Para honrar a memória e celebrar o legado extraordinário de Arthur Moreira Lima, um dos maiores brasileiros de todos os tempos, publicaremos a integral da coleção Meu Piano/Três Séculos de Música para Piano – seu testamento musical – de 16 de julho, seu 85° aniversário, até 30 de outubro de 2025, primeiro aniversário de seu falecimento. Esta é a décima das onze partes de nossa eulogia ao gigante.
Partes: I | II | III | IV | V | VI | VII | VIII | IX | X | XI
Um povo impedido do belo fica embotado.
Arthur Moreira Lima
E como desimpedi-lo?
Arthur, veterano polinizador de beleza planeta afora, queria agora levá-la a seu povo. Depois do sucesso de seus recitais no Morro da Mangueira e no icônico Rocinha in Concert, sonhava alto em se tornar camelô da cultura. Inda bem, talvez pensasse, que não nascera no diminuto Liechtenstein: seu Brasil, afinal, tinha vastidão, pujança, variedade. Por outro lado, os pesadelos logísticos inerentes a qualquer incursão fora das metrópoles faziam-no invejar aquele principadinho do tamanho dum pequi e com estradas de camurça. Lembrava de seu ídolo, Sviatoslav Richter, que ao completar setenta anos partiu com seu piano para uma turnê de seis meses pela Sibéria, tocando para qualquer dúzia de viventes que encontrasse pelo caminho. Nosso herói, que completara sessenta, via urgir seu chamado sem que pudesse contar com Trans-Siberianas e com o estoicismo casca-grossa dos russos.
Tentou começar, e fez uma breve incursão pelo interior do estado do Rio de Janeiro. Voltou derrotado: tocou pianos horrorosos em palcos desabantes, fosse em salas medíocres, fosse em áreas abertas que deglutiam o som toscamente amplificado. Precisava de bons pianos; era de mister que estivessem bem mantidos e afinados; mesmo que os encontrasse num raro teatro de boa acústica, não queria tocar em teatros, pois buscava as massas que o esperavam fora deles; e, se quisesse que elas o ouvissem, tinha que ser com alto e muito bom som. E isso tudo, que era o mínimo, não encontrou em lugar algum. Tudo errado.
Num desses retornos resmunguentos de mais um recital abaixo de qualquer crítica, parou com o motorista para comer um bagulho na beira da estrada. Ao ver passar um possante a rosnar com sua suspensão a ar, veio-lhe o clique:
– E se eu arrumasse um CAMINHÃO-TEATRO?
Comprou um caminhão, transformou seu baú num palco e um dos lados do baú num proscênio dobrável: ali estava seu caminhão-teatro. Evocando seus anos de formação no Colégio Militar, Arthur deu à sua criatura o miliquíssimo nome de DIPCAM, Dispositivo Pianístico de Concerto de Alta Mobilidade, e estava doido para lançar sua Coluna Prestes da Cultura. Acompanhado de outros veículos para transporte de pessoal e equipamentos, incluindo um piano de concerto extra, a caravana estava a postos. Seu criador, sempre afeito à singeleza na hora de denominar seus projetos, batizou-a de Um Piano pela Estrada. Composta por cinco veículos e até quinze pessoas, ela incluía afinador, técnico de som, seu factotum e motoristas. Mais adiante, somar-se-iam duas dentistas: Margareth, sua esposa, e a enteada Grasiela, que desenvolveriam um projeto paralelo de Saúde Bucal. Intitulado Um Sorriso pela Estrada, ele incluía oficinas de escovação, distribuição de kits de higiene oral e, com a participação eventual de Arthur e seu piano de armário (incluso na bagagem), palestras em escolas.
A viagem inaugural do DIPCAM e o pontapé inicial do projeto ocorreram em 2002, com um concerto em Mendes, no interior do Rio de Janeiro, seguido de apresentações em Araxá e Uberaba. Afora os eventuais ajustes, como a confecção de tocos de peroba para calçar o caminhão-teatro nas nunca planas praças onde o estacionavam, outra mudança mostrou-se premente. Dadas as dificuldades de conseguir patrocínios para cada um dos eventos na miríade de rincões visitados, logo se tornou óbvio que a viabilidade do projeto dependeria de desdobrá-lo em rotas, com patrocinadores robustos para cada uma delas. Com “São Francisco – Um Rio de Música”, turnê que desceu o Velho Chico de sua nascente, em São Roque de Minas, até a alagoana Penedo, num total de 4800 km, Um Piano pela Estrada finalmente deslanchou. Seguiram-se outras rotas, inspiradas tanto em ídolos de Arthur (“Nos Caminhos de JK”) quanto em sua paixão feroz por Geografia (“Nos Caminhos da Fronteira”, que visitou cidades fronteiriças irmanadas com vizinhas estrangeiras, de Chuí a Xapuri). Nos quase dezesseis anos que se passariam até o último concerto, em 2018, Arthur e sua trupe levaram o caminhão-teatro por estradas e balsas a mais de seiscentas cidades brasileiras, e seu odômetro a superar os 400 mil quilômetros – dez voltas em torno do globo, ou muitas trans-siberianas.
