
Quando postei aqui e ali, com excelente repercussão, as gravações que Arthur Moreira Lima fez das obras de Ernesto Nazareth, um de nossos leitores-ouvintes comentou o seguinte:
“Excelente postagem! Agradecido. Queremos mais Arthur e Ernesto e muitos outros!
Gostaria de perguntar (ou acrescentar) se a iniciativa dessas gravações são obra de um sujeito genial chamado Marcus Pereira, a quem muito devemos pela sua coragem de construir um grande e excelente painel de nossas raízes musicais. E muito mais!
Se for o caso, os créditos seriam bem-vindos, pois muitos ainda não o conhecem e nem sua magnifica obra”
Nosso leitor-ouvinte está certíssimo: não só essas gravações foram lançadas pelo notável selo Discos Marcus Pereira, como realmente fiquei devendo não só o reconhecimento, mas também a homenagem ao construtor do que muito bem chamou de “grande e excelente painel de nossas raízes musicais”.
Com algum atraso, reparo meu erro e presto o devido tributo a este importante incentivador da música brasileira, através deste álbum que, assim como TODA a coleção dos Discos Marcus Pereira, está lamentavelmente fora de catálogo. Lançado em 1982, um ano após a morte de Marcus, ele reúne alguns dos pontos altos da rica discografia do selo (à qual voltaremos no final da postagem).
A reportagem seguinte, publicada n’O Globo, dá ideia da coragem do cidadão:
“Por Helena Aragão
20/12/2014
RIO — Marcus Pereira não compunha, não tocava instrumentos e não cantava, mas foi um personagem importante para a música brasileira em uma de suas décadas mais frutíferas: a de 1970. Para muitos, era um empresário quixotesco que quis transformar a produção musical regional brasileira em sucesso de mercado e que, com a mesma disposição, atacava as grandes gravadoras e os hits de televisão. Na lembrança dos amigos, sobressai a imagem de um sujeito de coração grande, capaz de empregar gente ameaçada pelo regime militar e “adotar” artistas que considerava talentosos. Todas essas versões se misturam numa personalidade heterogênea, motor de uma empresa que lançou alguns dos mais interessantes discos brasileiros entre 1974 e 1981. De Cartola à Banda de Pífanos de Caruaru, de Ernesto Nazareth (pelas mãos do pianista Arthur Moreira Lima) a Paulo Vanzolini, do Quinteto Armorial a Elomar, a Discos Marcus Pereira abriu espaço para compositores e intérpretes que transbordavam em criatividade, mas encontravam pouco espaço nos escaninhos das majors.
Advogado de formação, Marcus migrou logo cedo para a área de publicidade e abriu sua própria agência na década de 1960. Foi lá que começou a flertar com a produção musical: passou a fazer discos para dar como brinde aos clientes. Mais tarde, em 1973, apostou todas as fichas em uma gravadora independente. Aquele ano foi para arrumar a casa, e apenas cinco discos foram lançados comercialmente (todos feitos como brindes nos anos anteriores: os quatro volumes da coleção “Música popular do Nordeste” e “Brasil, flauta, cavaquinho e violão”). Em 1974, ela apareceu de fato para o mundo, lançando mais de 20 discos em 12 meses. A Discos Marcus Pereira não levava o nome do dono à toa: a empresa vivia, de fato, em função de seus humores e sonhos.
Sonhos que deram origem a discos pioneiros. A robusta coleção “Música Popular do Brasil”, que começou pelo Nordeste e depois teve mais 12 discos destinados às outras regiões, é um exemplo. A aposta em Cartola é outro, mas guarda um detalhe curioso: relutante no primeiro momento, o empresário acabou convencido por seu sócio Aluizio Falcão e pelo produtor musical Pelão a fazer o disco, que acabou sendo saudado como um dos melhores de 1974. Com cerca de 140 lançamentos em nove anos, o catálogo impressiona em quantidade e variedade. E, para defendê-lo em suas convicções culturais e empresariais, Marcus se armou com tudo que podia, lutando contra um mercado já dominado e elegendo inimigos complicados.
Com convicções fomentadas por movimentos da época, como o Centro Popular de Cultura (CPC), por polêmicas como as da MPB contra as guitarras elétricas e por discussões folcloristas, ele ficou ainda mais determinado a se dedicar apenas ao mercado fonográfico após uma viagem a Recife, em 1963, quando conheceu o frevo de perto. Para Marcus, a “legítima” música brasileira devia fazer parte dos números grandiosos daquela indústria.
