Sinfonia Nº 13 (Babi Yar), Op. 113 (1962)
Após o equívoco da Sinfonia Nº 12 — lembrem que até Beethoven escreveu uma medonha Vitória de Wellington, curiosamente estreada na mesma noite da sublime 7ª Sinfonia, mas este é outro assunto… –, Shostakovich voltaria às boas relações com a música sinfonia da forma mais gloriosa possível: pela Sinfonia Nº 13, Babi Yar. Iniciava-se aqui a produção de uma seqüência de obras-primas que só terminaria com sua morte, em 1975. Esta sinfonia tem seus pés firmemente apoiados na história da União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial. É uma sinfonia cantada, quase uma cantata em seu formato, que conta com a nada desprezível colaboração do grande poeta russo Evgeny Evtuchenko (conforme alguns, como a Ed. Brasiliense, porém pode-se encontrar a grafia Ievtuchenko, Yevtuchenko ou Yevtushenko, enfim!)
O que é, afinal, Babi Yar? Babi Yar é o nome de uma pequena localidade situada perto de Kiev, na atual Ucrânia, cuja tradução poderia ser Barranco das Vovós. Ali, em 29 e 30 de setembro de 1941, teve lugar o assassinato de 34 mil judeus pelos nazistas. Eles foram mortos com tiros na cabeça e a participação comprovada de colaboradores ucranianos no massacre permanece até hoje tema de doloroso debate público naquele país. Nos dois anos seguintes, o número de mortos em Babi Yar subiu para 200 mil, em sua maioria judeus. Perto do fim da guerra, os nazistas ordenaram que os corpos fossem desenterrados e queimados, mas não conseguiram destruir todos os indícios.
Ievtuchenko criticou a maneira que o governo soviético tratara o local. O monumento em homenagem aos mortos referia-se às vítimas como ucranianas e russas, o que também eram, apesar de saber-se que o fato determinante de suas mortes era o de serem judeus. O motivo? Ora, Babi Yar deveria parecer mais uma prova do heroísmo e sofrimento do povo soviético e não de uma fatia dele… O jovem poeta Ievtuhenko considerou isso uma hipocrisia e escreveu o poema em homenagem aos judeus mortos. O que parece ser uma crítica de importância relativa para nós, era digna de censura, na União Soviética. O poema fui publicado na revista Literatournaia Gazetta e causou problemas a seu autor e depois, também a Shostakovich, ao qual foram solicitadas alterações que nunca foram feitas na sinfonia. No Ocidente, Babi Yar foi considerado prova da violência anti-semita na União Soviética, mas o próprio Ievtuchenko declara candidamente em sua Autobiografia Precoce (Ed. Brasiliense, 1987) que a tentativa de censura ao poema não teve nada a ver com este gênero de discussão e que, das trinta mil cartas que recebeu falando em Babi Yar, menos de trinta provinham de anti-semitas… É tudo muito estranho.
O massacre de Babi Yar é tão lembrado que não serviu apenas a Ievtuchenko e a Shostakovich, tornando-se também tema de filmes e documentários recentes, assim como do romance Babi Yar de Anatoly Kuznetsov. Não é assunto morto, ainda.
O tratamento que Shostakovich dá ao poema é perfeito. Como se fosse uma cantata em cinco movimentos, os versos de Ievtuchenko são levados por um baixo solista, acompanhado de coral masculino e orquestra. Principalmente em Babi Yar e em Na Loja, é música de impressionante gravidade e luto; a belíssima linha melódica ora assemelha-se a um serviço religioso, ora ao grande modelo de Shostakovich, Mussorgski; mesmo assim, fiel a seu estilo, Shostakovich encontra espaço para seu sarcasmo.
Calma crueldade: soldados alemães examinam as roupas dos judeus mortos em Babi Yar. (Adotando o tom sarcástico tão caro a Shostakovich, diria que, hoje, as roupas poderiam ser palestinas e os soldados… Deixa pra lá!)
