100 anos da morte de Gabriel Fauré A partir do olhar um tanto blasé da foto acima, mostrando Gabriel Fauré quando ainda tinha os bigodes e cabelos escuros, podemos extrair a característica fundamental da música desse compositor: um certo desprezo ou apatia com relação aos exageros do romantismo tardio da sua época – tanto nos excessos afirmativos como nos momentos caricaturalmente tristes. Esses exageros aparecem principalmente da música orquestral, em um período em que os tamanhos das orquestras aumentam e os instrumentos são refeitos para fazerem cada vez mais barulho: estamos falando das grandiosas óperas de Wagner, sinfonias de Bruckner, concertos de Tchaikovsky… e um dos primeiros representantes desses excessos românticos foi o francês Berlioz.
O estadunidense Robert Wilks define Fauré como o anti-Mahler, mas também seria possível defini-lo como anti-Berlioz, já que tanto Mahler como Berlioz praticamente só escreveram música para grandes formações orquestrais, algumas com coro, enquanto Fauré se destacou principalmente na música de câmara: quartetos, quintetos, obras para voz e piano ou para piano solo.
Mesmo a sua Missa de Requiem, como vimos nas postagens dias atrás, tinha uma orquestração relativamente moderada: segundo seu biógrafo Robert Orledge, “He intended his Requiem to be intimate, peaceful and loving, with none of the horrors of death he so detested in Berlioz’s 1834 Requiem”.
Para além do número de instrumentistas, vejamos a argumentação de Wilks:
Fauré’s personality was described as charming, easy-going and sentimental, with a keen sense of humor. He was adept at making and maintaining friendships with both musicians and rich patrons. He was sometimes accused of being a social butterfly. He was modest, even-tempered, “a real gentleman”.
Mahler’s personality could not have been more different. Musicians considered him abrasive and demanding. He consistently clashed with or offended almost everyone he ever worked with. Of course, the source of some of those frictions was anti-semitism and no fault of his own. Throughout his life he felt like an outsider. Neuroses displayed themselves in dances that were “demonic” and marches that were “ghostly”. Cheerful music is tainted with anxiety and tragic passages are interrupted with euphoria. He had conversations with Dr. Freud in an attempt to understand his own motivations. Unlike Fauré, he (…) was a highly acclaimed opera conductor in seven different cities.
Both composers wrote songs. Fauré’s more substantial output was produced over the course of his whole life, earning a revered place in the repertory of French art song. The two composers had important but different relationships to literary texts. Fauré had an extreme sensitivity to poetry and strong opinions about how a poem should be set in terms of its general feeling and mood (not always in sync with the natural rhythm and phrasing). He is most associated with the poems of Verlaine. (daqui)
Com exceção do Requiem, então, suas outras obras-primas são peças da intimidade, da conversa ao pé do ouvido, como é o caso dos diálogos entre voz e piano neste disco bem recente da Harmonia Mundi. E além do barítono francês Stéphane Degout (nasc. 1975), temos nessa postagem a holandesa Elly Ameling (nasc. 1933), soprano de imenso repertório gravado desde décadas de 1950, e que neste disco canta um repertório francês (Fauré, Duparc, Debussy e Ravel) em gravações ao vivo dos anos 1980. O ciclo “La bonne chanson”, de Fauré, aparece aqui na versão para voz, piano e quarteto de cordas. O ciclo de canções de Ravel cantado por Ameling no mesmo CD tem uma formação quase igual: ao quarteto de cordas e ao piano, somam-se flauta e clarinete. Mas a linguagem de Ravel é mais atonal e usa os instrumentos de modos mais vanguardistas, lembrando, aliás, o seu Trio da mesma época.
Mais um detalhe: Claude Debussy, 18 anos mais jovem e com um espírito um tanto briguento, escreveu ou falou certos comentários maldosos sobre Fauré. Não consta que eles fossem amigos do peito. É verdade, porém, que as semelhanças entre os dois são muitas: se Debussy, como Ravel, buscavam certas inovações formais que, na comparação, podiam deixar o compositor mais velho parecendo um conservador, ouvindo os dois à distância a sofisticação dos acompanhamentos da voz pelo piano os aproxima, assim como outros detalhes abundantes. Por exemplo: os dois, ao transformar os versos em música, evitavam refrões ou repetições de qualquer tipo, repetições comuns nos lieder de Schubert e Schumann. Isso fica óbvio na ópera Pelléas et Mélisande de Debussy (aqui), com mais de duas horas sem nenhuma ária com refrão, mas também é um dos ingredientes que dão às canções de Fauré todo o seu suave sentimento e intenso mistério.
Um disco duplo que junta com grande sucesso a música composta no começo do século XX por dois homens cuja vida individual iria se misturar com a carnificina da 1ª Guerra Mundial. As dezenas de páginas do livreto do álbum – lançado em 2024 – trazem um forte resumo do genocídio armênio de 1915, da guerra e fazem uma triste comparação com as igualmente estúpidas carnificinas do nosso tempo, pouco notado à época por se situar ao mesmo tempo da carnificina mais ampla que ocorria principalmente na Europa Ocidental. Mas antes dessas importantes informações biográficas e históricas eu gostaria de deixar a minha opinião sobre este álbum: o jovem Kirill Gerstein (piano), acompanhado de Ruzan Mantashyan (soprano) e mais alguns colegas, escolheram muito bem o programa de obras: não só por misturar Komitas com o mais célebre Debussy, mas também por juntar peças para piano solo, dois pianos, piano e voz. Assim, por exemplo, a transição entre “Chansons de Bilitis” e “Six Épigraphes antiques” faz todo o sentido: em ambas as peças, Debussy tem em mente um mundo imaginário com elementos da antiguidade clássica (sátiros, ninfas, deuses gregos e egípcios…), típicos da obra desse compositor que buscou sempre o exótico, o detalhe do outro que causa estranhamento e nos faz sair da mesmice dos sons, grosso modo, “ocidentais”, seja lá o significado deste último coletivo imaginário. É claro que o exotismo da música de Komitas se encaixa bem nisso tudo. Ou seja: o disco duplo, além de muito prazeroso de se ouvir, foge do padrão atual de se juntar as peças musicais como em uma prateleira de supermercado – aqui a música para dois pianos, lá no outro corredor as obras para piano e voz, e lá no cantinho mal iluminado os “orientais”…
Komitas estudou música em Berlim a partir de 1895 e, antes, em Etchmiadzin – cidade que abriga uma catedral construída no ano 483, o centro religioso da Igreja da Armênia, que por sua vez é uma instituição separada dos dois cristianismos que sucederam ao império romano (o de Roma e o de Constantinopla). Com essa base cultural fundada em uma das mais antigas tradições do cristianismo, e também informado sobre a tradição germânica, Komitas coletou e transcreveu mais de 3 mil peças de música tradicional da Armênia, se interessando também pela música dos Curdos, grupo étnico até hoje imprensado entre a Turquia, o Irã e o Iraque e frequentemente pisoteado pelas maiorias daqueles países. A partir de 1906, Komitas fez turnês pela Europa: Rússia, Itália, Áustria, Suíça, Alemanha e sobretudo foi muito apreciado em Paris, onde alguns colegas armênios já viviam e ajudaram a fazer seu nome. Claude Debussy, entre outros, elogiaram a sua música. Mas com a 1ª Guerra Mundial, a grande catástrofe aconteceu, mas vou parar esse meu resumo por aqui… O texto a seguir junta trechos do livreto, de modo a apresentar esse exótico Komitas Vardapet, mais conhecido pelo primeiro nome, e que para mim não era nem um pouco conhecido.
Artur Avanesov escreveu no livreto: Like Bartók, Komitas was an ethnomusicologist with a passion for the music of his own people. Like Bartók, he understood that to fully comprehend his own tradition, he also had to comprehend the traditions of other nations, and their research often led them in the same direction. Komitas’s music is particularly close to Bartók’s folklore-based miniatures, such as Hungarian Folksongs from Csík, Romanian Christmas Carols, dances from Mikrokosmos, and his music for children. Both composers often build the vertical harmony out of multimodal layers. However, unlike Komitas, Bartók, a true virtuoso, created Hungarian music under the influence of Liszt and left behind a vast number of large-form compositions. In spite of the evidence that Komitas fully mastered the art of instrumentation, none of his mature works features any instrument other than the piano.
As an ethnographer, Komitas had a choice: either to assume the position of an observer describing and archiving the state of traditional music at that moment or, armed with his knowledge and expertise, to re-create the eessence of national music as he perceived it, basing it on his own research, even when this essence was quickly disappearing. He clearly took the second path. There are multiple indications that, even in his time, actual folkloric practice may have been somewhat different than the samples he recorded would lead us to believe. Not an archivist, but a creator by nature, Komitas approached the study and preservation of folklore critically, rejecting everything that would not fit in with his vision of Armenian music, and perhaps sometimes editing on the basis of historical practice to make the reality correspond with logic. The result of Komitas’s efforts is that Armenian folklore as we know it today is largely Komitas’s folklore, the face of the national music that he restored from a half-erased original. It was to this gigantic task that he, indeed, had to sacrifice himself – to silence his own song in order to save the art of an entire nation from a fatal disease leading to oblivion and non-existence.
[depois do genocídio armênio 1915, do qual ele, que estava em Constantinopla/Istanbul, escapou com vida, mas com marcas da tortura e da morte de inúmeros conhecidos…] At first, he tried to work, but going back to his daily routine proved impossible. Besides, he was constantly haunted by paranoid hallucinations and nightmares. In 1916, while conducting his last Easter mass, he started sobbing at the altar as the hymn “Lord, Open the Doors” sounded. He screamed and prayed all night long. His landlord threatened to evict him or non-payment of rent. The same year, he finalized his last edition of the Piano Dances, after which working became unbearable..
CD 1
CLAUDE DEBUSSY (1862–1918)
12 Études (1915) – à la mémoire de Frédéric Chopin
PREMIER LIVRE
1 I. Pour les cinq doigts · d’après Monsieur Czerny
2 II. Pour les tierces
3 III. Pour les quartes
4 IV. Pour les sixtes
5 V. Pour les octaves
6 VI. Pour les huit doigts
DEUXIÈME LIVRE
7 VII. Pour les degrés chromatiques
8 VIII. Pour les agréments
9 IX. Pour les notes répétées
10 X. Pour les sonorités opposées
11 XI. Pour les arpèges composés
12 XII. Pour les accords
KOMITAS VARDAPET (1869–1935)
Armenian Dances (1916)
13 Manushaki of Vagharshapat
14 Yerangi of Yerevan
15 Unabi of Shushi
16 Marali of Shushi
17 Shushiki of Vagharshapat
18 Het u Aradj of Karin
19 Shoror of Karin
Kirill Gerstein, piano
CD 2
CLAUDE DEBUSSY
Chansons de Bilitis (1897-98)
Text: Pierre Louÿs
1 I. La Flûte de Pan
2 II. La Chevelure
3 III. Le Tombeau des naïades
Ruzan Mantashyan, soprano
Kirill Gerstein, piano
6 Épigraphes antiques
pour piano à quatre mains (1914–15)
4 I. Pour invoquer Pan, dieu du vent d’été
5 II. Pour un tombeau sans nom
6 III. Pour que la nuit soit propice
7 IV. Pour la danseuse aux crotales
8 V. Pour l’Égyptienne
9 VI. Pour remercier la pluie au matin
Katia Skanavi and Kirill Gerstein, piano
KOMITAS VARDAPET
Armenian Songs
Text: traditional
10 Tsirani tsar
11 Chinar es
12 Garoun a
13 Le le Yaman
14 Qeler Tsoler
15 Antouni
Ruzan Mantashyan, soprano
Kirill Gerstein, piano
CLAUDE DEBUSSY
Late Pieces
16 Noël des enfants qui n’ont plus de maisons (1915)
Text: Claude Debussy
Ruzan Mantashyan, soprano
Kirill Gerstein, piano
17 Page d’album pour piano pour l’œuvre du « Vêtement du blessé » (1915)
18 Berceuse héroïque – pour rendre hommage à S.M. le roi Albert Ier de Belgique et à ses soldats (1914)
19 Étude retrouvée (1915)
20 Élégie (1915) from Pages inédites – sur la Femme et la Guerre
21 Les Soirs illuminés par l’ardeur du charbon (1917)
Kirill Gerstein, piano
En blanc et noir pour deux pianos (1915)
22 I. À mon ami A. Koussevitzky (Avec emportement)
23 II. Au lieutenant Jacques Charlot tué à l’ennemi en 1915, le 3 mars (Lent. Sombre)
24 III. À mon ami Igor Stravinsky (Scherzando)
Thomas Adès and Kirill Gerstein, piano
Arrumação dos CDs nas prateleiras faz parte do rol das inúteis coisas que fazemos para nosso próprio prazer. Organizar por ordem alfabética de nomes de compositores pode fazer Alkan morar próximo de Albinoni, o que me parece um disparate. Ordem cronológica dos compositores coloca ombro a ombro gentes como Bach, Handel e Scarlatti – para saber a sequência correta é preciso descobrir os horóscopos de cada um deles. Mas, onde colocar os discos com músicas de dois ou mais compositores? Bem, digam-me lá como fazem vocês… organizar pela cor das lombadas?
