Se daqui a mil anos ainda houver mundo e algum curioso arqueólogo musical se dignar a lançar um perlustro sobre estes nossos tempos, verá que a velha ceifadeira tem feito gordas colheitas na seara musical. Se foram as pessoas, todavia, os nomes e obras embotam a prisca foice. ‘Ars longa vita brevis’, parafraseou Jobim sobre Hipócrates. Nosso gigantesco Arthur Moreira Lima, Quincy Jones, Osmar Milito, Leny Andrade, David Sanborn, o compadre Hélio Gazineo, meu professor o pianista Odeval Mattos; Manuel ‘Guajiro’ Mirabal, Agnaldo Rayol, Sergio Mendes… Este último um formidável músico que soube estar na hora e lugar certos – e permanecer no lugar certo. Tanto que construiu seu ninho nas plagas ideais para cultivar e disseminar seu trabalho, longe das limitações culturais de Pindorama, nos domínios do bode velho Tio Sam. Esta é uma narrativa que iremos aqui fantasiar para que se transfigure através do lúdico, afinal, nossa vida, com um pouco de verniz mitológico, se afigura uma saga de Tolkien – quem, ao longo dos dias, não encontra um dragão e um demônio, uma fada um príncipe, um mago e uma bruxa, um paraíso e um abismo?
Numa ensolarada manhã na década de 60, na cantina do Marshall College em Yale, o Professor Henry Walton Jones Jr., PHD em História e Arqueologia, após conseguir driblar uma chusma de alunos que o emboscavam atrás das notas do último seminário sobre a civilização Asteca, era abordado em meio ao seu café batizado com conhaque por um atarracado e simpático brasileiro de chapéu panamá branco:
Dr. Jones? ‘Yes?’ Me permitiria uma breve conversa? ‘Você é aluno de que turma?’ Não sou aluno, sou pianista. ‘Oh, yes? Sabe, toquei saxofone soprano na juventude! He he he.’ Que bom! Veja, soube que o Sr. nas horas vagas, entre uma aventura e outra, e as aulas, é um excelente carpinteiro! ‘Well, well… digamos que hoje em dia é um hobby.’ Bem, gostaria de contratá-lo para construir meu estúdio em LA! ‘Well, creio que não seria possível, ando muito atarefado em busca de arcas perdidas, caveiras de cristal, cálices sagrados e afins…’ Eis a questão, não se trata apenas de carpintaria. Para construir meu estúdio é preciso encontrar os alfarrábios mágicos de Jobim e de Carlos Lyra, uma donzela de grande beleza que habita as areias de Ipanema, os ritmos e harmonias ancestrais transmutados pelos encantos do jazz de Johnny Alf… Em suma, uma aventura! ‘Gostei da garota. Me interessa. Quando começamos?’
Foi assim que Indiana Jones ajudou a construir o estúdio de Sergio Mendes na Califórnia. Sergio, que permaneceria num certo ostracismo durante anos, todavia, protegido da ingratidão cultural de sua pátria para com o talento de tantos nomes de nossa história musical chamada popular.