A seguir, aproveitarei a excelente descrição que Clovis Marques fez para o concerto que incuía a Sinfonia Nº 13, Babi Yar, realizado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 27/07/2006. Volto no final do post:
Chostakovich, ‘for ever’ – Clovis Marques – Opinião & Noticia
30/07/2006
O contato em condições ideais com uma obra-prima do século XX é raro na vida musical de um mortal carioca. Na última quinta-feira, a Sinfonia nº 13 de Chostakovich passou pelo Teatro Municipal com uma carga tão densa de significado e beleza que quase não surpreendeu que a interpretação e o acabamento, a cargo da Petrobras Sinfônica, estivessem também em esferas muito altas.
“Babi Yar” é como ficou conhecida esta sinfonia-cantata para coro masculino, baixo e orquestra composta e estreada em 1962 em Moscou. O título vem do poema de Ievgueni Evtuchenko que causara rebuliço ao ser publicado no ano anterior na “Literaturnaia Gazeta”, tocando na chaga do anti-semitismo a propósito do massacre cometido pelos nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial, no local conhecido como “ravina das mulheres”, perto de Kiev.
A partir desse texto de dura indignação, e apesar dos problemas que uma tal inspiração de “protesto” ainda geraria na União Soviética pós-stalinista, Chostakovich construiu um painel de extraordinária força em torno de duas ou três mazelas trágicas do seu tempo: o medo e a opressão, o conformismo e o carreirismo, o massacre quotidiano num Estado policial e a possibilidade de superação pelo humor e a intransigência.
Em linguagem quase descritiva, contrastando a severidade da orquestra com a impostação épica das vozes, “Babi Yar” tem um poder de evocação propriamente cinematográfico: raramente se ouviu música tão plástica e de poder de invenção tão sustentado, com um grau de concentração expressiva que sublima a revolta, o negrume e a angústia como poucas vezes na música pós-romântica.
O realismo e a concisão imagética dos poemas são admiravelmente esposados pelo estilo alternadamente sombrio e irruptivo da música de Chostakovich, que apesar da forma atípica, para uma sinfonia, dota a obra de continuidade estrutural e organicidade musical mesmerizantes – para não falar da invenção melódica tão sua, que associamos indelevelmente à Rússia soviética. Não obstante o grande efetivo orquestral e a tensão dos clímaxes, as texturas são parcimoniosas e o coro, declamando ou murmurando, canta quase sempre em uníssono ou em oitavas – mais um elemento dessa pungência feita de desolação e sobreexcitação nervosa.
O primeiro movimento alterna estrofes que exploram o horror e a culpa de Babi Yar com relatos de dois outros episódios, sobre Anne Frank e um menino massacrado em Bielostok. No segundo movimento, os tambores em ritmo marcado, a maior animação da música e o tom enfático das vozes falam da resistência que o “Humor” jamais deixará de oferecer à tirania. “Na loja”, o Adagio que se segue, descreve pictoricamente as filas de humilhadas donas-de-casa em uma linha sinuosa nas cordas graves, entrelaçada a outra que, no registro médio, evoca a maneira como elas se insinuam cautelosas até o balcão. “Elas nos honram e nos julgam”, diz o poema, enquanto blocos e castanholas fazem as vezes de panelas e garrafas se entrechocando. A reserva da estupefação moral explode na última estrofe: “Nada está fora do alcance da força delas”.
A subjugada linha sinuosa torna-se reta, com permanente vibração surda na percussão, ao prosseguir sem interrupção no episódio seguinte, em ameaçador ‘sostenuto’ das cordas graves sob solo da tuba: é o “Medo”, componente constante da vida soviética. Frente ao negrume até aqui prevalecente, a sinfonia conclui em uma satírica meditação sobre o que é seguir “Carreira”. Em orquestração e harmonização reminiscentes da música do tcheco Martinu (1890-1959), no emprego de flautas e oboés oscilantes em ritmo de valsa lenta, ficamos sabendo que a verdadeira carreira não é a dos que se submetem, mas a de Galileu, Shakespeare ou Pasteur, Newton ou Tolstoi: “Seguirei minha carreira de tal forma que não a esteja seguindo”, conclui o baixo, com o eco do sino que abrira pesadamente a sinfonia, agora aliviado pela sonoridade onírica da celesta.