Estava eu em mais uma dessas arrumações quando dei com este despretensioso disco, alocado com os discos-encartes de banca. Quem é visto, é lembrado… e lá foi ele para o DVD player que por ora uso nessas situações. A proposta do disco é explorar o gênero musical noturno, no qual o maioral é Chopin, é claro, mas nem só de peças de Chopin ele é composto. Temos três peças do compositor irlandês John Field, intercaladas nas seis primeiras faixas, com três de Chopin. Quão interessante é essa parte do disco. Por mais charmosas e brilhantes que sejam as peças de Field, as obras de Chopin se sobressaem. O mais charmoso dos noturnos de Field, para mim, é o de número 6. Depois temos mais alguns noturnos de Chopin. E como é lindo Noturno em sol maior op. 37/ 2! (Quizz PQP Bach – em qual propaganda esse noturno foi usado?)
Não sei como a produção do disco não escolheu algumas peças de Fauré, outro compositor de noturnos, mas acho que aí entrou o dedo (seria melhor dizer ‘os dedos’?) do intérprete Melvyn Tan. Debussy tem uma conexão bem forte com a Chopin, apesar das imensas diferenças. De qualquer forma, fiquei assim conhecendo o Noturno para piano de Debussy, que compôs também noturnos para orquestra, e me deliciei com a sequência de Prelúdios escolhida para completar o disco.
Devo dizer que esse disco foi gravado no apagar das luzes do século passado e naqueles dias Melvyn era mais conhecido como intérprete de pianoforte, membro ativo do uso de instrumentos de época. Tenho escutado o disco agora várias vezes, sempre com bastante gosto, especialmente a parte inicial. Tanto que vou dar uma busca nas gravações dos intérpretes de John Field, tais como o também irlandês John O’Conor ou Benjamin Frith…
JOHN FIELD (1782 – 1837)
Noturno No.4 em lá maior
FRÉDÉRIC CHOPIN (1810–1849)
Noturno em fá maior, Op. 15/1
JOHN FIELD
Noturno No. 5 em si bemol maior
FRÉDÉRIC CHOPIN
Noturno em sol menor, Op. 15/3
JOHN FIELD
Noturno No. 6 em fá maior
FRÉDÉRIC CHOPIN
Noturno em sol menor, Op. 37/1
Noturno em sol maior, Op.37/2
Noturno em mi menor, Op. 72/1
Noturno em mi maior, Op. 62/2
Noturno em si maior, Op. 9/3
CLAUDE DEBUSSY (1862 – 1918)
Noturno
Prelúdio: La Fille Au Cheveux De Lin
Prelúdio: Brouillards
Prelúdio: Feuilles Mortes
Prelúdio: Les Sons Et Les Parfums Tournent Dans L’air Du Soir
Prelúdio: La Terrasse Des Audiences Du Clair De Lune
Jascha Heifetz é a estrela do CD, mas os fãs de Arthur Rubinstein vão certamente se interessar pelo Trio de Ravel, muito bem gravado, com perfeito equilíbrio entre os três instrumentos. E, claro, com Rubinstein no piano e Piatigorsky no violoncelo a interpretação é cheia de nuances e de brilho.
Todos eles compostos na década de 1910, o Trio de Ravel e as Sonatas para violino de Debussy e Respighi eram obras contemporâneas para esses músicos aqui gravados. O Duo de Bohuslav Martinů, de 1927, mais ainda.
O Trio de Ravel e as peças de Debussy trazem todas as sutilezas da música francesa daquele período – aliás, aqui Ravel e Debussy se parecem, mais do que na música orquestral de ambos… E a Sonata do italiano Ottorino Respighi, obra relativamente pouco tocada, também merece o seu lugar ao sol. O encarte do álbum fala assim dela: a sonata robusta e expressiva, que equilibra com sucesso força emocional e substância musical, foi uma das várias boas obras que Heifetz retirou do anonimato: por anos ele foi o único violinista famoso a colocá-la no repertório dos seus recitais.
1-3. Debussy: Sonata para Violino e Piano em sol menor
4. Debussy: La fille au cheveux de lin (dos Prelúdios para Piano, transcrição A. Hartmann)
5-7. Respighi: Sonata para Violino e Piano em si menor
8. Ravel: Menuet (da Sonatina para Piano, transcrição L. Roques)
9-12. Ravel: Trio para Piano, Violino e Violincelo
13-14. Martinů: Duo nº 1 (Preludium – Rondo) para Violino e Violincelo, H 157
Recorded: 1950 (except track 8: 1947; tracks 13-14: 1964)
Jascha Heifetz – violin
Emmanuel Bay – piano (tracks 1-8)
Arthur Rubinstein – piano (tracks 9-12)
Gregor Piatigorsky – cello (tracks 9-14)
As descrições das semelhanças entre Claude-Achille Debussy (1862-1918) e Maurice Ravel (1875-1937) às vezes são pertinentes e às vezes são exageradas. É claro que os dois viveram na mesma cidade, se viram frequentemente e, até onde se sabe, admiravam-se mutuamente. Talvez seja nas obras para piano solo que as semelhanças entre os dois são mais profundas. Já nas obras vocais, tanto essas para cantora com piano, seja em peças mais amplas com acompanhamento orquestral, as diferenças ficam mais claras. Debussy era um admirador da poesia refinada de Charles Baudelaire, Paul Verlaine, Stéphane Mallarmé e Pierre Louÿs, sendo amigo próximo deste último. Ele escreveu chansons sobre versos desses quatro poetas e, inspirado em Mallarmé, ainda fez o famoso Prélude à l’après-midi d’un faune. Obras cheias de sutilezas e de dissonâncias sedutoras, com uma certa tendência às imagens noturnas (o luar, as estrelas…), o que também aparece na sua única ópera. Nos três poemas de Louÿs extraídos do livro “As canções de Bilitis”, Debussy faz um arco dramático de referências pagãs e termina em tom de luto com versos como “os sátiros estão mortos e as ninfas também”. Louÿs, na época do lançamento do livro (1894), afirmava que os poemas foram encontrados nas paredes de uma tumba em Chipre, escritos por uma mulher da Grécia Antiga chamada Bilitis, uma contemporânea de Safo (a famosa poetisa lésbica). Após enganar o público e mesmo especialistas em antiguidades helênicas, anos depois Louÿs admitiu a pegadinha.
Já Ravel habita um mundo mais simples, menos melancólico, embora o piano de acompanhamento tenha semelhanças com o de Debussy e também com o de Gabriel Fauré (1845-1924), que aliás foi seu professor. As cinco melodias aqui gravadas são canções populares gregas. Assim como em outras de suas obras inspiradas pela Espanha e em seus dois concertos tardios inspirados no jazz, nas canções gregas mesmo os momentos mais lentos e pensativos são mais solares do que quase tudo de Debussy. O pianista aqui é Marc-André Hamelin, que mais recentemente tem gravado muitos discos pela Hyperion, incluindo obras de Debussy (aqui) e de Fauré.
Fête Galante
1-4. Gabriel Fauré: Mandoline, Clair de Lune, Aurore, En sourdine
5-9. Maurice Ravel: Cinq mélodies populaires grecques
10-12. Claude Debussy: Fêtes galantes (En sourdine, Fantoches, Clair de lune)
13-15. Claude Debussy: Trois chansons de Bilitis (La flûte de Pan, La chevelure, Le tombeau des Naïades)
16-23. Francis Poulenc: Métamorphoses, Deux poèmes de Louis Aragon, Trois poèmes de Louis Lalanne
24-29. Arthur Honegger: Saluste du Bartas
30-32. Emile Vuillermoz: Chansons populaires françaises et candiennes
Karin Gauvin (soprano), Marc-André Hamelin (piano)
Recorded circa 1999
Links revalidados em 2024, postagem original de 2022
160 anos de Debussy
Claude-Achille Debussy (Saint-Germain-en-Laye, 22 de Agosto de 1862 — Paris, 25 de Março de 1918)
Debussy escreveu esta nota introdutória para os Noturnos:
“O título Noturnos deve ser entendido aqui em um sentido geral e, sobretudo, decorativo. Não se trata, portanto, da forma usual de um noturno, mas das várias impressões e efeitos especiais da luz que a palavra sugere.
Nuages (Nuvens) evoca o aspecto imutável do céu com o movimento lento e melancólico das nuvens, que se dissolvem em tons de cinza com leves toques de branco.
Fêtes (Festas) trazem o ritmo vibrante, dançante da atmosfera, com lampejos súbitos de luz. Há também o episódio da procissão (uma visão deslumbrante, quimérica), que passa pela cena festiva e se mistura com ela. Mas o pano de fundo permanece sempre o mesmo: o festival com sua mistura de música e poeira luminosa participando do ritmo geral.
Sirènes (Sereias) nos mostra o mar com seus incontáveis ritmos e então, dentre as ondas prateadas pela luz da lua, ouve-se o canto misterioso das Sereias que riem e vão embora.”
Tão geniais quanto o Fauno e La Mer, e situados cronologicamente entre essas duas obras, os Noturnos dão às orquestras e regentes a oportunidade de mostrarem suas capacidades de produzirem sonoridades raras, suaves, momentos de luz e sombra, solos que dependem mais de um cuidadoso cantabile do que de virtuosismo acelerado. Nesse sentido, e só nesse, eles lembram os Noturnos para piano de Chopin, porque em aspectos mais formais essas composições são bem diferentes das do polonês: como o próprio Debussy deixou claro, não se trata de forma dos noturnos que as pianistas adoravam tocar para seus namorados e noivos. Debussy teria sido inspirado por uma série de quadros impressionistas, também intitulados Nocturnes, de James Whistler, pintor que vivia em Paris naquela época. Sem dúvida estão mais próximos da pintura do que dos Noturnos de Chopin.
Em homenagem aos 160 anos de Debussy, vamos fazer um passeio pelas grandes gravações desses Noturnos. De início, nos voltamos para dois regentes dos tempos da brilhantina e das fotos em preto e branco, dois franceses que alcançaram o auge de suas carreiras regendo repertório francês nos EUA: Charles Munch e Paul Paray. A gravação da Symphonie Fantastique de Berlioz por Paray é muito recomendável, assim como o Ravel de Munch, cheio de delicadeza e energia ao mesmo tempo, que você confere nas postagens de FDP Bach aqui (Bolero, La Valse, etc.) e aqui (Daphnis et Chloé). Ambos os maestros também gravaram versões espetaculares da Sinfonia com Órgão de Saint-Saëns, nos primeiros anos do stereo, gravações que muitos audiófilos usaram para testar equipamentos de som, tamanha era a potência dos graves da orquestra e do órgão nos LPs.
Mas o assunto hoje é Debussy, e mais especificamente os seus Noturnos, compostos ao longo de alguns anos, finalizados em 1899 e estreados em 1900 (1º e 2º movimentos) e em 1901 (3º mov.) O motivo para a demora na estreia do 3º movimento, “Sereias”, foi a dificuldade de se ter disponível um coral feminino de altíssimo nível para cantar apenas essa obra de cerca de 10 minutos. Provavelmente por esse motivo, Munch gravou em Boston apenas os dois primeiros noturnos, que não precisam de coral. Toscanini e Bernstein, ambos em Nova York, também gravariam apenas os dois primeiros, talvez pela falta de um coral à disposição.
Arturo Toscanini, aliás, tinha credenciais para se impor como referência em Debussy. Consta que, quando Toscanini regeu a estreia italiana da ópera Pelléas, em 1908, ele convidou Debussy para assistir aos ensaios e à grande estreia. Ele não foi, mas escreveu uma carta que mostra a intimidade entre os dois: “Coloco a sorte de Pelléas em suas mãos, certo como estou de que não poderia desejar outras mais leais ou mais capazes. Pelo mesmo motivo, gostaria de de ter trabalhado ela com você”. Ouçam La Mer com Toscanini, é uma das melhores gravações. Mas aqui, com base nas suas gravações dos Noturnos, ele foi desclassificado porque faltou o 3º movimento.
