
Lembram de quando lhes contei que o jovem Ludwig ambicionava enriquecer compondo óperas em italiano? Se disso lembram, lembrarão também que ele tomou lições de prosódia e composição vocal naquele idioma com ninguém menos que o Kapellmeister Salieri. Pois bem: saibam que os exercícios dessas lições, preservados e reunidos sob o WoO 99, serão apresentados agora.
Apesar de sua legendária desorganização, sempre responsável, para onde quer que se mudasse, pelo mais caótico apartamento de Viena, Beethoven carregava seu montão de papeis consigo e, ainda que virados num ninho de ratos, estavam todos com ele quando de sua morte. Entre eles estava um bom número de exercícios de composição corrigidos por seus professores – Albrechtsberger, Haydn, e o supracitado Salieri. Diferentemente das enfadonhas tarefas de contraponto e harmonia que escreveu para os dois primeiros, os exercícios de prosódia para Salieri são bonitinhos o bastante para ocuparem uma melodiosa meia hora do tempo dos leitores-ouvintes. Quem não gosta tanto deles, acho, são os musicólogos, que comeram o pão do Cramulhão a tentarem botar em ordem essas miniaturas vocais. Nem os respeitados senhores responsáveis pelos catálogos Kinsky-Halm e Hess conseguiram chegar a um consenso, e só a última edição do Kinsky-Halm silenciou o celeuma. Suas conclusões:
1) Ludwig compôs exercícios sobre quinze textos, todos de autoria de Pietro Metastasio, o libretista arroz-de-festa da opera seria, cuja obra era o manancial obrigatório para qualquer aspirante a operista em italiano;
2) Os exercícios foram compostos para várias combinações, de duas a quatro vozes, do quarteto vocal padrão (soprano, contralto, tenor, baixo);
3) Alguns textos foram usados para mais de uma combinação de vozes;
4) Da música para o no. 6 (“Ah rammenta”) resta apenas um esboço preliminar, e o no. 15 (o quarteto “Silvio amante disperato”) perdeu-se, e dele só se sabe através de anotações de Alexander Thayer, o primeiro biógrafo acadêmico de Beethoven, que viu a partitura autógrafa e anotou seus quatro primeiros compassos;
5) Sobreviveram seis versões do no. 11, “Fra tutte le pene”: três feitas por Beethoven, e três corrigidas por Salieri, e permitem algumas inferências sobre a relação pedagógica entre os dois.
Arredondam a gravação outras curtas obras vocais que ainda não tinham sido publicadas em nossa série.
A bem-humorada Abschiedgesang (“Canção de Despedida”), WoO 102, para um coro de vozes masculinas a cappella, foi escrita para um amigo, Leopold Weiss, que deixava Viena. O início é majestoso, mas a canção logo descamba para um scherzo muito jovial e retorna para o tom solene e o verso da abertura (die Stunde schlägt, “a hora bateu” ou “chegou a hora”), para encerrar com cada voz a entoar Lebewohl! (“Adeus!”). A merecida reputação de Beethoven como um carrasco convicto de cantores (e qualquer um que tenha feito parte dum coro a cantar a Nona Sinfonia concordará com o veredito) arrefece um pouco cada vez que ouvimos uma sua obra assim.
Un lieto brindisi (“Um brinde feliz”), WoO 103, alcunhada “cantata campestre”, foi composta para o médico italiano Giovanni Domenico Antonio Malfatti (Johann Baptist, para os íntimos), por ocasião de seu dia onomástico, o de São João Batista, em 24 de maio de 1814. Malfatti, que tinha gosto por mandar Beethoven desopilar no balneário boêmico de Teplitz/Teplice, ficou distante do compositor por um bom tempo, talvez em função do malogrado cortejo de Ludwig à sua prima Therese – uma das prováveis dedicatárias de “Für Elise. Os dois só se reconciliariam nos anos finais da vida de Beethoven, quando o mal que o mataria já estava avançado demais para que Malfatti, um dos melhores médicos de Viena, pudesse fazer qualquer coisa.
A brevíssima Gesang der Mönche (“Canto dos Monges”), WoO 104, para coro masculino a cappella, baseia-se num trecho do Wilhelm Tell de Schiller, em que os monges aproximam-se do vilão Gessler, mortalmente ferido por uma flecha de Tell. A despeito de seu severo verso final (Bereitet oder nicht zu gehen!
Er muß vor seinem Richter stehen! – “Pronto ou não para partir/Ele deve postar-se ante seu juiz”), a canção foi escrita para um amigo, o violinista Wenzel Krumpholz, que morreu inesperadamente em 1817, mas é bem possível que ela ecoe a preocupação do próprio Beethoven com sua morte, pois já manifestava múltiplos sinais da longa enfermidade que o mataria, dez anos depois.
Hochzeitslied (‘Canção de Casamento”), WoO 105, foi dedicada a Anna Giannatasio del Rio por ocasião de seu matrimônio com Leopold Schmerling em 1819. Nada sei mais deles, nem pretendo saber, porque o próprio Beethoven não demonstrou muito interesse por essa pequena obra muito formulaica, da qual existem duas versões.
Por fim, e antes que reclamem, aviso que subverti a ordem original das faixas na boa gravação da Naxos, a fim de que as canções em italiano iniciassem a audição, e que esta encerrasse com as duas obras mais robustas do disco: as versões de câmara de Opferlied e Bundeslied, que são melhor conhecidas em roupagens para coro e orquestra.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Canções polifônicas em italiano sobre textos de Pietro Metastasio, WoO 99