A Orquestra Petrobras Sinfônica esteve esplêndida, tocando como gente grande em cada naipe e coletivamente, sob a batuta do jovem maestro chileno Rodolfo Fisher. O barítono americano David Pittman-Jennings, embora não tenha aquele baixo profundo que impressiona nas interpretações russas, ostentou o metal nobre, a projeção plena e a capacidade de nuançar que permitiram total imersão nessa escorchante fantasia pânica. O Coro Sinfônico do Rio de Janeiro, dirigido por Julio Moretzsohn, esteve mais coeso e homogêneo que nunca, em sua formação exclusivamente masculina. Faltou apenas a reprodução/tradução dos poemas.
<— Shostakovich (esquerda), com o poeta Evgeni Ievtuchenko (direita) e o regente Kiril Kondrashin na estréia da controversa 13ª Sinfonia.
A seguir, eu, P.Q.P. Bach, copiei para vocês trechos traduzidos por Lauro Machado Coelho dos poemas utilizados na 13ª Sinfonia. Notem como o poema Babi Yar não é só aquilo que diz Clóvis Marques, mas uma clara alusão ao anti-semitismo soviético. Depois, mais comentários sobre a grande estréia da peça na URSS.
Babi Yar
Tenho medo.
Tenho hoje tantos anos
quanto o próprio povo judeu.
Parece que agora sou um judeu.
Perambulo no Egito antigo.
E eis-me na cruz, morrendo.
E ainda trago em mim a marca dos pregos.
Parece que Dreyfus sou eu.
Os filisteus são os que me denunciam e são o meu juiz.
Estou atrás das grades.
Estou cercado,
perseguido, cuspido, caluniado.
E as mocinhas, com suas rendas de Bruxelas,
rindo, me enfiam a sombrinha na cara.
(…)
Eu, chutado por uma bota, sem forças,
em vão peço piedade aos pogromistas.
(…)
Que a Internacional ressoe
quando enterrarem para sempre
o último anti-semita da terra.
Não há sangue judeu no meu sangue,
mas sou odiado com todas as forças
por todos os anti-semitas, como se judeu fosse.
E é por isso que sou um verdadeiro russo.
Humor
Czares, reis, imperadores
soberanos do mundo inteiro,
comandaram as paradas
mas ao humor não puderam controlar.
Ó euzinho aqui!
De repente me desembaraço de meu casaco,
faço um gesto com a mão e “Tchau!”.
Na loja
Dar-lhes o troco errado é uma vergonha,
enganá-las no troco é um pecado.
(…)
E, enquanto enfio no bolso as minhas massas,
olho, solene e pensativo,
cansadas de carregar seus sacos de compras,
as suas nobres mãos.
Elas nos honram e nos julgam,
nada está fora do alcance de suas forças.
Medos
Lembro do tempo em que ele era todo-poderoso,
na corte da mentira triunfante.
O medo se esgueirava por toda parte, como uma sombra,
infriltava-se em cada andar.
Agora é estranho lembrarmo-nos disso,
o medo secreto que alguém nos delate,
o medo secreto de que venham bater à nossa porta.
E depois, o medo de falar com um estrangeiro…
com um estrangeiro? até mesmo com sua mulher!
E o medo inexplicável de, depois de uma marcha,
ficar sozinho com o silêncio.
Não tínhamos medo de construir em meio à tormenta,
nem de marchar para o combate sob o bombardeio,
mas tínhamos às vezes um medo mortal,
de falar, nem que fosse com nós mesmos.
Uma Carreira
Os padres diziam que Galileu era mau e doido.
Que Galileu era doido.
