Os Sete Pecados Capitais de Weill e Brecht (cujo nome completo é Os Sete Pecados Capitais da Classe Média) é uma obra bastante conhecida e divertida. Nos mostra como a família burguesa foi transformada num núcleo econômico, onde a moral cristã muitas vezes conflita com os interesses e necessidades econômicas.
Como dizem Marx e Engels no Manifesto Comunista:
O palavreado burguês acerca da família e da educação, acerca da relação íntima de pais e filhos, torna-se tanto mais repugnante quanto mais, em consequência da grande indústria, todos os laços de família dos proletários são rasgados e os seus filhos transformados em simples artigos de comércio e instrumentos de trabalho.
Podemos estender isso à classe média, principalmente aquela que está próxima da pobreza mas quer ascender por via de fazer algum dos filhos enriquecer. As relações entre familiares acaba se tornando puramente instrumental e funcional (em função do capital), onde a função dos pais para o filho é prover dinheiro para que a criança/adolescente possa consumir, a função do homem para a família é prover dinheiro para a “sustentação” da casa, e a função da mulher para o lar no geral é realizar todo o trabalho doméstico improdutivo e não remunerado para a manutenção da própria força de trabalho do homem (dar comida e um lar onde ele possa descansar para poder trabalhar no dia seguinte), e da força de trabalho futura (a criança). Dessa forma, todo aquele indivíduo que deixa de exercer sua função econômica no núcleo familiar, acaba por ser descartado. E se se mantém em suas funções, se torna cada vez mais alienado de si.
Kafka percebeu essas relações instrumentais e seus males muito bem e fez uma ótima metáfora em A metamorfose. No romance, um caixeiro viajante de nome Gregor que está cansado de trabalhar para sustentar a família, um dia acorda e sê vê metamorfoseado num inseto. A primeira coisa que pensa Gregor é que se atrasará para o trabalho. Isso demonstra bem duas coisas: o processo de alienação a que ele está submetido pelo trabalho, e a monstruosidade em que ele se torna ao se ver cansado de uma relação alienante a que ele não pode fugir.
Weill tinha bem em mente essa relação quando em Paris, a convite de escrever uma obra para uma companhia de dança, resolve compor a obra. Brecht o ajuda e escreve o libreto. Os sete pecados retratados são pecados do ponto de uma classe específica, a classe média, que verá como pecado qualquer ação que vá contra o objetivo de manter seu padrão de vida e a ordem social em que vive.
Cada movimento representa um pecado diferente, onde Anna (a protagonista), viaja por uma nova cidade. Cada movimento também tem um andamento de dança distinto: valsa, furiant[1], foxtrote[2], shimmy[3], dixieland[4] e tarantella[5]. Essas danças não são ocasionais, mas revelam um tipo de dança presente em cada cidade pelo qual Anna passa (Memphis, Los Angeles, Philadelphia, Boston, Baltimore, San Francisco). Na versão para teatro, o papel de Anna é dividido em dois, onde uma canta e a outra dança. Isso é porque ela tem duas personalidades, onde a “principal” é representada pela Anna boazinha e ingênua (a dançarina), que é quem aparentemente cai nos diversos pecados de cada movimento/cidade/dança. Já a outra Anna (cantora), seu alter ego, é sarcástica e devotada ao seu papel: instigar sua outra personalidade, da forma que for necessária, a prover dinheiro para a família pensando em seu objetivo: construir uma pequena casinha às margens do Mississípi. A divisão entre as duas personalidades poderia ser descrita como o pensamento de um trabalhador e de um burguês, ou o pensamento alienado e a razão instrumental. Ou seja, uma mentalidade que recebe ordem e está sujeita aos “vícios” do tipo de vida que leva, e o outro pensamento que está preocupado com os fins que deve tomar, independentemente de suas consequências sociais, éticas ou morais.
Para ilustrar melhor a história, recomendo a vocês que vejam essa versão feita para TV:
Os outros episódios podem ser vistos por aqui.
