BTHVN250 – A Obra Completa de Ludwig van Beethoven (1770-1827) – Sonatas para piano Opp. 27, 13 & 14 – Gould

Contrariando minha praxe, hoje não farei qualquer ressalva antes de publicar Gould. Já houve reações nervosas, hidrófobas até, a postagens anteriores com o mala-sem-alça canadense. As últimas publicações com o mais canoro dos pianistas que tocavam em cadeiras quebradas feitas pelo pai, no entanto, não suscitaram qualquer reação em qualquer sentido, pelo que deduzo que ou os leitores-ouvintes dominaram a arte de simplesmente ignorarem aquilo que não lhes apraz, poupando de reproches quem deles pense diferente, ou a distopia abocanhou o planeta dum jeito que hoje as pessoas já conseguem escutar Gould com indiferença – algo que, sinceramente, duvidava viver para ver.

Enquanto vocês decidem se meu convoluto parágrafo anterior é ou não é uma ressalva – se é que nele há cousa alguma que não seja retórica -, prossigo ao contar-lhes que gosto demais dessa gravação. Além duma ótima”Patética” e de leituras elétricas e bem-humoradas das sonatas-quase-sonatinas do Op. 14, Glenn sai-se extraordinariamente bem nas duas sonatas-quase-fantasias do Op. 27, que são o objeto principal desta publicação.

O termo “quase uma fantasia”, foi cunhado pelo próprio Beethoven, ensejou por muito tempo leituras açucaradas da segunda do par, aquela conhecida como “ao Luar” (que, para variar, é um título apócrifo), induzindo o diabetes e talvez mesmo a cetoacidose ao justificar que o turrão de Bonn, ao compor o Adagio sostenudo, fantasiava como que a devanear. Mais provável, no entanto, é que ele as pretendesse executadas ao modo das fantasias para piano, como aquelas de Mozart, e que suas partes fossem episódios, e não movimentos, duma peça ininterrupta. O fato do próprio compositor ter prescrito que os movimentos fossem executados “attacca”, – ou seja, sem interrupções – reforça a ideia, bem como a reticência na aplicação da sonata-forma, e o esquema tonal e desenvolvimento temático muito livres, especialmente na primeira dessas sonatas, que contém, em seu movimento derradeiro, uma recapitulação de temas ouvidos nos anteriores. Penso que Gould compreendeu muito bem esta proposta, e que sua interpretação não perde a meada ao longo da execução. Talvez sua relutância em usar o pedal choque um pouco os leitores-ouvintes acostumados a ouvir uma “Luar” iniciada com um Adagio sostenuto propriamente dito, e não o quase Andantino em que Gould o despacha, mas o resultado orna muito bem com os demais movimentos, particularmente com o tempestuoso Presto final, respeitando a concepção de, bem, uma quase-fantasia.

Sobre a “Luar” cabe, talvez, uma ressalva, já que ressalva não fiz lá no começo: ela foi gravada nas mesmas sessões que a “Patética” e a “Appassionata”, num projeto imposto pela Columbia para, imaginava ingenuamente, vender como água um LP somente com sonatas célebres e com apelidos, e para tentar extrair algum sumo do contrato com Gould, já que, diferentemente do assombroso sucesso de seu disco de estreia com as Variações Goldberg, seu projeto beethoveniano anterior, com as três últimas sonatas do mestre, fracassara nas vendas. Glenn, que odiava qualquer imposição, certamente brandiu suas melhores armas de sabotagem: além de uma “Patética” pouco patética, aliás quase nada sentimental (que é a mesma que os leitores-ouvintes encontrarão no link abaixo), despachou uma “Luar” sugar-free e – pior ainda – uma “Appassionata” totalmente desconstruída e tudo, mas tudo MESMO, menos apaixonada. Acho bom que vós outros, que agora me detestam por postar Gould, se comportem bem nos comentários, pois qualquer dia eu posto essa “Appassionata” e, bem: vocês verão só o que é me odiar.

Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)

Sonata para piano em Dó menor, Op. 13, “Patética”
Composta em 1798
Publicada em 1799
Dedicada ao príncipe Karl von Lichnowsky

1 – Grave – Allegro di molto e con brio
2 – Adagio cantabile
3 – Rondo: Allegro

Duas sonatas para piano, Op. 14
Compostas em 1798-1799
Publicadas em 1799
Dedicadas à baronesa Josefa von Braun

No. 1 em Mi maior
5 – Allegro
6 – Allegretto – Trio
7 – Rondo. Allegro comodo

No. 2 em Sol maior
8 – Allegro
9 – Andante
10 – Scherzo. Allegro assai

Duas sonatas para piano, Op. 27
Compostas em 1801

Publicadas separadamente em 1802

Sonata “quasi una fantasia” no. 1 em Mi bemol maior
Dedicada à princesa Josephine von Liechtenstein