O francês Paul Paray nasceu em 1886, mesmo ano do alemão W. Furtwangler, e as personalidades dos dois podem ser consideradas como polos extremos. Muito se falou, na crítica especializada, sobre Toscanini como o anti-Furtwangler: de fato, assim como o francês Paray, o italiano corre muito no primeiro movimento: as “Nuvens” parecem sopradas por um forte vento. Enfim, voltando a Paray, ele tentou a sorte como compositor e, após alguns sucessos na década de 1910, largou a caneta para se dedicar à batuta a partir de 1920, ou seja, dois anos após a morte de Debussy. Paray estreou obras de Maurice Ravel, Florent Schmitt, Lili Boulanger e muitos outros. Após passar a vida na França à frente das orquestras Lamoureux e Colonne (se demitindo desta em 1940 em protesto contra os nazistas), Paray deve ter ganhado bem mais dinheiro já idoso, quando assumiu a Orquestra Sinfônica de Detroit, que ele elevou ao nível das maiores do mundo no período em que ali viveu, 1953 a 1963, recebendo altos salários na cidade da Ford, que vivia o boom dos automóveis e do american way of life. As gravações de Paray são quase sempre com andamentos rápidos e um clima leve, despreocupado, é nesse sentido que ele polariza com seu contemporâneo Furtwangler, famoso pelos adagios intermináveis e temperamento sério e grave que, aos olhos de Debussy, soaria como pura prepotência vazia. A gravação de Paray dos Noturnos, porém, me parece exagerar no clima leve e apressado: as nuvens, como já disse, são sopradas com força, e a procissão do segundo movimento corre a ponto de suar… E as sereias, com Paray, cantam tudo em 7min46s, sem o ar de mistério e de suavidade que pedem as indicações da partitura (“modérément animé“, “sourdine“, “trèsexpressifettrèssoutenu“…). Paray poderia ser eliminado nessa competição por queimar a largada, mas mantive sua gravação aqui para termos justamente essa diversidade de pontos de vista sobre Debussy, e repito: ponto de vista de um maestro que, como Toscanini, já era adulto quando Debussy morreu, conheceu vários de seus amigos, então não é nenhum palpiteiro que caiu de para-quedas nesse repertório. Além do mais, o álbum traz a interessante e pouco gravada Petite Suite, de 1889, originalmente para piano e aqui em orquestração de Henri Büsser. Supõe-se que Debussy aprovava essa orquestração, porque ele a regeu em uma das vezes em que pegou a batuta para ganhar uns trocados. Essas gravações da Petite Suite (obra bucólica e simples, que combina mais com o jeitão de Paray) e das Valsas Nobres e Sentimentais de Ravel são absolutamente sensacionais.
Além de Paray, escolhemos outra gravação dos primeiros anos do stereo, período em que a cada ano surgiam inovações nos microfones e outras mudanças tecnológicas muito rápidas. O Debussy da Orquestra da Filadélfia com Ormandy não é tão lembrado, mas chamou nossa atenção desde a primeira audição. Eugene Ormandy (Budapeste 1899 – Filadélfia 1985) estudou violino na Hungria, onde também foi aluno de Bartók e Kodály. Viajou para os EUA para atuar como solista, mas acabou se tornando maestro, primeiro acompanhando filmes mudos e depois passando para o repertório sinfônico.
De 1936 a 1980 esteve à frente da orquestra da Filadélfia, que ficou famosa pelo belo som de seu naipe de cordas, aliás, segundo alguns críticos, certas obras ficavam com uma beleza exterior e sem profundidade. Os maiores solistas da época gravaram na Filadélfia com Ormandy, incluindo Rubinstein, Oistrakh e muitos outros. Como, nos EUA dos anos 1950 e 60, o repertório francês estava praticamente “reservado” para Charles Munch, Paul Paray e Pierre Monteux, Ormandy se destacou em outros compositores como seu compatriota Bartók , o russo Mussorgsky e o espanhol Rodrigo. Mas essas obras de Debussy gravadas entre 1959 e 1964 mostram que Ormandy se sentia em casa também com este compositor – por quem Bartók nutria verdadeira adoração, aliás.
Além de um Prelúdio ao entardecer de um fauno de grande beleza e de uma Danse: Tarantelle styrienne na versão orquestrada por Ravel, temos aqui Noturnos que servem como pinturas detalhadas de três paisagens: primeiro o céu (Nuvens), depois a terra (Festas) e o mar (Sereias). Ormandy segura um pouco os andamentos para mostrar cada detalhe, como o faria depois Haitink com a orquestra do Concertgebouw. Talvez Debussy preferisse sereias um pouco mais agitadas, cantando um pouco mais depressa, mas perdoamos Ormandy pela enorme beleza do conjunto, que não soa arrastado nem pretensioso, ao contrário das interpretações de Giulini (Philharmonia) e Celibidache (Stuttgart). Estes dois últimos regentes (que, grosso modo, são continuadores da tradição germânica de Richard Strauss e Furtwangler) conduzem os Noturnos de forma pomposa, grandiosa, alemã, nada a ver com a suavidade imaginada por Debussy. E no extremo oposto, Paul Paray, o especialista em música francesa já mencionado lá em cima, que despachou os noturnos com uma pressa doida.
Então após ouvir Ormandy, Paray e os desclassificados Giulini e Celibidache, chegamos à conclusão de que a duração do canto das nereias no último noturno deve ficar com não menos que 8 e não mais que 11 minutos. O coro não deve soar heroico (não é Beethoven) nem devocional (não é música religiosa), nem soar carnal e próximo demais: na Odisseia de Homero, ao contrário da feiticeira Circe e da ninfa Calipso, as sereias não encostam em Ulisses, não consumam o ato, apenas cantam no mar enquanto os gregos navegam. Este movimento das Sereias provavelmente foi a partitura que Debussy mais revisou em sua vida, ao longo de vários anos, movido pela enigmática dificuldade de encaixar o som da orquestra e o do coro de mulheres cantando sempre distantes. Vamos ver como os outros maestros e orquestras encaram esse desafio…
Pularemos as décadas de 1970 e 1980, deixando apenas mencionadas três grandes, imensas gravações dos Noturnos que já apareceram aqui no PQPBach: Martinon/Orquestra da Radio Francesa em Paris, Haitink/Orquestra do Concertgebouw de Amsterdam e Jordan/Orquestra da Suisse Romande em Genebra. Nos anos 1990, mais três grandes gravações na América do Norte: Dutoit em Montreal, Boulez em Cleveland, Salonen em Los Angeles. Claudio Abbado é outro maestro com uma forte ligação com esses Noturnos, que ele gravou duas vezes: em Boston (1970) e em Berlim (2001). Só a comparação entre essas duas gravações de Abbado já daria muito pano pra manga.
Mas vamos nos concentrar aqui em duas gravações menos famosas, a de Svetlanov/Philharmonia e a de Paavo Järvi/Cincinnati. Antes, breves palavras sobre duas gravações recentes: Jun Märkl e a Orchestre National de Lyon (2007) têm problemas muito sérios, como os tímpanos em pianissimo em Nuages que ficaram quase inaudíveis… O jovem francês Stéphane Denève e a Scottish National Orchestra (2012) soam bem mais interessantes e anotei aqui que preciso conhecer melhor esse maestro que também tem gravado Ravel, Franck, Roussel, Poulenc… A conferir.
Paavo Järvi (não confundir com seu pai Neeme, também regente) foi eleito artista do ano pelas revistas Gramophone e Diapason no mesmo ano (2016), lançou uma integral de Tchaikovsky no ano passado, enfim, está no auge da sua carreira. Na década de 2010 foi regente principal em Frankfurt e também na Orchestre de Paris, onde curiosamente não gravou nenhum Debussy (seus principais discos em Paris: integral das sinfonias de Sibelius; Réquiem de Fauré; Chopin com Khatia Buniatishvili). Até 2022 esteve à frente da NHK, principal orquestra de Tóquio, e hoje chefia a Tonhalle-Orchester de Zürich, Suíça. Mas a gravação que trazemos aqui é anterior, Paavo Järvi aos quarenta e poucos anos regendo Debussy em Cincinnati, nos EUA.
Ele foi titular da Orquestra de Cincinnati entre 2001 e 2011, com várias gravações realizadas para o semi-defunto selo Telarc. Além do repertório mais famoso neste álbum – Prélude à l’après-midi d’un faune, Nocturnes, La Mer – temos uma obra curta e pouco gravada: Berceuse Héroïque, de 1914, um raríssimo momento em que Debussy expressa sentimentos tristes e solenes. Trata-se de uma “homenagem a Sua Majestade o Rei da Bélgica e a seus soldados”, composta logo após a invasão da Bélgica pelas tropas alemãs, sob resistência heroica dos belgas. É realmente estranho ouvir Debussy melancólico e heroico, mas afinal, o que a guerra não faz com as pessoas, não é?
Mas após esse breve passagem pela Berceuse (em francês: canção de ninar), voltemos aos Noturnos, compostos ainda muito antes de qualquer rumor de guerra: aqui temos o Debussy bem distante de sentimentos românticos, o que lhe preocupava era o lento movimento das nuvens, do mar e, quando ele chega ao elemento humano, no movimento central, são festas e procissões, nada de herói romântico solitário. E há algo de hipnótico nas sereias de Cincinnati, na forma como elas repetem seu canto. Nessa gravação elas estão meio distantes, parecem guardar alguns metros de distância da orquestra, mas talvez seja mera ilusão… é o tipo de música que pode iludir.
Além do canto das sereias que temos enfatizado aqui, outra coisa interessante de se comparar entre as gravações é o rufar grave dos tímpanos no início e do fim do primeiro noturno. Os tambores devem sempre soar discretos, um som atmosférico, pois a partitura indica pianissimo, alternando entre dois e quatro pês (pp, ppp, pppp). E ao mesmo tempo devem ser audíveis, missão nada fácil para músicos e engenheiros de som. Os tambores de Cincinnati com Järvi ficaram bem gravados, mas menos expressivos do que os da Philadelphia Orchestra com Ormandy.
Deixamos por último o disco que, na classificação aqui de casa, reina supremo como a maior gravação dos noturnos: não é um francês, e sim o russo Evgeny Svetlanov (1928-2002) regendo a orquestra inglesa Philharmonia em 1992. Muito lembrado por suas interpretações do repertório russo da chamada belle époque anterior à 1ª Guerra Muncial (Tchaikovsky, Rimsky-Korsakov, Glazunov, Scriabin) e também de Mahler, ele mostra aqui sua proximidade com a estética do compositor francês do mesmo período. Ou será que são os músicos da Philharmonia, orquestra fundada em Londres em 1945 e famosa por suas gravações com Klemperer? O timbre suave e elegante das cordas da Philharmonia lembra as orquestras germânicas, mas sem o ar grandiloquente que Debussy detestava em Wagner.
Na ressonante acústica de igreja onde Svetlanov e a Philharmonia gravaram, o fim do movimento Nuages, com as cordas agudas e os tímpanos suaves e misteriosos enquanto as cordas graves atacam em pizzicato, toda essa combinação ecoando poderia ter resultado em um desastre, mas o resultado aqui também é bastante interessante. O coro The Sixteen, mais famoso por suas gravações de música renascentista (aqui), mostra aqui que também se entende muito bem com esse repertório modernista: as sereias estão distantes e misteriosas, mas não tão distantes a ponto de se dissolverem na água salgada e na maresia. Enfim, uma gravação improvável, pouco badalada, em um selo pequeno, mas que eu considero IMPERDÍVEL.
Svetlanov preferia as gravações ao vivo, mas também gravou em estúdio: sinfonias de Scriabin, de Myaskovsky, de Shostakovich e muito mais. Ele era filho de uma cantora lírica do teatro Bolshoi, e costumava dizer: “Meu ideal é que uma orquestra tenha sua própria personalidade, focando em um som específico e não um som padrão. Com a Orquestra Estatal da URSS [e da Rússia desde 1989], consegui manter uma qualidade lírica especial por 30 anos: as boas orquestras são aquelas que cantam.” [P.S. em 2024: confiram aqui mais Svetlanov regendo repertório francês, dessa vez a Valsa e os Concertos de Ravel e em Moscou]
Porém, mais do que em Moscou, ou em Paris onde ele também gravou Debussy com a Orchestre National de France, parece que Svetlanov brilhou mais ainda nesse repertório francês em Londres: lembremos, aliás, que essa cidade sempre acolheu muito bem a música de Debussy desde quando este ainda era vivo. As cordas da Philharmonia, as cantoras do The Sixteen, a acústica da St. Augustine’s Church, tudo funciona à perfeição aqui.
