Este magnífico álbum seria tocante mesmo sem as circunstâncias que, a seguir, passo a lhes descrever – e se o leitor-ouvinte é daqueles que prefere apreciar apenas o que escuta, sem se abalar com circunstâncias extramusicais, sugiro que passe direto ao download.
A fortaleza austro-húngara de Theresienstadt (em tcheco, Terezín) foi criada no século XVIII nas proximidades de Ústí nad Labem, ao norte de Praga. Afora sua função defensiva, também serviu como centro de detenção para prisioneiros políticos, mas foi durante o sombrio período da ocupação alemã da Boêmia (1939-1945) que o nome de Terezín foi definitivamente escrito na História da Infâmia.
Depois da anexação do território tcheco dos Sudetos (1938) e de garantir a influência sobre o estado-fantoche da Eslováquia (1939), o Reich transformou o restante do território da então Tchecoslováquia no Protetorado da Boêmia e Morávia, nominalmente autônomo e governado por tchecos colaboracionistas. Na prática, quem mandava no Protetorado era um Reichsprotektor, cargo que coube, entre outros, a dois dos mais truculentos membros dos quadros do Partido Nazista: Reinhard Heydrich (assassinado em 1942 por comandos tchecos) e Wilhelm Frick (executado em Nürnberg em 1946).
[agradecemos ao leitor Fehes pela correção do nome de Heydrich e do ano das mortes de Heydrich e Frick, enquanto pedimos desculpas aos leitores-ouvintes pelos erros que inacreditavelmente permaneceram aqui durante vários anos e revisões]
Tão logo tomaram as rédeas do poder, os nazistas começaram a esmagar os movimentos de resistência e expulsar os então mais de cem mil judeus tchecos de suas residências. A maior parte deles foi parar na cidadela de Terezín, que rapidamente viu sua população inflar para quase sessenta mil pessoas, amontoadas em condições degradantes e num espaço preparado para receber menos de sete mil. Além dos judeus da Boêmia, Morávia e Eslováquia, Terezín também recebeu deportados da Alemanha, Áustria, Países Baixos e Dinamarca, bem como prisioneiros de outros países.
Enquanto a fome, o frio e as epidemias ceifavam vidas entre os prisioneiros, o eficiente aparato de propaganda nazista vendia a imagem de Terezín como uma cidade-modelo, em que os judeus viviam em liberdade e celebravam sua cultura dentro do Reich: o emblema de um tratamento humano e respeitoso que era o antônimo exato do que recebiam. Numa ocasião especialmente infame, os nazistas “embelezaram” Terezín para uma inspeção da Cruz Vermelha e para um filme de propaganda, amontoando os prisioneiros famélicos e doentes em galpões para deixar à vista tão só os pouquíssimos internos em estado razoável de saúde. O resultado da medida, no auge de uma epidemia de tifo, foi mortífero.
Com o advento da infamemente denominada “Solução Final”, os guetos foram evacuados, e seus moradores, transportados para campos de extermínio. Além das 33.000 mortes devidas às péssimas condições de vida em Terezín, outras 88.000 pessoas que por lá passaram foram levadas ao encontro da morte em Auschwitz-Birkenau, Treblinka e Sobibor. No total, das mais de 150.000 vítimas do fascismo que viveram em Terezín, menos de 18.000 sobreviveram – entre as quais apenas 240 das 15.000 crianças.
Apesar da extrema dureza da vida no gueto, e dos abusos e censura rigorosa dos nazistas, a vida e a Arte floresceram em Terezín tanto quanto puderam. Artistas deportados continuaram a escrever, compor, pintar e esculpir suas obras. A pintora Friedl Dicker-Brandeis, notavelmente, deu aulas de Pintura e Desenho para muitas crianças, com o intuito de aliviar-lhes a opressão em que viviam. Estes jovens artistas, que em sua maioria encontraram a morte nos anos subsequentes, deixaram para a posteridade um pungente legado que não só descreve melhor do que quaisquer palavras os horrores que presenciaram, mas que também preservou seus nomes para a posteridade. Alguns destes preciosos desenhos ilustram esta postagem.
