Beethoven ficou tiririca ao saber que seu editor resolveu dar à sonata para piano, Op. 81a, um subtítulo em francês. Apesar de ser amplamente conhecida como “Les Adieux”, em deferência ao compositor nós não a chamaremos assim. Bastaria mencionar que o título original, “Lebewohl” (“Adeus”), aparece acompanhando as três primeiras notas do movimento de abertura, mas vamos além: naquele turbulento 1809, o francês era provavelmente o último idioma que Ludwig gostaria de ouvir. Napoleão, que invadira novamente a Áustria, bombardeou Viena em 11 de maio, muito para o desespero de Beethoven, que passou a noite em claro, afogando-se em travesseiros, temendo que o ruído dos canhões detonasse ainda mais sua já precária audição. No dia seguinte, os franceses tomaram a capital austríaca, num déjà vu muito indigesto para quem já tinha visto sua única ópera fracassar na estreia porque o público era quase todo de invasores franceses. Ademais, o adeus a que o título se refere só poderia ser dito em alemão, pois foi certamente neste idioma que Beethoven despediu-se de seu aluno e patrono, o arquiduque Rudolph, que deixara Viena um mês antes para refugiar-se com a família imperial na Hungria. Instigado pelos sinceros sentimentos despertados pela partida daquele seu grande amigo, Ludwig dedicou-lhe uma sonata para piano, sob cujo primeiro movimento anotou “O Adeus (“Lebewohl”) – Viena, 4 de maio de 1809 – por ocasião da partida de Sua Alteza Imperial, o venerável arquiduque Rudolph”. Os dois movimentos restantes foram iniciados mais tarde, no mesmo ano, talvez até depois do armistício que levou os franceses a deixarem a Áustria, depois de abocanharem vários nacos de seu território. O arquiduque só voltaria a Viena em janeiro de 1810, e a sonata em sua homenagem iria a prensa um ano depois, com os subtítulos gálicos que enfureceram o compositor. Beethoven, que sempre se referiu à sonata como “Lebewohl, Abwesenheit und Wiedersehen” (“Adeus, Ausência e Reencontro”), assim expressou seu descontentamento ao editor:
“Acabo de receber o “Adeus” etc. e devo apontar que há outras cópias com um título em francês – por quê? “Lebewohl” é muito diferente de “les adieux”; é dito a uma só pessoa com o mais caloroso afeto; o outro, a grupos, a cidades inteiras!”
Independentemente do título, sempre considerei esta obra críptica uma armadilha à espera de qualquer pianista que se disponha à monumental jornada pelas trinta e duas sonatas. Ela, de fato, já foi o calcanhar de Aquiles de muitos grandes beethovenianos, mais ou menos como a “Pastoral” costuma ser entre as sinfonias. Ainda que a “Lebewohl” muitas vezes seja chamada de programática, Beethoven nunca descreveu seu programa, pelo que se depreende que sua intenção era mais evocar sentimentos do que contar uma história. É, enfim, muito difícil convencer numa obra tão elaborada, que o compositor anotou tão meticulosamente com instruções, e eu acho que o maravilhoso Murray Perahia não tem pares nessa sensível leitura da “Lebewohl”, que a um só tempo faz justiça à riqueza da composição e honra o memorial que Beethoven legou a seu grande amigo.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Das Três sonatas para piano, Op. 31 Compostas em 1802 Publicadas em 1803
Sonata no. 2 em Ré menor, “Tempestade”
1 – Largo – Allegro
2 – Adagio
3 – Allegretto
Sonata no. 3 em Mi bemol maior, “Caça”
4 – Allegro
5 – Scherzo – Allegretto vivace
6 – Menuetto – Moderato e grazioso
7 – Presto con fuoco
Sonata para piano em Mi bemol maior, Op. 81a, “Les Adieux” Composta entre 1809-10 Publicada em 1811 Dedicada a Rudolph, arquiduque da Áustria
8 – Das Lebewohl (Les Adieux): Adagio – Allegro
9 – Abwesenheit (L’Absence): Andante espressivo (In gehender Bewegung, doch mit viel Ausdruck)
10 – Das Wiedersehen (Le Retour): Vivacissimamente (Im lebhaftesten Zeitmaße)
Depois de tanto lhes escrever – e de tanto vocês me aguentarem -, permitir-me-ei ser muito sucinto e direto.
Como sabem (ou talvez não, pois volta e meia alguém manda mensagem dando a entender que considera que o blogue tem um só autor), o PQP Bach é fruto de um trabalho colaborativo, não remunerado e, para alguns de nós, tibiamente reconhecido. Todos nós pagamos nossos boletos com outras lidas, e nenhum deles é pago com música. Músicos, aliás, quase não somos – poucos tiveram treinamento musical formal. Melômanos, claro, somos todos, e essa obsessão comum acabou por nos aproximar, a partir da criação do blogue pelo patrão, há quase quatorze anos, e da construção gradual, combinando convocações, autoconvites e casualidades, de nossa cambada de autores.
E não, não nos conhecemos todos. Alguns se conhecem, e uns poucos conhecem a maioria dos outros. Estamos mais ou menos esparramados pelo Brasil, e até fora dele, a maioria longe de seu pago, polinizando música pela blogosfera enquanto a vida, volta e meia, nos taca fogo na cara e alguma boa alma nos vem apagá-lo com o tamanco. Comunicamo-nos muito, é verdade, mas nos encontramos menos do que gostaríamos. A ideia dum grande encontro pequepiano, claro, está sempre presente, mas o fato é que temos que nos conformar, na prática, com miniencontros, normalmente tomando um goró, batendo um rango, ou na frente duma TV, assistindo a um péssimo Gre-Nal e com um gato ciumento no colo (caso verídico).
O mais perto que chegamos do megaencontro foi no ano passado, quando o colega e muso Avicenna reuniu-se com alguns de nós e com sua incrível família e nos proporcionou uma tremenda tarde de sábado e um banquete de estragar as já indecentes panças. Graças ao trânsito, cheguei grosseiramente atrasado e, a despeito da alegria de ter comparecido, senti que não consegui expressar ao anfitrião minha gratidão, se não pela acolhida imperial, pela oportunidade de conhecê-lo e à sua família. Faltava-lhe também retomar as postagens, o que nos prometeu fazer tão logo as circunstâncias lhe permitissem.
Pois bem: agora que Avicenna está de volta ao blogue, quis alcançar-lhe um agrado, mas tão logo ele voltou, acabou por anunciar seu desligamento por motivos de força maior. Não vi melhor maneira de homenageá-lo do que trazendo uma postagem com sua musa, a divina Sandrine Piau. Vá lá que ela não é muito fã de Beethoven, e que sua participação nesse disco é praticamente uma ponta como solista na ademais pouco exigente Fantasia Coral. Mas sei que isso não importará a Avicenna. O que importa, sim, é que ele está novamente aqui com a gente, e que certamente uivará ao ouvir sua querida Piau.
Grato por tudo, Mestre de Avis!
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Fantasia em Dó menor para piano, coro e orquestra, Op. 80, “Fantasia Coral” Composta em 1808 Publicada em 1810 Dedicada a Maximilian Joseph, Rei da Baviera
1 – Adagio
2 – Finale: Allegro – Meno allegro (Allegretto) – Allegro molto – Adagio ma non troppo – Marcia, assai vivace – Allegro – Allegretto ma non troppo, quasi andante con moto (»Schmeichelnd hold und lieblich klingen«) – Presto
Bertrand Chamayou, piano Sandrine Piau, soprano Anaik Morel, contralto Stanislas de Barbeyrac, tenor Florian Sempey, barítono Accentus Insula Orchestra Laurence Equilbey, regência
Concerto em Dó maior para violino, violoncelo, piano e orquestra, Op. 56 Composto entre 1803-05 Publicado em 1807 Dedicado a Joseph Franz Maximilian, príncipe Lobkowitz
4 – Allegro
5 – Largo (attacca)
6 – Rondo alla polacca
Alexandra Conunova, violino Natalie Clein, violoncelo David Kadouch, piano Insula Orchestra Laurence Equilbey, regência
O brontossáurico concerto de 22 de dezembro de 1808, ao qual já nos referimos várias vezes ao longo da série e que será objeto duma postagem específica, foi certamente um dos mais memoráveis de todos os tempos. Beethoven, não satisfeito com as três horas e meia de sua música que já programara, incluindo as estreias públicas das sinfonias nos. 5 e 6, do quarto concerto para piano e de dois movimentos da missa em Dó maior, decidiu oferecer à já assoberbada audiência um grand finale que reunisse as forças vocais e instrumentais envolvidas nos números pregressos – ainda que tivesse, como de fato aconteceu, que lhes raspar com vigor o fundo do tacho da energia, certamente quase toda despendida na execução de tanta e tão exigente música.
O grand finale, claro, foi a Fantasia para a incomum combinação de piano, coro e orquestra, Op. 80, a única composição escrita especialmente para aquela noite. Como o lucro das bilheterias reverteria para seus surrados bolsos, Ludwig tentou preparar-se da melhor maneira possível. Infelizmente, essa maneira possível era sua própria, destemperada e atrapalhada maneira, que ainda por cima se viu obrigada a transpor obstáculos logísticos e artísticos para que o concerto se realizasse, o que incluiu contratação de músicos, ensaios e arranca-rabos diversos. Não é difícil imaginar que, mesmo para os bagunçados padrões beethovenianos, a composição da Fantasia Coral deu-se em condições de completa baderna, com o previsível cenário de cópias das partes sendo feitas na última hora, de instrumentistas lendo à primeira vista as partituras ainda com tinta úmida, e com Beethoven improvisando o solo inicial porque simplesmente não o conseguira colocar no papel. O resultado artístico, naquela congelante noite de inverno, foi pífio: o compositor-pianista e a orquestra não se entenderam (houve mesmo um momento em que tiveram que recomeçar a peça), o coro embabanou-se, a plateia reagiu conforme o termômetro, e a obra foi rapidamente esquecida. Sua publicação em Leipzig, dois anos depois e que em nada ajudou a ressuscitá-la, e foi notória somente pela dedicatória ao rei bávaro, uma ideia dos editores que instilou mais alguns galões de ira no já tão genioso Beethoven. Foi só muito depois da morte do compositor, e particularmente depois do imenso sucesso de sua Nona Sinfonia, que a Fantasia Coral voltou a ser apreciada como uma precursora da obra mais famosa, cujo finale, nas palavras de Ludwig, era “no estilo de minha fantasia para piano e coro, mas numa proporção mais grandiosa, com solos vocais e coros baseados nas palavras da famosa e imortal canção An die Freude de Schiller”. De fato, o artifício de fazer seguir a um tema com variações uma apoteose coral com a palavra “Freude” (“Alegria”) só não torna a fantasia mais familiar que o próprio tema, muito parecido com aquele que permeia a Ode sobre o poema de Schiller, e que Beethoven tomou de sua canção Gegenliebe (WoO 118).
Hoje em dia, se não imensamente popular, a Fantasia Coral tem sido revisitada com frequência para, assim como em sua estreia, encerrar eventos musicais muito especiais. É o caso da gravação que lhes apresento, realizada ao vivo na noite de Ano Novo de 1991. Eu era muito novo e estudava para o vestibular, vivia de mesada em cruzeiros-novos, e sonhava em assistir a um concerto na Philharmonie. No entanto, mesmo que tivesse a oportunidade de me catapultar para Berlim e infiltrar-me clandestinamente na veneranda sala de concertos, eu nem sei se teria roupa para testemunhar o grande Bruno Ganz recitando o “Egmont” de Goethe, entre intervenções de Cheryl Studer, com Abbado regendo os filarmônicos locais. E, ainda que tivesse roupa, nem sei se teria compostura de, no final de tudo, ouvir Evgeny Kissin, então um garoto de vinte anos, tocar a Fantasia Coral desse jeito, com toda facilidade. O efeito do programa, que ainda inclui a ária “Ah, perfido!” e uma poderosa “Leonore no. 3”, é arrebatador – o que dá uma ideia da saturação sensorial que não aturdiu o público vienense daquela noite lá de 1808, que, depois dessa hora e pouco que passamos com Abbado, ainda tinha mais três horas de Beethoven para escutar.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Música para a Tragédia “Egmont”, de Johann Wolfgang von Goethe, Op. 84 Composta em 1810 Publicada entre 1810-12
1 – Abertura
2 – Lied
3 – Zwischenaktmusik I (entreato)
4 – Lied
5 – Zwischenaktmusik III
6 – Zwischenaktmusik IV
7 – Musik. Klärchens Tod bezeichnend
8 – Melodram
9 – Siegessymphonie
Bruno Ganz, ator Cheryl Studer, soprano
“Ah, perfido!“, recitativo e ária para soprano e orquestra, Op. 65 Compostos em 1796
Publicados em 1805
Dedicados a condessa Josephine von Clary-Aldringen 10 – Recitativo: “Ah, perfido!” (Dó maior) – Ária: “Per pietà, non dirmi addio” (Mi bemol maior)
Cheryl Studer, soprano
Abertura “Leonore no. 3”, em Dó maior, Op. 72b Composta em 1806
11 – Adagio – Allegro
Fantasia em Dó menor para piano, coro e orquestra, Op. 80, “Fantasia Coral” Composta em 1808 Publicada em 1810 Dedicada a Maximilian Joseph, Rei da Baviera
12 – Adagio – Finale: Allegro – Meno allegro (Allegretto) – Allegro molto – Adagio ma non troppo – Marcia, assai vivace – Allegro – Allegretto ma non troppo, quasi andante con moto (»Schmeichelnd hold und lieblich klingen«) – Presto
Yevgeny Kissin, piano Cheryl Studer, soprano John Aler, tenor Friedrich Molsberger, baixo RIAS-Kammerchor
Se a Op. 78 é uma obra-prima de concisão, a singeleza da Op. 79 é tanta que os estudiosos da obra de Beethoven chegaram a pensar que ela fosse uma obra da juventude que foi à prensa tardiamente – sim, de novo o velho truque de Ludwig para descolar alguns groschen. Quando o manuscrito foi enfim encontrado, no mesmo caderno em que estavam o quarteto de cordas, Op. 74 e a magistral sonata “Lebwohl”, Op. 81a, entendeu-se que a simplicidade fora proposital. Subtitulada “Sonata facile” no primeiro manuscrito, e inicialmente esboçada na tonalidade repleta de teclas brancas de Dó maior – a mesma da “Sonata Fácil”, K. 545 de Mozart, publicada alguns anos antes -, a Op. 79 acabou escrita em Sol maior e chamada de “Sonatina”, conforme sugestão do próprio compositor. Ainda que esteja ao alcance dos amadores, é um desafio considerável fazer-lhe justiça sem recair em frugalidade. Para honrar essa missão, trago a gravação duma grande figura canadense do piano, que construiu sua fama com interpretações magistrais de obras de Bach – e que, para alívio dos tantos leitores-ouvintes que têm Glenn Gould inscrito em seus Livros do Ódio, não é ele, e sim Angela Hewitt. Nos dez minutinhos, se tanto, que ela leva para nos dar sua impressão da Op. 79, temos limpidez de fraseado, humor e muita energia contida entre o serelepe “Alla tedesca” da abertura, cheio de estridentes acciaccature, e o abrupto final, que dá até impressão de obra inconclusa. Não quero levar aqui mais tempo a contar-lhes da sonatina que Hewitt levará para tocá-la, então deixo vocês com ela e só aviso que a breve obra, aqui, soará como um despretensioso interlúdio entre as três obras-primas bem mais parrudas que a rodeiam na gravação.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Sonata para piano em Ré menor, Op. 31 no. 2, “Tempestade” Composta em 18 Publicada em 1803
1 – Largo – Allegro
2- Adagio
3 – Allegretto
Sonata “quasi una fantasia” em Mi bemol maior, Op. 27 no. 1 Compostas em 1801
Publicada em 1802
Dedicada à princesa Josephine von Liechtenstein
4 – Andante – Allegro – Andante – attacca:
5 – Allegro molto e vivace – attacca:
6 – Adagio con espressione – attacca:
7 – Allegro vivace
Sonata para piano em Sol maior, Op. 79 Composta em 1809 Publicada em 1810
8 – Presto alla tedesca
9 – Andante
10 – Vivace
Sonata para piano em Mi maior, Op. 109 Composta em 1820 Publicada em 1821 Dedicada a Maximiliane Brentano
11 – Vivace ma non troppo – Adagio espressivo
12 – Prestissimo
13 – Andante molto cantabile ed espressivo. Gesangvoll mit innigster Empfindung
Mais de quatro anos depois de compor a tonitruante “Appassionata”, Beethoven voltou à sonata para piano. O ínterim, como sabemos, foi ocupado por grandes obras, de amplos gestos – duas sinfonias, quatro concertos, importantes quartetos de cordas – e transtornado por desgraças. A progressão da surdez e o desespero com seu isolamento crescente somaram-se mais uma invasão napoleônica, que levou à fuga de muitos de seus patronos e ao agravamento de sua penúria material.