11 – Andante – Allegro – Andante – attacca:
12 – Allegro molto e vivace – attacca:
13 – Adagio con espressione – attacca:
14 – Allegro vivace

Sonata “quasi una fantasia” no. 2 em Dó sustenido menor, “Ao Luar”
Dedicada à condessa Giulietta Guicciardi

15 – Adagio sostenuto
16 – Allegretto
17 – Presto agitato

Glenn Gould, piano

BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE

 

Queria ver Gould vivo e blogueiro do PQP Bach. Aí vocês teriam saudades de mim. Humpf.
#BTHVN250, por René Denon

Vassily

4 comments / Add your comment below

  1. E essa capa, colega? Há alguma relação entre o piano da capa e o usado pelo Gould? Ou – mais provável – foi só pra dar às sonatas um ar de respeitáveis e em madeira de lei?

    Pode parecer besteira mas há uma certa tradição não escrita de capas de disco: não vender gato por lebre. OK, na época não era comum gravar em pianos antigos, mas mesmo assim…

    1. Olá, Pleyel! Como você bem supôs, nenhuma relação. Gould não abriu mão de seu Steinway número de série CD 318, de sua cadeira baixa quebrada fabricada pelo pai, e do estúdio na 30th St. para gravar essas sonatas. Você tem toda razão em apontar que não se costuma vender gato por lebre: o que estava na capa corresponde exatamente ao que se ouvia no disco, e normalmente não precisávamos olhar a contracapa para descobrir o repertório, como sói acontecer hoje – parece que o decote da Khatia ou as pernas da Yuja tiram todo o espaço disponível.

      Não tinha prestado atenção no piano que aparece na capa. Aquele adorno em forma de lira nos pedais lembrou-me o piano Broadwood que foi dado de presente a Beethoven pelo fabricante, e que hoje está no Museu Nacional Húngaro em Budapest. Fui ver, e acho que é ele mesmo: https://www.worldpianonews.com/wp-content/uploads/2017/08/Beethovens-Broadwood.jpg . Curiosamente, uma das primeiras gravações em instrumentos antigos que conheci foi feita com este mesmo piano, por András Schiff sob o selo Hungaroton. Parece que Beethoven, já profundamente surdo, deixou seu pobre presente inutilizável ao golpear as teclas com muita força, e as restaurações não conseguiram trazê-lo de volta aos bons tempos. Assim, Schiff – certamente desacostumado a esses teclados – escolheu um repertório frugal e pouco comprometedor, baseado em bagatelas, no qual a peça mais significativa é a Polonaise Op. 89. Se tudo correr bem, essa gravação aparecerá em nossa série. Um abraço!

  2. Bem legal o texto. Gosto da referida versão de Gould para as três últimas sonatas; claro, ao entusiasmo inicial, depois, vem certa hesitação, por conta das ponderações e diversas críticas que o álbum recebeu ou recebe — as quais percebi, confesso, com um pouco de surpresa, mas acabamos entendendo essas coisas, especialmente através de outras gravações. De todo modo continuo admirando sua singular versão da passagem lenta do último movimento da sonata 31 e sua urgência e tensão na 32. E embora a apassionata com ele seja, de fato, horrível, as inicias são ótimas e, de novo, singulares (lembro da 12, 9, 1 e 10).

    Em relação ao nome quase uma fantasia, lembrei, ao ler seu texto, de um trecho de uma coluna do Sérgio Conti sobre Adorno:

    “O título ‘Quase uma Fantasia’, que alude a duas sonatas de Beethoven, condensa uma ambição contraditória. ‘Sonata’ é uma figura musical ortodoxa, enquanto a ‘fantasia’ apela à liberdade da imaginação. Não podem ser combinadas, e é isso que Adorno busca.
    Ele mobiliza um conhecimento técnico minucioso para pensar o que sua fantasia intui ou cria. Embora o objetivo e o subjetivo estejam soldados, a tensão entre eles é mantida. Como a crítica se enraíza na prática, na história e na imaginação, ela é densa.”
    https://www1.folha.uol.com.br/amp/colunas/mariosergioconti/2018/06/entender-e-amar-a-arte-que-nao-sabemos.shtml

    Não sei se faz sentido, mas pode ser um complemento abstrato à justificativa mais concreta. Obrigado e feliz páscoa a todos.

  3. Tenho em CD, e a capa aparece ele andando, de boina e encapotado, na neve… A interpretação é no mínimo estranha – a Moonlight mais despojada (leia-se sem sentimento) que conheço no primeiro movimento, mas vibrante no último. E a Appassionata, tão lenta e “cirúgica” como a 5a. por Boulez… Não teria essas leituras como referência, mas são no mínimo instigantes como alternativas de abordagem

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