Conclusão: Todas as gravações aqui trazidas são interessantes, ainda que a do velho Paray em Detroit o seja mais por motivos históricos, para ouvirmos os noturnos na marcha apressada que também era a preferência de Toscanini, regente elogiado pelo próprio Debussy. Ormandy, na Filadélfia, atinge o sublime com o legato misterioso das cordas e com o som de seus sopros e do coro feminino gravado em stereo – tecnologia nova na época – com microfones bastante próximos, mostrando por exemplo as diferenças entre as sereias sopranos e as sereias mezzo-sopranos. Já a orquestra de Cincinnati, com Järvi, foi gravada com microfones mais distantes, uma sonoridade mais suave, um Debussy às vezes imerso em nuvens, às vezes com movimentos hipnóticos. E finalmente, meu favorito é um maestro que, a princípio, não teria currículo para disputar com especialistas em Debussy: o russo Svetlanov. A orquestra Philharmonia, gravada em uma igreja de Londres em 1992, consegue soar ao mesmo tempo próxima e distante, os instrumentos muitos claros mas misteriosos, enfim, tudo com uma fluência típica de um mar calmo ou do vento movendo as nuvens no horizonte.
Paul Paray/Detroit Symphony Orchestra (1958-1961)
1-3. Ravel: Daphnis et Chloé, Suite no. 2
4-11. Ravel: Valses nobles et sentimentales
12. Ravel: Bolero
13-15. Debussy: Nocturnes
16-19. Debussy: Petite Suite (orch. Henri Büsser)
Recorded: Detroit, 1958, 1959, 1961
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. Eugene Ormandy/Philadelphia Orchestra (1959-1964)
1-3. La Mer
4. Prélude à l’après-midi d’un faune
5. Danse (Tarantelle Styrienne) (orch. Maurice Ravel)
6-8. Nocturnes
Recorded: Broadwood Hotel & Town Hall, Philadelphia, 1959, 1964
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. Paavo Järvi/Cincinnati Symphony Orchestra (2004)
1. Prélude à l’après-midi d’un faune
2-4. Nocturnes
5-7. La Mer
8. Berceuse héroïque
Recorded: Music Hall, Cincinnati, 2004
Música para se ouvir na manhã de um dia de festa! – muito apropriado pois hoje é a manhã do dia que se celebra o Santo Guerreiro – Salve Jorge! O sol está espetacular e a manhã, irretocável!
Este arquivo reúne gravações feitas no fim da vida de Pierre Monteux, que já era uma lenda – o homem que regeu a estreia da Sagração da Primavera, de Stravinsky.
Entre os dias 11 e 13 de dezembro de 1961, Pierre Monteux gravou no Kingsway Hall, em Londres, o primeiro disco como o Principal Regente da London Symphony Orchestra. Lado A, Debussy, e lado B, Ravel. As faixas do lado A são as primeiras três faixas virtuais deste arquivo: O Prélude e dois Noturnos. Creio que o terceiro Noturno não foi gravado por demandar o tal coro feminino, mas isso é pura especulação minha. As faixas do lado B, composições de Ravel, estão no final do arquivo, as faixas virtuais enumeradas de 13 até 17.
O resto do arquivo, as faixas virtuais numeradas de 4 até 12 foram gravadas dois anos depois, e fazem parte de um LP dedicado apenas a música de Debussy. Lado A, Images, para orquestra, Lado B fragmentos sinfônicos para uma peça de Gabriele D´Annunzio, sobre São Sebastião, outro santo bastante venerado aqui na região do Rio de Janeiro.
Você pode programar seu sistema e ouvir um disco de cada vez ou pode também simplesmente colocar a coisa toda para tocar e se deliciar com o programa. Nas críticas que andei lendo para a postagem é mencionado a diferença entre as gravações feitas no fim de 1961 daquelas feitas perto de dois anos depois, bem no fim da vida de Monteux.
Two years earlier Monteux was in much finer form. As well as the expected orchestral refinement there is the overall sweep lacking in 1963, the clouds passing steadily overhead and the Fêtes celebrated with tingling vitality.
Dois anos antes, Monteux estava em muito melhor forma. Além do esperado refinamento orquestral, há a empolgação que faltou em 1963, as nuvens passando constantemente por cima e as Fêtes celebradas com vitalidade de arrepiar.
Eu ouço essas gravações há muito tempo e sempre tive muitíssimo prazer em ouvi-las. Assim, decidi reunir aqui esse pacote para a primeira edição desta série (espero que haja outras edições) de Tesouros do Tunel do Tempo ou The Best of Jurassic World.
PS: Monteux gravou com a LSO outras peças de Ravel, com destaque para o balé completo Daphnis et Chloé. Espero que eventualmente essas gravações apareçam aqui. Você não perde por esperar.
Claude Debussy (1862 – 1918)
Prélude à l’après-midi d’un faune
Prélude
Nocturnes
Nuages
Fêtes
Images pour orchestre
I Gigues
II Ibéria – Par Les Rues Et Par Les Chemins
II Ibéria – Les Parfums De La Nuit
II Ibéria – Le Matin D’un Jour De Fête
III Rondes De Printemps
Le Martyre de Saint Sébastien – Symphonic fragments
… Cet enregistrement est un souvenir précieux, je l’écoutais, chez mes parents; tout début des années 60, c’était un bel album “Trésor Classique” de chez PHILIPS. Je ne me souviens, cependant que du Martyr de Saint-Sébastien. Il me semble, que l’éditeur a fait un peu de remplissage, mais quel remplissage ! Images, Nocturnes … Heureuse réédition, sous étiquette Decca, à petit prix.
… Essa gravação é uma lembrança preciosa, eu costumava ouvi-la na casa dos meus pais, no início dos anos 60, era um belo álbum “Trésor Classique” da PHILIPS. Lembro-me, porém, apenas do Martírio de São Sebastião. Parece-me que o editor fez um pouco de filler, mas que filler! Images, Nocturnes… Feliz reedição, no selo Decca, a um preço baixo. (0800 aqui no PQP Bach…) TOMMY
Três álbuns gravados no Van Gelder Studio em Nova Jersey, perto de Nova York. Até 1972 Cobham gravou dezenas de discos como músico contratado. Outros grandes músicos como Ron Carter, Hubert Laws e Airto Moreira estavam lá gravando naquele estúdio vários meses do ano naqueles tempos…
No disco de estreia de Eumir Deodato no mercado norte-americano, ele toca o piano elétrico Fender Rhodes e fez as orquestrações, com muitas flautas e cordas suaves, às vezes lembrando certos arranjos posteriores de uma bossa nova sem o frescor dos primeiros anos, já a cópia da cópia, mas esses últimos arranjos copiaram muito o próprio Deodato, então ele não é de todo culpado pela música morna que fizeram depois dele. O disco vendeu bastante para os padrões da música instrumental, principalmente graças ao arranjo (por Deodato) do Zarathustra de Richard Strauss…
Também há o curioso momento em que nosso ídolo Billy Cobham toca no improviso jazzístico sobre o Prelúdio ao entardecer de um fauno, de Debussy. Nesse improvável encontro de mundos diferentes, a versatilidade do baterista aparece: um minuto contido até certo ponto, mas a partir do segundo minuto entra um groove irresistível: nem o Claude Debussy (que era do tipo de ia de sombrinha e gravata borboleta pra praia) resiste. E antes e depois do groove, Hubert Laws inicia e fecha a faixa com solos de flauta muito bonitos.
Em outras faixas, os arranjos e Deodato ficam a um pequeno passo de se tornarem música de elevador, música de hall de entrada de hotel e trilha sonora de telenovela carioca, mas esse pequeno passo não é dado, talvez graças ao talento absurdo dos instrumentistas contratados. Os dois baixistas, Ron Carter e Stanley Clarke, estão entre os melhores do mundo até hoje.
Billy Cobham nasceu no Panamá e se mudou para os EUA. Assim como o guitarrista mexicano Carlos Santana (mas com a pele mais escura e um sobrenome menos hispânico), Cobham tem em seu estilo certas características daquilo que, de um ponto de vista redutor estadunidense, é tido como música latina, algo que engloba desde a bossa nova até o jazz cubano como o daqueles músicos que ficaram famosos com o filme Buena Vista Social Club. Eumir Deodato, criado no Catete, bairro central do Rio de Janeiro, em 1972 já vivia nos EUA, tocando e principalmente fazendo arranjos que também evocam um imaginário “latino” de verão, praia, mulheres de biquini, essas coisas.
Em Red Clay, disco de 1970 liderado pelo trompetista Freddie Hubbard, Billy Cobham não tocava no LP original, mas ele está presente na faixa bônus do CD, uma longa jam sobre o tema título do álbum, gravada ao vivo em 1971 com a presença de George Benson (guitarra) e do incansável Ron Carter (baixo). Vocês sabiam que Ron Carter é o baixista que participou do maior número de discos na história? São mais de 2.200 e ele ainda está em atividade, assim como seu amigo Billy Cobham. Só a discografia deles dois juntos já dá mais de 20 álbuns, alguns deles estarão por aqui na próximas semanas…
Em Sky Dive (1972), alguns dos músicos presentes nos dois discos anteriores se repetem: Cobham (bateria), Carter (baixo), Benson (guitarra), Laws (flauta), com a presença ainda de Keith Jarrett (pianos acústico e elétrico, um dos últimos discos em que ele tocou este segundo) e do brasileiro Airto Moreira (percussão), mas há também arranjos para uma banda de apoio maior, com três trombones, três clarinetes, etc. Os fãs de Jarrett devem conferir sobretudo o seu solo de piano acústico na faixa 6, onde ele se solta mais do que no elétrico. E eu gosto especialmente da faixa 4, The Godfather, arranjo inspirado na melodia de Nino Rota para o filme O Poderoso Chefão. Uma confissão: eu já não me lembrava que essa melodia, rearranjada por tanta gente, era do filme e do Nino Rota, pra mim era do cancioneiro popular, o que também aliás já se tornou, sendo inclusive presença obrigatória em um certo bloco de carnaval carioca que sai perto dos Arcos da Lapa.
A flauta é um instrumento perigoso! Costuma ser melíflua… até de mais e aí é onde dorme o perigo. Deduz-se de uma carta escrita nos idos 1778 que Mozart não gostava de flauta, mas não devemos ser tão categóricos, uma vez que ele teve muito tempo para mudar de ideia e as flautas com as quais ele lidava não eram exatamente o tipo de instrumento que podemos ouvir numa gravação como a do disco aqui.
Eu certamente aprecio as flautas com moderação, mas esse disco repleto de obras de câmara compostas por franceses entrou logo no meu radar e aqui está ele, repleto de ótimas peças.
A sonata de Poulenc abre o disco e já apresenta a maestria e musicalidade da flautista Juliette Hurel. Segue uma coleção de peças para flauta e piano compostas por Gabriel Fauré, com algumas de suas melodias mais conhecidas.
Das peças de Debussy, a sonata para flauta, viola e harpa é a que tem as sonoridades mais bonitas, e ela é ladeada por duas versões de Syrinx, para solo de flauta, a primeira delas com uma recitante. Há também uma transcrição para flauta e piano do Prélude à l’après-midi d’un faune.
Para completar, uma peça pequenina de Poulenc, para flauta solo.
Juliette Hurel est sans doute déjà une légende vivante et elle est française. Comme il se doit, son talent a donc été ignoré par les plus grands orchestres français! ça, on le savait déjà. Chez Hurel, chaque son est un monde, choyé, aimé. Son phrasé est d’une élégance à couper le souffle. Dans ces instants de présent vécu jusqu’à la moelle, elle nous fait toucher à l’éternité. […] Ici, rien qui brille en une inélégante apparence, mais une lumière qui vient du fond du coeur. D’ailleurs, J. Hurel sait aussi bien faire chanter la flûte en bois que la flûte en métal. Une anticommerciale au talent infini. [de uma crítica feita no site de uma loja de discos…]
Juliette Hurel é, sem dúvida, uma lenda viva e é francesa. Como não poderia deixar de ser, o seu talento foi, portanto, ignorado pelas maiores orquestras francesas! Já sabíamos disso. Com Hurel, cada som é um mundo, mimado, amado. Seu fraseado é incrivelmente elegante. Nestes momentos do presente vividos até ao âmago, aproxima-nos da eternidade. […] Aqui nada brilha numa aparência deselegante, mas sim uma luz que vem do fundo do coração. Além disso, J. Hurel sabe fazer a flauta de madeira cantar tão bem quanto a flauta de metal. Um anticomercial com talento infinito.
