Não sei se é mais fácil ou se é mais difícil falar de uma obra que foi tão importante em minha vida, que embalou meus sonhos amorosos de adolescência, que me fez acreditar na possibilidade de uma paixão correspondida. Naquela fase de transição, naquele período confuso que vai dos 15 ao 20 e poucos anos, é difícil entender os nossos sentimentos, eles estão todos à flor da pele.
A ópera ‘La Bohéme’ surgiu em minha vida bem nesta fase complicada, de transição. Comprei o LP em uma banca de revistas, na verdade não trazia a obra em sua íntegra, mas sim as principais árias. Na época, eu nutria uma paixão não correspondida por uma colega de aula, que também não se decidia. Digamos que ‘Che Gelida Manina’ foi a trilha sonora de minha vida naquele período. Emprestei o LP para ela, que devolveu algumas semanas depois dizendo que era a música mais bonita que já tinha ouvido. Expliquei-lhe a trama, e ela lamentou o tráfico desfecho. Mas fazer o que, era Puccini, era uma ópera, que em sua grande maioria sempre terminam em finais trágicos. Mas a morte da heroína já era uma morte anunciada, sabíamos o desfecho da trama desde o começo, mas mesmo assim choramos, assim como lamentamos a morte trágica de Carmen.
Mimi, a frágil Mimi, conhece o poeta Rodolfo, e se envolve com ele, depois de juntos cantarem uma das mais belas árias já compostas, a já citada ‘Che Gelida Manina’ que mãozinhas geladas… o envolvimento entre eles é confuso, ele é um boêmio, não tem um emprego fixo, deve pro seu senhorio, gasta o pouco que ganha na boemia, claro, por isso a ópera tem esse nome.
A já saudosa Mirela Freni realizou duas gravações dessa ópera. A primeira, em 1964, tinha Nicolau Gedda como Rodolfo, e foi dirigida pelo jovem maestro norte americano Thomas Schippers, na época com 34 anos de idade. Aliás, esse maestro morreu muito jovem, meros 47 anos, de câncer no pulmão. Trágica coincidência, eu diria, a vida imitando a arte, sei lá. Na segunda vez, Mirela Freni gravou com seu amigo Luciano Pavarotti, gravação dirigida por Herbert von Karajan, e que fez muito sucesso à época, e provavelmente, a gravação mais famosa dessa ópera. e é essa a versão que estamos trazendo para os senhores.
Mirela Freni nasceu em Modena, Itália, em 1935, e morreu há poucos dias, mais especificamente dia 10 de fevereiro de 2020, na mesma Modena onde nasceu, e teve uma longa carreira. Durante alguns anos foi a soprano favorita de Herbert von Karajan, e com ele realizou gravações antológicas. Foi amiga de infância de Pavarotti, e continuaram grandes amigos durante toda a vida.

La Bohème – Histórias
Henri Murger (1822-1861), nascido em Paris, aos 27 anos publicou um livro “Scènes de la Vie Bohème” , aproveitando as lembranças do tempo em que conviveu com pintores, escritores, filósofos, músicos e mulheres no Quartier Latin, na capital francesa. Quem teve a idéia primeiro, ninguém sabe. O certo é que Giacomo Puccini e Leoncavallo compuseram, na mesma época, uma ópera chamada “La Bohème”, ambas inspiradas no livro de Murger. Claro que deu treta entre os dois compositores, Leoncavallo acusava Puccini de ter tomado conhecimento da obra por seu intermédio porque havia comentado que estava criando uma ópera baseada no livro “Scènes de la Vie Bohème”. Puccini teria copiado sua ideia e passado a frente. Por sua vez Puccini disse que o livro chegara em suas mãos por acaso e num dia de chuva resolveu ler, gostando do enredo. Seja como for, tanto Puccini como Leoncavallo possuíam boas razões para gostar do assunto e ambos escreveram suas óperas. Ambos tinham a mesma idade e haviam passado, na mocidade, por muitas das situações descritas no famigerado livro de Murger. A versão de Puccini estreou um ano antes da versão de Leoncavallo.
Quando Giacomo Puccini estava fazendo seus estudos em Milão conheceu pintores, escritores, filósofos, músicos e belas mulheres cujo estilo de vida muito se assemelhava aos personagens de Murger. Sua convivência com essas criaturas ficaria nostalgicamente marcada em seu espírito. Suas recordações estudantis em Milão o motivaram a compor uma ópera. O tema orquestral, que abre a ópera, foi tirado de um “Capricho Sinfônico”, composto como peça do exame final no Conservatório. Sua Mimi confunde-se um pouco com as empregadinhas e as meninas aprendizes de costura que eram suas paqueras na época, os outros personagens são muito semelhantes as pessoas que conhecera pessoalmente nos ambientes boêmios de Milão.

