Cantata BWV 4 & Cantata BWV 80 – J. S. Bach – Gesualdo Consort

Cantata BWV 4 para o 1º dia da Festa de Páscoa
Cantata BWV 80 para a festa da Reforma (31 de outubro)
Johann Sebastian Bach (1685-1750)

Captura de Tela 2017-09-26 às 18.10.04Dia desses eu, monge Ranulfus, quis mostrar a um amigo um “aleluia” que considero muito mais exuberante que o famosíssimo do “Messias” de Handel: o do final da 1ª estrofe da Cantata 4 de Bach. Saí a procurar no YouTube uma versão com algum coral volumoso, pois me parecia mais apropriado, quando topei com esta onde o quarteto de solistas faz ele mesmo as partes corais. Resolvi dar uma espiada bastante desconfiada e aí… pimba: fui fisgado!

Isso mesmo, senhores: viciei desavergonhadamente. Passei a OUVER várias vezes por dia; parar no meio do serviço para uma dose; faz quase uma semana, acordo no meio da noite com os clamores do tenor ou do baixo que proclamam a derrota vergonhosa da morte… e o surto não cede. Ainda bem que o amigo Avicenna, apesar ser um cientista muçulmano, como todos sabem, veio em socorro do monge, tomando providências no sentido de espalhar o surto numa população maior, para ver se arrefece um pouco nesta pobre e deliciada vítima. Funcionará? Ou terminará todo mundo igualmente doido?

Enfim: temos aqui dois fantásticos exemplos das chamadas “Choralkantaten” do pai do PQP – com o que não se quer dizer que sejam cantadas por um coral no sentido de conjunto de vozes, e sim que sejam inteiramente baseadas em um coral no sentido de hino luterano – e aqui em sentido duplamente literal: tanto a letra quanto a melodia dos hinos-base das duas cantatas estão entre as dezenas de autoria do próprio Lutero, sendo sem dúvida o mais conhecido o da Cantata 80, “Ein feste Burg ist unser Gott” (usualmente traduzido em português como “Castelo forte é nosso Deus”), que no século 19 o poeta Heinrich Heine chamou de “A Marselhesa da Reforma”. Reforma que, a propósito, completou seus 496 anos neste 31 de outubro (ontem), o que seria um bom pretexto para esta postagem – caso ela precisasse de algum!

Não bastasse, são exemplos de dois tipos diferentes de Choralkantaten: a de nº 80 traz material temático complementar, inventado pelo próprio Bach – e por belíssima que seja (gosto especialmente do solo de soprano, 4º movimento), não a comentarei mais. Quem quiser o texto original e uma boa tradução ao inglês acha aqui.

Confesso que a Cantata 4 me fascina mais: não existe nela uma única frase melódica que não seja derivada da melodia do hino, o que resulta numa combinação da textura contrapontística bachiana com uma atmosfera muito mais antiga – talvez possamos dizer “gótica”, com todas as ressonâncias que essa palavra ganhou desde a época do Romantismo – para o que colabora decisivamente o tema: a Morte, representada mais ou menos como um tirano, e sua derrota por uma espécie de herói de cavalaria chamado Cristo. Cada uma das 7 estrofes repete um trajeto da escuridão e opressão para a luz e a vitória, culminando em seu próprio “aleluia”. (Texto e versão inglesa aqui).

E aqui sugiro que vocês não deixem de apreciar o vídeo desta realização do Gesualdo Consort de Amsterdã. Uma, pela própria beleza dos instrumentos, como o “violone” que nós chamaríamos de contrabaixo, e os 3 trombones e o corneto que reforçam as vozes nas partes corais – este último um fantástico instrumento de madeira preta, com buracos como a flauta doce, tubo cônico como um sax soprano, bocal como um trompete, e o som mais doce que já conheci na Terra – de uma doçura dourada como mel.

Mas, além disso, pelo reforço que a imagem da atuação física dos cantores traz aos sons, que por sua vez são como gestos muitas vezes dramáticos no mundo do Imaginário – como nos versos 4-7 do solo do tenor, que dizem que Cristo “tomou da morte sua jurisdição e prepotência, não deixou NADA (NICHTS – pausa dramática) senão uma aparência de morte: seu ferrão, ela o perdeu”. Ou no verso 7 do solo do baixo: “der Wüüüüür…ger [o carrasco] pode nos não!… não!… não!… não mais fazer mal”. Sem falar do tocante dueto logo após o coro inicial – onde a barba do contralto-contratenor traz um contraponto hoje em dia inusitado às alturas por onde passeia sua voz.

