Domenico Scarlatti (1685-1757): Sonatas (Konstantin Scherbakov, piano)

Vimos aqui que, nos tempos de Scarlatti pai e filho, a palavra improviso era reservada à poesia, não sendo usada no sentido musical em qualquer das línguas latinas!

Já a palavra “fantasia”, com significado correlato ao de improviso, aparece na edição de 1694 do Dictionnaire de l’Academie Française: Fantaisie. s.f. L’Imagination [Fantasia, subst.fem. A Imaginação], seguida de várias descrições complementares, incluindo a seguinte:
“Fantasia se diz também de uma coisa inventada por prazer, e na qual se seguiu mais o capricho do que as regras da Arte. ‘Uma fantasia de Pintor, uma fantasia de Poeta, de Músico, de tocador de alaúde’.” No Dicionário Musical de Rousseau (1768), só se fala em “improvisar” para cantores e poetas, jamais para música instrumental.

O Padre Antonio Soler – que foi aluno, assistente e copista de D. Scarlatti – escreveu em 1762 o tratado Llave de la modulación, y antigüedades de la música. Ali, Soler busca conceituar a modulação que ele e seus contemporâneos faziam no cravo, pianoforte e órgão, normalmente de forma improvisada: “a Modulação, segundo sua definição geral, é a suavidade nos trânsitos de um tom a outro”. No prefácio, Don Joseph de Nebra, Organista e Vice-Maestro da Real Capela de Sua Majestade, afirma: “Confesso com ingenuidade que nunca pensei que pudessem dar regras fixas para Modulações tão sofisticadas: acreditava que eram produzidas pela prática, pelo bom gosto, pela fineza do ouvido …” E Don Antonio Ripa, outro grande organista, ao elogiar a obra de Soler como importante para aqueles que modulavam [ou seja, improvisavam] em igrejas, até porque, como ele diz nas entrelinhas, nem todos eram tão bons como Soler, alguns machucavam os ouvidos: “Julgo que esta Obra há de ser de muita utilidade, não só para Mestres de Capela e Organistas, a quem abre portas com várias regras e Modulações de bom gosto, para que à sua imitação suas produções musicais tenham novidade e boa harmonia, sem incorrer no defeito da aspereza e sem serem ingratas ao ouvido”.

C.P.E. Bach, músico da mesma geração de Soler, escreveu um Ensaio sobre a verdadeira arte de tocar os instrumentos de teclado (Berlin, 1753) e no prefácio ele vende seu peixe:

“Não podemos ignorar quantas exigências coloca o teclado; ninguém se contenta de exigir de um tecladista o que se exige de qualquer instrumentista, a capacidade de executar, segundo as regras da boa interpretação, uma obra escrita para seu instrumento. Exige-se do tecladista também que ele executa Fantasias [isto é, improvisos!] de todo tipo, que ele crie naquele momento sobre um tema dado, segundo as regras mais severas da harmonia e da conduta melódica, […] que ele seja mestre na ciência do baixo contínuo, que ele possa realizá-la com discernimento.”

Ou seja, Soler e C.P.E. Bach não mencionam improviso, mas é disso que eles estavam falando. Só quando a fidelidade ao texto torna-se padrão é que o improviso torna-se um momento específico, percebido e valorizado, como nas cadências dos concertos para piano de Mozart. Nos tempos dos Scarlatti, o improviso era uma daquelas coisas como o ar que respiramos, óbvio demais para que alguém fale a respeito…

Este disco de hoje é um deleite para os ouvidos justamente por esse equilíbrio entre por um lado a “arte da modulação”, aprendida com muitos anos de estudo, e por outro lado os saltos e modulações de tipo improvisado, executados com pequenas liberdades rítmicas e de dinâmica pelos bem treinados dedos do intérprete. Hoje professor em Zurich – tendo entre suas alunas a jovem Yulianna Avdeeva que, como ele, é muito cuidadosa com o som que faz e pouco preocupada com holofotes e selfies -, o pianista russo Scherbakov executa as obras de D. Scarlatti com admirável clareza sonora, o que quer dizer que todas as vozes se fazem ouvir com seu caráter específico. Ao mesmo tempo em que as particularidades soam cheias de fantasia, o conjunto, o todo é ordenado e coeso, seguindo – e quebrando brevemente quando necessário – as regras severas mencionadas por C.P.E. Bach. (Como propôs o historiador francês François Furet, a desobediência às regras e leis é um “dilema bem conhecido” dos historiadores que estudam o Antigo Regime: “no alto, a minúcia extraordinária na regulamentação de tudo; em baixo, desobediência crônica”).

Este é mais um disco da integral das sonatas de D. Scarlatti que vai sendo lentamente lançada pela Naxos: não vou postar todos os discos pois nem todos são tão brilhantes como este aqui. Scherbakov gravou, pela Naxos, obras românticas extremamente virtuosísticas: Estudos de Liszt e de Lyapunov, Concertos de Tchai e de Rach… Ele não é um nome muito associado ao barroco, o que só me faz lamentar que não tenha gravado mais obras de Scarlatti, Soler e cia.

Domenico Scarlatti, – Complete Keyboard Sonatas Vol. 7
1 Sonata In F Major, K.483/L.472/P.407 2:53
2 Sonata In F Major, K.542/L.167/P.546 5:40
3 Sonata In B Flat Major, K.360/L.400/P.520 4:22
4 Sonata In C Minor, K.40/L.375/P.119 1:51
5 Sonata In C Major, K.422/L.451/P.511 5:34
6 Sonata In F Minor, K.238/L.27/P.55 4:06
7 Sonata In F Major, K.17/L.384/P.734:04
8 Sonata In A Major, K.500/L.492/P.358 3:15
9 Sonata In A Major, K.114/L.344/P.141 4:24
10 Sonata In E Minor, K.291/L.61/P.282 4:56
11 Sonata In G Major, K.328/L.S27/P.485 4:10
12 Sonata In A Major, K.320/L.341/P.335 3:10
13 Sonata In G Major, K.283/L.318/P.482 4:45
14 Sonata In C Major, K.464/L.151/P.460 3:14
15 Sonata In D Major, K.313/L.192/P.398 3:13
16 Sonata In D Major, K.479/L.S16/P.380 4:25

Konstantin Scherbakov, piano
Recorded at Potton Hall, Suffolk, UK, 2000

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Uma das coleções manuscritas de sonatas pertencentes à Rainha Bárbara da Espanha

Pleyel

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