O difícil período até o armistício foi passado na propriedade dos Brunsvik/Brunszvik, família de aristocratas húngaros que foi de fundamental importância para Ludwig. Franz von Brunsvik foi um generoso patrono e dedicatário de várias obras do compositor, tinha duas irmãs para quem Beethoven lecionou piano e que imortalizou, cada qual à sua maneira: Josephine, que é a mais provável destinatária da famosa carta à “Amada Imortal”, e Therese, a quem dedicou a sonata que ouvirão a seguir.
O conturbado ínterim entre a “Appassionata” e a Op. 78 reflete-se no caráter dessa obra, praticamente o oposto de sua grandiloquente, pretensiosa predecessora. Concisa, direta e sem firulas, foi a única composição de Beethoven na incomum tonalidade de Fá sustenido maior – tão rara e cheia de sustenidos em sua armadura de clave que o compositor sonegou vários deles no manuscrito. A sonata resume-se a dois breves movimentos: o primeiro intensamente lírico, o segundo cheio de verve, e é quase só piscar os olhos que está tudo terminado. Apesar de sua brevidade, ela era, junto com a “Appassionata”, uma das sonatas favoritas de Beethoven, opinião que, do alto de minha desimportância, compartilho com o grande homem, por ser um microcosmos de sua genial capacidade de invenção ao piano.
A interpretação de Glenn Gould, para variar, ignora amplamente muitas das indicações do compositor. Nada há aqui, claro, que se compare à sua sabotagem contra a “Appassionata”, mas o lindo cantabile do primeiro movimento é apenas sugerido, e Gould passa quase sem pausas para o finale, a que atribui um ritmo frenético. Ainda assim, esta é uma de minhas interpretações favoritas da Op. 78, e é um mistério por que, mesmo gravada em estúdio, não tenha sido lançada durante a vida do pianista. Somente nos anos 90 ela foi posta em disco, pareada com uma “Hammerklavier” transmitida pela Canadian Broadcasting Corporation, pela qual não sinto o mesmo entusiasmo. O próprio Gould declarou, várias vezes, que não se impressionava com os grandes gestos da “Hammerklavier” e que a considerava antipianística. Mais que isso, ela foi a única obra que suscitou, até onde pude saber, uma sua reclamação pública acerca de seus desafios técnicos – ele a chamou de “horrendamente difícil”, e isso não era algo que se ouvia dele todo dia. A técnica impecável de Gould, claro, assegura uma limpidez incomum a esta mais transcendental das sonatas de Beethoven, mas seu pendor por escolher tempos mais ruminativos, que aumentava a medida em que colecionava grisalhos, acaba tirando muito do elã da obra, especialmente do primeiro movimento. O extraordinário Adagio, cerne da “Hammerklavier”, tem uma leitura muito bonita que, no entanto, nada tem da paixão e do sentimento prescritos na indicação do andamento, e a fuga do finale, apesar do esperado show-room da incomparável capacidade de Gould de realizar com clareza as mais intrincadas passagens contrapontísticas, acaba padecendo da mesma competente frigidez.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Sonata para piano em Fá sustenido maior, Op. 78, “À Thérèse” Composta em 1809 Publicada em 1810 Dedicada a Therese von Brunsvik
1 – Adagio cantabile – Allegro, ma non troppo
2 – Allegro vivace
Sonata para piano em Si bemol maior, Op. 106, “Große Sonate für das Hammerklavier” Composta entre 1817-1818
Publicada em 1819
Dedicada ao arquiduque Rudolph da Áustria
3 – Allegro
4 – Scherzo. Assai vivace
5 – Adagio sostenuto. Appassionato e con molto sentimento
6 – Largo – Allegro risoluto
Ao longo dessa série repetimos um ‘cadinho de vezes que a fama de Beethoven como o melhor pianista de seu tempo antecedeu aquela como compositor, e mesmo com esta consolidada ainda havia muito interesse por um seu outro postulado à glória: o talento como improvisador.
Mais de um século antes da irrupção do jazz, e uma década antes do proto-jazz com que encerrou sua visionária Op. 111, Ludwig causava frisson ao exibir sua capacidade de improvisar tanto sobre temas próprios quanto sobre outros a ele sugeridos. Além das eventuais surras musicais que aplicava sobre o eventual incauto que o desafiava para um duelo – e já prometi anteriormente que o nocaute em Daniel Steibelt será objeto de postagem específica -, era muito comum que Beethoven pavoneasse sua criatividade durante seus concertos, tanto nos privados, nos salões da aristocracia que o patrocinava, quanto nos públicos.
Entre estes, um dos mais célebres – e infames – foram as quatro horas de música e hipotermia vividas por uma plateia vienense no gelado 22 de dezembro de 1808, em que o compositor estreou as sinfonias nos. 5 e 6, o concerto no. 4 para piano e a fantasia coral, e ainda achou disposição para apresentar dois movimentos da missa em Dó maior. Como se não fosse o bastante, houve por bem também apresentar uma improvisação ao piano que, segundo algumas fontes, foi anos depois posta em papel e publicada como seu Op. 77.
A Fantasia para piano, única composição de Beethoven assim intitulada, é muitas vezes descrita na tonalidade de Sol menor – o que só engana aqueles que abrem a partitura, olham a armadura da clave e não passam da primeira página. Depois duma abertura que entremeia escalas descendentes e tentativas de cantabile, há uma sucessão de modulações inesperadas para tonalidades não relacionadas – Lá bemol maior, Si bemol maior, Ré menor, e novamente Lá bemol – até chegar a Si menor e, por fim, a um episódio em Si maior em que um tema se segue a algumas variações. Quando tudo parece se encaminhar para um final convencional, as escalas descendentes da abertura retornam e, após uma última ilusão de uma coda em Si maior, Beethoven bem- (ou mal-?) humoradamente nega a resolução aguardada pelo ouvinte, finalizando com uma última escala muito abrupta e um lacônico, solitário Si grave.
É natural que uma peça tão livre abra amplas oportunidades para o intérprete, e que a discografia do Op. 77, dessa forma, comporte leituras extraordinariamente diferentes. Depois de muito refletir sobre qual deveria oferecer aos leitores-ouvintes, resolvi oferecer a primeira que conheci, com o incrível Rudolf Serkin. Além de todas as qualidades que fizeram dele um grande beethoveniano, há em sua interpretação tanto a valorização dos diferentes coloridos tonais e dos contrastes entre os episódios, quanto um senso de continuidade que faz com que os compassos finais também tenham humor, e não só desconcerto.
Infelizmente, o disco em que eu tinha a Op. 77 com Serkin – um saco de gatos em que atiraram também as sonatas “Patética” e a feroz “Hammerklavier” – sucumbiu a um, bem, ataque felino não provocado, de modo que tive que recorrer ao submundo das torrentes para encontrar esta alternativa, em que a Op. 77 tem o luxuoso prelúdio das Variações Diabelli e das bagatelas do Op. 119. As Diabelli com Serkin são tão magistrais que eclipsam a pobre fantasiazinha, mas insisto em que a escutem. Mesmo que sua origem não remonte ao concerto-mastodonte de 1808, as circunstâncias em que ela foi completada – na propriedade do dedicatário, von Brunsvik, e após um ano miserável permeado por penúria econômica, bombardeios napoleônicos e invasão de Viena – apontam para uma motivação muito especial do compositor em celebrar o armistício e preservar para a posteridade um instantâneo de sua capacidade como improvisador. Ouvi-la, pois, também é raro privilégio de abrir uma janela sonora para a mais livre das facetas do gênio de Beethoven.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Trinta e três variações em Dó maior para piano sobre uma valsa de Anton Diabelli, Op. 120 Compostas entre 1819-23 Publicadas em 1823 Dedicadas a Antonie Brentano
1 – Theme: Vivace
2 – Variation 1: Alla marcia maestoso
3 – Variation 2: Poco allegro
4 – Variation 3: L’istesso tempo
5 – Variation 4: Un poco più vivace
6 – Variation 5: Allegro vivace
7 – Variation 6: Allegro ma non troppo e serioso
8 – Variation 7: Un poco più allegro
9 – Variation 8: Poco vivace
10 – Variation 9: Allegro pesante e risoluto
11 – Variation 10: Presto
12 – Variation 11: Allegretto
13 – Variation 12: Un poco più moto
14 – Variation 13: Vivace
15 – Variation 14: Grave e maestoso
16 – Variation 15: Presto scherzando
17 – Variation 16: Allegro
18 – Variation 17: Allegro
19 – Variation 18: Poco moderato
20 – Variation 19: Presto
21 – Variation 20: Andante
22 – Variation 21: Allegro con brio – Meno allegro – Tempo primo
23 – Variation 22: Allegro molto, alla « Notte e giorno faticar » di Mozart
24 – Variation 23: Allegro assai
25 – Variation 24: Fughetta (Andante)
26 – Variation 25: Allegro
27 – Variation 26: (Piacevole)
28 – Variation 27: Vivace
29 – Variation 28: Allegro
30 – Variation 29: Adagio ma non troppo
31 – Variation 30: Andante, sempre cantabile
32 – Variation 31: Largo, molto espressivo
33 – Variation 32: Fuga: Allegro
34 – Variation 33: Tempo di Menuetto moderato
Onze Bagatelas para piano, Op. 119 Compostas entre 1820-22 Publicadas em 1823
35 – Allegretto – Andante con moto – A l’Allemande – Andante cantabile – Risoluto – Andante — Allegretto – Allegro, ma non troppo – Moderato cantabile – Vivace moderato – Allegramente – Andante, ma non troppo
Fantasia para piano, Op. 77 Composta em 1809 Publicada em 1810 Dedicada ao conde Franz von Brunsvik
Neste 2020 dedicado à memória de Beethoven, nosso colega Vassily já abordou em detalhes as obras que aparecem neste disco, mas vou me arriscar a tecer mais alguns comentários sobre essas obras programáticas em que, ao contrário da maioria das sinfonias e sonatas, Beethoven expressou para as plateias de seu tempo a sua adesão a uma série de valores do Iluminismo alemão, em resumo: o conhecimento trazendo a luz e libertando da escuridão.
Otto Maria Carpeaux resumiu assim o enredo da única ópera de Beethoven, inicialmente chamada Leonore, depois Fidélio:
No calabouço sombrio de uma fortaleza, o tirânico governador Pizarro mandou encarcerar o nobre Florestan, que ousara manifestar ideias de liberdade. O infeliz parece perdido. Nem o salvariam os heroicos esforços de sua mulher Leonore que, disfarçada em homem, sob o nome suposto de Fidélio, tentava libertar o marido. Só no último momento, quando na escuridão noturna do cárcere já se preparava o assassínio, ressoam longe as cornetas que anunciam a chegada do ministro e a libertação.
Para Carpeaux, a abertura Leonore nº 3 é no fundo uma grandiosa sinfonia, intensamente agitada como a luta pela liberdade, até ressoar o toque de corneta, tocada fora da sala de concerto, iniciando-se o desfecho jubiloso. É uma verdadeira sinfonia de programa, tão grande, que não serve bem para abrir uma noite de ópera.
A abertura Coriolanus se baseia na trágica história de um general romano, transformada em teatro pelo inglês William Shakespeare e pelo austríaco Heinrich Joseph von Collin (1771–1811). Exilado de Roma, Coriolanus organiza os exércitos de seus antigos inimigos para atacar a capital. Às portas de Roma, a mãe e a esposa de Coriolano, usando ao mesmo tempo para a emoção e a argumentação racional, conseguem convencê-lo a desistir de atacar sua cidade natal. Como em Leonore/Fidélio, mais uma vez, as mulheres fogem do tradicional papel de donzelas em busca de um marido.
Como bem lembrou Vassily, apesar de ter recebido o nome de “abertura” (ouverture), Coriolanus é uma peça independente: não há registro sequer da intenção de fazê-la seguir-se de outros números de música incidental, como era a praxe da época. Assim, ao escrever uma obra musical autônoma inspirada por uma outra, literária, Beethoven inaugurava um novo gênero: a abertura de concerto, pedra fundamental da tradição de música programática que, em algumas décadas, ganharia corpo com o trabalho de Schumann, Berlioz, Brahms, dando origem aos poemas sinfônicos de Liszt e Strauss que são outro nome para a mesma coisa.
Escrita para um conjunto orquestral pequeno e notavelmente mais leve que as outras obras para o palco de Beethoven, Prometheus era originalmente um ballet cheio de cenas bucólicas mostrando os primórdios da humanidade livremente inspiradas no mito grego do titã que presenteia a humanidade com o fogo e as “artes da civilização”. A partitura é a única em que Beethoven escreveu para a harpa.
Nesta gravação, Marriner selecionou os pontos mais emblemáticos de Prometheus: a abertura e algumas cenas mais bucólicas onde a harpa e as madeiras brilham sob a batuta deste regente que é sobretudo um grande mozartiano. E, é claro, a dança final, uma contradança reaproveitada de uma composição da juventude e que ressurgiria também nas variações para piano, Op. 35 e no colossal finale da sinfonia Eroica.
Ludwig van Beethoven (1770-1827) – Prometheus; Aberturas Coriolanus, Leonore 2 e 3
1. Overture Coriolanus, Op. 62
2. Overture Leonore No. 2, Op. 72a
3. Overture Leonore No. 3, Op. 72b
Die Geschopfe des Prometheus (The Creatures of Prometheus), Op. 43:
4. Overture
5. Act I: Allegro vivace
6. Act II: Adagio
7. Act II: Pastorale
8. Act II: Andante
9. Act II: Finale: Allegretto
Orchestra: Stuttgart Radio Symphony Orchestra
Conductor: Sir Neville Marriner
Deixo ainda um bônus: a mais grandiosa, épica e triunfal de todas as gravações da abertura Leonore nº 3, com Sergiu Celibidache e a Filarmônica de Munique:
Poderia classificar esta gravação como pertencendo ao fim de uma era, o fim de uma era de gigantes, quando os dinossauros andavam sobre a Terra. Mas não farei isso exatamente em respeito à estes dois grandes músicos, Emil Gilels e Antal Dorati, que durante décadas encantaram multidões com seu talento. Os dois ainda frequentaram os palcos por alguns anos, Gilels faleceu em 1985, enquanto que Dorati veio a falecer em 1988.
Antal Dorati era húngaro, mas se naturalizou norte americano, era dez anos mais velho que Gilels, e provavelmente foi um dos músicos que mais gravaram discos na história, principalmente ali entre os anos 50 e 60, quando realizou gravações históricas, principalmente com a então Minneapolis Symphony Orchestra, hoje conhecida com Minesotta Orchestra.
Este registro que ora vos trago foi realizado ao vivo em 1976, na cidade suíça de Lausanne, e nos apresenta dois músicos muito experientes, tocando uma das maiores obras já compostas na história. Minha sugestão é que os senhores, principalmente se estão aqui no sul do país enfrentando esta onda de frio, com direito a neve, enfim, que os senhores abram uma garrafa de um bom vinho, sentem em suas melhores poltronas e deixem-se embalar pelo talento destes dois excepcionais músicos.