Hurel is an award-winning musician who has collaborated with similarly decorated musicians such as Pierre Boulez, Martha Argerich, Shlomo Mintz, Gidon Kremer and Claire Désert, among many others. As a soloist Hurel has appeared with Les Siècles, Tokyo Metropolitan Symphony Orchestra, and the Montreal Orchestre Métropolitain.
Hurel é uma artista premiada que colaborou com músicos com condecorações semelhantes, como Pierre Boulez, Martha Argerich, Shlomo Mintz, Gidon Kremer e Claire Désert, entre muitos outros. Como solista, Hurel se apresentou com Les Siècles, Tokyo Metropolitan Symphony Orchestra e Montreal Orchester Métropolitain.
A série “Great Pianists of the 20th Century”, lançada em 1999, juntou grandes gravações de 72 pianistas: algumas muito conhecidas e reeditadas como Arrau tocando Beethoven, Larrocha tocando Albéniz etc.; outras que não são tão fáceis de se encontrar, como é o caso da Fantasia de Schumann por Freire ou destas várias gravações feitas por Robert Casadesus entre 1947 e 1963.
A comparação entre os franceses Robert Casadesus e Alfred Cortot serve como ilustração do fato de que grandes figuras artísticas resistem à categorização em “escolas”. Enquanto Cortot buscava nas obras o que era mais romântico e frequentemente se movia por inspirações momentâneas, Casadesus, pelo contrário, buscava projetar a estrutura e a lógica interna de cada obra.
Então Cortot, assim como Guiomar Novaes (brasileira com educação em grande medida francesa), ambos se destacavam em suas interpretações de Chopin e Schumann. Já Casadesus, com sua elegência e clareza – mas também com momentos de brilho pianístico – talvez tenha sido o maior intérprete de Scarlatti e Rameau da sua época. Na mesma Paris onde vivia Casadesus, o crítico musical francês Claude Rostand escrevia sobre Domenico Scarlatti:
Apesar da liberdade, fantasia e humor impulsivo que caracterizam Scarlatti – na alegria como na emoção -, suas sonatas seguem um modelo mais ou menos constante. Nessas centenas de sonatas, as dificuldades técnicas não são objetivos em si mesmos: nenhuma ostentação, muita elegância. Quanto à invenção rítmica, ela é inesgotável, o que torna ainda mais notável o fato das sonatas jamais tatearem a confusão, mas serem sempre de uma naturalidade e transparência jamais igualada. (Rostand, 1950, Les chefs-d’œuvre du piano, tradução especial para este blog)
Casadesus também gravou muito Mozart, ausente nesta coleção, e Beethoven, que aparece com uma sonata do seu opus 2 dedicado a Haydn. Ela é tocada aqui com menos arroubos sentimentais do que nas interpretações de Arrau ou Pollini: mesmo no movimento lento “Largo apassionato”, Casadesus privilegia – como antes no Scarlatti – a elegância, característica importante do chamado classicismo vienense.
E Casadesus tocava, claro, a música dos compositores franceses que ele conheceu pessoalmente: Fauré, Debussy, Ravel. Embora o som do Concerto para mão esquerda de Ravel – com o grande maestro Eugene Ormandy – denuncie que a gravação é antiga e em mono (1947), ainda assim é muito interessante ouvirmos um pianista que conheceu bem o compositor: após o primeiro contato em 1922 quando Ravel ouviu Casadesus tocar o Gaspard de la nuit, os dois fizeram uma turnê em 1923 na Espanha e Inglaterra, não tenho certeza se a dois pianos ou se com Ravel regendo. Foram anos de amizade que tornaram Casadesus, por motivos óbvios, um intérprete respeitado das obras de Ravel.
Great Pianists of the Century – Robert Casadesus (1899-1972) CD1 Jean-Philippe Rameau:
1. Gavotte
2. Le Rappel des Oiseaux
3. Les Sauvages
4. Les Niais de Sologne
Johann Sebastian Bach:
5-12. French Suite No. 6 in E, BWV 817
Domenico Scarlatti:
13. Sonata in E, K. 380
14. Sonata in A, K. 533
15. Sonata in D, K. 23
16. Sonata in G, K. 14
17. Sonata in B Minor, K. 27
18. Sonata in D, K. 430
Ludwig van Beethoven:
19-22. Sonata in A, Op. 2 No. 2
CD2 Claude Debussy:
En blanc et noir (For 2 Pianos, with Gaby Casadesus)
1. Avec Emportement
2. Lent. Sombre
3. Scherzando
Gabriel Fauré:
4-9. Dolly Suite, Op. 56
10. Prélude in D-flat, Op. 103 No. 1
11. Prélude in G Minor, Op. 103 No. 3
12. Prélude in D Minor, Op. 103 No. 5
13. Nocturne No. 7 in C-sharp Minor, Op. 74
14. Barcarolle No. 5 in F-sharp Minor, Op. 66
15. Impromptu No. 5 in F-sharp Minor, Op. 102
Maurice Ravel:
16. Piano Concerto in D “For the left hand”
The Philadelphia Orchestra, Conductor: Eugene Ormandy
Aqui em casa gostamos de comida chinesa e pedimos pelo aplicativo – eu adoro frango xadrez. Mas, gostamos mesmo é dos biscoitos da sorte. Adoramos essas frases minúsculas de ‘sabedoria chinesa’, como a maravilhosa: O segredo da longevidade é comer a metade, andar o dobro e rir o triplo’!
Se está ali, escrito, não é segredo, mas chegou apenas no seu biscoito da sorte. Parece algo que foi feito só para você. Ah, depois dessa, só pedimos meias-porções, andamos até a entrada do condomínio para buscar a comida e rimos à beça, especialmente de nós mesmos.
Bom, alegria mesmo nos deu foi esse álbum da postagem, música da Belle Époque, cheia de charme e elegância, de virtuosismo e melodias inesquecíveis. Os compositores franceses desse período, início do século 20, escreveram ou transcreveram muita música linda para duo de pianos ou piano a quatro mãos. Eu adoro esse tipo de repertório e já andei postando alguns discos dessa estirpe por aqui. Esse é de 2010, mas só agora cruzou comigo. Eu já conhecia os intérpretes, que são irmãos, mas não os havia ouvido como um duo.
Karin Lechner nasceu em Buenos Aires, Argentina. Ela passou a maior parte de sua juventude em Caracas, Venezuela, onde começou seus estudos musicais com sua mãe, Lyl Tiempo. Ela fez sua primeira aparição pública aos cinco anos de idade, e sua estreia com orquestra quando tinha 11 anos.
Mudou-se para a Europa e continuou seus estudos de piano com Maria Curcio e Pierre Sancan e também recebeu conselhos musicais de Martha Argerich, Nelson Freire, Daniel Barenboim, Nikita Magaloff e Rafael Orozco.
Sergio Tiempo fez sua estreia profissional no Amsterdam Concertgebouw aos quatorze anos, e logo se tornou internacionalmente conhecido por sua energia bruta e versatilidade musical, de Brahms a Villa-Lobos e Ginastera.
Nascido em Caracas, Venezuela, Sergio Tiempo iniciou seus estudos de piano com sua mãe, Lyl Tiempo. Enquanto esteve na Fondazione per il Pianoforte em Como, Itália, trabalhou com Dimitri Bashkirov, Fou Tsong, Murray Perahia e Dietrich Fischer-Dieskau. Ele recebeu orientação musical frequente, assim como conselhos de Martha Argerich e Nelson Freire e se apresenta regularmente com o conterrâneo e amigo Gustavo Dudamel.
O repertório do disco é ótimo. Scaramuche é uma suíte escrita por Darius Milhaud, que andou pelo Brasil como adido cultural da Embaixada Francesa, e essa experiência pode ser ouvida no terceiro e último movimento da suíte.
Depois temos transcrições da Segunda Suíte do balé Daphnis et Chloé, de Maurice Ravel, feitas por Lucien Garban, que era editor de música na editora Durand e foi amigo de Ravel por toda a vida.
No centro do disco uma peça para piano a quatro mãos, a Suíte Dolly, de Gabriel Fauré, famosa por sua inspiração no universo das crianças e que termina em um tour de force, Le pas espagnol, um enorme sucesso aqui em casa.
Depois dois noturnos de Debussy – Nuages e Fètes – transcritos para duo de pianos por Ravel. E para completar esse lindo disco, La valse, também de Ravel, em uma transcrição para duo de pianos pelo próprio compositor.
Seção “The Book is on the Table”: …without doubt one of the most electrifying recordings of four-hand piano music I have ever heard. Fauré’s Dolly is invested with a subtly expressive detail that makes you listen with fresh ears to this well-worn favourite… La valse is a thrilling tour de force. Gramophone Magazine January 2010
Do site da gravadora: It is always a musical highlight when both brother and sister join forces to offer us a truly virtuosic but also highly inspired moment of music. Their first album for avanticlassic focuses on one of the most interesting musical periods in France history: La Belle Époque. With Scaramouche from Darius Milhaud, Daphnis and Chloé by Maurice Ravel, Dolly by Gabriel Fauré, two Nocturnes from Debussy and a haunting la Valse from Maurice Ravel, they chose an inspired program displaying the intimacy, the magic, but also the fascinating musical concepts arising from this culturally rich era.
Un album entièrement français… Claude Debussy e Francis Poulenc contribuíram imensamente para estabelecer a identidade musical francesa, compondo música que é a um só tempo refinada, emotiva, mas também com espaço para gaiatice, ironia. E foram inovadores, verdadeiramente criativos.
A primeira vez que ouvi a sonata para violoncelo e piano de Debussy foi no disco de Rostropovich e Britten. Depois, a ouvi novamente, ao lado das suas outras sonatas, no disco da Philips, com Gendron, Grumiaux e o resto da gang. Eu gosto muito dessas obras, em particular da sonata para flauta, viola e harpa.
A música de Poulenc eu descobri um pouco mais tarde, mas agora está sempre presente em minhas playslists. A sua sonata para violino, assim como a sonata para violoncelo, está entre as minhas preferidas, mas Poulenc também compôs lindas sonatas com instrumentos de sopro que vale a pena explorar.
Esse disco todo francês, tem por intérpretes dois expoentes de uma nova geração de músicos franceses que assegura uma continuidade de excelência musical. Jean-Guihen Queyras é violoncelista de primeira e Alexandre Tharaud pianista que tem no repertório bem mais do que só música francesa. Os dois músicos já andaram por aqui, visitando a terrinha, e se você tiver a oportunidade, vá vê-los.
Não deixe de se deliciar com as duas sonatas e também com as outras peças que completam o disco. A valsa ‘La plus que lente’, uma versão para violoncelo e piano da conhecida peça para piano. Do lado mais exótico temos a bagatela de Poulenc, que é seguida pela linda serenata. Um álbum para ser saboreado…
Conheci a sonata de Poulenc graças ao Alexandre, que acredito (embora ainda não tenha conseguido fazê-lo admitir) deve ter aprendido a tocar essa música antes de começar a andar; ela parece fluir de seus dedos como se fosse uma segunda natureza. JG Queyras
Quando Maurizio Pollini completou 70 anos, a DG fez-lhe esta homenagem em 3 CDs. A boa curiosidade que são seleções pessoais do pianista de suas gravações para a Deutsche Grammophon: de Petrushka de Stravinsky e Estudos de Chopin a concertos de Beethoven e Mozart. Também inclui sua primeira e rara gravação de sua premiada performance do Primeiro Concerto para Piano de Chopin em Varsóvia, em 1960. Ganhei este álbum de alguém — desculpe, esqueci de quem. Os 3 CDs vêm acoplados num um livro de capa dura colorido de 120 páginas, com muitas fotos e a discografia completa de Pollini na DG. Para um fã do pianista, imperdível é pouco.