“Sérgio Mendes, fluminense (nascido em Niterói), se foi em setembro (06/09/2024), aos 83 anos, em Los Angeles. Sérgio contou – e mostrou – uma foto do ator Harrison Ford em seu estúdio, quando ainda era carpinteiro, aos 28 anos. No fim de 1960, o futuro astro hollywoodiano construiu o estúdio do músico brasileiro em LA – foi o seu primeiro emprego na área. “Sou muito grato ao Sérgio. Ele me encomendou o serviço e se esqueceu de perguntar se eu já havia feito antes algo do gênero. Felizmente ficou legal, disse Ford há alguns anos.”
“Antes de Han Solo, havia um carpinteiro chamado Harrison Ford. E aqui está ele, com sua equipe, no dia em que terminou de construir meu estúdio de gravação, em 1970. Obrigado, Harrison! Que a força esteja com você…, disse Mendes ao publicar a foto em uma rede social, em 2015.”
“Sérgio Mendes foi o brasileiro que mais gravações emplacou no Top 100 das paradas americanas (14, ao todo). Destacam-se: “Mas que nada”, um 47º lugar em 1966; a “Olympia”, um 58º em 1984; em 2020, lançou o doc “Sergio Mendes: no tom da alegria (in the key of joy)”, que vai da infância em Niterói à consagração brasileira do Rock in Rio em 2017, com depoimentos de nomes como Quincy Jones, Pelé, e… Harrison Ford.”
E eu nessa conversa? Well… recentemente, numa mesa de bar, indaguei a um amigo, no decurso de uma conversa ‘cabeça’, se ele vira o último filme do Indiana Jones. Eu já esperava a estranheza, disfarçada, ou relevada pelos vapores do álcool e da amizade. Sim, sou fã. Talvez vi mais vezes Riders of the Lost Arc do que meus avós a Ben Hur, Sansão e Dalila e O Manto sagrado, no tempo em que ir ao cinema era um ritual social, estético e, diria mais, espiritual. Como dizia meu tio Oscar, que tinha um jeito um tanto Wilde de ser, arte é inútil porque serve apenas para provocar um estado de espírito. Estado este que utilizamos para os mais diversos fins, à revelia da finalidade primeva da arte, e uma vez fundamentando literariamente e academicamente o fato, que se danem os intelectuais e cinéfilos de plantão.
O presente disco é uma delícia. Hedonismo sonoro, ou melhor, sibarismo. Sem pretensões de profundidades abismais, evidentemente. Bossa nova instrumental, gênero confortável advindo de um Modus Vivendi confortável. Jamais tal gênero brotaria da agrura de terras nordestinas, por exemplo. Para maiores detalhes, leiam o formidável José Ramos Tinhorão sobre o assunto. O álbum é de 1966, eu nasceria no ano seguinte e levaria 57 anos para o conhecer. O título, para o prazer de quem deseje condenar pelo americanismo, é The Swinger from Rio – eu também não gosto, mas é o que temos. Além do mais, continuam a exaltar o fato de que Jobim gravou com Sinatra quando na verdade o privilégio coube a Blue Eyes, e não o contrário. O próprio sabia disso, porém…
O álbum foi gravado para a Atlantic Records e conta com a participação de artistas convidados, como os formidáveis jazzistas Phil Woods no sax alto, Art Farmer no flugelhorn, e Hubert Laws na flauta; além do próprio Antônio Carlos Jobim na guitarra base! Tião Neto no contrabaixo e Chico Souza na bateria. Sergio ao piano. É um disco breve, porém sumarento em conforto sonoro, beleza típica do gênero, para o privilégio de quem possa ter tempo livre e alma leve para apreciar com cerveja, whisky e tabaco, e quem sabe até a sorte de companhia aprazível – humana, canina ou felina. Na agulha:
Maria Moita
Sambinha Bossa Nova
Batida Diferente
Só Danco Samba
Pau Brazil
The Girl From Ipanema
Useless Panorama (Inútil Paisagem)
The Dreamer
Primavera de Carlos Lira
Consolação
Favela
O disco dura 38 minutos. A vida, pode durar anos, num processo no qual o passado se alarga a cada segundo e o futuro se encurta. Para os dispostos a fazer valer seu espaço sonoro tão transitório, realizar esta arqueologia sonora de aparentemente inúteis paisagens musicais vale muito a pena.
Dedico esta postagem ao amigo Fernando Ribeiro, o sujeito mais bossa nova que conheço – pelo mar, pelo violão, pelo jeito de cantar.
Abaixo, Indi descobrindo o busto da Garota de Ipanema.

WellBach
![PQP BACH, 18 ANOS – COLLOQVIVM PAVLISTANVM INTER VIKINGVM ET BASILIVM [Johann Sebastian Bach – Variações Goldberg – Víkingur Ólafsson]](https://pqpbach.ars.blog.br/wp-content/uploads/2024/11/Photokako-polaroid-Xnx6jrG8tzp3MtBj-1.png)


Johann Sebastian BACH (1685-1750)


IM-PER-DÍ-VEL !!!








