Franz Liszt (1811-1886) – Poemas Sinfônicos, Prelúdios e Fugas para órgão

coverO organista e compositor francês Jean Guillou pode ser comparado ao pianista Glenn Gould em alguns aspectos. É um artista com ideias únicas sobre performance: usa registros de som pouco convencional, fugindo das limitações das interpretações historicamente corretas.

Neste CD aparecem os dois aspectos de Liszt: o virtuose e o místico. Além de ter transcrito dois poemas sinfônicos de Liszt para o órgão, Guillou editou sua versão “sincrética” da Fantasia e Fuga sobre o tema B.A.C.H. Liszt havia publicado a obra em três versões, duas para órgão e uma para piano: Guillou utiliza no órgão alguns dos trechos mais virtuosos da versão para piano, com um resultado extremamente difícil tecnicamente.

A Fantasia e Fuga “Ad nos, ad salutarem undam” se baseia em um coral da ópera Le prophète, de Giacomo Meyerbeer.

A forma “Poema Sinfônico” foi inventada por Liszt: são obras programáticas em um único movimento: associadas a ideias extra-musicais derivadas da literatura, da pintura, da natureza, etc. Liszt acreditava na unidade das artes.

Os dois poemas sinfônicos escolhidos por Guillou evocam personagens heroicos da Grécia antiga, extremamente místicos: Prometeu, ao ensinar o uso do fogo, permitiu que homem ameaçasse os deuses. Orfeu, além de inventar os mistérios de Dionísio – cultos em que o uso do vinho levava a um estado transcendental e místico – era músico e poeta, tocava lira, foi ao mundo dos mortos e voltou. Prometeu é representado por Liszt de forma titânica, enquanto a harpa, sucessora moderna da lira, tem destaque na orquestração original de Orfeu, transcrita para o órgão por Guillou de forma bastante original. Finalizo com dois textos sobre os personagens gregos:

Conta a lenda que Prometeu, após ter roubado o fogo do Olimpo para presenteá-lo aos mortais, foi punido por um Zeus furibundo e vingativo. Os suplícios que Zeus aplica a seus desafetos são um manual prático de crueldade e sadismo e com Prometeu, o ladrão do fogo, a fúria divina também se manifesta em todo o esplendor de sua violência. O titã transgressor é acorrentado por Hefesto a uma rocha, para em seguida ser submetido a uma tortura infinda: uma águia almoça todos os dias o seu fígado, em carne viva, e a cada novo dia o fígado se regenera, sendo novamente devorado. Este mito grego é um daqueles que teve mais profundas repercussões na história da cultura – tendo sido material inspirador da dramaturgia grega clássica (a Prometeu era dedicada uma trilogia trágica de Ésquilo, apenas parcialmente conservada), da poesia (com destaque pros versos de Percy Shelley e Goethe), da pintura (inesquecíveis as imagens de Peter Paul Rubens e Dirck van Baburen) etc.

Também é Prometeu quem Hans Jonas invoca ao iniciar esta obra crucial da filosofia do século XX, O Princípio Responsabilidade: “O Prometeu definitivamente desacorrentado, ao qual a ciência confere forças antes inimagináveis e a economia o impulso infatigável, clama por uma ética que, por meio de freios voluntários, impeça o poder dos homens de se transformar em uma desgraça para eles mesmos. A tese de partida desse livro é que a promessa da tecnologia moderna se converteu em ameaça…”

Ora, Hans Jonas (…) reflete fundamentalmente sobre o efeito da tecnologia sobre as civilizações e com a imagem do Prometeu desacorrentado põe em evidência o perigo, o risco, a ameaça, de um poder titânico, desenfreado, que pode exagerar na dose de seu intervencionismo dominador e transfigurador. O filho do Prometeu desacorrentado é o Antropoceno. (…)

Já que pesa sobre nós, que vivemos na época do Prometeu desacorrentado, a “ameaça de um futuro terrível”, devemos ser prudentes e assumir o dever irrecusável de responsabilidade diante do futuro da vida. Um dos maiores problemas, porém, é que “aquilo que não existe não faz reivindicações”, como escreve Jonas pensando nas futuras gerações, cuja voz ainda não ouvimos mas que nossa conduta presente pode estar lesando. Em nossas escolhas e ações, individuais e coletivas, devemos respeitar o “direito daqueles que virão e cuja existência podemos desde já antecipar”. Devemos ouvir, desde já, as vozes daqueles que ainda estão por nascer. A ética, como formulada por Hans Jonas, precisa considerar “a possível acusação de nossas vítimas futuras”.

(Do site A casa de vidro)

Orfeu é uma figura obscura, mas interessante. Alguns sustentam que ele era um homem de verdade, outros que ele era um deus ou um herói imaginário. Tradicionalmente, ele veio da Trácia, como Dionísio, mas parece mais provável que ele (ou o movimento associado ao seu nome) tenha vindo de Creta, com influência do Egito.

Qualquer que tenha sido o ensinamento de Orfeu (se ele existiu), o ensinamento dos órficos é bem conhecido. Eles acreditavam na transmigração das almas; eles ensinaram que a alma poderia alcançar felicidade eterna ou sofrer tormento eterno ou temporário de acordo com o seu modo de vida aqui na Terra. Eles buscavam tornar-se “puros”, em parte em cerimônias de purificação, em parte evitando certos tipos de contaminação. Os mais ortodoxos entre eles se abstinham de comida de de origem animal, exceto em ocasiões rituais.

(Bertrand Russell)

Liszt by Jean Guillou
1. Symphonic Poem “Prometheus” S.639
2. Prelude and Fugue on B.A.C.H., Syncretic Version S.260
3. Symphonic Poem “Orpheus” S.638
4. Prelude and Fugue on “Ad nos, ad salutarem undam” S.259

1-3: Órgão Kleuker (1978) de Notre-Dame-des-Neiges, L’Alpe d’Huez, França
4: Orgue Marcussen (1973) da Laurenskerk, Rotterdam, Holanda

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Prometeu por Peter Paul Rubens (1577-1640)

Pleyel

3 comments / Add your comment below

  1. Voilà qui me rajeunit. Quant j’étais étudiant à Lyon, j’ai eu la chance d’assister à la série des concerts de son Intégrale de l’oeuvre pour orgue de Bach.

  2. Apesar de ser um amante da música sacra, sempre detestei músicas de órgão (sacras ou “profanas”). As únicas que algum dia me agradaram foram a Toccata e Fuga de Bach e a Fantasia em F menor de Mozart.
    Porém, mordi minha língua com esta música aqui. Quase morri de asfixia de tanto que me faltou o ar no Preludio e Fuga B.A.C.H.!
    Não conhecia Guillou, que monstro! Vou procurar mais trabalhos deste cara, estou extasiado com isso, nunca imaginei ser possível fazer o que ele faz aqui!

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