Após alguns meses de ajustes, o espetáculo tomou suas formas finais. O DIPCAM estacionava numa área central da localidade, e seu palco era montado (algumas vezes, em mera hora e meia), bem como a estrutura de som e iluminação. Os concertos começavam às 21h, depois do pior do calor, com o público de barriga cheia e novela vista. A abertura ficava a cargo do talento local: cantores, instrumentistas, conjuntos, bandas, charangas e fanfarras revezaram-se na função, mas apenas Seu Lu da Gaita, flautista autodidata de Bom Jesus da Lapa (BA), teve o privilégio de dividir o palco com o protagonista. O recital, com cerca de noventa minutos, intercalava obras com comentários sobre elas. O programa, que fora uma das maiores preocupações de Arthur (em suas palavras, “o programa tem que ser um convite, não um susto”), mesclava “clássicos populares e os clássicos entre os populares”: Sonata ao Luar e Asa Branca, Rondó alla Turca e Carinhoso, Rapsódia Húngara no. 2 e Apanhei-te, Cavaquinho. Um telão mostraria tudo mesmo para quem estivesse longe, talvez trepado em muros e árvores, auxiliado por microcâmeras instaladas no teclado, que mostravam as mãos do astro em ação. No final, autógrafos, visitas ao palco, espiadas no piano e, muito para o gosto do Sr. Pau de Enchente, charla livre. Em seguida, restava desmontar a estrutura, encher os baús e cair na cama para, na manhã seguinte, voltar à estrada.
Queria ter sido um daqueles calços de peroba para acompanhar a epopeia. Os percalços dos caminhos, a descoberta de incontáveis brasis, as anedotas da estrada, os momentos mágicos da interação com o público, e o virtuosismo de Arthur em evocar o melhor que há nos seres humanos, eles todos encheriam tantas páginas quanto foram os quilômetros de estrada. O ótimo livro de Marcelo Mazuras dedica a maior parte das suas a contar-nos a experiência do autor como integrante da trupe. Entre suas muitas histórias memoráveis, nenhuma me tocou mais que aquela que começa com esse recado manuscrito, enviado a Arthur numa das paradas da turnê pelo Nordeste:
Caro pianista Arthur. Sou de uma cidade nordestina onde mais de 50% da população vive de bolsa família ou de aposentadorias rurais. Cultura só aquela que nossos antepassados nos encinarão, tais quais ciranda, coco de roda, quadrilha juninas, bunba meu boi, banda de pifanos, sanfoneiros e o tradicional forro pé de serra. Piano é um bicho que nós do nordeste só conhecemos pela televisão. Se tratando de nossa cidade que nem asfalto tem. Esperamos o ano toda até que venha o São João, e as festa dos padroeiros. E ter que aguentar axé e suing, em pleno São João e a cultura nordestina morrendo. Mas o que tem haver o piano com o nordeste? Ai é onde entra o meu pedido de coração para você. Sou matuto semi analfabeto mas gosto e aprecio o que é bom e olha não é só eu muitos nordestinos. Mas o grande problema é que só escutamos o que não queremos. Porque digo isso, nós não temos condições de se dirigir até a capital Recife que fica a 150km de distância. Pagar um ingresso para te assistir é outro problema e ai é ou não complicado, como já dizia o mestre Ariano Suassuna. Muitas musicas se torna um estrondo porque nós não temos opções de escolher o que queremos. A TV só leva o que elas querem, o rádio só toca o que quer e ai somos obrigados há ter que engolir. Mas caro Arthur, nossa cidade é bem acolhedora e te peço que analise com carinho este pedido e venha nos brindar com o seu talento e fazer com que a cidade de Casinhas tenha também o direito de ter em seu solo uma das mais respeitadas personalidades do mundo artistico internacional. Até porque somos muito carente de cultura em especial. O piano que só temos o direito de ver em televisão e porque não ao vivo e em especial com você. Pode ter a certeza que voce ira sair daqui com o coração muito mas feliz do que já é, e olha que você vai emocionar a todos e com certeza saira muito mais em ser aclamado por muitos daqueles que a caneta é a enxada e o caderno é o chão. Que deus te abençoe e atenda este pedido.”
