Nossa homenagem ao saudoso Ranulfus continuará, também, através da republicação de suas preciosas contribuições ao nosso blog – como esta, que veio à luz em 21/5/2010.
Não faz muito, o PQP comentou aqui que acha Respighi chato – e eu também acho no que tange suas obras mais conhecidas, os poemas sinfônicos de intenção impressionista ‘Fontes de Roma’ e ‘Pinheiros de Roma’. Já tentei ouvir essas obras com boa-vontade, mas foi em vão.
E no entanto, acreditem: é de Respighi uma das peças que mais me fizeram gosto até hoje – seguramente uma das 10 que eu levaria para o exílio em outro planeta: o Trittico ou Trípico Botticelliano.
Justamente por isso falarei dele por último; só adianto que ‘Three Pictures of Botticelli’ é como se costuma chamar essa obra em inglês, e se usei uma tradução disso no título do post foi apenas pela oportunidade de fazê-lo ‘conversar’ com outro post que está sendo revalidado nesta mesma ocasião: os ‘Três Afrescos de Piero della Francesca’, de Martinu.
Respighi começou o estudo da música pelo violino e por sua irmã mais gorda, a viola, e aos 21 anos foi parar como primeiro violista de orquestra em São Petersburgo, numa temporada de ópera italiana. Já tinha estudado também um pouco de composição, e não perdeu a oportunidade de agarrar 5 meses de aula com Rimsky-Korsakoff, então com 56 anos – mesma idade com que ele, Respighi, morreria na década de 30.
De volta à Itália uma de suas principais frentes de atividade foi a de musicólogo: hoje parece banal conhecer a música da Renascença, mas no começo do século XX isso era atividade de garimpo, e nosso amigo foi um dos pioneiros. Editou e publicou diversas coleções de madrigais e também seu tanto de barroco – e aparentemente amou essa música com tanta intensidade que quis fazê-la sua: ao lado dos referidos poemas sinfônicos, suas obras mais famosas são as 3 suítes Antiche Danze ed Arie per Liuto, formadas por arranjos orquestrais de 4 peças renascentistas cada uma; e o curioso é que esses arranjos do alheio parecem soar mais autênticos, mais como uma voz própria, que aqueles poemas sinfônicos que são propriamente composições.
Já a suíte Gli Ucelli (As Aves) fica numa posição intermediária: aqui são um pouco mais que arranjos de peças barrocas para cravo; o artesanato de texturas, cores, ambiências, chega a momentos de expressividade intensa – ou de deliciosa comédia, como na recriação de ‘La Poule’, a famosa Galinha de Rameau.
E aí chegamos ao que é efetivamente uma composição – o Trittico Botticelliano -, mesmo se também com uso de temas antigos – do que, aliás, só tenho certeza em um caso: a melodia gregoriana Veni veni Emmanuel, que emerge aos 1:10 de ‘A adoração dos Magos’. No resto, não sei dizer se os temas são ou apenas evocam danças e cantos antigos e/ou populares, mas são definitivamente desenvolvidos em um discurso próprio – muito mais do que, digamos, o bem mais famoso Carl Orff consegue desenvolver o que quer que seja.
A palavra ‘discurso’, aliás, é bastante apropriada, pois não temos aqui a menor pretensão de ‘pintar com sons’ como nas ‘Fontane’, ou no Debussy de ‘La Mer’. O que temos são relatos de encenações interiores dos episódios que os quadros evocam.
E, querem saber? Não me importa a mínima se isto não for uma obra-mestra em técnica composicional: eu a vejo como absoluta obra-prima do afeto, da máxima amabilidade ou delicadeza (não ‘frescura’) que o ser humano consegue alcançar. E, com isso, inversão total do estereótipo do italiano como especialista do exagero, vulgaridade e barulheira – no que a comparo com outra obra-prima italiana, lamentavelmente inincontrável: o filme de Franco Brusati ‘Dimenticare Venezia’, de 1979, jamais lançado em vídeo ou DVD.
Quase da mesma época (1977) foi o vinil em que conheci essa obra, com uma realização magnífica da Orquestra de Câmara de Praga. Como prêmio de consolação por não poder postá-lo, nosso amigo José Eduardo me conseguiu duas versões – vejam abaixo de quem – que coloquei uma abrindo, outra fechando o programa.
Comparação com a obra análoga de Martinu? Não, gente, eu ainda a ouvi muito pouco para me atrever. Só digo que não me pareceu impressionista – como o Villalobiano a caracterizou – e sim francamente neo-romântica. E que sua linguagem abertamente sinfônica torna ainda mais difícil a comparação com esta aqui, quase camerística. E agora é com vocês…
Ottorino Respighi (1879-1936), obras para pequena orquestra
Trittico Botticelliano (Three Botticelli Pictures) p. orquestra (1927)
01 La Primavera
02 L’Adorazione dei Magi (a adoração dos magos)
03 La nascita di Venere (o nascimento de Vênus)
Gli Uccelli (As Aves) p. pequena orquestra, s. peças barrocas p. cravo (1927)
04 Preludio (Bernardo Pasquini)
05 La Colomba (a pomba) (Jacques de Gallot)
06 La Galina (a galinha) (J.P. Rameau)
07 L’Usignuolo (o rouxinol) (anônimo inglês)
08 Il Cuccù (o cuco) (Bernardo Pasquini)
Antiche Danze ed Arie (antigas danças e árias), suite 1, p. orquestra (1917)
s. peças p. alaúde de S. Molinaro, Vicenzo Galilei (pai de Galileo!) e anônimas
09 Baletto detto ‘Il Conte Orlando’
10 Gagliarda
11 Villanella
12 Passo Mezzo e Mascherada
Antiche Danze ed Arie (antigas danças e canções), suite 3, p. cordas (1932)
s. peças p. alaúde e violão de Besard, L.Roncalli, Santino Garsi da Parma e anônimo
13 Italiana
14 Aria di Corte
15 Siciliana
16 Passacaglia
Orpheus Chamber Orchestra (N.York) (DG 1993)
17 BÔNUS: Trittico Botticelliano I, II e III (1927)
Bournemouth Sinfonietta, reg. Tamás Vásáry (Chandos 1992)
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Ranulfus
Restaurado por Vassily, com gratidão e saudades, em 13/2/2023