Há uma fábula de Esopo sobre a gralha (parente do corvo) que se enfeita com penas caídas dos pavões. Tadinha, achou que se tornaria pavão mas ficou sozinha no mundo. Deixou de ser gralha e não chegou a ser pavão, conseguindo apenas o ódio de umas e o desprezo de outros (Tradução de Monteiro Lobato). Na versão de La Fontaine, o poeta aponta no final que ele está se referindo aos plagiadores, que vão pegando no chão as plumas que outros deixaram cair.
Mas talvez gregos e troianos estivessem ambos errados, talvez a imitação do Outro não seja apenas pensável, mas indispensável. Como nos ensina Viveiros de Castro, a ideia greco-romana-ocidental de cultura projeta uma paisagem de estátuas de mármore, rígidas e fixas, e não de árvores ou qualquer outro ser vivo que muda o tempo todo.
Poucas vezes nos damos conta de que as composições mais famosas de Ernesto Nazareth, como Odeon e Fon-Fon, foram publicadas com o subtítulo “tango” ou “tango brasileiro”. O choro aparece tardiamente. É o tango, esse gênero argentino, que por vias tortas vai servir de nome, um tanto estranhamente utilizado, para a música de Nazareth, que evidentemente não se limita a parodiar o “verdadeiro” tango.
Há também, neste disco de Nazareth gravado pelo gaúcho Miguel Proença, um “Tango Estilo Milonga”, que se puxarmos bastante os fios das raízes, está no mesmo subsolo da Tonga da Mironga do Kabuletê (Vinicius de Moraes e Toquinho). E há umas valsas, entre elas, “Brejeira”, valsa brasileira extraída do tango Brejeiro, pelo próprio autor (como consta no topo do manuscrito autógrafo). Estima-se que foi composta na década de 1920, provavelmente para ganhar uns trocados pois Brejeiro era seu sucesso de maior vendagem e os direitos autorais tinham sido vendidos à editora.
Ao mesmo tempo, Nazareth era um grande apreciador de Chopin. Francisco Mignone contava um causo de quando o pianista Arthur Rubinstein estava no Rio de Janeiro e “pediu para o Nazareth tocar alguma coisa. Nazareth sentou-se ao piano e começou a tocar Chopin. Ele queria tocar Chopin para o Rubinstein. Foi uma luta convencê-lo a tocar os Tangos Brasileiros. O Rubinstein apreciava vê-lo tocar. Ele tocava em geral lento. Todo mundo tocava depressa, ele tocava bem devagar os Tangos. O que nós tocávamos com um certo vigor, certo entusiasmo, nele era pacato.”
Em um outro relato sobre a mesma noite, Rubinstein teria dito, obviamente em francês: “ – Não sr. Nazareth, estas aqui eu também toco… O que eu quero ouvir são aquelas músicas que o senhor estava tocando lá no cinema!”
Em uma outra história que também mostra a importância de Chopin na imaginação de Nazareth, quando este já era um senhor viúvo, em uma fase bem menos alegre do que o Nazareth que gostamos de imaginar, ele assistiu a um recital de Guiomar Novaes tocando Chopin em 1930. A pianista Maria Alice Saraiva narra que, durante o recital, ele “foi acometido por uma crise de choro que, não conseguindo controlar, viu-se obrigado a sair do Municipal para evitar ainda mais constrangimentos. Ao deixar o teatro, pegou o primeiro bonde que viu pela frente; nele ficando durante horas, de uma estação final a outra. Quando chegou em casa, muito além do horário previsto, o maestro encontrou seus familiares bastante preocupados, e ainda mais ficaram ao vê-lo com a fisionomia transtornada, olhos inchados de tanto chorar e repetindo sem parar as seguintes palavras:
– Por que eu não sou uma Guiomar Novaes?… – Por que eu não fui estudar na Europa?… – Se eu tivesse ido, eu seria uma Guiomar Novaes!…”