01 Piano Concerto No. 5 in E-Flat Major Op. 73 Emperor I. Allegro (Live Recording Lausanne 1976)
02 Piano Concerto No. 5 in E-Flat Major Op. 73 Emperor II. Adagio un poco mosso (Live Recording Lausanne 1976)
03 Piano Concerto No. 5 in E-Flat Major Op. 73 Emperor III. Rondo. Allegro ma non troppo (Live Recording Lausanne 1976)
Emil Gilels – Piano
Orchestre National de France
Antal Dorati – Conductor
De todos apelidos de obras de Beethoven, quase todos apócrifos, talvez um dos mais justificáveis seja o deste quarteto do Op. 74, em que o amplo e inovativo uso do pizzicato no primeiro movimento, seja em arpejos distribuídos entre todos os instrumentos, seja na engenhosa alternância entre pizzicati e notas sustentadas do arco, pode mesmo evocar uma harpa. Esse Allegro, introduzido por um Adagio com o qual não tem qualquer relação temática, é uma obra-prima em seu atraente desenvolvimento e construção do clímax, uma virtuosística cadência do primeiro violino, acompanhada pelos arpejos de cordas beliscadas. Atraente, também, é o contraste entre o sentido, sereno Adagio, que parece não terminar, e sim calar-se, com o Scherzo temperamental e impetuoso que se segue a ele. Para encerrar, o que parece ser um ortodoxo Allegretto com variações vai tomando rumos inesperados, numa demonstração do tremendo virtuosismo de Beethoven na transfiguração de temas, até que uma súbita explosão de temperamento, como se os instrumentos se rebelassem contra a necessidade de variar uma vez mais o tema, faz-nos esperar uma coda acelerada e nervosinha só para que, enfim, o quarteto conclua de maneira sem-cerimoniosa e lacônica.
Se entre o Op. 74 e seus predecessores – os quartetos “Razumovsky”, compostos dois anos antes – há um considerável salto estilístico, há uma diferença do Op. 74 para o quarteto seguinte, dito “Serioso”, que conclui esta gravação. Nesta obra, à qual voltaremos mais adiante nesta série, há uma concisão que prenuncia aquela de sonatas como a Op. 109, e com a qual Beethoven não mais experimentaria: ao voltar a escrever para quarteto de cordas, uma década mais tarde, ele destruirá todos os precedentes do gênero, tanto em extensão, quanto em número de movimentos e em transcendência artística.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Quarteto em Mi bemol maior para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 74, “Harpa” Composto em 1809 Publicado em 1810 Dedicado ao príncipe Joseph Franz von Lobkowitz
1 – Poco adagio – Allegro
2 – Adagio ma non troppo
3 – Presto
4 – Allegretto con variazioni
Quarteto em Fá menor para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 95, “Serioso” Composto entre 1810-11 Publicado em 1816 Dedicado a Nikolaus Zmeskall von Domanovecz
5 – Allegro con brio
6 – Allegretto ma non troppo
7 – Allegro assai vivace ma serioso
8 – Larghetto espressivo – Allegretto agitato – Allegro
Tokyo String Quartet: Peter Oundjian e Kikuei Ikeda, violinos Kazuhide Isomura, viola Sadao Harada, violoncelo
Depois de honrarmos as úlceras que “Fidelio” deu a Beethoven, concedendo-lhe dez dias de nosso ano do jubileu, e darmos de presente a vós outros alguns dias de ausência para que o colega FDP Bach lhes apresentasse a soberba integral das sonatas de Lud Van com Bavouzet, prosseguiremos a travessia de sua obra com um dos seus maiores blockbusters, o mais conhecido de seus concertos para piano, que dispensaria apresentações se não houvesse tanto para se escrever sobre ele.
Primeiramente, claro, sua alcunha, apócrifa como quase todos os apelidos dados às obras de Beethoven. O “Imperador” foi assim chamado por Johann Baptist Cramer, seu editor londrino. Muitos pensam que, assim como aquela sinfonia que seria “titolata Buonaparte”, o “Imperador” seria Napoleão, o que é uma tremenda bobagem, já que, em pleno 1809, o corso não era nem querido na Áustria, que derrotara naquele mesmo, tampouco em Londres, mesmo derrotado em Trafalgar anos antes. Cramer tão só apôs um título para descrever, e não sem felicidade, a pompa e imponência da obra, e com isso impressionar sua clientela. Funcionou tão bem que, bem, funciona até hoje.
Este foi o único dos cinco concertos para piano que Beethoven nunca tocou em público. Há quem pense que ele não o fez por conta da surdez, e ela certamente já estava muito avançada quando o concerto foi terminado. Ludwig, no entanto, continuou a apresentar-se como pianista até 1815, quando tocou para a nobreza reunida em Viena para o Congresso epônimo que refatiou a Europa pós-napoleônica. O “Imperador”, aliás, teve duas estreias. A primeira foi privada, na casa do príncipe Lobkowitz, e o solista foi o próprio dedicatário da obra, o arquiduque Rudolph. A estreia pública, com solo do também compositor Friedrich Schneider, aconteceu em Leipzig, onde o concerto foi publicado. A cidade saxã estava longe demais de Viena para que Beethoven, cada vez menos interessado em pegar estradas, se dispusesse a estrear a obra. Quando houve a oportunidade de fazê-la ouvir em Viena, Beethoven não tinha o melhor interesse em tocá-la em público, de modo que a estreia naquela cidade foi dada em 1812 por seu aluno Carl Czerny – o ano da famosa carta à “Amada Imortal”, de imensos problemas financeiros e do início de suas contendas pela tutela de seu sobrinho.
Mais uma barbeiragem factual, num oferecimento daquela baboseira
chamada “Minha Amada Imortal”
Enfim, a obra. De tão executada, gravada e repetida, pode-se até esquecer sua imensa originalidade. O plano geral é mesmo do concerto para violino, embora seja radicalmente diferente deste: um longo e elaborado movimento inicial, um expressivo movimento lento, e um finale impetuoso que resolve os movimentos anteriores. No imenso primeiro movimento, há tantas cadências para o piano solo – incluindo as três que abrem os trabalhos, com a entrada quase imediata do solista, entremeadas por majestosos acordes da orquestra em progressão harmônica – que Beethoven abriu mão, pela primeira vez em seus concertos, de designar um espaço para o executante improvisar livremente. Com um primeiro movimento tão extenso e imponente, é admirável que o cerne da obra, seu verdadeiro coração, esteja no contido, maravilhoso Adagio na remota tonalidade de Si maior, já anunciada por episódios do movimento inicial. Seu caráter hínico é realçado pelo silêncio dos instrumentos marciais (metais e tímpanos) e pelo acompanhamento das cordas em surdina, pelas madeiras, e de delicadas figurações do piano. O resultado é um dos pontos mais altos de toda obra de Beethoven, daqueles que um ludwigomaníaco como eu poderia escutar ad aeternum, e que a gente lamentaria que acabasse, se o genial compositor também não tivesse dado um jeito nisso: em vez de encerrar o Adagio impossivelmente belo, que parece suspender a passagem do tempo, ele prepara a transição ininterrupta para o movimento seguinte com sugestões do tema, e um simples semitom – um longo Si natural do fagote que dá lugar a um Si bemol – abre as comportas para o impetuoso finale que parece resolver tudo que a meia hora anterior deixou em aberto.
Por último, o solista. Não é segredo que Vladimir Horowitz, idolatrado por tantos grandes pianistas e certamente objeto de inveja de qualquer um que já tentou tocar piano, seja frequentemente criticado por suas idiossincrasias, em particular sua inclinação por subverter indicações da partitura para fazer ouvir seus fantásticos truques ao teclado. Esta gravação vem, então, como uma tentativa de desagravo. Ela mostra que Horowitz conseguia, sim, respeitar as intenções do compositor sem deixar de demonstrar seu fabuloso domínio do instrumento. Vá lá que seu parceiro nesta gravação ao vivo, o temido Fritz Reiner, certamente arrancar-lhe-ia a coluna vertebral pelas órbitas se ele tentasse botar as manguinhas de fora, mas é notável como o brilho de Horowitz não soçobra a cuidadosa realização do acompanhamento orquestral pelo húngaro. Se não é o “Imperador” para ouvir pela eternidade, é certamente um dos que mais gosto de revisitar.
A gravação encerra com uma outra notável parceria, aquela entre Horowitz e outro notório déspota do pódio, e ademais seu sogro, Arturo Toscanini. Também realizada ao vivo, no Carnegie Hall, com todas as limitações esperadas de uma gravação de 1943, ela mostra o recém-quarentão Volodya no auge de suas forças, numa interpretação elétrica de um de seus cavalos de batalha, o primeiro concerto de Tchaikovsky. O concerto em questão era destinada à arrecadação de bônus de guerra, numa época em que os soviéticos retomavam Stalingrado e o teatro de operações do Pacífico ficava cada vez mais encarniçado. Todos esperavam o inacreditável de Horowitz, e ele pelo jeito o entregou ao público, com direito a algumas de suas características traições à partitura para exibir sua incomparável técnica de oitavas. O resultado foi uma leitura única, inconfundível dessa obra popularíssima da qual, confesso, eu já gostei mais, mas que provavelmente agradará seus muitos fãs.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Concerto em Mi bemol maior para piano e orquestra, Op. 73, “Imperador” Composto em 1809 Publicado em 1811 Dedicado ao arquiduque Rudolph da Áustria
1 – Allegro
2 – Adagio un poco mosso – attacca:
3 – Allegro ma non troppo
Vladimir Horowitz, piano RCA Victor Symphony Orchestra Fritz Reiner, regência
Pyotr Ilyich TCHAIKOVSKY (1840-1893)
Concerto para piano e orquestra no. 1 em Si bemol menor, Op. 23
4 – Allegro non troppo e molto maestoso – Allegro con spirito
5 – Andantino semplice – Prestissimo – Tempo I
6 – Allegro con fuoco – Molto meno mosso – Allegro vivo
Vladimir Horowitz, piano NBC Symphony Orchestra Arturo Toscanini, regência
Gravado ao vivo no Carnegie Hall, New York City, em 25 de abril de 1943.
Dando continuidade à série do pianista francês Jean-Efflaim Bavouzet dedicada às Sonatas de Beethoven, trago hoje o segundo volume da coleção, com mais três CDs para os senhores degustarem.
Dentre tantas outras, uma das características que me fazem admirar ainda mais esse músico é a tranquilidade e a serenidade que ele transmite quando está tocando. Mesmo nas peças mais complexas e difíceis, intensas, ele transmite muita confiança na execução. Suas escolhas dos tempos me parecem apropriadas, mesmo que em um primeiro momento possam parecer diferentes.
Enfim, é para ouvir, apreciar, se deliciar, e aproveitar.
Piano Sonatas, Volume 2
CD ONE
Sonata, Op. 22 in B flat major
1 Allegro con brio
2 Adagio con molta espressione
3 Minuetto – Minore – Minuetto D.C. senza replica
4 Rondo. Allegretto
Sonata, Op. 26 ‘Grande Sonate’ in A flat major
5 Andante con Variazioni
6 Scherzo. La prima parte senza repetizione. Allegro molto – Trio – Scherzo D.C. senza repetizione
7 Marcia funebre sulla morte d’un Eroe
8 Allegro
Sonata quasi una fantasia, Op. 27 No. 1 in E flat major
9 Andante – Allegro – Tempo I
10 Allegro molto e vivace
11 Adagio con espressione
12 Allegro vivace – Tempo I – Presto
Sonata quasi una fantasia, Op. 27 No. 2 ‘Moonlight’ in C sharp minor
13 Adagio sostenuto. Si deve suonare tutto questo pezzo delicatissimamente e senza sordino
14 Allegretto. La prima parte solamente una volta – Trio – Allegretto D.C.
15 Presto agitato – Adagio – Tempo I
CD TWO Sonata, Op. 31 No. 1 in G major
1 Allegro vivace
2 Adagio grazioso
3 Rondo. Allegretto – Adagio – Tempo I – Adagio – Presto
Sonata, Op. 31 No. 2 ‘Tempest’ in D minor
4 Largo – Allegro – Adagio – Largo – Allegro – Largo – Allegro – Largo – Allegro – Adagio – Largo – Allegro
5 Adagio
6 Allegretto
Sonata, Op. 31 No. 3 in E flat major
7 Allegro
8 Scherzo. Allegretto vivace
9 Menuetto. Moderato e grazioso – Trio – Coda
10 Presto con fuoco
CD THREE
Sonata, Op. 28 ‘Pastoral’ in D major
1 Allegro – Adagio – Tempo I
2 Andante
3 Scherzo. Allegro vivace – Trio. La seconda parte una volta – Scherzo D.C.
4 Rondo. Allegro ma non troppo – Più Allegro quasi Presto
Sonata, Op. 49 No. 1 ‘Sonate facile’ in G minor
5 Andante
6 Rondo. Allegro
Sonata, Op. 49 No. 2 ‘Sonate facile’ in G major
7 Allegro, ma non troppo
8 Tempo di Menuetto
Sonata, Op. 53 ‘Waldstein’ in C major
9 Allegro con brio
10 Introduzione. Adagio molto –
11 Rondo. Allegretto moderato – Prestissimo
12 Andante, WoO 57 ‘Andante favori’ in F major
Andante grazioso con moto
Venho acompanhando a carreira do pianista Jean-Efflaim Bavouzet há algum tempo, desde que iniciou o projeto de gravar a obra de Claude Debussy, sempre contratado pelo selo inglês Chandos. Fiel à gravadora, também já gravou Ravel, Schumann, Bártok, Haydn, Charles Ives, Mozart, entre outros, sempre com sucesso de crítica e de público. Com certeza, é um dos principais pianistas da atualidade.
Esse seu projeto beethoveniano iniciou-se em 2012 e foi concluido em 2016. Vou trazê-lo em três etapas, cada uma delas com três cds.
Vamos então ao que viemos. Creio que as obras não precisem ser apresentadas, afinal nosso colega Vassily Genrikovich vem fazendo um trabalho fantástico no Projeto Beethoven 250 anos.
PIANO SONATAS, VOLUME 1
CD ONE
Sonata, Op. 2 No. 1 in F minor
1 Allegro
2 Adagio
3 Menuetto. Allegretto – Trio – Menuetto D.C.
4 Prestissimo
Sonata, Op. 2 No. 2 in A major
5 Allegro vivace
6 Largo appassionato
7 Scherzo. Allegretto – Minore – Scherzo D.C.
8 Rondo. Grazioso
4 Sonata, Op. 2 No. 3 in C major
9 Allegro con brio
10 Adagio
11 Scherzo. Allegro – Trio – Scherzo D.C. e poi la Coda – Coda
12 Allegro assai
CD TWO
Sonata, Op. 7 ‘Grande Sonate’ in E flat major
1 Allegro molto e con brio
2 Largo, con gran espressione
3 Allegro – Minore – Allegro D.C.
4 Rondo. Poco allegretto e grazioso
5 Sonata, Op. 13 ‘Grande Sonate pathétique’ in C minor
5 Grave – Allegro di molto e con brio – Tempo I – Allegro molto e con brio –
Grave – Allegro molto e con brio
6 Adagio cantabile
7 Rondo. Allegro
Sonata, Op. 14 No. 1 in E major
8 Allegro
9 Allegretto – Maggiore – Allegretto D.C. e poi la Coda – Coda
10 Rondo. Allegro comodo
Sonata, Op. 14 No. 2 in G major
11 Allegro
12 Andante (La prima parte senza replica)
13 Scherzo. Allegro assai
CD THREE
Sonata, Op. 10 No. 1 in C minor
1 Allegro molto e con brio
2 Adagio molto
3 Finale. Prestissimo
Sonata, Op. 10 No. 2 in F major
4 Allegro
5 Allegretto
6 Presto
Sonata, Op. 10 No. 3 in D major
7 Presto
8 Largo e mesto
9 Menuetto. Allegro – Trio – Menuetto D.C., ma senza replica
10 Rondo. Allegro
11 Presto, WoO 52 in C minor
Original third movement discarded from Sonata, Op. 10 No. 1
Presto – Trio – Presto D.C.
12 Prestissimo in C minor Original Finale, with longer development, of Sonata, Op. 10 No. 1
Reconstructed by William Drabkin
Para arrematar a minissérie “Leonore/Fidelio” dentro dessa travessia a que nos propusemos da integral beethoveniana, abordaremos brevemente as aberturas que Ludwig compôs para o que deveria ter sido sua única ópera, mas que lhe deu o trabalho de várias e, nas suas próprias palavras, “uma coroa de mártir”.