Ficam evidentes os pecados a que a Anna ingênua é tentada: Ter preguiça de ser explorada, ter orgulho de não mostrar seu corpo nu para ganhar dinheiro, ter raiva das injustiças que presencia em Los Angeles, ter a gula de querer comer quando está com fome devido a um regime segundo um contrato, ter a luxuria de preferir amar e dar dinheiro ao homem que ama em vez de vender o corpo ao rico que a paga bem, ter a ganância de não ficar com nenhum dinheiro nem poder amar ninguém e ter a inveja daqueles que não precisam se sujeitar a tudo isso. Graças ao seu sábio alter ego, por sete anos, em sete cidades diferentes, Anna resiste a estes pecados! Do ponto de vista da classe média americana da época, seria totalmente razoável praticar qualquer um desses atos para fazer dinheiro (aceitar um emprego precário lavando louça ou exibindo o corpo em boates, fazer regime para atingir um padrão de beleza, ficar com o homem mais rico em vez daquele a que se ama, ignorar as injustiças sociais que vê na rua diariamente, se contentar com as coisas como elas são, etc.).
Também fica claro para nós o porquê da família ter enviado a Anna para fazer dinheiro e não seus dois irmãos: o corpo de uma mulher jovem e esbelta numa sociedade como a americana do século XX é uma peça de valor comercial, e esse corpo, tão proibitivo no cristianismo, deverá ser profanado das formas mais violentas possíveis pelo mercado, sendo vendido parcial e/ou integralmente das mais diversas formas possíveis.
Essa condição da mulher como mercadoria infelizmente não se limitou apenas ao contexto da classe média americana do século XX, mas foi regra desde pelo menos o século XIX, e ainda perdura em nossos dias. Dizem Marx e Engels no Manifesto:
O burguês vê na mulher um mero instrumento de produção. Ouve dizer que os instrumentos de produção devem ser explorados comunitariamente, e naturalmente não pode pensar senão que a comunidade virá igualmente a ser o destino das mulheres.
Não suspeita que se trata precisamente de suprimir a posição das mulheres como meros instrumentos de produção.
Neste sentido, de suprimir a condição da mulher como meios de produção, é que devemos aproveitar um ano como o nosso, de 2017, onde faz 100 anos da Revolução Russa para pensar a emancipação feminina novamente. Pois foi na Rússia revolucionária onde pela primeira vez na história as mulheres tiveram direito iguais explicitamente declarados na constituição, tiveram direito a igualdade de direitos políticos e sociais no geral. Ao criarem as creches, restaurantes e lavanderias públicas conseguiram socializar o trabalho doméstico o que ajudou a libertar a mulher desse trabalho para que pudesse participar da vida pública tanto quanto o homem. A família passou a ser baseada principalmente no amor livre, e não tanto na dependência econômica. Pelo menos assim se formava a sociedade soviética russa em sua primeira década após a revolução.
—
Trago duas interpretações dessa obra, a principal e mais clássica é feita por Lotte Lenya, que era mulher do próprio Kurt Weill. Talvez pelo fato de conhecer bem as intenções de Weill, ela faz uma interpretação que nos lembra muito as cantoras dos cabaré de Berlim ou Paris, muito populares nos anos 20 e 30. Esse estilo de cabaré (ou kabarett, no original), foi muito utilizado por Weill em suas obras, e falarei mais disso no próximo post. A voz estridente nos parece ligeiramente “vulgar” e nos remete à tudo que havia de mais mundano e profano dos anos 20 e 30. As ironias latentes da própria história – além das diferenças de personalidade – ficam evidentes em na interpretação de Lenya. A outra interpretação é de Gisela May, que embora não saiba ser tão teatral em sua voz, tem um timbre bastante agradável e que dá um tom levemente épico e dramático à história, e que igualmente sabe interpretar as diferentes personalidades em sua voz.
Notas:
[1] Rápida dança em compasso ternário do folclore da Boêmia. (DOURADO, 2004).
[2] Variada e alegre dança norte-americana de salão para casais em compasso binário e às vezes quartenário, surgiu no início do século XX. Originou-se do ragtime e é caracterizado por ritmos sincopados e passos corridos. (DOURADO, 2004).
[3] Dança em compasso binário de negros norte-americanos do início do século XX, guardava semelhanças com o ragtime e tornou-se popular também entre os brancos em shows de cabarés, como as Zigfield follies (Folias de Siegfield). (DOURADO, 2004).