Enquanto isso, o trabalho com publicidade o desinteressava cada vez mais. No livro sobre O Jogral, bar “de resistência cultural” que frequentava em São Paulo, escreveu: “É difícil gostar de ser cúmplice de interesses que vivem de estimular, ao delírio, o consumo numa sociedade onde apenas uma minoria tem condições de consumir”.
Quando a coleção do Nordeste ganhou os prêmios Noel Rosa (da crítica paulista) e Estácio de Sá (do Museu da Imagem e do Som carioca), ele teve certeza de que a mudança de rumos era acertada. Anos mais tarde, no lançamento da coleção Centro-Oeste/Sudeste, escreveu no encarte: “Essa repercussão, na verdade, deve-se à beleza e comunicatividade de uma riqueza enorme que estava enterrada, neste país de tantas riquezas enterradas, e da qual nós colhemos pequena amostra, que é a cultura de nosso povo”. Os discos da coleção “Música Popular do Brasil” alternavam gravações documentais com as de artistas consagrados, como Elis Regina (Sul) e Martinho da Vila (Sudeste/Centro-Oeste). Este último, aliás, deixou o exército para se dedicar apenas ao samba graças ao estímulo de Pereira.
Ao apostar todas as fichas em discos “de conceito”, sem ter um elenco fixo ou coletâneas de sucesso, Marcus Pereira tentou criar um nicho de mercado, mas logo viu que não seria fácil. Ao longo dos anos seguintes, começou a ter problemas de distribuição e nas parcerias com gravadoras de maior porte para fabricação dos vinis. Seus esforços, em geral louvados pela imprensa, muitas vezes eram também questionados em relação a práticas paternalistas — e ele não se furtava em entrar em discussões por meio dos jornais. Aos poucos, as dívidas foram aumentando e saindo do controle. Além disso, Marcus enfrentava problemas pessoais. Em 1981, depois de voltar de uma viagem de férias, deu fim à vida com um tiro.
Em 1982, a Discos Marcus Pereira encerrou suas atividades. O catálogo foi absorvido pela Copacabana, empresa que também não resistiria muito tempo, passando o material em seguida para a ABW, que relançou “Música Popular do Brasil” (em 1994), entre outros, em CD (tiragens logo esgotadas). Hoje o acervo pertence à EMI, que por sua vez foi comprada por um consórcio liderado pela Sony.
A gravadora foi uma das precursoras na busca da “independência” fonográfica no Brasil — ainda que esse termo ainda não fosse usado. Nos anos 1980, os mercados internacionais começam a atentar mais para as músicas locais. O termo world music, criado no fim da década, passou a reunir todo tipo de canção folclórica ou étnica. Quatro décadas depois do início da aventura de Pereira, se o que ecoa de seu discurso pode soar um tanto datado para alguns, o impacto dos discos que lançou segue reverberando nos ouvidos das novas gerações”
Infelizmente, o extenso catálogo dos Discos Marcus Pereira está numa gaveta de gravadora, da qual, no que depender da vontade do público e do senso de lucro da empresa, não sairá tão cedo. Para piorar, é difícil até de achar a maior parte dos discos na rede… MAS É AÍ que é a minha deixa para lhes dizer que eu tenho a discografia completa do selo digitalizada. São mais de cento e oitenta álbuns, o que significa mais .: interlúdios :. do que aqueles que teremos até o final dos tempos. Por isso, postarei, aos poucos, aqueles que eu achar melhores. Ah, e para que vocês se manifestem e me ajudem a pinçar e sugerir alguns itens para publicação, o catálogo está aqui.
TRIBUTO A MARCUS PEREIRA (1982)
01 – Papete – Engenho de Flores (Josias Silva Sobrinho)
02 – Cartola – As Rosas não Falam (Cartola)
03 – Irene Portela – De Teresina a São Luís (João do Vale & Helena Gonzaga)
04 – Leci Brandão – Antes Que Eu Volte a Ser Nada (Leci Brandão)
05 – Renato Teixeira – Moreninha, Se Eu Te Pedisse (Rossini Tavares De Lima)
06 – Dércio Marques – O Menino (El Niño) (Atahualpa Yupanqui & Dércio Marques)
07 – Nara Leão – Cuitelinho (Tradicional)
08 – Doroty Marques – Eterno Como Areia (José Maria Giroldo)
09 – Léo Karan – Jesuína (Léo Karan & Gilberto Karan)
10 – Chico Maranhão – A Vida de Seu Raimundo (Chico Maranhão)
11 – Adauto Santos – De Amor Ou Paz (Luis Carlos Paraná & Adauto Santos)
12 – Luis Carlos Paraná – Vou Morrer De Amor (Luis Carlos Paraná)