A abertura das óperas, no ínicio do século XIX, buscava estabelecer, enquanto a plateia se aquietava, a devida atmosfera sonora para o que viria após o desfraldar das cortinas. Embora algumas aberturas não citem explicitamente temas da ópera – das quais aquela que Mozart deu para “Le Nozze di Figaro” é um dos mais maravilhosos exemplos, evocativa que é da comédia bufa que a ela se segue -, era bastante comum que os compositores citassem melodias para introduzir personagens ou evocar episódios significativos do enredo. Com tantas edições, podas e reformulações, é natural que Beethoven tenha mudado de ideia quanto à música que abriria “Leonore/Fidelio”. Assim, ele escreveu pelo menos cinco aberturas para sua complicada ópera – quis dar-lhe tantas aberturas quanto ela lhe deu úlceras, decerto -, das quais quatro sobreviveram: aquelas intituladas “Leonore” e numeradas de 1 a 3, e a abertura “Fidelio”.
Por muito tempo, pensou-se que a abertura Op. 138, publicada postumamente, fosse a primeira intenção do compositor para dar a partida em “Leonore”, e por isso ela ganhou o título de “Leonore no. 1”. Descobriu-se, no entanto, que embora tenha sido esboçada em 1804, um ano antes da fracassada estreia da ópera, ela só foi completada em 1808, dentro de planos enfim malogrados de apresentá-la em Praga. Assim como as três aberturas homônimas, ela cita o tema de Florestan na masmorra, antes da conclusão. Notória pelos crescendos quase rossinianos, ela parece entre todas a menos evocativa do restante da ópera – sinalizando, talvez, o desalento de Beethoven para com sua malfadada criatura.
A abertura seguinte, intitulada “Leonore no. 2”, foi aquela usada na fracassada estreia de 1805, ante uma plateia repleta de invasores franceses que entendiam tchongas de alemão. Logo no início, ouve-se um soturno tema em escala descendente, a representar a descida de Florestan à sua horrenda masmorra. Há uma evocação do casal de protagonistas, a citação à ária de Florestan, e um toque de trompete que prenuncia aquele outro, tão crucial para a trama, no último ato dela.
“Leonore no. 3”, a mais desenvolvida delas, foi escrita para o relançamento da muito mutilada “Leonore” em 1806. Elaborada, altamente dramática e muito complexa, é uma obra-prima que se sustenta sozinha, como se abertura de concerto fosse, ao feitio da “Coriolan”, composta no ano seguinte. Seu largo escopo e portentosa realização, no entanto, acabam por eclipsar o singelo início do primeiro ato, que, com os arrulhos e resmungos do triângulo amoroso entre Leonore, Marzelline e Jaquino, acaba soando anticlimático. Com o intuito de dar alguma finalidade dramática a essa grande música, Gustav Mahler iniciou, como já mencionamos anteriormente, a tradição de executar a “Leonore no. 3” como prelúdio para a cena final de “Fidelio”, a fim de permitir ao público algum repouso da trama enquanto a peonada faz as mudanças necessárias no cenário.
Por fim, a abertura da versão definitiva da ópera, chamada tão só “Fidelio” e ouvida junto com a obra toda em 1814, não tem qualquer relação temática com ela. Com os franceses expulsos e os vienenses novamente enchendo as galerias do teatro, celebrava-se a derrocada de Napoleão e, com ela, os novos ventos de libertação. A concisão da forma e a impetuosidade são bem característicos de um Beethoven mais velho, talvez já sem muita paciência para debruçar-se mais sobre sua conturbada criatura operística. Serve bem como introdução para a derradeira versão da obra, que é mais uma celebração do triunfo de Leonore que o melodrama original, e, talvez por isso mesmo, seja a abertura que menos apelo tenha numa audição em separado.
Já lhes apresentei essas quatro obras, que aqui vão em ordem cronológica, na muito recomendável versão dos filarmônicos de Viena sob Claudio Abbado. Ainda assim, achei interessante trazê-las de novo, depois de tantas gravações de “Leonore/Fidelio”, para que vocês as apreciem à luz das reminiscências da ópera e as julguem quanto a seus méritos para com ela. Tenho certeza de que a orquestra da Tonhalle de Zürich e o excelente David Zinman saberão granjear a atenção dos leitores-ouvintes para esse desfile sonoro das quatro irmãs tão próximas quanto diferentes, e assim podermos cerrar as cortinas sobre aquela que, entre todas crias de Beethoven, foi a que mais lhe trouxe amarguras.
Para encerrar nosso miniciclo “Fidelio/Leonore”, que honra o mais complicado de todos conceptos paridos por nosso herói em jubileu, trago uma sólida “Leonore”. Não por acaso, a Staatskapelle Dresden faz sua terceira aparição no miniciclo, tamanha é sua afinidade com a obra, bem como sua tradição ímpar na execução de óperas em alemão. O regente também é muito especial: Herbert Blomstedt, o decano dos maestros em atividade. As centenas de gravações brilhantes que ele produziu ao longo de sete décadas de carreira sempre são escolhas certeiras quando a gente quer conhecer uma obra ou construir uma discografia, e não quer nem correr o risco de arriscar as marcas-diabo, nem desembolsar nossas suas merrecas em discos “hypados” de astros ególatras inflacionados por marqueteiros. Por algum motivo, talvez tão só a própria discrição do austero Blomstedt, sua grande arte não é superfaturada, e foi graças a isso que pude conhecer o valor de “Leonore”, que considerava uma mera curiosidade, um zigoto de “Fidelio”.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Leonore, oder Der Triumph der ehelichen Liebe (Leonora, ou o Triunfo do Amor Conjugal), ópera em três atos, Op. 72 Libreto de Joseph Sonnleithner, baseado em “Léonore, ou L’amour conjugal” de Jean-Nicolas Bouilly
1 – Abertura (Leonore no. 2)
PRIMEIRO ATO
2 – “Fidelio kommt nicht zurück!”
3 – No. 1, Aria: “O wär’ ich schon mit dir vereint”
4 – “Wenn ich diese Tür nicht”
5 – No. 2, Duet: “Jetzt, Schätzchen”
6 – “Höre, Jaquino”
7 – No. 3, Trio: “Ein Mann ist bald genommen”
8 – “Ist Fidelio noch nicht nach Hause gekommen?”
9 – No. 4, Canon (Quartet): “Mir ist so wunderbar”
10 – “Höre, Fidelio”
11 – No. 5, Aria: “Hat man nicht auch Gold beneiben”
12 – “Ihr könnt das leicht sagen”
13 – No. 6, Trio: “Gut, Söhnchen, gut”
SEGUNDO ATO
14 – No. 7: March
15 – “Drei Schildwachten auf den Wall”
16 – No. 8, Aria mit Chor: “Ha! Welch ein Augenblick!”
17 – “Rocco!”
18 – No. 9, Duet: “Jetzt, Alter, jetzt hat es Eile!”
19 – “Nun ist es endlich entschieden”
20 – No. 10, Duet: “Um in der Ehe froh zu leben”
21 – “Sie doch, wie du so schnell”
22 – No. 11, Recitative & Aria: “Ach, brich noch nicht”
23 – No. 12, Finale: “O welche Lust!”
24 – No. 12, Finale: “Entfernt euch jetzt!”
25 – No. 12, Finale: “Wir müssen gleich zu Werk schreiten”
26 – No. 12, Finale: “Auf euch nur will ich bauen”
TERCEIRO ATO
27 – No. 13, Recitative & Aria: “Gott! Welch Dunkel hier!”
28 – No. 14, Melodrama & Duet: “Wie kalt ist es”
29 – “Er erwacht!”
30 – No. 15, Trio: “Euch werde Lohn in besser’n Welten”
31 – “Alles ist bereit”
32 – No. 16, Quartet: “Er sterbe!”
33 – “Die Waffe hab’ ich mir”
34 – No. 17, Recitative & Duet: “Ich kann mich noch nicht fassen”
35 – “O Leonore, sprich!”
36 – No. 18, Finale: “Zur Rache”
37 – No. 18, Finale: “O Gott! O welch ein Augenblick!”
38 – No. 18, Finale: “Wie lange habt Ihr sie getragen?”
39 – No. 18, Finale: “Preist mit hoher Freude Glut”
40 – No. 18, Finale: “Wer ein solches Weib errungen”
Edda Moser, soprano (Leonore) Helen Donath, soprano (Marzelline) Richard Cassilly, tenor (Florestan) Eberhard Büchner, tenor (Jaquino) Karl Ridderbusch, barítono (Rocco) Theo Adam, baixo (Pizarro) Hermann Christian Polster, baixo (Don Fernando) Reiner Goldberg, tenor (prisioneiro I) Siegfried Lorenz, barítono (prisioneiro II) Rundfunkchor Leipzig Staatskapelle Dresden
Herbert Blomstedt, regência
Qualquer lançamento de John Eliot Gardiner é um tremendo evento e, normalmente, ninguém perde por esperar.
Foi assim quando ele lançou sua “Leonore” em 1997, com a qual pude finalmente conhecer a versão original de “Fidelio” em todo seu esplendor de obra de próprio mérito, e não, como muitas vezes a consideram, uma crisálida imperfeita duma obra maior. Foi-me uma tremenda descoberta, em especial pelo tom impetuoso, revolucionário da trama e da música que a acompanha, muito mais afeito ao espírito do tempo e dos ventos então recentes da Revolução Francesa. “Fidelio”, em comparação, pareceu-me não só uma obra de maturidade, mas também um reparo – uma retratação. Havia uma espontaneidade e energia na “Leonore” de Gardiner que, até, me trouxe a ideia de que “Fidelio”, sim, fora um erro, e que a extensa poda e completa reformulação de libreto e música foram uma perda considerável, e não uma real melhoria.
Com o tempo, e com meus grisalhos, “Fidelio” foi crescendo em meu conceito. Reconheço que é uma obra melhor urdida, com narrativa fluida e música adequadamente poderosa e concentrada. Cada vez que revisito essa “Leonore” de Gardiner eu me admiro com a clareza e limpidez da execução da orquestra, reafirmo a certeza de que o Monteverdi Choir é o melhor coro do planeta, e aprecio o elã que Gardiner traz para o pódio, sem deixar cair a peteca da trama, ademais extensa e cheia de momentos supérfluos. Por outro lado, estranho cada vez mais o estranho híbrido que ele criou, juntando ao que é grosso modo a versão integral de 1805 alguns pedaços da remontagem abreviada de 1806 e, até mesmo, trechos de “Fidelio”, de nove anos depois. Nunca entendi o que levou um músico desse naipe, normalmente tão estrito em sua observância aos princípios da interpretação historicamente informada, a tal arbitrária colagem. Tampouco entendi a participação do narrador, o veterano ator alemão Christoph Bantzer, a comentar com textos de sua própria lavra a narrativa, entre leituras de outras obras, como a tradução alemã de William Wordsworth que abre as cortinas. Se permitirem a Gardiner a licença poética, sugiro então que programem somente a música de “Leonore” – numerada abaixo de 1 a 18, mais a abertura – e passem ao largo dos diálogos: apesar da estranheza, valerá a pena.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Leonore, oder Der Triumph der ehelichen Liebe (Leonora, ou o Triunfo do Amor Conjugal), ópera em três atos, Op. 72 Libreto de Joseph Sonnleithner, baseado em “Léonore, ou L’amour conjugal” de Jean-Nicolas Bouilly
Textos da narração: Christoph Banzer
1 – Abertura (“Leonore II”)
PRIMEIRO ATO
2 – ‘…Twas in Truth’
3 – No.1, ária: ‘O war ich schon mit dir vereint’
4 – ‘Beharrlich bleibt auf dem Liebespfad’
5 – No.2, dueto: ‘Jetzt, schatzchen, jetzt sind wir allein’
6 – ‘Der Kerkermeister, Rocco, der Vater’
7 – No.3, trio: ‘Ein Mann ist bald genommen’
8 – ‘Fidelio kam – und niemand weiss woher’
9 – No.4, quarteto: ‘Mir ist so wunderbar’
10 – ‘Gefuhl ist gut, doch Geld ist besser’
11 – No.5, ária: ‘Hat man nicht auch Gold beineben’
12 – ‘Unantastbar klar birgt Leonores Brust’
13 – No.6, trio: ‘Gut, Sohnchen, gut’
SEGUNDO ATO
14 – No. 7: Introdução em Ré maior
15 – ‘Der Gouverneur ist da’
16 – No.8, ária com coro: ‘Ha! Welch ein Augenblick!’
17 – ‘Postiert eine Trompete auf dem Augenblick!’
18 – No.9, dueto: ‘Jetzt, Alter, hat es eile!’
19 – ‘Und Leonore Begegnet Marzelline’
20 – No.10, dueto: ‘Um in der Ehe froh zu Leben’
21 – ‘Die Ernsten und Arie’
22 – No.11, recitativo e ária: ‘Ach, brich noch nicht, du mattes Herz!…’
23 – No.12, finale: ‘O welche Lust, in freier Luft’
24 – No.12, recitativo: ‘Entfernt euch jetzt! Nun, konnt Ihr eilen?’
25 – No.12, dueto: ‘Wir mussen gleich zu Werke schreiten’
26- No.12, ária: ‘Auf euch nur will ich bauen
‘TERCEIRO ATO
27 – ‘Florestans not im Dunkel Tauber einsamkeit’
28 – No.13, recitativo e ária: ‘Gott! Welch Dunkel kier!…’
29 – No.14, melodrama e dueto: ‘Wie kalt ist es in diesem unterirdischen Gewolbe!’
30 – Dueto: ‘Nur hurtig Fort, nur frisch Gegraben’
31 – ‘Dort, in der Tiefe’
32 – No. 15, trio: ‘Euch werde Lohn in bessern Welten’
33 – ‘Und Rocco eilt’
34 – No. 16, quarteto: ‘Er sterbe! Doch er soll erst wissen’
35 – ‘Oh Leonore! Alles was dein Mut gewagt – Verloren!’
36 – No.17, recitativo e dueto: ‘Ich kann mich noch nicht fassen’
37 – No.18, finale: ‘Zur Rache! Zur Rache!’
38 – No.18, finale: ‘O Gott! O welch ein Augenblick!’
39 – No.18, finale: ‘So mussen endlich aufgeklarte!’
40 – No.18, finale: ‘Doch hore erst, du Bosewicht’
41 – No.18, finale: ‘Dann Herrscht allgemeine Freiheit und Gleichheit der Geister’
42 – No.18, finale: ‘Nein, nein, nein! Er ist noch zu gering bestraft!’
43 – No.18, finale: ‘Ein hoherer Geist, vom Himmel gesandt’
44 – No.18, finale – recitativo: ‘Der Konig wird dein Richter sein!’
45 – No.18, finale: ‘Wer ein holdes Weib errungen’
46 – Leonore, apêndice: No.7a – Marcha (versão alternativa) em Si bemol maior
Hillevi Martinpelto, soprano (Leonore) Christiane Oelze, soprano (Marzelline) Kim Begley, tenor (Florestan) Michael Schade, tenor (Jaquino) Rob Burt, tenor (prisioneiro I) Colin Campbell, barítono (prisioneiro II) Franz Hawlata, barítono (Rocco) Matthew Best, baixo (Pizarro) Alastair Miles, baixo (Don Fernando) The Monteverdi Choir Orchestre Révolutionnaire et Romantique
John Eliot Gardiner, regência
É raríssima a oportunidade de ouvir a versão retrabalhada de Leonore, estreada em 1806: a única versão disponível em disco, com a regência de Marc Soustrot, eu só escutei na rádio, e nunca tinha assistido a uma montagem dela antes de encontrar esta aqui, levada à cena no próprio Theater an der Wien em que ela estreou, e com o Concentus Musicus Wien sob a regência de Stefan Gottfried (o fundador do CMV, conde d’Harnoncourt-Unverzagt, aparece numa breve entrevista no início do vídeo)
Encerramos essa semana de “Fidelios” com uma grata surpresa. Ou talvez não, porque a Naxos já vem há um bom tempo colocando, dentro de sua missão de proporcionar qualidade a baixo custo, ótimas gravações no mercado. Algumas, especialmente de ópera, são excelentes, e este “Fidelio” é sensacional. O veterano regente Hálasz dirige o que parece ser uma orquestra de câmara com tempos lépidos e muita atenção ao detalhe, sem deixar de causar sensação, especialmente nas grandiloquentes codas boladas por nosso herói Ludwig. E, falando em heróis, a dupla de protagonistas escandinavos faz muito bonito. A dinamarquesa Nielsen é uma Leonore com brilho e garbo, sem deixar de mostrar com delicadeza sua vulnerabilidade na arriscada (e, combinemos, inverossímil) operação de resgate, e o sueco Winbergh, infelizmente já falecido, é um dos melhores Florestans que já ouvi – sua sensível transição do torpor para a epifania, e dela para a redenção, soa-me impecável. A leveza de suas vozes orna muito bem com o sucinto conjunto orquestral, e o time de coadjuvantes – com destaque para um Kurt Moll que parece que vai engolir suas contrapartes cada vez que Rocco abre a boca – mantém o interesse das tramas secundárias. Os diálogos, que tantos ouvintes consideram indesejáveis, aqui são breves e muito atraentes, valorizando os timbres dos cantores. O único defeito desta gravação, felizmente pouco audível, e só no final, é um Don Fernando a que, parece, faltaram algumas colheradas de Biotônico. Nada que comprometa: ponto para a Naxos, que me proporcionou essa gravação há alguns anos por uns poucos pilas e me deu o “Fidelio” que mais sai de minha estante.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Fidelio, ópera em dois atos, Op. 72 Libreto de Joseph Sonnleithner (1805) a partir do romance em francês de Jean-Nicolas Bouilly, posteriormente abreviado por Stephan von Breuning (1806) e editado por Georg Friedrich Treitschke (1814)
1 – Abertura
PRIMEIRO ATO
2 – “Jetzt, Schätzchen, jetzt sind wir allein”
3 – “Armer Jaquino, ich war ihm sonst recht gut”
4 – “O wär ich schon mit dir vereint”
5 – “Marzelline, ist Fidelio noch nicht zuruckgekommen?”