Para sua ópera, Puccini escolheu os libretistas Luigi Illica (1857–1919) – responsável por reescrever o romance de Murger, e Giuseppe Giacosa (1847–1906) – responsável por escrever os versinhos. A gestação de “La Bohème” durou quatro anos, com muito empenho e paixão na elaboração, Puccini, Illica, Giacosa e dando pitacos o editor Ricordi, ora brigado, ora entusiasmados, pontilhando o trabalho com rompimentos e reconciliações no bom estilo italiano, chegaram afinal aos resultados esperados.
Finalmente, em 1 de fevereiro de 1896, “La Bohème” estreou no Teatro Regio de Turim. Em carta enviada a um amigo, Puccini conta como foi a aceitação na noite de estreia: “O público a acolheu bem. A crítica, no dia seguinte, falou mal. Mesmo naquela noite, entre um ato e outro, nos corredores e no palco, ouvi sussurrarem perto de mim: – pobre Puccini, desta vez errou o caminho; esta ópera não terá vida longa…. Passei uma noite péssima e de manhã recebi comentários adversos dos jornais”. A verdade é que a crítica da época esperava uma obra na mesma linha trágica e vigorosa de “Manon Lescaut”, e não esperava uma escrita musical doce com texto informal, principalmente no início do segundo e terceiro atos. Mas sabemos que acabaria por obter um sucesso sem precedentes. Aliás como curiosidade podemos referir que a direção da primeira apresentação esteve a cargo de um jovem maestro de 28 anos chamado Arturo Toscanini.
Certa vez Giacomo Puccini, organizou testes para buscar um tenor para o papel principal de La Bohéme. Puccini ficou tão impressionado com a voz do jovem Enrico Caruso que, diz-se, perguntou-lhe “…quem o enviou para mim? Deus?”.
La Bohème – Enredo
A ópera começa com um ato que não estava previsto no primeiro rascunho do libreto, mas que foi criado por exigência expressa de Puccini. Esse ato surge de fato como uma forma de apresentação das personagens e traz uma maior consistência à narrativa. O libreto define a ação em Paris, por volta de 1830. Este não é um cenário aleatório, mas reflete as questões e preocupações de uma época em que, após as revoltas da revolução e da guerra, os artistas franceses perderam sua base tradicional de aristocracia e apoio da Igreja. A história se concentra na juventude autoconsciente, em desacordo com a sociedade em geral – um ambiente boêmio que é claramente reconhecível em qualquer centro urbano moderno.
Ato 1
A ópera começa em um sótão no bairro de Montmartre na véspera de Natal (a ópera se passa durante a primeira metade do século XIX), mas não é a atmosfera natalina que nela se desenrola o enredo. Marcello, o pintor e Rodolfo, o poeta, estão desesperados pelo frio que “inunda” a sala e faz com que Rodolfo queime seus escritos na lareira. Nelas, Colline, o filósofo do grupo, que pretende penhorar alguns livros justificando que a pobreza o assombra (“Già dell’Apocalisse appariscono i segni”). Quando a chama da chaminé termina de apagar, aparece Schaunard, o músico, com comida, lenha e, principalmente, dinheiro, de um cliente que o contratou. Depois de convencê-los de que deveriam deixar a comida para outra ocasião melhor e ir ao Quartier Latin para desfrutar as festas, o proprietário, Sr. Benoit, chega lembrando-os de que devem pagar o aluguel. Eles o convidam na maior cordialidade a beber vinho e prometem pagar a dívida, mas implorando para que fiquem por mais um tempo. A conversa com o proprietário vira e termina com os quatro boêmios o expulsando “desta casa honesta” quando falam sobre a suposta infidelidade do proprietário. Mas o grande momento emocional é a cena com Rodolfo, que ficou apenas para terminar um artigo. Mimì, uma vizinha, aparece para tentar acender a sua vela que havia sido apagada. A jovem diz chamar-se Mimi, aliás Lucia, e diz trabalhar como bordadeira. Rodolfo diz que é poeta e declara-lhe o seu amor. Os dois são pegos olhando um para o outro e é aí que acontece um dos maiores duetos já compostos, Rodolfo pega a mão fria de Mimi enquanto eles procuram a chave que ela havia perdido na casa e canta a famosa “Che gelida manina”, cujo tom melódico é apenas superado pela seguinte: Mimì canta “Sim, meu Chiaman Mimì”. Mas o melhor momento ainda está por vir: aquele em que os dois acabam se rendendo àquele amor nascido neles e que termina o ato no dueto “O soave fanciulla” e aquele “amor, … amor, …. amor” que ambos cantam quando, juntos, saem do sótão, a caminho do Quartier Latin. Lindo demais.
Ato 2
Quando chega ao Quartier Latin e, especificamente, ao Café Momus, Rodolfo apresenta Mimi aos amigos que a acolhem no grupo “Questa è Mimì, gaia fioraia ”. Enquanto eles estão comendo e conversando sobre Rodolfo e o amor, chega Musetta, ex-amante de Marcello, acompanhada de Alcindoro, que tenta ignorá-la em vão … o que causa nela um interesse renovado por ele “Quando me’n vo soletta per la via”. Museta canta e fala alto, tudo fazendo para chamar a atenção de Marcello. A cena evolui de tal maneira que Marcello acaba cedendo a seus encantos na expandida área “O gioventú mia, tu não sei morta”, onde ele já revela abertamente sua intenção de retornar a ela. Os seis amigos saem do Café Momús aproveitando a agitação causada pela chegada de um desfile. Bom a conta fica por conta do velho Alcindoro que não estava presente quando o grupo sai do Café Momus.
Ato 3
Este ato passa-se nas ruas de um bairro limítrofe da capital parisiense, junto da entrada dum cabaret, “O Porto de Marselha”, onde o Pintor Marcello está hospedado com Musetta, e onde naquela noite, também lá ficaram Rodolfo e Mimi. É Janeiro e as ruas estão cobertas de neve. Mimi procura Marcello queixando-se de Rodolfo que manifesta constantes crises de ciúme. Rodolfo aproxima-se e Mimi esconde-se. Então Marcello tenta saber, por Rodolfo, o que se passa, e o poeta diz ter medo daquilo que possa acontecer com Mimi, ela está muito doente e sente que ele é o culpado pelo mal que a mata e preocupado porque ele sabe que o amor não é suficiente para salvá-la. Mimi, que estava ouvindo as frases de Rodolfo, deixa o esconderijo para encontrá-lo e os dois começam um dueto em que, primeiro Mimi se despede de Rodolfo “onde lieta usou o tuo grido d’amore” e depois cantam juntos “Ci lascerem alla stagion dei fior” são juras de amor dos dois jovens, em contraste com uma discussão acalorada entre Musetta e Marcello.
Ato 4