Meses mais tarde, quando Arthur e o DIPCAM chegaram a uma cidadezinha no interior de Pernambuco, havia alguém especialmente feliz à sua espera. Era Seu Walter, o autor do bilhete, com um sorriso de gaita e os olhos suados. O pianista Arthur chegara a Casinhas, e ele e seu povo, enfim, escutariam o que queriam.
Nada pode ser maior.
NADA.
ARTHUR MOREIRA LIMA – MEU PIANO/TRÊS SÉCULOS DE MÚSICA PARA PIANO
Coleção publicada pela Editora Caras entre 1998-99, em 41 volumes
Idealizada por Arthur Moreira Lima
Direção artística de Arthur Moreira Lima e Rosana Martins Moreira Lima
Robert Alexander SCHUMANN (1810-1856)
Estudos Sinfônicos em Forma de Variações, Op. 13
1 – Tema: Andante
2 – Estudo Nº 1: Un poco più vivo
3 – Estudo Nº 2: Marcato il canto
4 – Estudo Nº 3: Vivace
5 – Estudo Nº 4: Allegro marcato
6 – Estudo Nº 5: Scherzando
7 – Estudo Nº 6: Agitato
8 – Estudo Nº 7: Allegro molto
9 – Estudo Nº 8: Sempre marcatissimo
10 – Estudo Nº 9: Presto possibile
11 – Estudo Nº 10: Allegro con energia
12 – Estudo Nº 11 : Con espressione
13 – Nº 12 – Finale: Allegro brillante
Ferenc LISZT (1811-1886)
Sonata para piano em Si menor, S. 178
14 – Lento assai – Allegro energico – Grandioso – Cantando espressivo – Pesante – Recitativo – Andante Sostenuto – Quasi adagio – Allegro energico – Più mosso – Cantando espressivo senza slentare – Stretta quasi presto – Presto – Prestissimo – Andante Sostenuto – Allegro Moderato – Lento Assai
Dos Estudos de Execução Transcendental, S. 139:
15 – No. 10 em Fá menor: Allegro agitato molto
Arthur Moreira Lima, piano
Gravação: Estúdio no. 1 da Rádio de Moscou, na Casa Estatal de Radiodifusão e Gravação de Som da União Soviética em Moscou, 1970.
Engenheiro de som: Valentin Sklobo
Piano: Steinway and Sons, Hamburg
Remasterização por Rosana Martins Moreira Lima, 1998.
Johannes BRAHMS (1833-1897)
Concerto para piano e orquestra no. 2 em Si bemol maior, Op. 83
1 – Allegro non troppo
2 – Allegro appassionato
3 – Andante
4 – Allegretto
Arthur Moreira Lima, piano
Berliner Symphoniker
Otto Mayer, regência
Gravação: Berlim Oriental, República Democrática Alemã, 1976
Piano: Steinway and Sons, Hamburgo
Direção Musical, produção, edição e masterização por Rosana Martins Moreira Lima, 1999.
Das Duas Rapsódias para piano, Op. 79:
5 – No. 2 em Sol menor
Arthur Moreira Lima, piano
Gravação: Rosslyn Hill Chapel, Hampstead, Londres, Reino Unido, 1999
Piano: Steinway and Sons
Engenheiro de som: Peter Nichols
Direção Musical, produção, edição e masterização por Rosana Martins Moreira Lima, 1999.
VOLUME 29: O ROMANTISMO ALEMÃO
Robert SCHUMANN
Cenas Infantis, Op. 15
1 – De Povos E Terras Distantes
2 – Uma História Curiosa
3 – Cabra-Cega
4 – A Criança Implorando
5 – Felicidade Perfeita
6 – Um Grande Acontecimento
7 – Rêverie
8 -Na Lareira
9 – O Cavaleiro de Pau
10 – Quase Sério Demais
11 – A Criança com Medo
12 – A Criança Adormece
13 – O Poeta Fala
Johannes BRAHMS
Sonata para piano no. 3 em Fá menor, Op. 5
14 – Allegro maestoso
15 – Andante espressivo
16 – Scherzo
17 – Intermezzo
18 – Finale
Arthur Moreira Lima, piano
Gravação: Rosslyn Hill Chapel, Hampstead, Londres, Reino Unido, 1999
Piano: Steinway and Sons
Engenheiro de som: Peter Nichols
Direção Musical, produção, edição e masterização por Rosana Martins Moreira Lima, 1999.