Sensibilizada com a história de Terezín, a diva sueca Anne Sofie von Otter rodeou-se de colaboradores para produzir este disco, inteiramente devotado a obras compostas por vítimas do terror nazista, a maior parte deles prisioneiros do gueto. Se algumas delas transpiram alegria, serenidade e escracho, é difícil nossas faringes não se apertarem ante a constatação de que a maior parte de seus compositores faleceu em 1944 – o ano da liquidação de Terezín. O que à primeira vista parece uma colagem com os gêneros mais diversos – de canções de cabaré a Lieder em tcheco e em iídiche, e até uma sonata para violino solo – ganha uma coesão admirável graças às interpretações muito sensíveis e reverentes.
No fim, ao extinguir-se a última nota do violino, o silêncio cala fundo, e é como se uma voz nos sussurrasse:
– Esquecer… é repetir.
NUNCA, pois, esqueçamos Terezín.
TEREZÍN/THERESIENSTADT
Anne Sofie von Otter, mezzo-soprano
Christian Gerhaher, barítono
Daniel Hope, violino
Bengt Forsberg e Gerold Huber, piano
Ib Hausmann, clarinete
Philip Dukes, viola
Josephine Knight, violoncelo
Bebe Risenfors, violão e acordeão
Ilse WEBER (1903-1944)
01 – Ich wandre durch Theresienstadt
Anne-Sophie von Otter, Bengt Forsberg, Bebe Risenfors
Karel ŠVENK (1917-1945)
arranjo de Moshe Zorman
02 – Pod destnikem
03 – Vsecho jde!
Anne Sofie von Otter, Bengt Forsberg, Bebe Risenfors
Ilse WEBER
04 – Ade, Kamerad!
Christian Gerhaher, Gerold Huber
05 – Und die Regen rinnt
Anne Sofie von Otter, Bengt Forsberg
Adolf STRAUSS (1902-1944)
arranjo de Moshe Zorman
06 – Ich weiß bestimmt, ich werd Dich
Anne Sofie von Otter, Bengt Forsberg
Emmerich KÁLMÁN (1882-1953)
07 – Gräfin Mariza – Opereta em três atos: Terezín-Lied
Christian Gerhaher, Gerold Huber
Martin ROMAN (1910-1996)
08 – Karrussell
Anne Sofie von Otter, Bengt Forsberg
Ilse WEBER
09 – Wiegala
Anne Sofie von Otter, Bebe Risenfors
Hans KRÁSA (1899-1944)
Três Canções sobre poemas de Arthur Rimbaud, traduzidas por Vítězslav Nezval:
10 – Čtyřverší
11 – Vzrušení
12 – Přátelé
Christian Gerhaher, Ib Hausmann, Philip Dukes, Josephine Knight
Carlo Sigmund TAUBE (1897-1944)
13 – Ein jüdisches Kind
Anne Sofie von Otter, Bengt Forsberg, Ib Hausmann
14 – Drei jiddische Lieder (Brezulinka), Op.53 – no. 1: Berjoskele
Anne Sofie von Otter, Bengt Forsberg
Seis Sonetos de Louize Labané, Op.34
15 – No. 1: “Claire Vénus”
16 – No. 2: “On voit mourir”
17 – No. 3: “Je vis, je meurs…”
Anne Sofie von Otter, Bengt Forsberg
Pavel HAAS (1899-1944)
Quatro Canções sobre Poemas Chineses
18 – Zaslechl jsem divoké husy
19 – V bambusovém háji
20 – Daleko měsíc je domova
21 – Probděná noc
Christian Gerhaher, Gerold Huber
Erwin Schulhoff [Ervín ŠULHOV] (1894-1942)
Sonata para violino solo (1927)
22 – Allegro con fuoco
23 – Andante cantabile
24 – Scherzo
25 – Finale
Daniel Hope
Vassily Genrikhovich
Belo texto. Dura realidade. Dói e esfria a alma ao memorizar tais cenas vislumbradas nos desenhos. É a podridão do ser humano que se repete nos tempos atuais. Obrigado.
Este texto, junto e principalmente devido à expressividade das fotos, comoveu-me neste domingo! Uma linda e triste postagem, ma ao mesmo tempo nos faz conhecer um pouco mais do episódio real e tão horrendo que foi o nazi-fascismo na História. O mais fascinante é a possibilidade de estarmos mais próximos da realidade de Terezín mediante os desenhos e à música. PQPBACH transpôs a barreira da música e nos brindou com desenhos e História. É sempre um prazer estar aqui. Parabéns Vassily, belíssima postagem. Obrigado e abraços.