6 – “Mir ist so wunderbar”
7 – “Höre, Fidelio”
8- “Hat man nicht auch Gold beineben”
9 – “Ihr habt recht, Vater Rocco”
10 – “Gut Söhnchen, gut”
11 – Marsch
12 – “Drei Schildwachen auf den Wall”
13 – “Ha! Welch ein Augenblick!”
14 – “Hauptmann! Besteigen Sie mit einem Trompeter…”
15 – “Jetzt, Alter, jetzt hat es Eile!”
16 – “Abscheulicher! Wo eilst du hin?”
17 – “Marzelline! Marzelline!”
18 – “O welche Lust, in freier Luft den Atem leicht zu heben!”
19 – “Nun sprecht, wie ging’s”
20 – “Leb wohl, du warmes Sonnenlicht”
SEGUNDO ATO
21 – “Gott! Welch’ Dunkel hier!” – “In des Lebens Frühlingstagen”
22 – “Wie kalt ist es in diesem unterirdischen Gewölbe”
23 – “Er erwacht”
24 – “Euch werde Lohn in bessern Welten”
25 – “Alles ist bereit”
26 – “Er sterbe! Doch er soll erst wissen” – “Vater Rocco! Der Herr Minister ist angekommen” – “Es schlägt der Rache Stunde” – “Meine Leonore”
27 – “O namenlose Freude”
28 – “Heil sei dem Tag”
29 – “Des besten Königs Wink und Wille… O Gott”
30 – “Wer ein holdes Weib errungen”
Inga Nielsen, soprano (Leonore)
Edith Lienbacher, soprano (Marzelline)
Gösta Winbergh, tenor (Florestan)
Herwig Pecoraro, tenor (Jaquino) Péter Pálinkás, tenor (prisioneiro I)
József Moldvay, baixo (prisioneiro II)
Kurt Moll, baixo (Rocco)
Alan Titus, baixo (Pizarro)
Wolfgang Glashof, barítono (Don Fernando)
Magyar Rádió Kórus
Budapest Nicolaus Esterházy Sinfonia
Michael Halász, regência
Vamos ao de Barenboim, que aprecio pela esquisitice. Não, nada de esquisito em seu seguro papel de regente ante uma orquestra e um coro que ele dirige há anos e conhece como ninguém, e que se saem maravilhosamente bem. A gravação baseia-se numa apresentação ao vivo para a qual Edward Said – amigo de Barenboim e cofundador da West-Eastern Divan Orchestra – escreveu os diálogos, e que acabaram em sua maioria podados do disco. Se isso soa como um alívio para os que querem só ouvir música, acaba por outro lado tirando toda linearidade da trama, que já foi muito abreviada, como sabemos, por ocasião da transformação da “Leonore” de 1805-6 no “Fidelio” de 1814. Barenboim é um músico muito inteligente, com uma autoconfiança inabalável, e costuma embasar muito bem suas decisões. Ainda assim, fica difícil de entender por que ele escolheu abrir este “Fidelio” com a abertura conhecida como “Leonore no. 2”, que foi ouvida na estreia de “Leonore” em 1805 e preterida em prol da “Leonore no. 3” e, por fim, da abertura “Fidelio” a que estamos acostumados. Talvez prevendo os tomates, Barenboim resolveu oferecer aos ouvintes um generoso apêndice no final da gravação com as demais aberturas da ópera, de maneira que podemos honrar as intenções do compositor, se as de Barenboim não nos convencerem (o que foi o meu caso).
Curiosas, também, são a inversão dos dois primeiros números – que está de acordo com a “Leonore” de 1805, e não com a versão definitiva de “Fidelio” – e a supressão da pequena, mas significativa parte do Primeiro Prisioneiro, normalmente cantada por um tenor, e sque Barenboim resolveu atribuir aos tenores do coro – o que não faz muito sentido, considerando o contexto da cena dos prisioneiros tomando sol. Os solistas estão bem, embora ache que eles são o ponto mais fraco dessa gravação. Isso poderia ser um cheque-mate para qualquer gravação de ópera, mas peço que deem uma chance a ela e tentem apreciar a pungente, agressiva abordagem de Waltraud Meier, que não canta tão belamente mas me convenceu muito como Leonore, e se divirtam com o vivo contraste entre o sotaque espanhol de Placido Domingo, até bem-vindo numa ação que, afinal de contas, se passa na Espanha, e todo fordunço teutão que se forma em função de seu resgate: seu Florestan mediterrâneo, mesmo após anos numa masmorra, soa incongruentemente ensolarado, e sua voz indubitavelmente maravilhosa a um só tempo traz uma das mais belas leituras para a ária de Florestan e, paradoxalmente, corrói todo o drama da cena,
Pela minha descrição, que parece a sessão de comentários do G1, os leitores-ouvintes poderão achar que lhes proponho uma cilada. Muito pelo contrário, é uma das gravações de “Fidelio” que mais gosto de revisitar. Ouçam-na, portanto, e deixem-me saber o que dela acharam nos comentários.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Fidelio, ópera em dois atos, Op. 72 Libreto de Joseph Sonnleithner (1805) a partir do romance em francês de Jean-Nicolas Bouilly, posteriormente abreviado por Stephan von Breuning (1806) e editado por Georg Friedrich Treitschke (1814)
1 – Abertura Leonore no. 2 (Op. 72a)
PRIMEIRO ATO
2 – “O wär’ ich schon mit dir vereint”
3 – “Jetzt, Schätzchen, jetzt sind wir allein” – “Armer Jaquino, ich war ihm sonst recht gut”
4- “Mir ist so wunderbar” – “Höre, Fidelio”
5 – “Hat man nicht auch Gold beineben” – ” Ihr könnt das leicht sagen, Meister Rocco”
6 – “Gut Söhnchen, gut”
7 – Marsch – “Drei Schildwachen auf den Wall”
8 – “Ha! Welch ein Augenblick!” – “Hauptmann! Besteigen Sie mit einem Trompeter…”
9 – “Jetzt, Alter, jetzt hat es Eile!”
10 – “Abscheulicher! Wo eilst du hin?”
11 – “Komm, Hoffnung” – “Meister, Rocco”
12- “O welche Lust, in freier Luft den Atem leicht zu heben!”
13- “Nun sprecht, wie ging’s” – “Ach Vater, eilt” – “Verwegner”
14 – “Leb wohl, du warmes Sonnenlicht”
SEGUNDO ATO
15 – “Gott! Welch’ Dunkel hier!
16 – “In des Lebens Frühlingstagen”
17 – “Wie kalt ist es in diesem unterirdischen Gewölbe”
18 – “Nur hurtig fort, nur frisch gegraben” – “Er erwacht”
19 – “Euch werde Lohn in bessern Welten” – “Alles ist bereit”
20- “Er sterbe! Doch er soll erst wissen” – “Vater Rocco! Der Herr Minister ist angekommen” – “Es schlägt der Rache Stunde” – “Meine Leonore”
21 – “O namenlose Freude”
22 – “Heil sei dem Tag”
23 – “Des besten Königs Wink und Wille… O Gott”
24 – “Wer ein holdes Weib errungen”
Waltraud Meier, soprano (Leonore)
Soile Isokoski, soprano (Marzelline)
Placido Domingo, tenor (Florestan)
Werner Güra, tenor (Jaquino)
René Pape, baixo (Rocco)
Falk Struckmann, baixo (Pizarro)
Kwangchul Youn, baixo (Don Fernando) Klaus Häger, baixo (prisioneiro II)
Deutsche Staatsopernchor Berlin
Staatskapelle Berlin
Daniel Barenboim, regência
Esta gravação que lhes trago é muito diferente daquelas que lhes alcancei até aqui, nesse breve florilégio fideliano a homenagear a mais complicada das criaturas de Beethoven. Temo parecer idiota ao afirmar que uma montagem de ópera possa não soar “operística”, então tenho que primeiro esclarecer que considero – no que não estou sozinho, aliás – “Fidelio” uma obra sui generis, fruto dum genial criador de música instrumental, ele próprio um instrumentista virtuoso, que não tinha o menor interesse pelos palcos e nenhuma empatia com cantores (como pode fácil e dispneicamente atestar qualquer coralista que tenha cantado a Nona ou a Missa Solemnis) e que, ainda assim, resolveu parir uma ópera.
Posto isto, e por mais que aprecie as gravações de consumados operistas como Böhm, são coisas como esse álbum duplo da Philips que me fazem revisitar “Fidelio”. Bernard Haitink, o maior regente vivo (embora não mais em atividade), tremendo intérprete de Beethoven, empresta a costumeira elegância e atenção ao detalhe às partes instrumentais, enquanto as integra a um excelente time vocal. A impressão geral não é tanto de uma ópera, mas um oratório belissimamente burilado à perfeição.
Queria muito falar do Florestan de Reiner Goldberg e do Rocco de Kurt Moll, mas com Jessye Norman no papel-título, eu nada mais posso fazer senão, com as devidas desculpas, cumprir o devoto dever de falar da “ídola”. E Jessye dá maravilhosa vida à heroína Leonore, usando e abusando de seu poderoso instrumento vocal, e com a sabedoria de contê-lo quando necessário, como nos duetos com a delicada Marzelline de Pamela Coburn. Sua linda voz não encanta só nos números musicais, mas também nos diálogos – que aqui, diferentemente de outras gravações, são breves e interessantes. Chamaria de incrível a expressividade dessa filha de Augusta, Georgia, num idioma tão desafiador como o alemão, se já não a conhecesse tão bem e tanto a amasse em tantos outros idiomas. A lamentar, somente, é que Jessye – a despeito da pose com tricorno na capa – nunca tenha levado, até onde sei, sua Leonore aos palcos. Não é difícil imaginar justificativas baseadas no tal do physique du rôle, mas a própria premissa de “Fidelio” – uma soprano, com qualquer massa corporal e cor de pele, enganar a tudo e a todos num papel masculino – é um desafio à verossimilhança, e, convenhamos, ver a divina Jessye ludibriar Pizarro e libertar Florestan machucaria zero pessoas.
Dignas de nota, também, são as circunstâncias muito especiais desta gravação. Ela foi realizada em Dresden, na então Alemanha Oriental, com o coro e orquestra estatais, em novembro de 1989, aquele mesmo em que certo muro foi derrubado na capital do país. Um mês antes, os mesmos conjuntos tinham participado duma inesquecível montagem de “Fidelio” na magnífica Semperoper da capital da Saxônia. Estas récitas de “Fidelio” tinham sido concebidas como uma, er, “homenagem” aos quarenta anos da nada democrática República Democrática Alemã, enquanto protestos cada vez mais volumosos e violentos tomavam conta da cidade. Certamente os censores de Dresden já tinham desertado, ou estavam muito loucos de Schnapps para acharem que uma ópera cujo único cenário é uma prisão, e que se baseia tão só no embate entre a liberdade e a opressão, seria uma homenagem adequada a um odiado regime que fazia água por todos os lados. A diretora da montagem, Christine Mielitz, agradeceu a oportunidade e saudou o regime a pontapés, colocando o coro de prisioneiros para cantar com roupas contemporâneas, semelhantes àquelas das alemãs e dos alemães que, por todos os lados de Dresden, enfrentavam com voadoras e biabas os cada vez menos convictos cassetetes da Polizei. O público entendeu o recado e, numa corajosa quebra de decoro operístico, aplaudiu o coro por tanto tempo que quase inviabilizou a conclusão da récita. E a gravação que lhes apresento, realizada dessa circunstâncias, certamente rebrilha com esse poderoso Zeitgeist.
Trechos da histórica montagem de “Fidelio” na Semperoper, num curto vídeo em inglês
extraído do sítio oficial do belíssimo teatro.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Fidelio, ópera em dois atos, Op. 72
Libreto de Joseph Sonnleithner (1805) a partir do romance em francês de Jean-Nicolas Bouilly, posteriormente abreviado por Stephan von Breuning (1806) e editado por Georg Friedrich Treitschke (1814)
1 – Abertura
PRIMEIRO ATO
2 – “Jetzt, Schätzchen, jetzt sind wir allein”
3 – “Der arme Jaquino dauert mich”
4 – “O wär ich schon mit dir vereint”
5 – “Marzelline, ist Fidelio noch nicht zurück gekommen?”
6- “Mir ist so wunderbar”
7 – “Höre, Fidelio”
8 – “Hat man nicht auch Gold beineben”
9 – ” Ihr könnt das leicht sagen, Meister Rocco”
10 – “Gut Söhnchen, gut”
11 – Marsch
12 – “Drei Schildwachen auf den Wall”
13 – “Ha! Welch ein Augenblick!”
14 – “Hauptmann! Besteigen Sie mit einem Trompeter…”
15 – “Jetzt, Alter, jetzt hat es Eile!”
16 – “Abscheulicher! Wo eilst du hin?” – “Komm, Hoffnung”
17 – “Meister, Rocco”
18 – “O welche Lust, in freier Luft den Atem leicht zu heben!”
19 – “Nun sprecht, wie ging’s” – “Ach Vater, eilt”
20 – “Leb wohl, du warmes Sonnenlicht”
SEGUNDO ATO
21 – “Gott! Welch’ Dunkel hier!” – “In des Lebens Frühlingstagen”
22 – “Wie kalt ist es in diesem unterirdischen Gewölbe” – “Nur hurtig fort, nur frisch gegraben”
23 – “Er erwacht”
24 – “Euch werde Lohn in bessern Welten”
25 – “Alles ist bereit”
26 – “Er sterbe! Doch er soll erst wissen” – “Vater Rocco! Der Herr Minister ist angekommen” – “Es schlägt der Rache Stunde” 27 – “Meine Leonore”
28 – “O namenlose Freude”
29 – “Heil sei dem Tag” – “Des besten Königs Wink und Wille… O Gott” – “Wer ein holdes Weib errungen”
30 – Abertura “Leonore” no. 3, Op. 72a
Jessye Norman, soprano (Leonore)
Pamela Coburn, soprano (Marzelline)
Reiner Goldberg, tenor (Florestan) Hans Peter Blochwitz, tenor (Jaquino) Wolfgang Millgramm, tenor (prisioneiro I)
Egbert Junghanns, baixo (prisioneiro II)
Kurt Moll, baixo (Rocco) Ekkehard Wlaschiha, baixo (Pizarro)
Andreas Schmidt, barítono (Don Fernando)
Staatsopernchor Dresden
Staatskapelle Dresden
Bernard Haitink, regência
“Eu lhe asseguro, meu caro Treitschke, que essa ópera me garantiu uma coroa de mártir”.
Foi assim que Ludwig van Beethoven descreveu a seu libretista, Georg Friedrich Treitschke, seus sentimentos para com sua obra, enquanto lhe agradecia pelo trabalho de reformulação do libreto, essencial para o êxito de “Fidelio”, nove anos após de sua estreia com “Leonore”, e não sem muita azia e desgosto para o compositor.