Passado algum tempo, estamos de volta no sótão do primeiro ato em que Rodolfo e Marcello trabalham … ou tentam trabalhar porque os pensamentos melancólicos sobre Mimi e Musetta são tão intensos que os impedem de se concentrar “O Mimì tu più non torni”. Colline e Schaunard chegam, e a melancolia dá lugar a uma situação descontraída que lembra as cenas anteriores à chegada de Mimi com a vela no primeiro ato esta situação é interrompida com a chegada da alarmada Musetta “C’è Mimì che mi segue e sta male ” que traz consigo uma debilitada Mimi. Uma vez sozinhos, Rodolfo e Mimi iniciam uma conversa em que a felicidade da reunião é nublada pela doença de Mimi. Nesse momento, o ouvinte é transportado para o primeiro ato quando Mimi evoca o primeiro encontro entre eles, a vela apagada, a chave perdida … até que um ataque de tosse nos devolve à triste realidade. Musetta entrega uma luva para as mãos de Mimi se aquecerem é o começo do fim. Com as mãos na luva, ela diz as últimas palavras … e morre. Enquanto Musetta reza para que Mimi ainda esteja viva e se recupere, Schaunard, que está ao lado de Mimi, diz a Marcello que ela morreu. Rodolfo, que ainda não conhece o fim de sua amada, observa os rostos … até que Marcello vem abraçá-lo com o rosto transtornado. Rodolfo, desesperado, vai para o leito onde Mimi jaz com gritos de dor (“Mimi … Mimi … Mimi …”). Cai o pano.
“La Bohème” , a apaixonada, atemporal e indelével história de amor entre jovens artistas de Paris, podemos afirmar que é uma das óperas mais populares do mundo. Tem uma capacidade maravilhosa de causar uma poderosa primeira impressão e de revelar tesouros inesperados após dezenas de audiências. À primeira vista, “La Bohème” é a representação definitiva das alegrias e tristezas do amor e da perda; em uma análise mais minuciosa, revela o profundo significado emocional oculto nas coisas triviais – um chapéu, uma luva, um sobretudo velho, um encontro casual com um vizinho – que compõem nossa vida cotidiana.
Pessoal, que subam as cortinas do espetáculo e apreciem esta que é uma das óperas mais amadas . Há, certamente, poucos trabalhos, que de maneira tão perfeita fixam as mais variadas expressões da vida e do cotidiano. A delicada poesia, movimentação popular, o tranquilo idílio amoroso, humor e tragédia, tudo fundido numa perfeita unidade, o mestre Puccini não interrompe a melodia um instante sequer, e atingindo nas áreas de Rod16olfo e Mimi do primeiro ato, no humor do final do segundo ato, no quarteto do terceiro ato e na cena da morte de Mimi, alturas que sempre comovem. A história da pobre costureirinha, irmã gêmea proletária da Traviata, que morreu no pequenino e gélido quarto em que acalentou seu primeiro e único sonho de amor, comoveu milhões de criaturas – somos estas criaturas.
Puccini – La Bohème
Personagens e intérpretes
Rodolfo, poeta parisiense pobre que se apaixona por Mimi (tenor) – Luciano Pavarotti
Marcello, pintor, companheiro de apartamento de Rodolfo (barítono) – Rolando Panerai
Colline, filósofo, vive no mesmo apartamento de Marcello e Rodolfo (baixo) – Nicolai Ghiaurov
Schaunard, músico, é o quarto colega de apartamento (barítono) – Gianni Maffeo
Mimi/Lucia, uma pobre costureira (soprano) – Mirella Freni
Musetta, jovem namoradeira (soprano) – Elizabeth Harwood
Schönberger Sängerknaben
Chor der Deutschen Oper Berlin
Berliner Philharmoniker
Herbert von Karajan – Conductor