VOLUME 36: SCHUMANN & LISZT II
Robert SCHUMANN
Carnaval, Op. 9
1 – Preâmbulo
2 – Pierrô
3 – Arlequim
4 – Valsa Nobre
5 – Eusebius
6 – Florestan
7 – Coquette
8 Réplica
9 – Borboletas
10 – A.S.C.H. – S.C.H.A. (Letras Dançantes)
11 – Chiarina
12 – Chopin
13 – Estrella
14 – Reconhecimento
15 – Pantalon e Colombina
16 – Valsa Alemã/Paganini/Valsa Alemã
17 – Confidência
18 – Passeio
19 – Pausa
20 – Marcha dos Companheiros de Davi contra os Filisteus
Ferenc LISZT
Das Rapsódias Húngaras para piano, S. 244:
21 – Nº 2 em Dó sustenido menor
Das Consolações para piano, S. 172:
22 – No. 3 em Ré bemol menor: Lento placido
Das Valses Oubliées, S. 215:
23 – No. 1: Allegro
Arthur Moreira Lima, piano
Gravação: Rosslyn Hill Chapel, Hampstead, Londres, Reino Unido, 1998
Piano: Steinway and Sons, Hamburgo
Engenheiro de som: Peter Nichols
Direção Musical, produção, edição e masterização por Rosana Martins Moreira Lima, 1999.
“10ª parte da entrevista do pianista Arthur Moreira Lima a Alexandre Dias, em que ele abordou seu importante projeto ‘Um piano pela estrada’, que levou recitais de piano a mais de 500 cidades do Brasil. Arthur fala sobre suas motivações iniciais, os desafios, e as conquistas ligadas a este projeto histórico”

Vassily







































































Este é um daqueles discos da MoviePlay que são bastante bons. Ele não chega a ser um monumento, mas grudei nele. O repertório é excelente. Os quartetos são lindos, assim como o trio de Schumann. Em 1785, Mozart recebeu uma encomenda para três quartetos do editor Franz Anton Hoffmeister. Hoff achou que este quarteto, o K. 478, era muito difícil e que o público não o compraria, então ele liberou Mozart da obrigação de completar o conjunto. Nove meses depois, Mozart compôs um segundo quarteto para piano, o K. 493. O medo de Hoffmeister de que a obra fosse muito difícil para amadores foi confirmado por um artigo no Journal des Luxus und der Moden publicado em Weimar em junho de 1788. O artigo elogiou muito Mozart e sua obra, mas expressou consternação com as tentativas de amadores de executá-la. O Op. 16 de Beethoven parece ser um Quinteto. Então talvez a MoviePlay esteja louca, pra variar. Os dois primeiros trios para piano de Schumann foram escritos em sucessão próxima, apesar do grande intervalo entre os números de opus de suas obras. O segundo trio para piano, Op. 80, é mais efervescente e alegre do que o primeiro trio – o próprio compositor disse que ele causa uma “impressão mais amigável e imediata” do que seu antecessor. Excelente CD.
















IM-PER-DÍ-VEL !!!

























Decidi, hoje à noite, ouvir uma melodia doce, em quadros minúsculos. Os universos sinfônicos são extensos demais para esta noite. Quero retratos pequenos. Devaneios. Por isso, desejei apreciar a música de Robert Schumann, com o mago do piano Maurizio Pollini. Adjetivos são dispensáveis para algo assim. Sempre penso que existe um intervalo de silêncio na música de Schumann. As melodias são inexplicáveis. Schumann era um grande melodista. Essa desconfiança se confirma em Chopin, mas Schumann possui peças em que essa percepção se adensa — Kresleriana, Cenas Infantis, Cenas da Floresta, Carnaval etc. Penso que ele, Mozart, Chopin e Tchaikovsky tenham sido os maiores melodistas que surgiram. Schumann possui uma linguagem carregada de sentimento e reflexão. Mas como estou bastante cansado esta noite, dispensarei os colóquios flácidos. Trabalhei o dia todo e quase não consegui escrever estas palavras. Mas, ouçamos este baita CD com o Pollini. Uma boa apreciação!


Nem com a maior boa vontade do mundo, alguém poderia classificar o Concerto Para Violino de Schumann como sendo um dos principais do gênero. Só em 1937 é que ele foi acrescentado à lista dos seus Concertos, uma vez que a sua viúva, Clara, juntamente com Brahms e Joachim, se recusaram a incluí-la entre as obras do compositor. Aqui, o esplêndido Renaud Capucon, com a excelente Orquestra de Câmara Mahler dirigida por Daniel Harding, pretende converter-nos a esta obra negligenciada. O primeiro movimento é pouco convincente, o segundo é ótimo, sublime até, conduzindo a um final que, novamente não é bem sucedido. Experimente, você vai ficar surpreso às vezes negativamente, mas ainda é a música de uma alma romântica que ainda tinha muito dentro de si. Lembrem-se de que Schumann ficou louco — como se dizia na época.