Vassily sempre surpreendendo com a criatividade das postagens. Obrigado por mais essa beleza!
Lembrar sempre para não repetir nunca!
Avicenna
É verdade! Lembrar sempre pra não repetir nunca! O Homem é o animal que mais alto voa e quando tropeça, é o que despenca para o mais profundo buraco. Daí ser necessaria uma permanente e severa vigilancia dos instintos e das inclinações. As catastrofes não se encontram prontas. Elas vão se formando lentamente nos espiritos, como se fosse assim um nada…imperceptiveis…um preconceito aqui, outro ali, uma intolerância…a Paz exige, antes de mais nada, uma dose imensa de paciência e é aqui que reside a sabedoria!
manuel
Vassily, peço-te permissão não só para replicar tal obra que ainda não ouvi, mas principalmente, a força do texto e das gravuras apresentadas nesta comovente e triste postagem.
No aguardo de sua resposta.
Milton
Olá, Milton!
Tens o sinal verde!
Onde pretendes publicá-los? A maior parte das imagens pertence ao Museu Judaico em Praga, então não acredito que estejam disponíveis para uso comercial.
http://www.jewishmuseum.cz/en/explore/permanent-collection/children-s-drawings-from-the-terezin-ghetto-1942-1944/
no blog harmoniasangreal.blogspot.com.br
Sem problemas. Você já tinha, de antemão, minha autorização. Só tinha dúvidas acerca do uso das imagens!
Obrigado!
Os link abre, mas diz que a página não está disponível. 🙁
O servidor está fora do ar, no momento! 🙁
Já consegui 🙂 obrigado.
Prezado Vassily,
Ainda não ouvi o disco, mas gostaria de lhe enviar um grande abraço de gratidão pelo belo e pungente texto, o qual me emocionou, pois desconhecia tais fatos. Que a arte que amamos, a Música, possa sempre ajudar a unir as pessoas em busca de ideais elevados.
Muito obrigado e um grande abraço,
Nilton Maia
Caro Nilton,
Grato pelas gentis palavras. Histórias como as da arte que floresceu em Terezín fazem-me lembrar da letra de “An die Musik” de Schubert e do que escreveu Schopenhauer sobre a Arte e as penúrias da vida. Um abraço!
Apenas em prol da correção histórica, acrescento que “Reinhard” Heydrich sofreu um atentado em Praga em 27 de maio de 1942 e faleceu na mesma cidade em 4 de junho de “1942”, e não como constou.
Do mesmo modo, Wilhelm Frick foi executado em Nürnberg em 16 de outubro de “1946”, depois dos julgamentos do pós-guerra que levaram o nome da cidade.
Você foi muito gentil ao mencionar “apenas” a necessidade de correção histórica. Incrível como pude incorporar erros factuais tão grosseiros ao texto e como eles escaparam-me, por tanto tempo, nas revisões. Errar o nome de Heydrich é daqueles enganos que alguém até poderia atribuir ao autocorretor. Mas errar o ano do atentado que resultou não só em sua morte, mas, principalmente, na represália que levou, entre outros, ao massacre de Lidice, que sempre calou fundo cá comigo, é incompreensível, assim como a bobagem de insinuar que todos os julgamentos de Nürnberg e a execução de suas sentenças capitais aconteceram num só semestre do mesmo ano em que, em maio, o Reich capitulou. Suas correções, pelas quais muito agradeço, foram imediatamente incorporadas ao texto, com os devidos créditos.
O bizarro neste álbum é que, ao que parece, o Schulhoff nunca esteve em Terezín. E, de qualquer forma, ele tem música boa o suficiente para ser gravado e tocado independente disso. Se fizer sentido em algum momento reatualizar o link de download… agradecia.
Você tem toda razão. Escrevi esse texto há muito tempo, e acho que estava ou sensibilizado pelo doloroso tema, ou incapacitado pelo sono, pois cometi nele muitos erros factuais – alguns que já foram apontados, e agora este que você apontou, e que já foi corrigido no texto. Como agradecimento, restaurei o link de download. Espero que aprecie a gravação, e particularmente a maravilhosa sonata de Schulhoff.
É muita gentileza a sua. Obrigado. E um abraço.