FDPBach e Ammiratore


Seis quartetos… de uma só vez?



Volta e meia o resmelengo Ludwig abria uma janela em suas preocupações habituais mais prementes para impressionar-se com alguém. Na maior parte das vezes, esse alguém trajava vestidos e anáguas, pertencia à aristocracia, e estava do outro lado de um abismo amoroso intransponível para um homem de modestas origens. Noutras, Beethoven impressionava-se com algum músico que lhe instigava a produção febrilmente rápida de alguma obra para seu instrumento – como foi com os irmãos Dupont, que inspiraram as faceiras sonatas para violoncelo do Op. 5, e com o boêmio Jan Václav Stich (1746-1803), virtuose da trompa, mais conhecido pela versão italiana de seu nome, Giovanni Punto (sim: “Stich”=”ponto”. Ponto para Stich, pela marotice – e outro para mim, pelo trocadilho).










Assim como com os concertos para piano e orquestra, qualquer um que propusesse um quinteto para piano e sopros no final do século XVIII teria um imenso fantasma a assombrá-lo: o de Mozart, que compusera para o gênero uma obra-prima, em Mi bemol maior. Beethoven, sempre disposto a calcar-se em modelos do passado para buscar sua própria linguagem, não só se dispôs a escrever um quinteto para piano e sopros, como o fez para o mesmo conjunto e na mesma tonalidade que o do mestre de Salzburg, num gesto quase confesso de que nele buscava não só inspiração, mas que com ele pretendia ser cotejado.














Enfim, concertos para piano – e Ludwig deve ter pensado o mesmo quando publicou esses dois, em 1801. Ele já os vinha tocando havia algum tempo, em seu afã de consolidar-se em Viena como um compositor-virtuose ao feitio do jovem Mozart, cujos extraordinários concertos para piano pairavam intimidadoramente sobre qualquer desgraçado que se aventurasse pelo gênero. Era fundamental que um postulante ao panteão do teclado tivesse seus cavalos de batalha, e por isso Lud Van pariu cuidadosamente estes dois, após longa e insegura gestação. Percebam que eu não os numerei no título, enquanto lhes explico: além de nenhum deles ter sido o primeiro concerto escrito por Beethoven – distinção que cabe a um concerto em Mi bemol (WoO 4), composto ainda na adolescência e do qual restou apenas a parte para piano -, o primeiro a ser publicado foi o segundo a ser estreado, e vice-versa. Assim, o concerto Op. 15, composto em 1795, foi estreado nove meses depois do Op. 19, que marcou a estreia pública de Beethoven como pianista em Viena e já vinha sendo esboçado desde os tempos de Bonn. Embora baseiem-se firmemente em modelos de Haydn e Mozart, há amplos toques beethovenianos nas modulações inesperadas e mudanças bruscas de humor, e na escrita pianística, tão brilhante quanto a que se esperaria duma obra composta para pavonear sua capacidade ao teclado. O compositor legou-nos suas próprias cadências para as obras, que são as utilizadas na presente gravação e nos dão um sabor de seu talento improvisatório – que, junto com a prestidigitação pianística, era o que mais incensava a fama do rapaz antes de se firmar como compositor.