Apesar de concebida para a Páscoa, a Cantata 4 me parece extraordinariamente adequada para amanhã, Dia de Finados – e assim esta nossa postagem conjunta se equilibra aqui, entre Finados e Reforma… junto com Todos os Santos.

Palhinha: veja a integral, com 6 minutos de preleção em holandês e uma peça em órgão de 4 minutos (Koraalbewerking ‘Ein Feste Burg ist Under Gott’ BWV 720 (orgel solo), não presentes nos links abaixo para download.

(1 a 8) Cantata BWV 4 para o 1º dia da Festa de Páscoa:
I. Sinfonia
II. Chor Versus I – Christ lag in Todesbanden
III. Duett (Sopran, Contralt) Versus II – Den Tod niemand zwingen kunnt
IV. Arie (Tenor) Versus III – Jesus Christus, Gottes Sohn
V. Chor Versus IV – Es war ein wunderlicher Krieg
VI. Arie (Bass) Versus V – Hier ist das rechte Osterlamm
VII. Duett (Sopran, Tenor) Versus VI – So feiern wir das hohe Fest
VIII. Choral Versus VII – Wir essen und leben wohl

(9 a 16) Cantata BWV 80 para a festa da Reforma (31 de outubro):
I. Chor – Ein feste Burg ist unser Gott
II. Duett (Sopran, Bass)
III. Rezitativ (Bass) – Erwäge doch, Kind Gottes, die so grosse Liebe
IV. Arie (Sopran) – Komm in mein Herzenshaus
V. Choral – Und wenn die Welt voll Teufel wär
VI. Rezitativ (Tenor) – So stehe
VII. Duett (Contralt Tenor) – Wie selig
VIII. Choral – Das Wort, sie sollen lassen stahn

Gesualdo Consort – 2012

Dorothee Mields, soprano
Terry Wey, alto (contratenor)
Charles Daniels, tenor
Harry van der Kamp, baixo
Pieter-Jan Belder, direção geral e cravo
Leo van Doeselaar, órgão
Gesualdo Consort Amsterdam o.l.v. Harry van der Kamp
Musica Amphion o.l.v. Pieter-Jan Belder e Rémy Baudet

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
MP3 320 Kbps – 101,6 MB

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
FLAC – 201,6 MB-44,0 min
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Boa audição.

Captura de Tela 2017-09-26 às 18.11.00

 

 

 

 

 

 

 

Texto – Monge Ranulfus
Lay-out & Mouse Conductor – Avicenna

8 comments / Add your comment below

  1. Realmente essa interpretação tem uma clareza, é talvez a ideal pra ouvir acompanhando a letra e os significados. Mas musicalmente eu não troco os coros da dupla Harnoncourt/Leonhardt, com garotinhos pré-púberes cantando as partes soprano, por nada.

    Esquecendo um pouco a música, é impressionante como as igrejas da Holanda são quase laicas… Nessa aí em Den Haag (Haia) não se vê nenhuma estátua de santo (consequência óbvia da reforma luterana), quase nenhum vitral… Só essas paredes altas de madeira… Vi um concerto numa igreja em Amsterdam e a atmosfera pouco religiosa é algo que não vi em nenhum outro país!

    1. Opa… só agora eu reparei que a lista das faixas traz a palavra latina “versus” no sentido de “estrofe”. Então surgiu uma confusão de nomenclatura: eu escrevi “verso” no sentido usado em português hoje: neste sentido, cada LINHA de uma estrofe é um verso.

      Então quando eu disse “no verso 7 do solo do baixo”, queria dizer: na LINHA 7 do “versus V” (repare: V, não VI) – que para piorar é a FAIXA 6, movimento VI da cantata.

      Confusão dos diabos, pra compensar um pouco a sublimidade da música… hehe – mas o importante é que em algum ponto da cantata a palavra está lá!

  2. Obra maravilhosa realmente,especialmente a BWV 80 “Ein’ feste Burg ist unser Gott” que me era desconhecida apesar de eu ser um grande amante das obras bachianas.A propósito, fui procurar outras versões na internet e me deparei com a do Karl Richter que também é espantosa,então se vocês tiverem em mãos essa versão ficaria muito grato com a postagem no site,já que não encontrei um lugar para baixa-la em boa qualidade.
    Parabéns pelo trabalho!

  3. Onde está o Avicenna, alí tem coisa boa! Não vos preocupeis com o vosso faro cambalente. Deixai por conta dele.
    Obrigado semi novo…..
    manuel

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