito feio, até porque a maresia tinha comido várias notas médias então tive uma boa desculpa para me concentrar em terças agudas fortes e extremos graves suaves… E os amigos alcoolizados foram pouco exigentes.
E nesses dias quentes, meu coração tem batido novamente por John Coltrane, mais especificamente pela sua íntima relação com o pianista McCoy Tyner, que tocou com ele de 1960 a 65. Quando Tyner não estava disponível, Coltrane tocava sem piano, com a exceção de uma gravação com Duke Ellington, um ídolo bem mais velho para quem não seria possível dizer não…
McCoy Tyner tinha 22 anos quando começou a tocar no quarteto de Coltrane, mas já estava pronto musicalmente, com todas as suas características: um toque percussivo, agressivo quando necessário, mas harmonicamente muito elegante, preciso, ao contrário da suavidade de um Bill Evans ou da agressividade de um Thelonious Monk, que se dava tanto em termos de peso nas mãos quanto de harmonias (intencionalmente?) caóticas – um crítico chamou Monk de “elephant on the keyboard”! Tyner era agressivo no toque, na dinâmica, dançante e negro nos ritmos (negro demais no coração, diria o Vinícius de Moraes), e ao mesmo tempo com harmonias e arpejos que daria pra confundir com um Chopin.
Outra característica de Tyner é sua facilidade com melodias cantáveis de standards como, nesse ao vivo na Áustria, Autumn Leaves (que Nat King Cole e vários outros gravaram) e Ev’ry Time We Say Goodbye (canção de Cole Porter). Essas duas canções têm melodias tão notáveis que Coltrane e Tyner nem precisam se esforçar tanto, é só seguirem a linha melódica e harmônica, é bola pronta pra chutar pro gol. Esse tipo de invenção jazzística mais contida sobre melodias notáveis ocupa todo o álbum Ballads, gravado em estúdio nos EUA apenas uma semana antes da turnê europeia que rendeu estes registros ao vivo, embora nenhum tema de Ballads apareça aqui.
Já em Bye-Bye Blackbird e My Favorite Things, melodias mais simples e banais, o quarteto faz um jazz bem mais modal, no qual a melodia original é apenas um pretexto inicial para invenções ao sabor do momento. Também é tipicamente modal a composição Impressions, do próprio John Coltrane, e que aparece no concerto na Áustria em um andamento mais lento e relaxado do que na gravação (também ao vivo) de 1961 no álbum de mesmo nome. Irmã de So What, do disco Kind of Blue no qual Coltrane também tocou, Impressions tem a mesma sequência de modos da composição de Miles Davis, que vão se repetindo tendo sempre o piano de Tyner como a cama, o chão.
O outro álbum que trago hoje, gravado na Suécia no mesmo mês de 1962, não tem o show inteiro, apenas dois destaques longos e cheios de improvisos: o standard Bye Bye Blackbird (de novo) e a autoral Traneing in. Lançado em 1981, este álbum ao vivo deu a Coltrane um Grammy póstumo de melhor performance de jazz instrumental.
John Coltrane Quartet: Konserthuset Stockholm, Sweden, 19 November 1962
1 Bye Bye Blackbird
2 Traneing In
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John Coltrane Quartet: Grosser Stefanien-Saal, Graz, Austria, 28 November 1962
1 Bye Bye Blackbird
2 The Inchworm
3 Autumn Leaves
4 Every Time We Say Goodbye
5 Mr. P.C.
6 I Want to Talk About You
7 Impressions
8 My Favorite Things
ORF Radio Broadcast
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John Coltrane – tenor and soprano saxophones
McCoy Tyner – piano
Jimmy Garrison – double bass
Elvin Jones – drums
Um outro detalhe curioso: o quarteto de Coltrane podia brilhar tanto em grandes salas de concerto na Europa com cerca de 2 mil assentos (além dessas de Graz e Estocolmo, o Concertgebouw de Amsterdam e o Olympia de Paris), como também em inferninhos americanos. De forma geral, as grandes salas de concerto nos EUA pareciam menos abertas ao jazz: talvez a única aparição de Coltrane no Carnegie Hall tenha sido em um enorme evento beneficente em 1957 que incluía o saxofonista na banda de Thelonius Monk além de Billie Holiday, etc. Na Filadélfia, terra natal de Coltrane e Tyner, não sei se eles tocaram nas salas onde se apresentava na época a grande orquestra local com Eugene Ormandy, mas sei que em 1963 o quarteto de Coltrane se apresentou algumas vezes no Showboat, localizado no porão de um hotel, com capacidade para 200 pessoas bem apertadas, que pediam drinks aos garçons e certamente fumavam enquanto os músicos tocavam. Longe de mim dizer que esse espaço esfumaçado convenha menos ao jazz do quarteto de Coltrane do que a arquitetura e acústica refinada das salas europeias. Coltrane, Tyner, Garrison e Jones transitavam por esses dois ambientes e isso faz parte da sua grandeza.
John Coltrane’s music is a cry, revolting against the coldness of our world […] Moreover he seems to be the only one who is able to present ballads with the emotional depth of a Hawkins, Webster or Elridge. His playing is characterized by straightforward, harmonically traditional themes that are the basis for ranging note cascades. (Review of a concert in Vienna Konzerthaus, Austria, 1962-11-27, by Willie Gschwedner)
Pleyel
Pure Gold ! Many Thanks ☺
Grandes discos, ótimo texto. Grato, Pleyel! Abrs.