[4] Gênero jazzístico criado por músicos brancos de Nova Orleans cuja execução era caracterizada principalmente por pequenos conjuntos ou combos. De maneira genérica, refere-se ao estilo de jazz inspirado naquele estilo, executado em toda a região sulina e até os dias de hoje cultivado entre aficionados nos EUA e no mundo inteiro. A palavra tem origem na música Dixie, de Daniel Emmett, precursor dos negros ministrels (menestréis negros) norte-americanos, cujo tema foi adotado como verdadeiro hino na Guerra de Secessão. (DOURADO, 2004)
[5] Dança rápida em compasso 6/8 geralmente acompanhada por pandeiro e castanholas, é típica de regiões interioranas da Itália, como Taranto. No século XVII supunha-se que o andamento ágil da tarantela serviria para expulsar os demônios que as tarântulas inoculavam nos corpos de suas vítimas. Na música romântica, foi empregada por compositores como Bottesini, Weber, Liszt, Wieniawski, Glière e Chopin. (DOURADO, 2004).
Bibliografia:
DOURADO, Henrique Autran. Dicionário de termos e expressões da música. – São Paulo: Editora 34, 2004.
HOBSBAWM, Eric J. História Social do Jazz. – São Paulo: Paz e Terra, 2016.
MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. Edições Avante!. Disponível em: Arquivo Marxista Online.
Kurt Weill (1900-1950): Die sieben Todsünden (Os sete pecados capitais)
CD 1: Lotte Lenya
Die sieben Todsünden (The Seven Deadly Sins)
01 Prolog (Andante sostenuto)
02 Faulheit (Allegro vivace)
03 Stolz (Allegretto, quasi andantino – Schneller Walzer)
04 Zorn (Molto agitato)
05 Völlerei (Largo)
06 Unzucht (Moderato)
07 Habsucht (Allegro giusto)
08 Neid (Allegro non troppo – Alla marcia un poco tenuto)
09 Epilog (Andante sostenuto)
Lotte Lenya
Ernst Poettgen
Fritz Göllnitz
Julius Katona
Sigmund Roth
Die Dreigroschenoper (The Threepenny Opera)
10 Moritat vom Mackie Messer
11 Barbara-Song
12 Seeräuberjenny (Pirate Jenny)
The Rise and Fall of the City of Mahagonny
13 Havana-Lied
14 Alabama Song
15 Denn Wie Man Sich Bettet
Happy End
16 Bilbao-Song
17 Surabaya-Johnny
18 Was die Herren Matrosen sagen (The Sailor’s Tango)
Berlin Requiem
19 Vom ertrunkenen Mädchen (Ballad of the Drowned Girl)
The Silverlake, A Winter’s Tale
20 Lied der Fennimore (I Am a Poor Relative)
21 Cäsars Tod (Ballad of Caesar)
Lotte Lenya
CD 2: Gisela May
Die sieben Todsünden
01 Die sieben Todsünden – 1. Prolog
02 Die sieben Todsünden – 2. Faulheit (Sloth)
03 Die sieben Todsünden – 3. Stolz (Pride)
04 Die sieben Todsünden – 4. Zorn (Wrath)
05 Die sieben Todsünden – 5. Völlerei (Gluttony)
06 Die sieben Todsünden – 6. Unzucht (Lust)
07 Die sieben Todsünden – 7. Habsucht (Greed)
08 Die sieben Todsünden – 8. Neid (Envy)
09 Die sieben Todsünden – 9. Epilog
Gisela May
Peter Schreier, tenor
Hans-Joachim Rotzsch, tenor
Günther Leib, Barítono
Herman Christian Polster, baixo
Rundfunk-Sinfonie-Orchester Leipzig
Herbert Kegel, regente
Berliner Requiem
10 Vom ertrunkenen Mädchen
Gisela May
Studio-Männerchor
Studio-Orchester
Henry Krtschil, regente
Happy End
11 Surabaya Johnny
12 Bilbao-Song
13 Was die Herren Matrosen sagen
14 Ballade von der Höllen-Lili
Aufstieg und Fall der Stadt Mahagonny
15 Havanna Song
16 Wie man sich bettet, so liegt man
Die Dreigroschenoper
17 Barbara Song
18 Song von der sexuellen Hörigkeit
19 Seeräuber-Jenny
Gisela May
Studio-Orchester
Heinz Rögner, regente
Berliner Requiem
20 Zu Potsdam unter den Eichen
Gisela May
Studio-Orchester
Henry Krtschil, adaptação e regente
Luke
Olá,
Você saberia me dizer quando foi feita a versão para TV, e quem a produziu? Procurei na web e não achei coisa alguma a respeito.
Obrigada!
Deborah