Aliás, em junho deste ano, o grande pianista nos deu um belo susto. Aos 81 anos, ele esqueceu da obra que estava tocando e se atrapalhou totalmente. Pior, passou a tocar uma que viria depois e passou longe de seus habituais e altíssimos padrões de interpretação. Tudo aconteceu no imenso Royal Festival Hall, do Southbank Center, local onde vi Pollini tocar esplendidamente em fevereiro de 2014. A primeira peça do programa, o Arabesque de Schumann, foi interpretada lindamente de memória, mas em seguida, em vez da anunciada Fantasia de Schumann, ele começou uma Mazurka de Chopin, que deveria vir no segundo bloco. Ele pareceu se perder (ou possivelmente lembrou de que estava na peça errada) e de repente parou e saiu do palco por alguns minutos. Voltou com uma partitura da Fantasia de Schumann e começou a tocá-la, mas continuou folheando as páginas aparentemente ao acaso. Algumas das páginas estavam soltas e foram parar no chão, então ele caiu em verdadeira confusão, muitas vezes parando e arruinando qualquer senso de fluxo da música. Deve ter sido muito triste de assistir. Pollini sempre foi perfeito, imaculado, dando grande sentido a cada nota. Na segunda metade, um vira-páginas esteve presente e a execução foi muito mais parecida com o que temos experimentado com ele nos últimos anos. Foi certamente uma bela execução, mas também com algumas notas erradas e passagens confusas. Ele toca há décadas de memória, sempre. É claro que ele foi aplaudido de pé, mas nenhum bis foi oferecido. A experiência deve tê-lo abalado.
Para tirar o gosto amargo do parágrafo acima, coloco aqui o texto que publiquei em meu perfil do Facebook logo após ver Pollini p0wela primeira vez ao vivo em 18 de fevereiro de 2014:
“Hoje foi um dia especialíssimo e irrepetível — quem sabe? — em Londres. Eu e Elena assistimos ao concerto de Maurizio Pollini no Royal Festival Hall, sala principal do Southbank Center. O programa era vasto, mas centrado em peças de Chopin e Debussy. Ele tocou o primeiro livro dos prelúdios do francês e peças esparsas do primeiro. O concerto foi dedicado por Pollini à memória de Claudio Abbado. Talvez isso explique a recolocação no programa da Sonata nº 2 para piano, Op. 35, cujo terceiro movimento é a célebre Marcha Fúnebre. Tudo isso contribuiu para que a eletricidade estivesse no ar. Mas talvez o melhor seja passar a palavra para a Elena, que não tinha tido ainda muito contato com Pollini, enquanto que eu o conheço desde os anos 70, chamo-o de deus no PQP Bach e considero-o um dos maiores artistas vivos de nosso planeta, tão vulgar. No intervalo, após uma série de Chopins, a Elena já me dizia: “Ele tem altíssima cultura musical e concisão. Enquanto o ouvia, pensava em diversas formas de reciclagem: ecológica, emocional, psíquica… Sua interpretação é a de um asceta que pode tudo, mas demonstra humildade e grandeza em trabalhar apenas para a música. Pollini não fica jogando rubatos e efeitos fáceis para o próprio brilho, mas me fez rezar e chorar. Que humanidade, que sabedoria! Depois desse concerto, minha vida não será a mesma”. Foi a primeira vez que vi Pollini em ação, após ouvir dúzias de seus discos. Acho que não vou esquecer da emoção puramente musical — pois ela existe, como não? — de ouvir meu pianista predileto. Para Pollini ser absolutamente fabuloso, só falta o que não quero que aconteça e que já ocorreu com Abbado.
Stravinsky / Chopin / Beethoven / Webern / Liszt / Debussy / Mozart / Bach: The Art of Maurizio Pollini
Three Movements From Petrushka
Composed By – Igor Stravinsky
1-1 Danse Russe: Allegro Giusto 2:32
1-2 Chez Petrouchka 4:18
1-3 Le Semaine Grasse: Con Moto – Allegretto – Tempo Giusto – Agitato 8:28
12 Etudes, Op.25
Composed By – Frédéric Chopin
1-4 No: 1 In A Flat Major: Allegro Sostenuto 2:13
1-5 No: 2 In F Minor: Presto 1:27
1-6 No: 3 In F Major: Allegro 1:53
1-7 No: 4 In A Minor: Agitato 1:41
1-8 No: 5 In E Minor: Vivace 2:56
1-9 No: 6 In G Sharp Minor: Allegro 2:04
1-10 No: 7 In C Sharp Minor: Lento 4:52
1-11 No: 8 In D Flat Major: Vivace 1:04
1-12 No: 9 In G Flat Major: Allegro Assai 0:57
1-13 No: 10 In B Minor: Allegro Con Fuoco 3:58
1-14 No: 11 In A Minor: Lento – Allegro Con Brio 3:32
1-15 No: 12 In C Minor: Molto Allegro, Con Fuoco 2:31
Piano Sonata No: 32 In C Minor, Op.111
Composed By – Ludwig van Beethoven
1-16 Maestoso – Allegro Con Brio Ed Appassionato 8:47
1-17 Arietta: Adagio Molto Semplice E Cantabile 17:22
Variations For Piano, Op.27
Composed By – Anton Webern
1-18 Sehr Maassig 1:53
1-19 Sehr Schnell 0:40
1-20 Ruhig Fliessend 3:26
2-1 Polonaise In F Sharp Minor, Op.44 – Tempo Di Polacca-Doppio Movimento, Tempo Di Mazurka-Tempo I
Composed By – Frédéric Chopin
10:51
2-2 Polonaise In A Flat Major, Op.53 “Heroic” – Maestoso
Composed By – Frédéric Chopin
7:02
Piano Concerto No: 5 In E Flat Major, Op. 73 “Emperor”
Composed By – Ludwig van Beethoven
Conductor – Karl Böhm
Orchestra – Wiener Philharmoniker
2-3 Allegro 20:28
2-4 Adagio Un Poco Mosso – Attaca 8:02
2-5 Rondo: Allegro 10:15
2-6 La Lugubre Gondola I, S200 No: 1
Composed By – Franz Liszt
4:04
2-7 R.W. – Venezia, S201
Composed By – Franz Liszt
3:45
Preludes, Book 1
Composed By – Claude Debussy
2-8 VI: Des Pas Sur La Neige. Triste Et Lent. 3:45
2-9 Vii: Ce Qu’A Vu Le Vent D’Ouest. Anime Et Tumultueux. 3:06
2-10 X: La Cathedrale Engloutie Profondement Calme 6:10
Piano Concerto No: 24 In C Minor, K. 491
Cadenza – Salvatore Sciarrino
Composed By – Wolfgang Amadeus Mozart
Leader – Maurizio Pollini
Orchestra – Wiener Philharmoniker
3-1 Allegro 12:33
3-2 Larghetto 8:12
3-3 Allegretto 9:23
The Well-Tempered Clavier, Book 1 – “Prelude And Fugue In C Sharp Minor”, Bwv 849
Composed By – Johann Sebastian Bach
3-4 Praeludium IV 2:43
3-5 Fuga IV 4:48
The Well-Tempered Clavier, Book 1 – “Prelude And Fugue In G Major”, Bwv 860
Composed By – Johann Sebastian Bach
3-6 Praeludium XV 0:57
3-7 Fuga XV 2:52
Piano Concerto No: 1 In E Minor, Op. 11
Composed By – Frédéric Chopin
Conductor – Jerzy Katlewicz
Orchestra – Warsaw Philharmonic Orchestra*
3-8 Allegro Maestoso 16:10
3-9 Romance: Larghetto 9:44
3-10 Rondo: Vivace 9:32
Conductor – Jerzy Katlewicz (faixas: CD 3 (8 to 10)), Karl Böhm (faixas: CD 2 (3 to 5))
Orchestra – Warsaw Philharmonic Orchestra* (faixas: CD 3 (8 to 10)), Wiener Philharmoniker (faixas: CD 2 (3 to 5); CD 3 (1 to 3))
Piano – Maurizio Pollini (faixas: All Tracks)
Admiradores do canto coral, o post de hoje é para vocês. Nada mais, nada menos que uma caixa com 6 cds trazendo o crème de la crème do trabalho que o regente Eric Ericson desenvolveu ao longo de décadas à frente de dois coros na capital sueca: o Coro da Rádio de Estocolmo (hoje Coro da Rádio Sueca) e o Coro de Câmara de Estocolmo, fundado por ele.
Correndo o risco de soar exagerado, essa caixinha é o tipo de coisa que eu botaria na sonda Voyager para que os habitantes extraterrestres do cosmos soubessem que, apesar de ter dado um tanto errado como espécie, a humanidade teve seus momentos de extrema beleza, de uma verdade essencial. Um troço assim como aquele gol do Maradona contra os ingleses em 86, a Annunziata de Antonello da Messina ou o filé à francesa do Degrau.
Não sei bem explicar o porquê, tem alguma coisa na música coral que me pega fundo na alma. Talvez seja algo verdadeiramente animal, instintivo – nos sentimos tocados quando ouvimos nossos semelhantes emitindo sons em conjunto. As Paixões de Bach, a Nona de Beethoven, o Réquiem de Mozart, para ficar só em algumas das mais consagradas páginas do repertório de concerto, todas têm aquele(s) momento(s) em que o coro descortina sua avalanche sonora e a gente se agarra na cadeira, como que soterrado por tamanha beleza, tamanho feito humano. A voz humana tem esse poder, mexe com a gente, sei lá, em nível celular…
Pois esta caixinha de seis discos faz um voo panorâmico amplo, percorrendo mais de cinco séculos de música coral europeia: de Thomas Tallis (1505?-1585) a Krzystof Penderecki (1933-2020). Os seis discos são divididos em dois trios: os três primeiros levam o nome de Cinco Séculos de Música Coral Europeia e trazem obras de: Badings, Bartók, Brahms, Britten, Byrd, Castiglioni, Debussy, Dowland, Edlund, Gastoldi, Gesualdo, Ligeti, Martin, Monteverdi, Morley, Petrassi, Pizzetti, Poulenc, Ravel, Reger, Rossini, Schönberg, R. Strauss e Tallis. Os três restantes, por sua vez, são agrupados como Música Coral Virtuosa e o repertório consiste em Jolivet, Martin, Messiaen, Monteverdi, Dallapiccola, Penderecki, Pizzeti, Poulenc, Reger, R. Strauss e Werle.
O texto de Michael Struck-Schloen sobre o repertório que integra o encarte é bem bom e vale a extensa transcrição, em livre tradução deste blogueiro:
“Cinco séculos de música coral europeia (cds 1 – 3) A seleção estritamente pessoal de Ericson do vasto repertório de música coral europeia dos séculos XVI a XX para a lendária produção de 1978 da Electrola pode surpreender, a princípio, pelas muitas lacunas que contém. Não há nada da audaciosamente complexa música coral do Barroco Protestante, de Schütz a Bach, nem obras do início do período Romântico, quando grandes mestres como Schubert e Mendelssohn contribuíram para a era dourada da tradição coral burguesa. As obras desses discos não foram selecionadas tendo em mente uma completude enciclopédica, mas por sua flexibilidade e brilhantismo, por sua mistura de cores e suas características tonais gerais.
A riqueza e o desenvolvimento da tradição coral europeia são melhor iluminadas quando agrupamos as obras de acordo com sua procedência ao invés de seu período de composição. A música coral europeia foi profundamente influenciada desde o início pelo som e expressão específicos do idioma utilizado; e, no século XIX, as harmonias e ritmos típicos da música tradicional folclórica também começaram a desempenhar um papel importante. As Quatro Canções Folclóricas Eslovacas (1917) e as Canções Folclóricas Húngaras (1930), de Béla Bartók, demonstram bem essa tendência rumo a uma identificação nacional, bem como os primeiros coros Manhã e Noite, de György Ligeti, escritos em 1955, um ano antes de ele escapar do regime comunista de sua Hungria natal.
Os quatro exemplos de música sacra a capella alemã incluídos aqui merecem o título dado por Brahms de Quatro Canções Séries já somente pela escolha do texto. Em uma de inflação tanto da intensidade expressiva como dos recursos musicais utilizados – como demonstrado por Paz na Terra (1907) de Schönberg e o Moteto Alemão (1913) de Richard Strauss para quatro solistas e coral de 16 vozes –, havia também um claro renascimento no interesse por antigos ideais composicionais e estilísticos. Assim, a esparsa ttécnica coral praticada por Schütz e seus contemporâneos foi a principal fonte de inspiração para os Motetos, op. 110 de Max Reger, trabalhando com textos biblicos (1909), ou para Fest- e Gedenksprüche com que um Brahms de 56 anos de idade reconheceu a liberdade que a sua Hamburgo natal o concedeu.