Ao que tudo indica, Ludwig não ficou nem satisfeito com a versão final de sua única ópera, nem teve estômago para cogitar outra. Seus planos de fortuna com a música para os palcos estavam devidamente sepultados, e seu foco era bem outro: como o mais célebre compositor vivo, choviam-lhe variadas encomendas de música instrumental, peças corais de ocasião, além da crescente atenção dedicada a seu ilustre aluno, o arquiduque Rudolph – filho do Sacro Imperador Romano-Germânico, sobrinho de Marie-Antoinette, e o mais generoso patrono de Beethoven.
Quando escutei essa gravação de “Fidelio”, feita em 1964 sob a direção de Lorin Maazel, cheguei a imaginar que ela talvez trouxesse algum alívio ao desgosto que Ludwig sentia por sua ópera. Acima de tudo e de todos, está Birgit Nilsson, que está em pleno uso de seu poderosíssimo instrumento vocal, cantando o papel-título com uma energia e facilidade que, imagino, eram as que Ludwig queria para sua corajosa Leonore. Sua interação com os colegas de elenco é excelente, com destaque para a química com a Marzelline de Graziella Sciutti. Magnífico também é James McCracken como o sofrido Florestan, talvez o mais expressivo de todos Florestans que lhes apresentarei nessa série. Seus duetos com Nilsson, no final da ópera, são daquelas coisas para guardar para a eternidade. Falando em final, o maravilhoso Hermann Prey aqui faz o pequeno e decisivo papel de Don Fernando, o que nos faz lamentar que o tenham desperdiçado a cantar tão pouco. E chamo a atenção para o tenor que vive o primeiro prisioneiro: Kurt Equiluz, que muitos de nós nos acostumamos a ouvir sob a batuta de Leonhardt e Harnoncourt na música sacra de Bach, mais notavelmente como o Evangelista nas duas Paixões. Lorin Maazel, que foi um menino-prodígio da regência e certamente conhecia todas malandragens que envolvessem a batuta, não só sabe acompanhar e valorizar a participação maiúscula de Nilsson como também dotar de muita energia e pujança a ópera, nem que para isso tenha que abrir mão da atenção ao detalhe. É uma ópera a 1000 volts, um dos “Fidelio” mais dramáticos disponíveis, uma de minhas gravações favoritas.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Fidelio, ópera em dois atos, Op. 72 Libreto de Joseph Sonnleithner (1805) a partir do romance em francês de Jean-Nicolas Bouilly, posteriormente abreviado por Stephan von Breuning (1806) e editado por Georg Friedrich Treitschke (1814)
1 – Abertura
PRIMEIRO ATO
2 – “Jetzt, Schätzchen, jetzt sind wir allein” – Armer Jaquino, ich war ihm sonst recht gut”
3 – “O wär ich schon mit dir vereint” – “Marzelline, ist Fidelio noch nicht zuruckgekommen?”
4- “Mir ist so wunderbar” – “Höre, Fidelio”
5 – “Hat man nicht auch Gold beineben” – ” Ihr könnt das leicht sagen, Meister Rocco”
6 – “Gut Söhnchen, gut”
7 – Marsch – “Drei Schildwachen auf den Wall”
8 – “Ha! Welch ein Augenblick!” – “Hauptmann! Besteigen Sie mit einem Trompeter…”
9 – “Jetzt, Alter, jetzt hat es Eile!”
10 – “Abscheulicher! Wo eilst du hin?”
11 – “Komm, Hoffnung” – “Meister, Rocco”
12- “O welche Lust, in freier Luft den Atem leicht zu heben!”
13- “Nun sprecht, wie ging’s”
14 – “Ach Vater, eilt” – “Verwegner”
15 – “Leb wohl, du warmes Sonnenlicht”
SEGUNDO ATO
16 – “Gott! Welch’ Dunkel hier!
17 – “In des Lebens Frühlingstagen”
18 – “Wie kalt ist es in diesem unterirdischen Gewölbe”
19 – “Nur hurtig fort, nur frisch gegraben” – “Er erwacht”
20 – “Euch werder Lohn in bessern Welten” – “Alles ist bereit”
21- “Er sterbe! Doch er soll erst wissen” – “Vater Rocco! Der Herr Minister ist angekommen” – “Es schlägt der Rache Stunde” – “Meine Leonore”
22 – “O namenlose Freude”
23 – “Heil sei dem Tag”
24 – “Des besten Königs Wink und Wille… O Gott”
25 – “Wer ein holdes Weib errungen”
Birgit Nilsson, soprano (Leonore)
Graziella Sciutti, soprano (Marzelline)
James McCracken, tenor (Florestan)
Donald Grobe, tenor (Jaquino) Kurt Equiluz, tenor (prisioneiro I)
Günther Adam, baixo (prisioneiro II)
Kurt Böhme, baixo (Rocco)
Tom Krause, baixo (Pizarro)
Hermann Prey, barítono (Don Fernando)
Wiener Staatsopernchor
Wiener Philharmoniker
Lorin Maazel, regência
“Um tiro, ou meu Dó agudo?” “UM TIRO, FRAU NILSSON! UM TIRO!”
Difícil, dificílimo deixarmos de trazer qualquer parte do legado discográfico de Ferenc Fricsay que possa ser do interesse de nosso projeto BTHVN250. O brilhante magiar foi um dos maiores, senão o melhor dos regentes do século XX, e ele o demonstra abundantemente neste seu “Fidelio” gravado em 1957. Escolhendo um conjunto orquestral menor e em nome do que parece ser uma diretriz geral rumo a leveza, ele leva a ópera e seus personagens com pulso rápido e preciso até o final. As vozes escolhidas também são bastante leves – Ernst Haefliger, inclusive, parece ser suave demais para o torturado Florestan. Todo Marlon Brando, no entanto, tem seu dia de Alberto Roberto, e foi uma ideia de jerico, sem dúvidas, escolher atores, e não os próprios cantores, para declamar os diálogos do Singspiel. Isso cria um contraste bizarro entre a voz que fala e aquela que canta, o que, no caso de Pizarro, é especialmente desconcertante, pois quem o canta é a voz inconfundível de Dietrich Fischer-Dieskau, aqui incomumente incorporando um vilão.
Não é o melhor “Fidelio”, nem meu Fricsay preferido, mas como não sabemos em quantos séculos teremos um gênio como ele sobre um pódio, espero que saibam aproveitar o privilégio de ouvi-lo numa leitura que deixa “Fidelio” mais próximo de uma “Flauta Mágica” do que do Beethoven heroico que tantos sempre esperam ouvir.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Fidelio, ópera em dois atos, Op. 72 Libreto de Joseph Sonnleithner (1805) a partir do romance em francês de Jean-Nicolas Bouilly, posteriormente abreviado por Stephan von Breuning (1806) e editado por Georg Friedrich Treitschke (1814)
1 – Abertura
PRIMEIRO ATO
2 – “Jetzt, Schätzchen, jetzt sind wir allein”
3 – “Armer Jaquino, ich war ihm sonst recht gut”
4 – “O wär ich schon mit dir vereint”
5 – “Marzelline, ist Fidelio noch nicht zuruckgekommen?”
6 – “Mir ist so wunderbar”
7 – “Höre, Fidelio”
8 – “Hat man nicht auch Gold beineben”
9 – ” Ihr könnt das leicht sagen, Meister Rocco”
10 – “Gut Söhnchen, gut”
11 – Marsch
12 – “Drei Schildwachen auf den Wall”
13 – “Ha! Welch ein Augenblick!”
14 – “Hauptmann! Besteigen Sie mit einem Trompeter…”
15 – “Jetzt, Alter, jetzt hat es Eile!”
16 – “Abscheulicher! Wo eilst du hin?”
17 – “Aber Marzelline”
18 – “O welche Lust, in freier Luft den Atem leicht zu heben!”
19 – “Nun sprecht, wie ..” – “Ach Vater, eilt” – “Verwegner”
20 – “Leb wohl, du warmes Sonnenlicht”
SEGUNDO ATO
21 – “Gott! Welch Dunkel hier! – In des Lebens Frühlingstagen”
22 – “Wie kalt ist es in diesem unterirdischen Gewölbe” – “Nur hurtig fort, nur frisch gegraben”
23 – “Er erwacht”
24 – “Euch werde Lohn in bessern Welten”
25 – “Alles ist bereit”
26 – “Er sterbe! Doch er soll erst wissen” – “Vater Rocco! Der Herr Minister ist angekommen” – “Es schlägt der Rache Stunde”
27 – “Meine Leonore”
28 – “O namenlose Freude”
29 – Interlúdio – Abertura “Leonore No.3”
30 – “Heil sei dem Tag, heil sei der Stunde”
Leonie Rysanek, soprano (Leonore)
Irmgard Seefried, soprano (Marzelline)
Ernst Haefliger, tenor (Florestan)
Friedrich Lenz, tenor (Jaquino) Gottlob Frick, baixo (Rocco)
Dietrich Fischer-Dieskau, barítono (Pizarro)
Kieth Engen, baixo (Don Fernando)
Chor der Bayerischen Staatsoper
Chor Der Bayerischen Staatsoper
Ferenc Fricsay, regência
“Fidelio” deu tanto trabalho e gastura para Ludwig que o mínimo que podemos fazer é lhe dedicarmos um pouco mais de tempo aqui em nossa travessia de sua obra, nesse ano da pandemia, da distopia e do ducentésimo quinquagésimo aniversário do renano.
A gravação que lhes trago hoje é excelente, das minhas preferidas. Difícil haver alguma bola fora com o veteraníssimo Karl Böhm no pódio e um time vocal como o que aqui se escuta. E, apesar de “Fidelio” ser, claro, uma ópera de Beethoven, não é sempre que ela me SOA beethoveniana como uma das sinfonias do mestre. À frente do afinadíssimo instrumento que é a Staatskapelle Dresden, Böhm consegue a proeza, assim como a de domar o portento wagneriano da galesa Gwyneth Jones, uma Leonore impressionante, talvez o melhor emblema sonoro dessa heroína que, na contramão de todas fórmulas folhetinescas, vem ao socorro de um homem destroçado.
Jurássico? Certamente – mas de primeiríssima linha.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Fidelio, ópera em dois atos, Op. 72 Libreto de Joseph Sonnleithner (1805) a partir do romance em francês de Jean-Nicolas Bouilly, posteriormente abreviado por Stephan von Breuning (1806) e editado por Georg Friedrich Treitschke (1814)
1 – Abertura
PRIMEIRO ATO
2 – “Jetzt, Schätzchen, jetzt sind wir allein”
3 – “Armer Jaquino, ich war ihm sonst recht gut”
4 – “O wär ich schon mit dir vereint”
5 – “Marzelline, ist Fidelio noch nicht zuruckgekommen?”
6 – “Mir ist so wunderbar”
7 – “Höre, Fidelio”
8 – “Hat man nicht auch Gold beineben”
9 – ” Ihr könnt das leicht sagen, Meister Rocco”
10 – “Gut Söhnchen, gut”
11 – Marsch
12 – “Drei Schildwachen auf den Wall”
13 – “Ha! Welch ein Augenblick!”
14 – “Hauptmann! Besteigen Sie mit einem Trompeter…”
15 – “Jetzt, Alter, jetzt hat es Eile!”
16 – “Abscheulicher! Wo eilst du hin?”
17 – “Aber Marzelline”
18 – “O welche Lust, in freier Luft den Atem leicht zu heben!”
19 – “Nun sprecht, wie ..” – “Ach Vater, eilt” – “Verwegner”
20 – “Leb wohl, du warmes Sonnenlicht”
SEGUNDO ATO
21 – “Gott! Welch Dunkel hier! – In des Lebens Frühlingstagen”
22 – “Wie kalt ist es in diesem unterirdischen Gewölbe” – “Nur hurtig fort, nur frisch gegraben”
23 – “Er erwacht”
24 – “Euch werde Lohn in bessern Welten”
25 – “Alles ist bereit”
26 – “Er sterbe! Doch er soll erst wissen” – “Vater Rocco! Der Herr Minister ist angekommen” – “Es schlägt der Rache Stunde”
27 – “Meine Leonore”
28 – “O namenlose Freude”
29 – Interlúdio – Abertura “Leonore No.3”
30 – “Heil sei dem Tag, heil sei der Stunde”
Gwyneth Jones, soprano (Leonore)
Edith Mathis, soprano (Marzelline)
James King, tenor (Florestan)
Peter Schreier, tenor (Jaquino) Eberhard Büchner , tenor (prisioneiro I)
Günther Leib, barítono (prisioneiro II)
Franz Crass, barítono (Rocco)
Theo Adam, baixo (Pizarro)
Martti Talvela , baixo (Don Fernando)
Chor der Staatsoper Dresden
Staatskapelle Dresden
Karl Böhm, regência
Aqui está o vídeo da montagem regida por Böhm, com legendas em espanhol.
É ópera filmada, ao estilo de antanho, com todas jurássicas marcações pesadas e carões e bocas. A música, no entanto, é soberba.
Quem conhece “Fidelio” e ouve “Leonore” passa a concordar com os resmungos de Ludwig: reescrever a ópera para o triunfo de 1814 deu mais trabalho que daria escrever uma outra inteira. “Leonore” soa, com efeito, como uma obra diferente. Quem gosta de “Fidelio” tem um choque: a narrativa muito mais lenta, as árias mais cheias de floreios, tudo entremeado por longos diálogos em alemão. “Leonore”, afinal de contas, sempre foi um Singspiel, uma “peça-cantada” no feitio daquelas de Mozart: “O Rapto do Serralho” e, principalmente, “A Flauta Mágica”, o apogeu do gênero, sem o qual, parece-me, “Leonore” não teria sido possível.
Ainda que Fidelio, na trama, seja sinônimo de Leonore – a Leonore de calças, digamos assim -, as diferenças entre as obras são muitas. Elas começam pelo título: “Leonore” era o preferido de Ludwig, que acabou por alterá-lo para “Fidelio” ao estrear a versão definitiva para que não houvesse confusão com outra ópera, da lavra do italiano Ferdinando Paer (1771-1839). A hoje esquecida “Leonora, ossia L’amore coniugale” – que, como já adivinharam pelo título, baseia-se na mesma peça de Bouilly que inspirou a “Leonore” de nosso herói – fez tanto sucesso na época que Beethoven tinha sua partitura e provavelmente a consultou para esboçar sua trama.
Em segundo lugar, mas não menos importante: “Leonore” tem três atos, em lugar dos dois de “Fidelio”. Essa reestruturação consolidou-se já na segunda versão de “Leonore”, cujo texto foi amplamente tosado por Stephan von Breuning, amigo de Beethoven, para o relançamento em 1806. A “Leonore” original, obviamente, é uma ópera mais longa – dura quase meia hora a mais que “Fidelio”, na maioria das gravações. Ela inicia com a abertura que ficou conhecida como “Leonore no. 2” (mais sobre a numeração das aberturas “Leonore” numa postagem vindoura, à qual se segue imediatamente uma ária de Marzelline (“O wär ich schon”), e não o dueto em que ela faz aquela longa D.R. com Jaquino e lhe revela a vontade de se casar com Fidelio. Como se não fosse humilhação bastante para Jaquino, Marzelline prossegue, num diálogo adicional (“Höre Jaquino, ich muß dir rein heraus sagen”), e lhe explica por que não se darão bem juntos, e ele ainda por cima tem que ouvir de Rocco – o homem que quer ter como sogro – que ele não deve se casar por impulso, no trio “Ein Mann ist bald genommen”. As duas peças, que não são ouvidas em “Fidelio”, tornam mais patética a saída pela linha de fundo do pobre Jaquino, e o primeiro ato se encerra – sem o escanteado Jaquino, obviamente – com um trio entre Rocco, Leonore e Marzelline (“Gut, Söhnchen, gut”).
O segundo ato começa com um prelúdio que, por muito tempo, foi associado à música incidental para a peça “Tarpeja” de Christoph Kuffner, para a qual Beethoven também escreveu uma marcha triunfal (WoO 2a). Estudos de marcas d’água sugeriram, no entanto, que ele foi escrito, e com um tanto de pressa, para abrir o segundo ato de “Leonore”, quando o compositor percebeu que o primeiro ato do libreto de Sonnleithner ficara extenso demais e resolveu dividi-lo em dois. Com a passagem da foice que a levaria a tornar-se “Fidelio”, a ópera voltou a ter dois atos e o prelúdio tornou-se supérfluo e foi abandonado na zorra da papelada de Ludwig.