Depois de alguns de vocês transformarem-me em bonequinho de voodoo por ter trazido duas postagens em sequência com pianistas malditos na interpretação de Beethoven, redimo-me em alto estilo enquanto desinfeto as agulhadas. Ninguém me espetará, espero, por postar Murray Perahia. Sua seleção de repertório para esta gravação é perfeita: abre com a sonata em Lá bemol maior, com suas belíssimas variações iniciais e a marcha fúnebre, prossegue com o par de diminutas sonatas do Op. 14, e encerra com a majestosamente serena sonata Op. 28, alcunhada “Pastoral”.





Depois de Gould, Horowitz.






![.: interlúdio :. Duke Ellington — 2nd Sacred Concert [Live]](https://pqpbach.ars.blog.br/wp-content/uploads/2020/02/duke.jpg)


Se apreciadas no contexto da evolução de Beethoven como compositor, muito evidente nas obras solo para piano, as melífluas sonatas para violino do Op. 12 podem parecer até um retrocesso: clássicas, bem no prumo das de Mozart, sem sobressaltos, soam até mais antigas que aquelas para violoncelo do Op. 5, compostas dois anos antes. Diferentemente destas, frutos do contato com virtuoses numa corte real, e das sonatas para violino Op. 47 (a “Kreutzer”) e a Op. 96, dedicadas a solistas ilustres, as Op. 12 não tinham intérpretes específicos em vista, tampouco grandes pretensões – como atesta seu frontispício, aliás, que as descreve sem-cerimoniosamente como “sonatas para o pianoforte ou cravo, com acompanhamento de um violino”. Dedicando-as ao ainda muito influente Antonio Salieri, com quem pretendia estudar, Beethoven provavelmente quis fazer bom cartaz, pisando terreno firme e não ferindo as sensibilidades do velho professor. Parece que funcionou: em dois anos, ele iniciaria seus estudos com Salieri, dentro de seu projeto de fazer fortuna escrevendo óperas em italiano.


As duas obras para trio que hoje apresentamos são mais conhecidas em outras roupagens. O Op. 11 foi concebido para clarinete, na tonalidade de si bemol que lhe é tão confortável, mas rapidamente acomodado numa versão com violino, instrumento mais encontradiço, 


Parem tudo o que estão fazendo e ouçam isso. Não exagero: eu parei minha série de postagens da obra completa de Beethoven em pleno Ano Beethoven, e acho que Ludovico não se chatearia com a reverência ao demiurgo João Sebastião, recriado pelo talento do mais fascinante dos violinistas em atividade, o canadense James Ehnes. Atentem para os andamentos mais lentos que o habitual, que permitem à linda entonação de Ehnes destacar as diversas vozes com clareza, particularmente nas fugas. Percebam seu uso comedido do vibrato, tão em desuso nessa era de preferências historicamente informadas, que nem de longe descamba para romantismo ou, menos ainda, sacarose sentimental. Maravilhem-se com momentos como o prelúdio da terceira partita, que cintila e efervesce. E – nem sei o que lhes dizer – SINTAM nessa Chacona, também mais lenta que o costumeiro, o domínio absoluto que Ehnes tem sobre tudo, e sobretudo ao pulso do tempo, enquanto desenrolam-se as engenhosas variações na criação instrumental suprema de Bach. Eu fui fisgado logo no primeiro acorde da primeira sonata, e só parei de ouvir muito depois da última partita terminar, para então colocar novamente a Chacona para conseguir acreditar no que meus sentidos me diziam: que aquela era a mais bela versão das sonatas e partitas que conheci na última década, e certamente uma das melhores que jamais existirão.