Compostas em 1801
Revisadas por Antonio Salieri (1750-1825)
1 – No. 1: Bei labbri che amore, Hess 211
2 – No. 2: Ma tu tremi, o mio tesoro, Hess 212
3 – No. 3: E pur fra le tempeste, Hess 232 (arranjo de Willy Hess para voz e piano)
4 – No. 4: Sei mio ben, Hess 231
5 – No. 5a: Giura il nocchier, Hess 227 (1ª versão)
6 – No. 5b: Giura il nocchier, Hess 230 (2ª versão)
7 – No. 5c: Giura il nocchier, Hess 221 (3ª versão)
8 – No. 7: Chi mai di questo core, Hess 214
9 – No. 8: Scrivo in te, Hess 215
10 – No. 9: Per te d’amico aprile, Hess 216
11 – No. 10a: Nei campi e nelle selve, Hess 217 (1ª versão)
12 – No. 10b: Nei campi e nelle selve, Hess 220 (2ª versão)
13 – No. 11a: Fra tutte le pene, Hess 208 (1ª versão, original)
14 – No. 11a: Fra tutte le pene, Hess 208 (1ª versão, revisado por Salieri)
15 – No. 11b: Fra tutte le pene, Hess 209 (2ª versão, revisado por Salieri)
16 – No. 11b: Fra tutte le pene, Hess 209 (2ª versão, original)
17 – No. 11c: Fra tutte le pene, Hess 224 (3ª versão, original)
18 – No. 11c: Fra tutte le pene, Hess 210 (3ª versão, revisado por Salieri)
19 – No. 12a: Salvo tu vuoi lo sposo (1ª versão)
20 – No. 12b: Salvo tu vuoi lo sposo, Hess 228 (2ª versão)
21 – No. 13a: Quella cetra ah pur tu sei, Hess 218 (1ª versão)
22 – No. 13b: Quella cetra ah pur tu sei, Hess 219 (2ª versão)
23 – No. 13c: Quella cetra ah pur tu sei, Hess 213 (3ª versão)
24 – No. 14a: Già la notte s’avvicina, Hess 223 (1ª versão)
25 – No. 14b: Già la notte s’avvicina, Hess 222 (2ª versão)
Abschiedsgesang, para coro, sobre texto de Ignaz Seyfried, WoO 102
Composta e publicada em 1814
Dedicada a Leopold Weiss
26 – “Die Stunde schlägt” – Andante ma non troppo
Un lieto brindisi, cantata campestre para quatro vozes e piano, WoO 103 (Hess 127)
Composta em 1814
Publicada em 1949
Dedicada a Giovanni Battista Malfatti
27 – Allegro
Gesang der Mönche (“Canção dos Monges”) do Wilhelm Tell de Friedrich Schiller, para coro masculino, WoO 104
Composta em 1817
Publicada em 1839
Dedicada à memória de Wenzel Krumpholz e Franz Sales Kandler
28 – “Rasch tritt der Tod” – Ziemlich langsam
Hochzeitslied, para solista, coro e piano, WoO 105 (Hess 125), 1ª versão
Composta em 1819
Publicada em 1858
Dedicada a Anna Giannatasio del Rio
29 – “Auf, Freunde, singt dem Gott der Ehen” – Allegro
30 – Der freie Mann (1ª versão), Hess 146
31 – Die laute Klage, WoO 135 (1ª versão)
32 – In questa tomba oscura, WoO 133 (1ª versão)
33 – Klage, WoO 113 (1ª versão)
34 – Lied aus der Ferne, WoO 138 (1ª versão)
35 – Seis canções, Op. 48 – No. 3: Vom Tode (1ª versão)
36 – An die Geliebte (esboço, 1811)
37 – Opferlied, Hess 91 (2ª versão, Op. 121b, para soprano, coro e piano)
38 – Bundeslied, Op. 122, “In allen guten Stunden” (versão para coro e piano)
Ensemble Tamanial:
Tabea Gerstgrasser, soprano
Marianne Prenner, mezzo-soprano
Nicolas Frémy, tenor
Alex Gazda, barítono
Claudia Schlemmer e Paula Sophie Bohnet, sopranos
Stefan Tauber e Daniel Johannsen, tenores
Georg Klimbacher, barítono
Martin Weiser e Ricardo Bojórquez Martínez, baixos
Diána Fuchs e Bernadette Bartos, piano
Cantus Novus Wien
Thomas Holmes, regência
CD BÔNUS: apesar de gostar muito das interpretações do disco acima, senti falta de algum sotaque italiano mais espesso nas canções italianas. Vá lá que foram compostas por um renano que nunca foi à Itália, mas achei que o considerável sucesso de Beethoven em seus estudos de prosódia com Salieri mereceria algo mais mediterrâneo e, por isso, resolvi oferecer-lhes essa gravação alternativa.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Canções polifônicas em italiano sobre textos de Pietro Metastasio, WoO 99
1 – No. 1: Bei labbri che amore, Hess 211
2 – No. 2: Ma tu tremi, o mio tesoro, Hess 212
3 – No. 3: E pur fra le tempeste, Hess 232 (arranjo de Willy Hess para voz e piano)
4 – No. 4: Sei mio ben, Hess 231
5 – No. 5a: Giura il nocchier, Hess 227 (1ª versão)
6 – No. 5b: Giura il nocchier, Hess 230 (2ª versão)
7 – No. 5c: Giura il nocchier, Hess 221 (3ª versão)
8 – No. 7: Chi mai di questo core, Hess 214
9 – No. 8: Scrivo in te, Hess 215
10 – No. 9: Per te d’amico aprile, Hess 216
11 – No. 10a: Nei campi e nelle selve, Hess 217 (1ª versão)
12 – No. 10b: Nei campi e nelle selve, Hess 220 (2ª versão)
13 – No. 11a: Fra tutte le pene, Hess 208 (1ª versão, original)
14 – No. 11a: Fra tutte le pene, Hess 208 (1ª versão, revisado por Salieri)
15 – No. 11b: Fra tutte le pene, Hess 209 (2ª versão, revisado por Salieri)
16 – No. 11b: Fra tutte le pene, Hess 209 (2ª versão, original)
17 – No. 11c: Fra tutte le pene, Hess 224 (3ª versão, original)
18 – No. 11c: Fra tutte le pene, Hess 210 (3ª versão, revisado por Salieri)
19 – No. 12: Salvo tu vuoi lo sposo
20 – No. 13a: Quella cetra ah pur tu sei, Hess 218 (1ª versão)
21 – No. 13b: Quella cetra ah pur tu sei, Hess 219 (2ª versão)
22 – No. 13c: Quella cetra ah pur tu sei, Hess 213 (3ª versão)
23 – No. 14a: Già la notte s’avvicina, Hess 223 (1ª versão)
24 – No. 14b: Già la notte s’avvicina, Hess 222 (2ª versão)
Karen Wierzba, soprano
Natalie Pérez, mezzo-soprano
Vincent Lièvre-Picard, tenor
Jean-François Rouchon, barítono
Jean-Pierre Armengaud, piano