Em seguida, ouve-se talvez o mais belo dos trechos suprimidos da versão final: o dueto entre Marzelline e Leonore (“Um in der Ehe froh zu leben”), em que a primeira fala de casamento enquanto a segunda – que, lembremo-nos, está disfarçada de homem – lamenta estar enganando a moça sonhadora. A ária seguinte de Leonore, “Ach, brich noch nicht”, foi transformada na “Abscheulicher! Wo eilst du hin?” de “Fidelio”: a original é consideravelmente mais longa e virtuosística e, embora pareça-me melhor música, acaba atravancando o fluxo da narrativa. O ato termina com uma peça para Pizarro e o coro (“Auf euch nur will ich bauen”), que também não se ouve em “Fidelio”.
O terceiro e último ato começa com a ária de Florestan na masmorra (“Gott! Welch Dunkel hier!”), com texto modificado: em tom sentimental, Fidelio relembra os bons tempos com Leonore, mas, diferentemente da versão final, não tem qualquer visão em que a imagina vindo em seu resgate. Há também um recitativo (“Ich kann mich noch nicht fassen”) antes do dueto do casal (“O namenlose Freude”) que não se ouve em “Fidelio”. O final de “Leonore” também é diferente, muito mais iracundo: quando Don Fernando propõe que Pizarro seja preso na mesma masmorra em que manteve Florestan, a turba protesta alegando que a punição lhe seria muito branda, ao que Don Fernando decide enviar Pizarro para ser julgado pelo rei. A turba de “Fidelio”, como se percebe, é muito menos vingativa.
Esses tantos cortes, se eliminaram muitas belezas, tornaram a ópera mais concisa e dramaticamente mais efetiva. Por muito tempo considerada o broto de uma grande ópera, ou um “Fidelio” imperfeito, “Leonore” merece ter vida própria. Não achei maneira melhor de apresentá-la a vocês que essa impetuosa versão de René Jacobs, que, além de todos os méritos musicais, acabou também escrevendo os diálogos usados no Singspiel (quem não os quiser ouvir pode programar somente as faixas musicais). O time vocal é competente, muito bem dirigido por Jacobs – ele próprio um cantor de primeiríssima linha -, e os barrocos de Freiburg fazem toda diferença. Há uma atenção ao detalhe e uma verve que garantem o brilho à pérola renegada de Beethoven, que – assim espero – vocês apreciarão tanto quanto eu a adorei.
Sinopse: Florestan é um inimigo pessoal do governador da prisão, Don Pizarro, e homem de confiança do
ministro Don Fernando. Florestan conhece uma falta grave da parte de Pizarro, que o enxerga como uma ameaça. Pizarro quer eliminá-lo, mas, como não pode cometer um assassinado descarado,
ele aprisiona Florestan para que este morra de fome lentamente. Depois de dois anos, Florestan
é declarado morto; apenas sua esposa Leonore está convencida de que ele ainda está vivo. Ela se disfarça de homem e, sob o nome ‘Fidelio’, entra ao serviço do carcereiro Rocco como sua assistente – ela suspeita de que
Florestan está na prisão que Pizarro administra e espera poder libertar o marido.
PRIMEIRO ATO
Marzelline, filha única de Rocco, apaixonou-se por Fidelio e espera que seus sentimentos sejam recíprocos.
Ela rejeita firmemente o casamento proposto pelo carcereiro Jaquino. Rocco também não encoraja
as esperanças de Jaquino a esse respeito. Ele é levado pelo entusiasmo do estranho jovem pelo
trabalho, e ele oferece a Fidelio a possibilidade de se casar com Marzelline. Leonore
tenta manter-se impávida na situação embaraçosa. Rocco diz ao casal que não apenas o amor, mas também dinheiro é importante a vida conjugal. Fidelio exorta seu futuro sogro a acompanhá-lo a uma
masmorra secreta onde Leonore suspeita que seu marido está sendo mantido. Rocco promete obter a autorização de Pizarro para isso.
SEGUNDO ATO
Música marcial anuncia a chegada de Don Pizarro. Ele descobre, por uma carta anônima, que o ministro Don
Fernando, fará uma inspeção sem aviso prévio da prisão, por suspeitar que nela estão vítimas
de arbitrariedade. Pizarro ordena que o guarda toque a corneta assim que o ministro chegar. Pizarro tenta convencer Rocco a executar um plano diabólico – assassinar o prisioneiro secreto. Rocco recusa, mas concorda em cavar um poço em desuso para lhe servir como sepultura. Pizarro então decide
matar Florestan sozinho. Leonore está deprimida pela situação em que se envolveu e que lhe permitiu obter acesso a masmorra, e somente seu amor e a esperança de em breve encontrar o marido lhe darão uma nova coragem. Marzelline força Fidelio a conversar sobre fidelidade e confiança no casamento. Rocco diz a Fidelio que Pizarro concorda com o casamento e pede que Fidelio o acompanhe à masmorra, para cavar uma cova junto com ele.
TERCEIRO ATO
Florestan está definhando numa cela escura, pensando em sua esposa e aguardando a morte, quando Fidelio e Rocco vêm cavar a cova. A princípio, Leonore não reconhece o prisioneiro. Profundamente comovida, ela decide salvar este homem, quem quer que seja. Quando Rocco fala com o prisioneiro, ela reconhece
a voz do marido. Florestan descobre, através de Rocco que Pizarro é o governador desta prisão. Ele tem agora
certeza de que vai morrer e pede que Rocco envie uma mensagem para sua esposa Leonore. O carcereiro recusa, mas por compaixão lhe dá alguns restos de vinho. Fidelio consegue convencer Rocco a permitir que o
prisioneiro um pedaço de pão também. Ao sinal de Rocco, Pizarro entra para realizar o assassinato. Quando está prestes a apunhalar o prisioneiro, Leonore se joga na frente de Florestan para protegê-lo, revela sua verdadeira identidade e mantém o governador afastado apontando uma pistola para ele. Ao mesmo momento, a trombeta sinal anuncia a chegada do ministro. Pizarro foge; Rocco pega a pistola de Leonore e segue Pizarro. Marido e esposa permanecem sozinhos. Sem uma arma, Leonore acha que toda a esperança está perdida. O casal não consegue acreditar no reencontro, mas ainda assim se sente em perigo extremo, porque creem que os gritos de vingança que escutam destinam-se a eles. Eles decidem encarar a morte juntos. Então, acompanhado por Rocco, o ministro aparece na masmorra com Pizarro capturado e a turba.
O ministro deixa Leonore remover as correntes de Florestan, e marido e mulher atiram-se aos braços um do outro. Todos celebram Leonore, o amor conjugal e a busca incessante pela justiça.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Leonore, oder Der Triumph der ehelichen Liebe (Leonora, ou o Triunfo do Amor Conjugal), ópera em três atos, Op. 72 Libreto de Joseph Sonnleithner, baseado em “Léonore, ou L’amour conjugal” de Jean-Nicolas Bouilly
Diálogos por René Jacobs, baseados nas quatro versões do libreto de Sonnleithner e no texto original de Bouilly
1 – Abertura (Leonore no. 2)
PRIMEIRO ATO
2 – Diálogo: „Ich liebe dich, so wie du mich” (Marzelline, Jaquino)
3 – No. 1, Ária: „O wär’ ich schon mit dir vereint” (Marzelline)
4 – Diálogo: „Ich komme zu gar nichts mehr!” (Marzelline, Rocco, Jaquino)
5 – No. 2, Dueto: „Jetzt, Schätzchen, jetzt sind wir allein” (Jaquino, Marzelline)
6 – Diálogo: „Nein, nein und nochmals nein” (Marzelline, Jaquino) – „Schon wieder Krach, ihr Beiden?” (Rocco, Marzelline, Jaquino)
7 – No. 3, Trio: „Ein Mann ist bald genommen” (Rocco, Jaquino, Marzelline)
8 – Diálogo: „Ist Fidelio noch immer nicht zurück, Marzelline?” (Rocco, Jaquino, Marzelline) – „Das hat ewig gedauert” (Marzelline, Rocco, Leonore)
9 – No. 4, Quarteto:„Mir ist so wunderbar” (Marzelline, Leonore, Rocco, Jaquino)
10 – Diálogo: „Es ist klar, sie liebt mich” (Leonore, Rocco, Marzelline)
11 – No. 5, Ária: „Hat man nicht auch Gold beineben” (Rocco)
12 – Diálogo: „Es ist ein mächtig Ding: Das Gold!” (Marzelline, Leonore, Rocco)
13 – No. 6, Trio: „Gut, Söhnchen, gut” (Rocco, Leonore, Marzelline)
SEGUNDO ATO
14 – Alla marcia, ma non troppo presto (WoO 2b)
15- Diálogo: „Hauptmann, ich will drei Schildwachen auf dem Wall” (Pizarro, Hauptmann, Rocco)
16 – No. 8, Ária com coro: „Ha! Welch ein Augenblick!” (Pizarro, Die Wachen)
17 – Diálogo: „Hauptmann, kommen Sie!” (Pizarro, Hauptmann, Rocco)
18 – No. 9, Dueto: „Jetzt, Alter, jetzt hat es Eile!” (Pizarro, Rocco)
19 – Diálogo: „Ich bin zu feige, ihr die Wahrheit zu sagen” (Leonore, Marzelline)
20 – No. 10, Dueto „Um in der Ehe froh zu lebe” (Marzelline, Leonore)
21 – Diálogo: „Komm Fidelio, wir gehen spazieren” (Marzelline, Leonore) – „Wie grausam, dieses liebenswürdige Mädchen” (Leonore)
22 – No. 11, Recitativo e Ária: „Ach, brich noch nicht, du mattes Herz!” (Leonore)
23 – No. 12, Finale: „O, welche Lust, in freier Luft” (Gefangene)
24 – Diálogo: „Nun sprecht, wie ging’s?” (Leonore, Rocco)
25 — „Ach, Vater, eilt!” (Marzelline, Rocco, Jaquino, Leonore, Pizarro, Chor der Wachen)
TERCEIRO ATO
26 – Nr. 13, Introdução e Ária: „Gott! Welch Dunkel hier!” (Florestan)
27 – No. 14, Melodrama e Dueto: “Eiskalt ist es hier!” (Leonore, Rocco)
28 – Diálogo: „Er macht die Augen auf!” (Leonore, Rocco, Florestan)
29 – No. 15, Trio: Euch were Lohn in bessern Welten” (Florestan, Rocco, Leonore)
30 – Diálogo: „Alles ist bereit” (Rocco, Leonore, Florestan) – „Ist alles bereit?” (Pizarro, Rocco)
31 – No. 16, Quarteto: „Er sterbe!” (Pizarro) – Diálogo: „Folge mir Rocco!” (Pizarro) – „Die Waffe hab’ ich mir nehmen lassen” (Leonore)
32 – No. 17, Recitativo e Dueto: „Ich kann mich noch nicht fassen” (Florestan, Leonore)
33 – Diálogo: „Durch welches Wunder gelang es dir” (Florestan, Leonore)
34- No. 18, Finale: „Zur Rache, wir müssen ihn seh’n!” (Chor) – „Zur Rache, zur Rache!” (Chor, Rocco, Florestan, Leonore, Fernando, Jaquino, Marzelline)
“Originalmente preparado por Joseph Sonnleithner a partir do romance em francês de Jean-Nicolas Bouilly, posteriormente abreviado por Stephan von Breuning e editado por Georg Friedrich Treitschke”.
A convoluta descrição do libreto de “Fidelio” dá uma noção de quanta azia ela causou a Ludwig van Beethoven – o único responsável por sua música. Estreada com fracasso em 1805 sob o título “Leonore” e reencenada no ano seguinte com vários cortes e melhor acolhida, ela só teve êxito em 1814, amplamente reformulada e rebatizada de “Fidelio”. Todas essas roupagens, hoje, encontram-se sob o Op. 72.
Tentar escrever sobre “Fidelio”/”Leonore” aqui no PQP Bach foi uma tarefa considerável até o último aniversário de Ludwig, em dezembro passado, quando o colega Ammiratore fez uma postagem memorável sobre a ópera que a um só tempo pavimentou o caminho para novas publicações sobre “Fidelio” e deixou chinelas no guarda-roupas grandes demais para os infelizes pezinhos que depois as quisessem calçar. Eu, tsc, nem tentarei – limitar-me-ei a apontar que a reformulação, que deu tanto trabalho a Beethoven que ele declarou “preferir ter escrito uma outra ópera”, é preciosa não só pelo valor artístico como também por ser a única obra do período intermediário a ser retrabalhada em sua maturidade artística, e servir assim como material privilegiado para a análise de sua evolução como compositor.
Em relação à “Leonore” original, que compartilharei amanhã, “Fidelio” tem uma narrativa bem menos linear, em virtude do enorme naco de um ato que lhe foi ceifado. A abertura é muito mais concisa que as anteriores, evocando o espírito da obra sem citar-lhe qualquer um dos temas, sem criar a tensão dramática das aberturas para “Leonore” que acabariam invariavelmente contrastando com o levinho dueto inicial. Falando nelas, a chamada “Leonore no. 3” – certamente a mais robusta e dramática de todas as peças que Beethoven escreveu para abrir sua ópera – aparece aqui como um longo prelúdio para a última cena, um expediente adotado por Gustav Mahler para ganhar o devido tempo para os ajustes de cenário, e frequentemente repetido em montagens posteriores da obra.
A gravação que lhes apresento foi feita em Viena, em 1978, com um elenco estelar – começando pelo regente, Leonard Bernstein, que muito gravara com a Filarmônica local durante aquela década, numa colaboração que começara no bicentenário de Beethoven e culminaria com esta montagem de “Fidelio”. Sua leitura um tanto bombástica tem muito vigor e mantém maravilhosamente o pulso durante toda a ópera, muito embora lhe falte por vezes, dentro de seu afã de impressionar – o que não acho um defeito, e sim seu estilo -, alguma atenção ao detalhe. Adoro Gundula Janowitz e, embora sua voz impecável me soe um pouco delicada demais para a voluntariosa Leonore, sua expressividade transmite muito bem os sentimentos conturbados da heroína em sua trajetória na trama. Da mesma forma, o bonito timbre de René Kollo acaba sumindo nos momentos me que sua voz se soma à massa orquestral. Os demais cantores saem-se ainda melhor – Lucia Popp tem elã e doçura como Marzelline, Hans Sotin é um Pizarro emblemático, e a voz calorosa, inconfundível de Dietrich Fischer-Dieskau é tudo o que se esperaria ouvir dum Don Fernando que chega no final para tudo redimir.
O enredo: o nobre espanhol Florestan é preso por um nobre rival (Don Pizarro), depois de descobrir detalhes de seus crimes. Pizarro o mantém clandestinamente na prisão que comanda e espalhou boatos sobre a morte de Florestan.
No Ato I, a trama começa na referida prisão, onde vive o carcereiro (Rocco), que tem uma filha (Marzelline), por quem seu assistente (Jaquino) é apaixonado. Jaquino pede Marzelline em casamento, mas ela lhe diz que não casará com ele porque está apaixonada pelo jovem Fidelio – que, na verdade, é Leonore, esposa de Florestan, que não se convenceu de que seu marido está morto se infiltra entre o pessoal da prisão para descobrir seu paradeiro (“Jetzt, Schätzchen, jetzt sind wir allein“). Quando Jaquino sai, Marzelline descreve sua vontade de tornar-se esposa de Fidelio (“O wär ich schon mit dir vereint”). Seu pai entra, procurando por Fidelio, e que por sua vez entra em cena carregando correntes. Ao conversar com Fidelio, compreende sua discrição como uma atração reprimida por Marzelline. Os quatro juntam-se para falar sobre o amor de Marzelline por Fidelio (“Mir ist so wunderbar”).
