O melífluo romance em Sol maior, Op. 40, servirá aqui como mero pretexto para lhes alcançar uma gravação extraordinária tanto por seus protagonistas quanto, e especialmente, pelo contexto em que foi feita.
As colunas de fumaça ainda estavam a ser extintas na Europa enquanto, em 1947, suas nações, fossem livres ou ocupadas, buscavam reerguer-se dentro das novas linhas entre elas traçadas. Um imenso número de pessoas fugira dos horrores perpetrados pelo nazifascismo, e algumas delas, grandes nomes da Música, recebiam então convites para regressar. Alguns aceitavam e atravessavam o Atlântico para tocar nos teatros europeus, muitos dos quais reconstruídos. Outros recusavam terminantemente, dependendo do convite, do lugar e dos parceiros envolvidos. Entre os lugares, o mais evitado era Berlim, um dos maiores polos culturais da Europa antes da guerra, agora fatiada em quatro e, como coração do Reich genocida, justamente temida pelos muitos músicos judeus que escaparam da morte que o regime lhes desejara. Entre os parceiros, e entre tantos nomes malditos, havia o mais maldito de todos: o legendário Wilhelm Furtwängler, gênio inconteste da batuta e, para muitos, o maior regente do século XX.
Discutir se Furtwängler merecia ou não a pecha de maldito é um tema que foge ao escopo dessa despretensiosa postagem num blog que tão só busca polinizar música. A maioria de seus contemporâneos pensava que sim: que, ao escolher permanecer na Alemanha, ele se alinhou, passivamente que fosse, ao cruel regime que a controlava e acabou por lhe emprestar seu imenso prestígio, como um dos mais famosos artistas do mundo. Uma diminuta, mas muito ativa minoria acreditava que não: afinal, Furtwängler nunca se filiara ao Partido Nazista e sempre se recusara a alinhar-se com seus expoentes; não aceitou reger seus hinos e conduzir sob seus estandartes; abominava Hitler e não lhe prestava as saudações protocolares; e, acima de tudo, usou sua grande influência para ajudar muitos músicos judeus e suas famílias a encontrarem guarida e rotas de fuga para lugares seguros. No final da guerra, foi julgado por um comitê de desnazificação e inocentado de todas as acusações. Ainda assim, não foi perdoado pela maioria de seus colegas, que não aceitavam sua justificativa de permanecer na Alemanha por motivos puramente artísticos, sem pretender alinhar-se ao Nazismo, numa postura improvavelmente ingênua sob um regime tão afeito a usar arte como propaganda.
Entre os tantos que não o perdoaram estavam músicos do calibre de Horowitz, Rubinstein, Toscanini e Szell, que reagiram fortemente à indicação de Furtwängler para o cargo de regente titular da Sinfônica de Chicago e a ameaçaram com um boicote, caso ele fosse efetivamente contratado (o que nunca aconteceu). Entre os raros músicos que sempre o apoiaram, um deles se destacava pela envergadura artística e pelo esforço que despendeu em reconstruir a reputação de Furtwängler. Era um prodígio do violino que se encontrava no apogeu de sua arte, um generoso embaixador da boa vontade durante toda sua longa e prolífica vida, e um judeu secular que, não obstante, era judeu até no nome: Yehudi (“o judeu”) Menuhin.
Menuhin, que nasceu nos Estados Unidos e estudou na França e na Suíça, baseara-se no Reino Unido e já rodava o mundo havia décadas, amplamente reconhecido como um de seus mais importantes artistas. Durante boa parte da guerra dedicou-se corajosamente a tocar para os soldados no front, mesmo no perigo da ofensiva de Ardennes, muitas vezes na companhia do amigo Benjamin Britten. O bravo e generoso Yehudi chegou a Bergen-Belsen praticamente junto com as forças que libertaram o campo e tocou para seus sobreviventes. Assim, não surpreende que ele tenha sido o primeiro músico importante a voltar a Berlim após a guerra e, ao apoiar publicamente o desgraçado Furtwängler, tentar desagravar a reputação do grande músico e reabilitar sua carreira.
Suas intenções, alimentadas por uma imensa admiração pelo maestro, tinham sintonia com as próprias justificativas aventadas por Furtwängler para permanecer na Europa: enquanto este pretendia salvar a música alemã da barbárie, Yehudi buscava a reconciliação com os grandes músicos remanescentes na Alemanha para fomentar o resgate da cultura alemã, que tanto amava. E assim, sob muitos protestos de seus colegas, Menuhin foi ao encontro de Furtwängler para com ele tocar e realizar as históricas gravações que ora lhes apresento.
O repertório dessa apoteose da cultura alemã, claro, só poderia ser centrado em Beethoven e suas obras para violino e orquestra. O maravilhoso concerto, um dos pontos altos de toda arte, foi gravado pela dupla em Lucerna, na mesma Suíça que permanecera neutra durante toda a guerra, e onde Furtwängler e outros artistas indispostos com o Reich buscaram guarida nos estrebuchos do conflito. Os dois serenos romances, por sua vez, seriam gravados posteriormente em Londres, com a Philharmonia Orchestra.
O inimitável estilo de Furtwängler, com sua flexibilidade do andamento e liberdades em relação à partitura, faz-se perceber nos longos arcos do desenvolvimento do primeiro movimento do concerto e em seu rondó, no qual o andamento nunca é o mesmo a cada retorno do tema. O som de Menuhin, por sua vez, pode causar estranheza a nossos ouvidos, acostumados ao primor técnico, tanto de artistas quanto da engenharia de som, tão prevalente em nossos dias. Sua calorosa abordagem a Beethoven, no entanto, impressiona mais pela energia e radiância que pela perfeição nota a nota. Chamam-no frequentemente de superestimado; prefiro dizer que ele foi um artista cujo apogeu chegou cedo demais para que fosse bem gravado, e cuja merecida fama como um dos mais admiráveis cidadãos do mundo extrapolou tudo o que se pode expressar com um arco.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Concerto em Ré maior para violino e orquestra, Op. 61
Composto em 1806
Publicado em 1808
Dedicado a Stephan von Breuning
1 – Allegro ma non troppo (cadenza de Fritz Kreisler)
2 – Larghett0
3 – Rondo: Allegro (cadenza de Fritz Kreisler)
Yehudi Menuhin, violino
Lucerne Festival Orchestra
Wilhelm Furtwängler, regência
Romance no. 1 para violino e orquestra em Sol maior, Op. 40
Composto em 1802
Publicado em 1803
4 – Adagio cantabile
Romance no. 2 para violino e orquestra em Fá maior, Op. 50
Composto em 1798
Publicado em 1805
5 – Adagio cantabile
Yehudi Menuhin, violino
Philharmonia Orchestra
Wilhelm Furtwängler, regência
Vassily