Mas, como o tempo o demonstrou,
o doido era o mais sábio.
Um cientista da época de Galileu,
não era menos sábio que Galileu.
Ele sabia que a Terra girava,
mas tinha uma família
e, ao subir com sua mulher na carruagem,
achava que tinha feito sua carreira,
quando, na realidade, a tinha destruído.
Para compreender nosso planeta,
Galileu correu riscos.
É isso — eu penso — que é uma carreira.
Por isso, viva sua carreira,
quando é uma carreira como
a de Shakespeare e Pasteur,
Newton e Tolstói.
Liev?
Liev!
Por que eles foram caluniados?
Talento é talento,
digam o que disserem.
Os que insultaram estão esquecidos,
mas nós lembramos dos que foram insultados.
Com estes textos, foi difícil estrear a sinfonia. Em 1962, todos tiram o corpo fora, até o velho amigo Mravinski alega excesso de trabalho. Shostakovich volta-se para um moço talentoso — Kirill Kondrashin –, que aceita reger. O regente escala Viktor Nietchpailo para cantar na noite de estréia, deixando o jovem Vitali Gromadski “na reserva”. Sábia providência, pois Nietchpailo não suporta as pressões, acrescidas de um bate boca entre Ievtushenko e Nikita Kruschev, numa reunião entre artistas que devia dissuadi-lo a manter o texto de Babi Yar na sinfonia, e, amedrontado, cai fora. Gromadski é chamado. Muitos outros músicos “adoecem” e o coro desiste de cantar. Kondrashin e Ievtushenko dão discursos indignados e o coral retorna. Popov, o Ministro da Cultura, telefona a Kondrashin perguntando se a sinfonia pode ser apresentada sem o primeiro e quarto movimentos. Kondrashin responde que não, porque mutilaria a forma da sinfonia e todos sabem que o primeiro movimento fala sobre os anti-semitas soviéticos e de Babi Yar… “Ministro, se cortarmos, haverá reações indesejáveis…”. Ouve Popov afirmar e perguntar: “A responsabilidade é sua. Faça como achar melhor. A propósito, há algo que possa impedi-lo de reger esta noite?”. “Não, todos estamos em excelente forma…”, responde Kondrashin. Enquanto isso, as pessoas brigam pelos ingressos de um concerto que fez a Grande Sala do Conservatório vir abaixo, com os aplausos ocorrendo entre cada movimento. O CD 11 é a som desta estréia.
CD 10
SYMPHONY No.13 in B flat minor, Op.113
For Bass Solo, Bass Choir and Orchestra in B Flat Minor, Op.113, “Babi Yar”
1. Babi Yar (Adagio)
2. Yumor – Humour (Allegretto)
3. V Magazine – In the Store (Adagio)
4. Strachi – Fears (Largo)
5. Kariera – A Career (Allegretto)
Recorded: August 23, 1967
Arthur Eisen, Bass
Choirs of the Russian Republic
Alexander Yourlov, Conductor
Moscow Philharmonic Orchestra
Kirill Kondrashin, Conductor
Total time 56:06
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
E aqui, o registro ao vivo da primeira apresentação. Esta gravação é superior à postada acima. O baixo é o excelente e corajoso Vitali Gromadski.
CD 11
Shostakovich: The Complete Symphonies – No.13
Artist: Moscow Philharmonic Orchestra cond. Kirill Kondrashin
Length: 0:56:35
Notes: Recorded live in the Large Hall of the Moscow Conservatory on December 18, 1962 with State Academic Choir, Yurlov Russian Choir, Vitaly Gromadsky (bass).
Tracks:
01 I Babi Yar (Adagio) [15:03]
02 II Humor (Allegretto) [7:52]
03 III In the Store (Adagio) [11:06]
04 IV Fears (Largo) [10:30]
05 V A Career (Allegretto) [12:04]
BAIXE AQUI (Ao Vivo – Estréia da obra) – DOWNLOAD HERE (Live – Premiere)