Vassily Genrikhovich








Um filme visualmente suntuoso como “O Jardim Secreto”, baseado no romance homônimo de Frances Hodgson Burnett e sensivelmente realizado por Agnieszka Holland, não poderia ter uma música que causasse menor impressão. Preisner, compatriota de Holland, caprichou e legou-nos uma trilha sonora que, talvez, seja entre as suas a que melhor se sustente sem as imagens. A agitada abertura, com toda sua percussão, soa pouco “preisneriana”, mas em seguida todos os gestos tão caros ao compositor – os temas singelos, a preferência pelos sopros (especialmente o oboé e as flautas-doces) e pelo piano, o uso econômico da instrumentação, com diálogos instrumentais como que em prosa – vão surgindo, entremeados por todos os melífluos clichês que imaginaríamos num filme sobre crianças – violinos trinando, glockenspiele, coros angélicos. Quando nos damos conta, depois de uma que outra sugestão de Dvořák, já se foram, muito belos, seus trinta e poucos minutinhos.



“A Dupla Vida de Véronique” é um dos filmes mais belos e estranhos que conheço. Belo pela luz dourada, por seus suaves verdes e vermelhos, pelos imensos silêncios entremeados pela música de Zbigniew Preisner, e sobretudo pelo rosto da divina Irène Jacob – no papel de sua vida -, iluminado maravilhosamente por Sławomir Idziak e seguido com discrição e sensibilidade por Krzysztof Kieślowski. Estranho porque, entre outros motivos, muito pouco acontece em “Véronique” e, no entanto, nada nele é tedioso. Poucas vezes vi a introspecção, que me é tão cara, retratada na tela assim, vivamente. É um filme, talvez, sobre a sensação de não estarmos sozinhos, de que há algo ou alguém a viver paralelamente conosco; uma experiência tão bela quanto estranhíssima, que abre mais questões do que as responde, e inda mais a cada revisita.
O “Decálogo” – uma guirlanda de, bem, dez brilhantes filmes de 55 minutos, cada qual uma pequena obra-prima – constitui o opus magnum de Kieślowski. Produzido pela televisão polonesa e de distribuição modesta quando de seu lançamento, repercutiu enormemente mundo afora, em especial junto aos cineastas – até mesmo o mui recluso e extremamente crítico Stanley Kubrick teceu loas ao roteiro -, e abrindo caminho no exterior para a carreira do diretor. Apesar de algumas semelhanças, como o entrelaçamento de tramas e os personagens demiúrgicos recorrentes, Kieślowski – que iniciou a carreira como documentarista – não lança mão aqui do virtuosismo que exibiria em sua muito mais famosa Trilogia das Cores, iniciada cinco anos depois. A despeito do título, a alusão aos Dez Mandamentos é, para o dizer o mínimo, bastante oblíqua. Pouquíssimo há de bíblico ou religioso nessas histórias que se desenrolam num austero e feiíssimo conjunto habitacional em Varsóvia. O estilo é muito enxuto, a atmosfera é quase árida, e os longos silêncios e ênfase nos closeups exigem um protagonismo da música, que Zbigniew Preisner garante com uma trilha sonora extraordinária, que depois adaptaria para os dois longa-metragens feitos a partir de episódios da série: “Não Matarás” (Krótki film o zabijaniu) e “Não Amarás” (Krótki film o miłości), ambos de 1988. Digna de nota, também, é a primeira menção a Van den Budenmayer, compositor neerlandês fictício, criatura de Kieślowski e Preisner, a quem se atribuem temas e composições que apareceriam também em “A Dupla Vida de Véronique”, “Azul” e “Vermelho”.





Tão logo terminaram os créditos finais de “Azul”, e enquanto ainda ecoava em meus pouco impressionáveis ouvidos médios a sensacional música de Zbigniew Preisner, determinei a mim mesmo:






Inaugurar a Trilogia das Cores com um filme tão soberbo quanto “Azul” trouxe uma imensa expectativa sobre como seria em seu ato seguinte. Surpreendentemente, Krzysztof Kieślowski serviu ao público, ainda assoberbado pelo grande drama cerúleo, uma comédia que teve recepção morna, e não sem “nhés” de decepção.