Rocco diz a Fidelio que Marzelline poderá casar-se com ele quando Don Pizarro for para Sevilha, advertindo-os de que, se não tiverem como se sustentar, não serão felizes (“Hat man nicht auch Gold beineben”). Fidelio pergunta a Rocco por que este não o permite ajudar nas masmorras, de onde sempre volta exausto. Rocco conta-lhe que, na masmorra mais profunda, onde jamais poderá levá-lo, está um homem a definhar há dois anos. Marzelline pede a Rocco que poupe Fidelio de tanto sofrimento, mas Fidelio afirma-lhe que tem coragem para encará-lo (“Gut, Söhnchen, gut”). Rocco fica sozinho em cena, e ouve-se uma marcha anunciando a chegada de Pizarro e sua guarda. Rocco adverte Pizarro de que o ministro Don Fernando pretende visitar a prisão no dia seguinte para investigar acusações de tratamento cruel de prisioneiros. Pizarro reage dizendo que não pode deixar que Don Fernando descubra o paradeiro de Florestan, que todos consideram morto, e ordena que Florestan seja morto (“Ha, welch ein Augenblick”). Pizarro ordena que haja um toque de trompete para anunciar a chegada de Don Fernando. Oferece, também, dinheiro a Rocco para matar Florestan, o que Rocco recusa (“Jetzt, Alter, jetzt hat es Eile!”). Pizarro diz, então, que ele próprio matará Florestan, e ordena que Rocco faça uma cova no chão da masmorra. Combinam que, assim que a cova estiver pronta, Rocco dará o alarme para que Pizarro vá à masmorra e mate Florestan. Fidelio, ao descobrir os planos de Rocco, angustia-se enquanto planeja resgatar Florestan (“Abscheulicher! Wo eilst du hin? “/”Komm, Hoffnung, lass den letzten Stern”). Jaquino implora novamente a Marzelline para que se case com ele, o que ela outra vez recusa. Fidelio, na busca por Florestan, tenta convencer Rocco a deixar os prisioneiros tomarem sol no jardim. Rocco aceita e distrai Pizarro enquanto os prisioneiros sobem ao jardim. Os prisioneiros alegram-se (“O welche Lust”), mas logo aquietam-se para não serem descobertos. Após encontrar-se com Pizarro, Rocco retorna e conta a Fidelio que Pizarro autorizou o casamento e que Fidelio se junte a ele na masmorra (“Nun sprecht, wie ging’s?”). Rocco e Fidelio preparam-se para descer a masmorra, sabendo que Florestan será morto e enterrado em breve. Fidelio está visivelmente perturbado, e Rocco tenta dissuadi-lo a descer, mas Fidelio insiste. Jaquino e Marzelline entram correndo e dizem para Rocco para fugir, pois Pizarro ficou furioso ao descobrir que os prisioneiros estão no jardim (“Ach, Vater, Vater, eilt!”). Pizarro então chega e exige uma explicação. Rocco responde-lhe que fez a concessão aos prisioneiros em homenagem ao dia de santo do rei da Espanha, e diz que Pizarro deveria guardar sua ira para o prisioneiro misterioso da masmorra. Pizarro manda-o fazer a cova logo e anuncia que os prisioneiros serão novamente recolhidos. Rocco, Leonore, Jacquino e Marzelline, a contragosto, levam os prisioneiros de volta às suas celas (“Leb wohl, du warmes Sonnenlicht”).
O Ato II começa com Florestan, sozinho na masmorra, cantando sobre sua fé em Deus e tendo uma visão de que será salvo por sua esposa Leonore (“Gott! Welch Dunkel hier!”—”In des Lebens Frühlingstagen”). Florestan então cai ao solo e adormece, enquanto entram Rocco and Fidelio para fazer sua cova. Rocco pede a Fidelio para apressar-se (“Wie kalt ist es in diesem unterirdischen Gewölbe!” —”Nur hurtig fort, nur frisch gegraben”). Florestan desperta e Fidelio o reconhece. Quando Florestan descobre que a prisão em que se encontra é a de Pizarro, pede que uma mensagem seja entregue a sua esposa Leonore, mas Rocco diz-lhe que será impossível entregá-la. Florestan implora por um gole de água, e Rocco diz a Fidelio para dá-lo. Florestan não reconhece que Fidelio é Leonore, mas diz que ele será recompensado no além-vida pela boa ação (“Euch werde Lohn in bessern Welten”). Fidelio pede a Rocco para dar um pedaço de pão para Florestan, e Rocco assim lhe permite. Conforme combinado, Rocco dá o alarme para Pizarro, que surge e pergunta se tudo está pronto. Rocco confirma que tudo está pronto e manda Fidelio sair, mas este se esconde. Pizarro revela sua identidade a Florestan, que o acusa de assassinato (“Er sterbe! Doch er soll erst wissen”). Quando Pizarro brande uma adaga, Fidelio interpõe-se entre Pizarro e Florestan e revela que é Leonore, a esposa de Florestan. Quando Pizarro tenta atacá-la com a adaga, Leonore aponta-lhe uma pistola e ameaça atirar. Nesse instante, ouve-se o toque do trompete, anunciando a chegada de Don Fernando. Jaquino entra, acompanhado de soldados, anunciando que o ministro aguarda. Rocco diz aos soldados para escoltarem Pizarro para o térreo. Florestan e Leonore celebram sua vitória, enquanto Pizarro jura vingança, enquanto Rocco demonstra medo sobre o que lhes pode acontecer (“Es schlägt der Rache Stunde”), ao que o casal canta um dueto de amor. No pátio, os prisioneiros e os populares celebram a chegada do dia e da hora da justiça (“Heil sei dem Tag!”). Don Fernando anuncia o fim da tirania. Rocco chega com Florestan e Leonore e pede ajuda a Don Fernando (“Wohlan, so helfet! Helft den Armen!“). Rocco conta como Leonore disfarçou-se de Fidelio para salvar Florestan. Marzelline, que se apaixonara por Fidelio, fica chocada. Rocco descreve os planos de Pizarro, e este é levado à prisão. Leonore livra Florestan de suas correntes, e a turba canta em sua honra, a salvadora de seu marido (“Wer ein holdes Weib errungen”).
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Fidelio, ópera em dois atos, Op. 72 Libreto de Joseph Sonnleithner (1805) a partir do romance em francês de Jean-Nicolas Bouilly, posteriormente abreviado por Stephan von Breuning (1806) e editado por Georg Friedrich Treitschke (1814)
1 – Abertura
PRIMEIRO ATO
2 – “Jetzt, Schätzchen, jetzt sind wir allein”
3 – “Armer Jaquino, ich war ihm sonst recht gut”
4 – “O wär ich schon mit dir vereint”
5 – “Jaquino!” – “Ja, Meister Rocco?”
6 – “Mir ist so wunderbar”
7 – “Höre, Fidelio”
8 – “Hat man nicht auch Gold beineben”
9 – “Ihr habt recht, Vater Rocco”
10 – “Gut Söhnchen, gut”
11 – Marsch
12 – “Drei Schildwachen auf den Wall”
13 – “Ha! Welch ein Augenblick!”
14 – “Hauptmann! Besteigen Sie mit einem Trompeter…”
15 – “Jetzt, Alter, jetzt hat es Eile!”
16 – “Abscheulicher! Wo eilst du hin?”
17 – “Marzelline!” – “Nein, ich will nicht”
18 – “O welche Lust, in freier Luft den Atem leicht zu heben!”
19 – “Nun sprecht, wie ..” – “Ach Vater, eilt” – “Verwegner”
20 – “Leb wohl, du warmes Sonnenlicht”
SEGUNDO ATO
21 – “Gott! Welch Dunkel hier! – In des Lebens Frühlingstagen”
22 – “Wie kalt ist es in diesem unterirdischen Gewölbe” – “Nur hurtig fort, nur frisch gegraben”
23 – “Er erwacht”
24 – “Euch werde Lohn in bessern Welten”
25 – “Alles ist bereit”
26 – “Er sterbe! Doch er soll erst wissen” – “Vater Rocco! Der Herr Minister ist angekommen” – “Es schlägt der Rache Stunde”
27 – “O namenlose Freude”
28 – Interlúdio – Abertura “Leonore No.3”
29 – “Heil sei dem Tag”
Gundula Janowitz, soprano (Leonore)
Lucia Popp, soprano (Marzelline)
René Kollo, tenor (Florestan)
Adolf Dallapozza, tenor (Jaquino) Karl Terkal, tenor (prisioneiro I)
Alfred Šramek, barítono (prisioneiro II)
Manfred Jungwirth, barítono (Rocco)
Hans Sotin, baixo (Pizarro)
Dietrich Fischer-Dieskau, baixo (Don Fernando)
Wiener Staatsopernchor
Wiener Philharmoniker
Leonard Bernstein, regência
Para quem também quiser ver, e não só ouvir o “Fidelio”, eis o vídeo da mesmíssima produção regida por Bernstein em Viena, com quase o mesmo elenco – a notável diferença é Hans Helm no lugar de Dietrich Fischer-Dieskau no papel de Don Fernando
Quem vem acompanhando esta série conhece o velho expediente quando Ludwig precisava de grana e tinha que atender rapidamente uma encomenda: abrir a canastra de Bonn dela tirar qualquer coisa que pudesse polir para trocar por dindim.
Não foi diferente com o agradável sexteto para clarinetes, trompas e fagotes composto para o Eleitor de Colônia, que tinha um conjunto de sopros em sua sala de banquetes porque acreditava que essa música ajudava em sua digestão. Ludwig requentou-o, já em Viena, para um concerto beneficente em prol de seu amigo, o violinista Ignaz Schuppanzigh. Entre composição e publicação, passaram-se quatorze anos, o que explica o elevado número de Opus para a obra, tão antiquada que chegava a conter um minueto, em plena era dos temperamentais scherzi de Beethoven. O sexteto – elogiado pela crítica da época pelas “ideias novas”, certamente numa ironia com a velhacagem de Ludwig em ressuscitar uma velharia – é extremamente bem composto e deveras melífluo, relembrando a familiaridade do compositor com o meio, com os instrumentos e, principalmente, com as peças que seu ídolo Mozart compusera para os sopros.
Por coincidência, a mesma formação de instrumentos seria usada mais tarde numa obra sem qualquer relação com sexteto: a pequena marcha (WoO 29) que escreveu para o príncipe Esterházy quando o visitou em Eisenstadt, e sobre a qual nada mais sei para lhes escrever.
As peças que completam o disco atestam a breve e bem sucedida carreira de Beethoven como compositor para banda militar. A primeira delas (WoO 18) é a mais famosa de todos: composta para a “Milícia Boêmia” do exército austríaco, ganhou fama com o nome do general prussiano Yorck, é até hoje a primeira a tocada nas cerimônias da Bundeswehr alemã, como marcha oficial de suas tropas de elite. Juntamente com uma outra marcha composta para o regimento de Baden (WoO 19), foi tocada nas festividades de aniversário da imperatriz, a italiana Maria Ludovica, em 1810. Em rápida sucessão seguiram-se a escocesa em Ré (WoO 22), uma outra escocesa em Sol (WoO 23, que nos chegou só em redução para piano), uma polonesa em Ré (WoO 21) e uma marcha em Dó (WoO 20, chamada de “Tattoo” não porque tenha relação com tatuagem – palavra que, assim como “motel“, devo ter sido o primeiro a escrever aqui no PQP Bach – e sim porque este é o nome duma elaborada cerimônia militar acompanhada de música).
Ludwig ainda comporia uma última marcha (WoO 24) em 1816, para atender uma encomenda de “música turca” – o que, na época, não significava música autêntica da Turquia, e sim peças de ritmos bem marcados por pratos e outros exóticos instrumentos de percussão. O sucesso de suas obras marciais levaria ainda, no final de sua vida, a sondagens para tornar-se o compositor oficial das bandas das forças armadas da Prússia, que Beethoven, já severamente enfermo, infelizmente não conseguiu responder.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Sexteto em Mi bemol maior para dois clarinetes, duas trompas e dois fagotes, Op. 71 Composto em 1796 Publicado em 1810
O Castle Trio encerra sua contribuição a nossa epopeica travessia da obra de Beethoven com aqueles que considero seus melhores trios.
A dupla do Op. 70 foi basicamente composta naquele ocupadíssimo 1808 em que Ludwig finalizou e estreou as sinfonias nos. 5 e 6 e a Fantasia Coral, além da grande sonata para violoncelo, Op. 69. Os trios foram finalizados na casa de sua amiga, a condessa Marie von Erdődy, a quem foram dedicados. Erdődy, que alguns incautos consideram ser a misteriosa “Amada Imortal” a que Beethoven se referiu naquela célebre carta, quase certamente encarava o compositor, seu confidente, como figura fraterna, quiçá mesmo paterna. Ela foi-lhe fundamental, não só por acolhê-lo em sua propriedade rural inúmeras vezes, mas também por recebê-lo em sua residência depois que ele deixou seu caótico apartamento no Palácio Pasqualati, do lado do qual funciona um museu dedicado a compositor (pois não se enganem se forem a Viena: o apartamento em que Beethoven morou está ocupado). Mais ainda, ela foi uma eficiente interlocutora entre Beethoven e a aristocracia vienense, o que lhe assegurou novos mecenas para que ficasse na cidade, uma vez que negociava, em termos um tanto frouxos, um cargo de Kapellmeister que nada lhe interessava em Cassel, mais como um blefe para aumentar o preço do seu passe do que por qualquer outro motivo.
Independentemente do que tenha havido entre os dois, a condessa tinha razoável liberdade para acolher o compositor em seus lençóis, pois estava desquitada do marido e tinha, de modo muito aberto, um amante – uma situação muito diferente daquela sugerida pelo tom sôfrego e enigmático da carta para a Amada Imortal. Se este improvável affair ajudou alguém, foi o ator Gary Oldman, que incorporou o compositor naquela horrenda cinebiografia e que teve a felicidade de oscular reiteradamente a carnuda boca de Isabella Rossellini – tanto nas telas, porque ela vivia a condessa Erdődy, quanto fora delas.
Deixamos o modo “Fofocas & Babados” e voltamos para a música. É incrível o que a evolução artística de Beethoven levou-o a fazer com esses trios no seu retorno ao gênero, depois de quatorze anos. Ricos em ideias e expressividade, são obras-primas consumadas que nos fazem lamentar que ele só viesse a criar só mais um trio, o soberbo Op. 97. Seu xodó na música de câmara, claro, eram os quartetos de cordas, veículo mais em voga entre os cada vez mais corriqueiros e competentes conjuntos profissionais, em franco contraste com os grupos de competentes amadores que normalmente encaravam os trios.
Esse duo de trios tem um membro famoso, e outro injustamente obscurecido. A celebridade é, claro, o no. 1, a quem alguém (que, para variar, não foi Beethoven) resolveu alcunhar de “Fantasma”, por perceber uma sonoridade evocativa de assombrações no de fato soturno movimento lento. A profunda impressão causada por este memorável Largo foi imediata e duradoura, e expandiu-se para bem além desse trio: como esboços para uma ópera baseada em “Macbeth” (que teria libreto de Collin, aquele mesmo cujo Coriolan ganhara uma abertura de Beethoven) foram encontrados no mesmo caderno que os rabiscos para o movimento “fantasma”, alguém resolveu combiná-los e propor algo parecido com o que seria a abertura da ópera:
A merecida fama do Largo, no entanto, eclipsa os empolgantes movimentos rápidos que o envolvem, e a sombra chega ao brilhante trio no. 2, o injustamente obscurecido membro da dupla. Eu, que adoro o primeiro, prefiro o segundo, por sua irresistível combinação de verve e criativa elaboração dos temas com equilíbrio impecável no difícil diálogo entre instrumentos de mecânica e timbres tão distintos. Não há, entretanto, por que lhe propor polêmicas: ouçam os dois na mesma sessão, e agradeçam também à Erdődy por ter cuidado tão bem de nosso querido renano.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Dois trios para piano, violino e violoncelo, Op. 70 Compostos em 1808 Publicados em 1809 Dedicados à condessa Anna Maria von Erdődy
No. 1 em Ré maior, “Fantasma”
1 – Allegro vivace e con brio
2 – Largo assai ed espressivo
3 – Presto
No. 2 em Mi bemol maior
4 – Poco sostenuto – Allegro, ma non troppo
5 – Allegretto
6 – Allegretto ma non troppo
7 – Finale. Allegro
The Castle Trio: Lambert Orkis, piano Marilyn McDonald, violino Kenneth Slowik, violoncelo