A mais importante revolução na história da música vocal entre a Renascença e Schönberg foi a introdução na Itália, por volta de 1600, do canto solo dramático. Esse novo estilo, que atendia pelo despretensioso nome de “monodia”, pavimentou o caminho para o gênero inteiramente novo da ópera, e também diminuiu gradativamente a importância do coral de múltiplas vozes ao norte dos Alpes. Dessa forma, os madrigais de Gesualdo e Monteverdi, com suas harmonias distintas, são na verdade música solo em conjunto, fazendo deles terreno fértil para grupos vocais ágeis e esguios como o Coro de Câmara de Estocolmo. Enquanto as extravagantes Péchés de ma vieillesse de Rossini foram escritas para quarteto e octeto vocais, o quarteto desacompanhado teve que esperar até o século XX para ser redescoberto como um meio expressivo em si mesmo. Ildebrando Pizzeti faz uma referência deliberada ao contraponto renascentista em suas duas canções Sappho, de 1964, enquanto seu conterrâneo Goffredo Petrassi explora uma ampla gama de técnicas corais modernas, de glissandi ilustrativos ao caos dissonante, em seus corais Nonsense (publicados em 1952) baseados em versos de Edward Lear.
Em uma época em que uma carga expansiva e sobrecarregada de som era a ordem do dia no trabalho coral alemão, compositores franceses ofereceram narrativas caprichosas e a poesia colorida da natureza. As Trois Chansons (1915) de Maurice Ravel, com textos dele mesmo, são uma mistura cativante de atrevida sabedoria popular e engenhosa simplicidade, enquanto Debussy incorpora antigos textos franceses em uma linearidade arcaica em suas Trois Chansons de Charles d´Orléans (1904). As Chansons bretonnes do compositor holandês Henk Badings são brilhantes estudos vocais no idioma francês, enquanto os coros Ariel do grande compositor suíço Frank Martin são importantes estudos preliminares para sua ópera A Tempestade. Não bastassem esses belos trabalhos, é a cantata para 12 vozes A Figura Humana (1943), de Francis Poulenc, a obra-prima do grupo francês: oito complexos movimentos corais a partir de textos do poeta comunista francês Paul Eluards que são o grito pessoal de protesto do compositor contra a ocupação nazista na França.
A Itália não foi o único reduto da música vocal no limiar do Barroco: a Inglaterra também manteve um alto nível em seus diversos esplendorosos corais de catedrais e na exclusiva Capela Real em Londres. O grande Thomas Tallis e seu pupilo William Byrd foram ambos membros da Capela Real, e Tallis serviu sob nada menos que quatro monarcas: Henrique VIII, Eduardo VI, Maria I e Elizabeth I. Enquanto a fama de Tallis reside em sua música coral de ingenuidade contrapuntística e grande destreza técnica, Byrd e seu pupilo Thomas Morley possuíam um alcance mais amplo, escrevendo refinadas séries de madrigais em estilo italiano. Esses, ao lado das canções usualmente melancólicas de John Dowland (“Semper Dowland, semper dolens“), representam o florescer supremo da música vocal elizabetana. Após a música vocal inglesa atingir seu pico barroco com as obras de Henry Purcell, o “sceptrd` Isle” teve que esperar até o século XX com o compositor Benjamin Britten para renovar a bela tradição coral do país com peças como seu Hino para Santa Cecília (1942).
As obras do pós-guerra incluídas nessa seleção não se prestam a serem rotuladas em nenhum escaninho nacional. Elegi, do compositor e professor sueco Lars Edlund, a intrincada Lux aeterna (1966) para 16 vozes de György Ligeti e Gyro de Niccolò Castiglione representam a vanguarda internacional no período posterior à Segunda Guerra Mundial, em que estilos individuais contavam mais que escolas locais.
Música coral virtuosa (cds 4 – 6) Música coral virtuosa: o título da lendária produção da Electrola lançada em 1978 não foi escolhido apenas para ressaltar a perfeição técnica de tirar o fôlego do Coro da Rádio de Estocolmo e de seu irmão, o Coro de Câmara de Estocolmo. O termo “virtuoso” também se aplica ao repertório gravado: as peças corais italianas do cd 4 são ampla evidência dos tesouros aguardando descoberta por alguém com ouvidos tão sensíveis como Eric Ericson.
A abertura aqui fica por conta de Claudio Monteverdi, cuja Sestina, de 1614, sobre a morte de uma soprano da corte de Mantua ergue o sarrafo no que se refere ao estilo vocal italiano e à riqueza harmônica. Como muitos compositores italianos do século XX, de Gian Francesco Malipiero a Luca Lombardi, Luigi Dallapiccola sentiu-se em dívida para com o novo e expressivo estilo vocal introduzido por Monteverdi. Os dois primeiros corais de seus Sei cori di Michelangelo il Giovane (1933-36) apresentam, em sagaz antítese, os coros das esposas infelizes (malmaritate) e o dos maridos infelizes (malammogliati). Mais heterogêneos em estilo são os três coros que Ildebrando Pizzetti dedicaram ao Papa Pio DII em 1943, para marcar seu 25º jubileu como sumo pontífice. O noturno no poema Cade la sera de D´Annunzio se desdobra em largos arcos que preenchem o espaço tonal, enquanto os textos bíblicos inspiram Pizzetti a um estilo mais arcaico e austero.
Lars Johan Werle, que chefiou por muitos anos o departamento de música de câmara da Rádio Sueca, apresentou um cartão de visitas em nome da música coral sueca contemporânea – que somente desenvolveu uma tradição autônoma sob a influência de Ericson e seus corais – com seus Prelúdios Náuticos de 1970. O compositor adorna a combinação do tratamento experimental das vozes com idéias precisas sobre articulação e a transformação do texto em música com expressões marítimas. Em contraste com este virtuoso estudo, Krzystof Penderecki escreveu seu Stabat Mater em 1962, no antigo estilo de música sacra funeral. O gênio altamente individual com que Penderecki procede da abertura com sinos em uníssono, atravessando uma intrincada polifonia tecida por três corais de 16 vozes, até o casto, luminoso acorde em puro ré maior do Gloria lhe renderam o status de um dos principais compositores jovens da Polônia na estreia de sua Paixão de São Lucas, em 1966, da qual o Stabat Mater faz parte.
Um dos focos das atividades dos dois corais, ao lado da música italiana de Gabrieli a Dallapiccola, sempre foi o repertório alemão a capella do Romantismo tardio, cujos antípodas característicos foram Max Reger e Richard Srauss. Enquanto Reger trabalhou para promover uma renovação da música litúrgica protestante no espírito de Bach, como fica evidente em seus Acht Gesänge (“Oito hinos”) de 1914, Strauss enxergava no coral de múltiplas vozes um equivalente vocal do grandioso entrelaçamento de seu estilo instrumental. Essa tendência da música coral de Strauss está documentada nessas duas peças, separadas por quase quatro décadas: sua adaptação para o poema Der Abend (“A noite”, de 1897), de Friedrich Schiller, e a caprichosamente ocasional Die Göttin im Putzzimmer (“A deusa no quarto de limpeza”), de 1935, com seus ecos da bucólica ópera Daphne, de Strauss.
Nessa jornada de descoberta ao longo da música coral europeia do século XX, é sobre as obras-primas francesas de Poulanc e Jolivet, e particularmente de Messiaen e Martin, que os dois corais de Estocolmo lançaram uma nova luz. O espectro expressivo dos ciclos apresentados aqui é inegavelmente impressionante. Enquanto em 1936 – muito após o Grupo dos Seis ter rompido – Poulenc voltou mais uma vez à poesia de Apollinaire e Eluard em suas Sept chansons, André Jolivet combinou textos sacros egípcios, indianos, chineses, hebreus e gregos em seu Epithalame, escrito em 1953 para celebrar seu vigésimo aniversário de casamento de uma forma mística. Naquele mesmo 1936, Olivier Messiaen, então com 28 anos, juntou-se a Jolivet e Daniel Lesur para criar o grupo Jeune France (“França jovem”), mas logo partiria novamente em seu idiossincrático caminho, alternando entre catolicismo, técnicas avant-garde e uma filosofia totalizante da natureza. Em termos de conteúdo, os Cinq Rechants de Messiaen, ligados entre si por refrões (rechants), representam um homólogo vocal de sua Sinfonia Turangalîla, que parte da história de Tristão e Isolda para criar uma mitologia de amor, natureza e morte. Frank Martin, nascido em Genebra, por sua vez, considerou sua Missa (1922-6) como algo “que diz respeito apenas a mim e Deus”. É música de pureza espiritual e arcaica, cuja estreia Martin autorizou apenas quarenta anos depois de sua composição.”
Obs.: para não deixar esse post ainda mais comprido, a lista completa de movimentos, intérpretes e afins está fotografada, dentro do arquivo de download.
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Five centuries of European choral music
Disco 1 Johannes Brahms (1833-1897) Fest. und Gedenksprüche, op. 109
Max Reger (1873-1916) O Tod, wie bitter bist du, op 110/3
Arnold Schönberg (1874-1951) Friede auf Erden, op. 13
Richard Strauss (1864-1949) Deutsche Motette, op. 62
Lars Edlund (1922-2013) Elegi
Béla Bartók (1881-1945) Vier slowakische Volkslieder
Disco 2 Béla Bartók (1881-1945) Ungarische Volkslieder
György Ligeti (1923-2006) Morgen Nacht Lux aeterna
Vou ser claro: eu não gosto de Debussy. Claro que ouço com prazer a Suíte Bergamasque e as peças orquestrais La Mer e Nocturnes, mas aqueles prelúdios e coisinhas para piano… Aquelas brumas diáfanas… Olha, às vezes me parece que Debussy inventou a New Age, o gênero de música que serve para não ser ouvido; aquele que, quando termina, você nem se dá conta, pois não estava prestando nenhuma atenção mesmo!
Juntá-lo com Ravel parece óbvio para os fazedores de CDs, mas não para mim. Seus dois Concertos para Piano são notáveis. O Adagio Assai do primeiro é de morrer por ele! Eu amo Ravel! Então digo que — juro! — ouvi atentamente os dois concertos maravilhosamente interpretados pelo grande Zoltán Kocsis (1952–2016) e seu amigo Iván Fischer e não lembro nada, mas nada mesmo, da tal Fantasia. Vale (muito) pelo Ravel!
Ravel: Concertos para piano / Debussy: Fantasia para piano e orquestra
Piano Concerto in G Budapest Festival Orchestra, Iván Fischer & Zoltán Kocsis 19:48
1. Allegramente Budapest Festival Orchestra, Iván Fischer & Zoltán Kocsis 7:50
2. Adagio assai Budapest Festival Orchestra, Iván Fischer & Zoltán Kocsis 8:14
3.Presto Budapest Festival Orchestra, Iván Fischer & Zoltán Kocsis 3:44
Piano Concerto for the left hand in D Budapest Festival Orchestra, Iván Fischer & Zoltán Kocsis 17:38
4. Lento Budapest Festival Orchestra, Iván Fischer & Zoltán Kocsis 7:45
5. Allegro Budapest Festival Orchestra, Iván Fischer & Zoltán Kocsis 4:56
6. Tempo I Budapest Festival Orchestra, Iván Fischer & Zoltán Kocsis 4:56
Fantasy for piano and orchestra Budapest Festival Orchestra, Iván Fischer & Zoltán Kocsis 19:51
7. Andante ma non troppo-Allegro giusto Budapest Festival Orchestra, Iván Fischer & Zoltán Kocsis 6:28
8. Lento e molto espressivo Budapest Festival Orchestra, Iván Fischer & Zoltán Kocsis 7:06
9. Allegro molto Budapest Festival Orchestra, Iván Fischer & Zoltán Kocsis 6:16
Zoltán Kocsis, piano
Budapest Festival Orchestra
Iván Fischer
Recebi uma pasta musical que prometia – Concerto para Piano No. 2 de Brahms mais as Quatro Peças para Piano, op. 119 – um total de oito arquivos na pasta, um disco virtual com oito faixas, quatro do concerto e as outras quatro, das lindas peças. O selo holandês Brillant não é assim, uma Brastemp, mas traz ótimas gravações e oferece muitas outras possibilidades além do que costuma ser gravado de novo e de novo. A pianista Karin Lechner pode não ser muito conhecida, mas foi protegida de Martha Argerich e isso não costuma acontecer por nada. A expectativa pelo disco era alta, mas ao colocar para tocar a música que surgiu foi bem outra. Escondidas atrás das informações sobre a música de Brahms estava um recital para piano, música do período romântico. Pois a deliciosa dúvida imediatamente se pôs – o que e quem estaria tocando? Até parecia um desafio do PQP Bach.