Vassily


O trabalho cotidiano de erguer o memorial pequepiano ao jubileu de Beethoven quase nos faz esquecer duma importante efeméride: o centenário da morte de Alberto Nepomuceno, notável compositor cearense, amplamente reconhecido como pai do nacionalismo musical brasileiro.


1 – Languisco e moro, Hess 229
1 – Lob auf den dicken Schuppanzigh, WoO 100
Um Erlkönig de Beethoven?

Não é todo dia que uma edição alegadamente integral faz a alegria de um completista. Se você for um deles, e seu objeto de obsessão são os lieder de Beethoven, seu dia chegou (ou quase, como veremos mais adiante).
Seis canções sobre poemas de Christian Fürchtegott Gellert, Op. 48


Mencionamos 








A inauguração do novo teatro alemão na cidade de Pest (ainda não unificada com sua vizinha Buda, que do outro lado do Danúbio era então capital da Hungria) trouxe, em 1811, duas mui bem-vindas encomendas a Beethoven.
Richard Georg STRAUSS (1864-1949)

Tudo em família.
Romance cantabile em Mi menor, para piano, flauta e fagote, com acompanhamento de dois oboés e orquestra de cordas, WoO 209 (Hess 13)
O ótimo pianista e regente 

Além dos concertos para piano, assim digamos, “canônicos”, numerados de 1 a 5, Beethoven deixou incompletos dois outros que datam de períodos bem diversos de sua vida e carreira.




A postagem de hoje nem se importará tanto com a peça em questão – o rondó em Si bemol maior que, pelo que consta, foi o finale das duas primeiras versões do concerto para piano na mesma tonalidade, e que foi descartado por Beethoven em prol do rondó com que o publicou. Apesar do descarte, parece que ele o tinha em alguma estima, pois foi mantido entre seus papeis até a morte – provavelmente atirado sobre o piano Broadwood de cordas arrebentadas que era a estrela da sala de estar, e sob o qual havia um penico. Resgatado do pandemônio do apartamento mais bagunçado de Viena, foi completado (dir-se-ia retocado) por seu aluno Carl Czerny e publicado postumamente em 1829.

As duas obscuras cantatas presentes nessa gravação, compostas por um Beethoven que ainda não fizera vinte anos, foram suas primeiras obras de fôlego e, talvez, as primeiras a darem pistas de que o casmurro violista da corte do Eleitor de Colônia viria a ser um gênio da Humanidade.