Aqui temos o grande conflito entre “vocação” e “ambição” de Ernesto Nazareth. Teria Nazareth ambição de ser um compositor/pianista de concerto enquanto que sua vocação era a de um compositor/pianista popular? O conto Um Homem Célebre, de Machado de Assis, serve de pano de fundo: está claro que Nazareth alçou vôos mais altos que o personagem Pestana do conto de Machado, já que não se resumiu a um compositor de polcas de sucesso instantâneo, tendo na verdade criado uma verdadeira revolução na linguagem pianística da música brasileira, que teve ecos muito claros em Villa-Lobos e respingou até os dias de hoje. Porém, como delineou Cacá Machado:
“(…) diferentemente de Pestana, cujo drama entre a ambição e a vocação sugere uma tensão em estado de aporia, Nazareth teve de tudo: sucesso, celebridade e glória. Mas morreu com a sensação de que não tinha nada”. (Citado aqui)
Talvez os grandes gênios artísticos brasileiros sejam esses que reproduziram de forma original um conjunto de contradições entre várias “Ideias fora do lugar”. A expressão é de Roberto Schwarz. Ele diz que, nos brasileiros mais ingênuos, que não sabem espremer esse limão para fazer uma limonada, a reprodução de ideias estrangeiras em sentido impróprio aparece como tagarelice, submissão ridícula, servilismo, puxa-saquismo (“Adoramos Coca-Cola, Disney, jeans”, disse um certo ministro em visita aos EUA). Mas nos artistas mais finos – e aqui é impossível não pensar em Machado de Assis e em Nazareth – essa conflito entre as ideias e o lugar pode se transformar em arte da mais sutil. Estes últimos são os que se tornam universais ao falarem das esquisitices da sua vila.
O pianista Miguel Proença gravou muita música brasileira – Nazareth, Villa-Lobos, Nepomuceno, Krieger… – mas, tendo tido a oportunidade de conhecê-lo, afirmo que ele é um chopiniano de coração, como Nazareth. Aliás é curioso que entre 1939 e 1943 tenham nascido tantos grandes pianistas brasileiros, todos eles com uma profunda ligação com a música do polonês: Artur Moreira Lima, Antonio Guedes Barbosa, Nelson Freire e Miguel Proença. Este último gravou menos Chopin, certamente eu não o colocaria acima dos outros três, mas ele merece estar na mesma frase, o que já é um grande elogio. Como Moreira Lima, ele viajou muito pelo Brasil, tocando Villa-Lobos e Chopin em quase todos os 26 estados e no distrito federal.
A interpretação de Proença, já a partir do repertório selecionado (valsas lentas, meditações, um “1º Nocturno de Ernesto Nazareth” que acabaria sendo o único…) mostra o lado chopiniano do compositor, muito mais do que o Nazareth mais sorridente e tributário dos ritmos populares brasileiros. Como contraponto, deixo para vocês a recomendação de ouvirem o Nazareth de Maria Teresa Madeira, um tango brasileiro de pés descalços e com samba no pé, muito diferente do toque mais clássico de Proença. Nascida na Lapa e criada em Nova Iguaçu (RJ), Madeira é a única até hoje que gravou a integral de Nazareth, recomendo que ouçam no Tidal, Spotify e similares para lhe render uns trocados que sempre caem bem…
Ernesto Nazareth (1863-1934) e Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993) – Obras para piano
Ernesto Nazareth:
1. Confidências (Valsa, 1913)
2. Fon-Fon! (Tango, 1913)
3. Elegantíssima (Valsa Capricho, 1926)
4. Brejeira (Valsa Brasileira, ca.1920)
5. Cruzeiro (Tango, 1926)
6. Noturno (1932)
7. Maly (Tango, 1920)
8. Mágoas (Meditação, ca.1918)
9. Arreliado (Tango, ca.1920)
10. Lamentos (Meditação Sentimental, ca.1918)
11. Paraíso (Tango Estilo Milonga, 1926)
12. Cardosina (Valsa, 1905)
13. Resignação (Valsa lenta, 1930)
14. Elegia (para Mão Esquerda, ca.1922)
15. Gaúcho (Tango brasileiro, 1922-32)
Camargo Guarnieri:
16. Valsa Nº 10 (1959)
17. Dança Negra (1946)
Miguel Proença, piano
Pleyel
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A obra completa de Ernesto Nazareth foi gravada entre 2014 e 2015 por Maria Teresa Madeira e compreende doze CDs. Um trabalho minucioso e de alta qualidade que lhe rendeu vários prêmios. Ainda está disponível para compra no site da pianista (www.mariateresamadeira.com.br).
Recomendo!
Maravilha, belo texto!