Um excelente CD. Com raro talento, Höbarth, Cohen e Coin gravaram todos os Trios de Haydn para a Harmonia Mundi e, quando começa o Presto do Trio Nº 43, a gente já sabe que está na companhia de um gênio. Estes são os últimos três trios do compositor, escritos em Londres em meados da década de 1790 para uma pianista chamada Theresa Jansen-Bartolozzi. São entre as peças mais peculiares que ele já escreveu. Ouça as mudanças rítmicas do citado Presto, por exemplo. Haydn cria uma sequência selvagem de acentos mutáveis que o aproxima do território de Bartók. Ou o primeiro movimento do Trio No. 44, uma série bizarra de recomeços que leva a manipulação de Haydn para a forma sonata a um reino totalmente novo. A lista continua. Essas são peças essenciais para o amante de Haydn, e o trio de instrumentos originais do pianista Patrick Cohen, do violinista Erich Höbarth e do violoncelista Christophe Coin as traz com a qualidade discreta certa e o som do tamanho de uma sala que esses trios exigem. O equilíbrio entre os três instrumentos é especialmente bom. O uso de um pianoforte na música de câmara clássica elimina a necessidade de os instrumentistas de cordas se esforçarem para produzir um som mais alto, e as relações entre eles têm um efeito relaxante e surpreendente. Dá-lhe!
IM-PER-DÍ-VEL !!!
Bernard Haitink fez diversas gravações da Ressurreição. A mais famosa e considerada é a realizada com sua própria orquestra da época, o Concertgebouw de Amsterdam, mas esta com a Filarmônica de Berlim também está entre as melhores gravações da obra. Para mim, os campeões da Ressurreição são Solti, Rattle e Bernstein. Haitink gravou a Nº 2 com as orquestras citadas, mais uma vez com a Orq. de Chicago e outra com os berlinenses. Esta gravação é do segundo ciclo de Mahler de Haitink com a Berliner Philharmoniker datado do início dos anos 90. Haitink foi o primeiro maestro convidado pela BPO a gravar um ciclo completo de Mahler, e embora o ciclo nunca tenha sido concluído (o projeto foi abortado antes que os Nrs. 8, 9 e A Canção da Terra fossem gravados), alguns registros se destacam por sua qualidade. Esta memorável Ressurreição é uma leitura muito refinada e poderosa desta obra, estando bem próxima do Olimpo.
Este é o menos cômico dos CDs que possuo de Banchieri. Ele costuma ser muito mais engraçado, apesar de que aqui temos alguns animais cantando… Adriano Banchieri foi um compositor, organista, teórico e poeta italiano do Renascimento tardio e princípios do Barroco. Fundou a Accademia dei Floridi em Bolonha. Banchieri nasceu e morreu em Bolonha. Em 1587 tomou os hábitos da ordem beneditina e fez os seus votos em 1590, mudando o nome de Tomaso para Adriano, com o qual foi conhecido. Especificamente, foi um dos criadores do gênero chamado “comédia madrigal”, que sem chegar a ter uma representação em cena, narrava uma história mediante uma coleção de madrigais. Muitas destas coleções foram compostas para divertir as reuniões dos círculos sociais de Bolonha.




Um grande CD! A música de Buxtehude é imensamente parecida com a do Bach inicial. Tio Bux — excelente compositor — foi um grande modelo para meu pai. Ele fez uma longa viagem a pé para aprender composição e órgão com Bux. Várias obras de Buxtehude lembram meu pai e este disco do Musica Antiqua é uma joia diversas vezes reeditada para Archiv. Depois, divirtam-se com a versão original do famoso Canon de Pachebel, outro excelente compositor para este instrumento esquecido que é o órgão. O trabalho de Goebel e do seu MAK é, como sempre, extraordinário, e entende-se facilmente o motivo deste CD ter sido tantas vezes reeditado. A capa acima é da primeira edição, a minha.


John Coltrane – Live at Birdland /1963 (320)
Charles Mingus – Tonight at Noon /1961 (320)

IM-PER-DÍ-VEL !!!

Este é um dos CDs que mais escuto entre todos os que disponho. E olhe que não é pouca coisa! Mas, há algo de especial nele – a música poderosa de Benjamin Britten. Acredito, sem rodeios, que Britten tenha sido o maior compositor inglês de todos os tempos. E olhem que gosto de Purcell, Elgar, Walton, Holst e Vaughan Williams. Mas Britten é imbatível. Sua música é arrebatadora. Consta que Britten ao nascer teria recebido o nome Benjamin por causa de um arroubo pretensioso da mãe. Ela julgava que o compositor seria “o quarto B” da história da música. Os primeiros foram: Bach, Beethoven e Brahms. Suas intenções eram excessivas. Mas não devemos olvidar as habilidades incomuns de Britten para compor. Sua obra é grandiosa. Separei três de suas óperas mais importantes – 











IM-PER-DÍ-VEL !!!

Foi casual a data desta postagem se dar próxima ao Dia de Finados. Mas o que interessa é a qualidade da música de Duarte Lôbo e o incrível trabalho do Tallis. De forma paradoxal, os renascentistas espanhóis e portugueses criaram uma música religiosa sutil e discreta, mas também muito envolvente, intensa e profunda. Essa música de Réquiem portuguesa renascentista tem muito disso. Quase tudo de concentra nos acordes bonitos. Há a polifonia, claro, mas a ideia parece ser a de criar uma série de acordes bonitos. E aqui eles são lindos. Claro que o Tallis Scholars é fantástico e capricha demais. O que torna essa música ainda mais impressionante é a rotatividade harmônica. As partes internas se movem mais rapidamente do que as externas, criando um contraste entre eternidade e tumulto secular. O som é absolutamente incrível. As linhas vocais fluem, caindo em acordes que podem ser poderosos, delicados, às vezes alegres. É esplêndido. Em nenhum lugar isso é mais evidente do que no Introitus e no Kyrie (faixas um e dois). Quando a gente acha que virá uma grande tristeza, as vozes caem em outro acorde que nos faz sorrir. A Missa Missa Vox Clamantis também é boa.