As quatro primeiras faixas eram familiares, melodias bem conhecidas, mas eu não conseguia exatamente descobrir o que estava tocando. Depois de uma segunda audição, algumas cascatas de notas começaram a se revelar. Busquei a confirmação comparando com arquivos do meu acervo (atividade bem divertida) e assim surgiu o primeiro nome – Gnomenreigen, de Liszt. Eu confesso não ter muita paciência com Liszt, mas não faz muito tempo postei dois discos de Murray Perahia e lá estava a confirmação. Daí para descobrir que a faixa quatro era a Valsa Mefisto foi um pulo, pois ela também estava num disco que havia ouvido há pouco, um disco com valsas gravado pelo pianista Vassilis Varvareso. A terceira faixa foi a que mais me iludiu. Eu achava que poderia ser um noturno de Chopin, mas não conseguia nenhuma coincidência. Fui para outra parte do disco e duas faixas descobri de cara. Schubert, Impromptu, só faltou verificar qual deles. O disco mais a mão era uma gravação de Marc-André Hamelin. Logo em seguida a faixa oito, a Primeira Balada de Chopin, linda, como interpretada por Nobuyuki Tsujii. Fui dormir com o placar empatado, quatro a quatro. No outro dia, cedo, outra faixa logo se revelou, Arabesco de Schumann, como não percebi antes? Lá estava a prova, no disco do Fabrizio Chiovetta. Mas essas vitórias empalideciam quando eu pensava na terceira faixa, tão perto, mas tão distante. Dei tratos à bola, mas nada… Neste ponto me ocorreu algo, e você pode até dizer que foi golpe baixo, mas a curiosidade me aguçava e então, apelei: Google Search – Pesquisar uma música – e a peça revelou-se o Sonho de Amor, de Liszt. Como não pude ver antes? Como dizem os gringos, I was barking to the wrong tree, pensando que pudesse ser algo de Chopin. Aí o recital se revelou por inteiro. A primeira peça, o outro estudo de Liszt, também gravado pelo Perahia, Ruídos da Floresta, e a quinta faixa, outra famosíssima, Les Jeux d’eau à la Villa D’Este, que tenho tocada pelos dedos de outro grande pianista, Pierre-Laurent Aimard. De posse do programa, faltava descobrir o pianista, mas com a lista dos nomes das peças, não foi difícil localizar. O Google logo deu o serviço, a pianista é a ótima Klára Würtz, que já teve discos aqui por mim postados, num disco do mesmo selo Brillant, com o sugestivo nome ‘Música Romântica para Piano’. O tal disco da Klára tem, na verdade, mais duas faixas, outra de Chopin, a lindíssima Barcarolle, e uma peça virtuosística de Debussy, L’isle joyeuse. Eu já havia montado um disco paralelo com as peças interpretadas pelos outros pianistas, que havia usado como referência para confirmar as peças do disco misterioso. Gostei tanto da atividade que resolvi postar assim, o romântico recital de Klára Würtz e depois, tudo de novo, com os outros intérpretes. Fica com você ouvir tudo e depois me contar do que gostou mais…
Franz Liszt (1811 – 1886)
Estudo de Concerto No. 1 – Waldesrauschen
Estudo de Concerto No. 2 – Gnomenreigen
Liebestraume, S. 541 / R. 211
Valsa Mefisto No. 1
Années de pèlerinage, Livro 3, S. 163 – No. 4, Les jeux d’eau a la Villa d’Este
Franz Schubert (1797 – 1828)
Impromptu, D935, No. 3 em si bemol maior
Robert Schumann (1810 – 1856)
Arabeske em dó maior, Op. 18
Frédéric Chopin (1810 – 1849)
Ballade No. 1 em sol menor, Op. 23
Barcarolle em fá sustendo maior, Op. 60
Claude Debussy (1862 – 1918)
L’isle joyeuse
Klára Würtz, piano
Disco Paralelo
Franz Liszt (1811 – 1886)
Estudo de Concerto No. 1 – Waldesrauschen
Estudo de Concerto No. 2 – Gnomenreigen
Murray Perahia, piano
Liebestraume, S. 541 / R. 211
Nobuyuki Tsujii, piano
Valsa Mefisto No. 1
Vassilis Varvareso, piano
Années de pèlerinage, Livro 3, S. 163 – No. 4, Les jeux d’eau a la Villa d’Este
When chosen Gramophone’s Pick of the Month (May 2022), the review sums up: “Würtz’s performances have disarming freshness which throws our listening emphases away from her and back on to the music.” The Hungarian-born pianist Klára Würtz is based in The Netherlands and is best known for her numerous recordings on Brilliant Classics.
Imagine que você viajou ao Japão e, como eu, não fala nem lê japonês. Pois eis que na chegada a mala foi parar em Kobe e você está em Kyoto para visitar os famosos templos e ver as flores das cerejeiras nos diversos jardins espalhados pela cidade. Seguindo na minha imaginação, você e eu não vivemos sem música e todos os seus gadgets de ouvir música ficaram na mala. Sem esperar que delírios e tremedeiras ataquem, você compra um mp3 player que já vem com fones de ouvido e acessa alguma plataforma de streaming. Como a imaginação é minha, tudo vai bem, mas o visor do danado do aparelho teima em mostrar tudo na língua local. Como escolher a música? Mesmo sem ser algum gênio, uma boa saída é a escolha de capas e o disco escolhido é este:
O programa você já viu no alto da postagem…
Como não há tempo a perder, ouça a música: que surge maravilhosa. Logo na primeira faixa, uma linda e sinuosa melodia numa orquestra que vai se revelando aos poucos – Ravel e a Suíte da Mamãe Gansa.
A orquestra foi regida pelo maestro Charles Dutoit e todos os procedimentos se deram sob os olhares atentos do mentor do festival, o maestro Seiji Ozawa.
Essa gravação ocorreu durante o período da pandemia e revela o amor das pessoas envolvidas pela música. Você poderá acessar um site que descreve o desenrolar da gravação, mas veja as primeiras linhas:
It has been 10 days since the 2021 Seiji Ozawa Matsumoto Festival announced the cancellation of all performances. The performance of the Orchestra Concert Program B and it’s recording, which Festival Director Seiji Ozawa, Saito Kinen Orchestra, and all the staff have put their heart and soul into, has finally come true today.
Veja o programa e a tradução que o nosso Chat PQP fêz…
“Previously guest-conducting all over the world, in recent years, Ozawa stayed in his native Japan, where he established and led the Saito Kinen Festival, which was renamed the Seiji Ozawa Matsumoto Festival in his honor in 2015 — the same year when he was a Kennedy Center honoree.”
Celebramos mais um aniversário da Rainha, e ela não dá sinais de arrefecer o radiador. Vá lá, volta e meia a assombrosa octogenária nos dá um susto, só para daí voltar com tudo – cancelando um concerto ou outro, naturalmente, como sói acontecer desde que Martha é Martha – e nos fazer sonhar com mais uma década todinha (a nona de sua vida, e a oitava como pianista) com ela a forrar nossos tímpanos de deleite.
Já é meu bem surrado costume cantar-lhe parabéns pelo cumple e celebrar a data gaiatamente, compartilhando presentes gravados pela própria aniversariante. Marthinha segue tão ativa fazendo música quanto afastada dos estúdios, de modo que todos os novos registros de sua arte, como há já algumas décadas, provêm somente de apresentações ao vivo. Entre as adições à discografia marthinhiana lançadas desde o 5 de junho passado – as quais passo a lhes oferecer a seguir -, apenas uma foi gravada, conforme a promessa do título desta postagem, na nona década de vida da Rainha. Trata-se de um recital em duo com o violinista Renaud Capuçon, gravado no ano passado, em que ela nos serve algumas de suas especialidades: além de uma das sonatas de Schumann, que a mantém entre os poucos grandes intérpretes a prestigiá-las em
seu repertório, ela demonstra seguir afiada como sempre na realização das eletrizantes partes pianísticas da “Kreutzer” e da sonata de Franck.
Robert Alexander SCHUMANN (1810-1856) Sonata para violino e piano no. 1 em Lá menor, Op. 105
1 – Mit leidenschaftlichem Ausdruck
2 – Allegretto
3 – Lebhaft
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827) Sonata para violino e piano no. 9 em Lá maior, Op. 47, “Kreutzer”
4 – Adagio sostenuto – Presto
5 – Andante con variazioni
6 – Finale. Presto
César-Auguste-Jean-Guillaume-Hubert FRANCK (1822-1890) Sonata em Lá maior para violino e piano
7 – Allegretto ben moderato
8 – Allegro
9 – Recitativo – Fantasia. Ben moderato
10 – Allegretto poco mosso
Renaud Capuçon, violino
Gravado ao vivo no Grand Théâtre de Provence em Aix-en Provence (França) em 22 de abril de 2022.
Para esta postagem comemorativa dos 100 anos de nascimento de György Ligeti imaginei uma reunião de amigos, de pessoas com muitas afinidades que se encontram para um animado papo…
É claro, deve estar presente a música do homenageado. Mas, optei por trazer algumas de suas composições misturadas a peças de outros compositores que lhe fazem, assim, companhia. Imagino que se eles estivessem todos reunidos (quem sabe?) estariam batendo papo, trocando figurinhas.
Começo com um disco curto de um jovem pianista – Alim Beisembayev – que ganhou o Leeds Interational Piano Competition em 2021. Andrew ficou aMa(n)zed com os dotes pianísticos do Alim enquanto regia a régia RPO na linda Rapsódia sobre um tema de Paganini, do Sergei Rachmaninov – feito que lhe rendeu a Gold Medal do concurso. Nascido no Cazaquistão no apagar das luzes do século passado, Beisembayev já tem um carreira de pianista consolidada e um disco comercial com os endiabrados estudos para piano de Liszt.
Neste disco (associado ao concurso) ele mostra suas credenciais tocando três lindas sonatas de Scarlatti, duas peças de Miroirs de Maurice Ravel e três estudos para piano do nosso homenageado. É interessante ver a música de Ligeti ao lado de peças de compositores que contribuíram enormemente para o desenvolvimento da técnica de tocar instrumentos com teclado. Mesmo tendo apenas três dos estudos de Ligeti neste disco, já dá para se ter uma ideia do escopo da criatividade do sujeito. Cordes à vide é o segundo estudo do primeiro livro e é estranhamente sereno, calmo e lembra o universo de Debussy. Depois deste momento de reflexão, dois estudos do segundo livro que levam a técnica de piano ao extremo. Der Zauberlehrling (O Aprendiz de Feiticeiro) e L’escalier du diable (que dispensa tradução) são estudos que dão nós nos dedos dos pianistas e deixam todos (inclusive os ouvintes) sem fôlego.
O segundo disco da postagem foi gravado ao vivo (há palmas no final dos números musicais, mas as gravações são impecáveis) na série Wigmore Hall Live no concerto do famoso Arditti String Quartet, cuja identificação com a música moderna é notória. Para este recital eles escolheram quartetos de Conlon Nancarrow, Henri Dutilleux e o Segundo Quarteto de Ligeti. O disco é realmente muito intenso, mas uma audição cuidadosa, de mente aberta às novidades, pode render muitos bons frutos. Desses dois ‘vizinhos’ de Ligeti, Nancarrow é possivelmente o menos conhecido, mas desfrutava um enorme reconhecimento do György. Veja o que ele disse sobre Conlon Nanacarrow: This music is the greatest discover since Webern and Ives… his music is so utmost original, enjoyable, constructive and at the same time emotional… for me it’s the best music of any living composer. […] para mim, é a melhor música de qualquer compositor vivo.
Na apresentação do disco, o quarteto de Ligeti é considerado a peça mais difícil. But while both of these works are undeniably impressive for the great difficulties they present, the tour de force of this recording is György Ligeti’s enormously demanding String Quartet No. 2 (1968), a masterpiece of extended string techniques and sonorities that is a bold continuation of the explorations of Béla Bartók. O ‘tour de force’ deste disco é o terrivelmente exigente Quarteto de Cordas No. 2 (1968) de Ligeti, uma obra de técnicas e sonoridades de cordas levadas ao extremo e é uma ousada continuação dos avanços feitos por Béla Bartók.
Ligeti foi um compositor de música para piano, que ele tocava com uma técnica inadequada, como ele mesmo afirmou. Esta técnica inadequada aliada a uma imaginação prodigiosa o fez produzir peças que o colocam como mestre na linha de grandes compositores para piano, como Chopin, Liszt e Debussy.
Antes de Chopin os estudos para piano (Czerny, Moschelles, por exemplo) eram peças que tinham caráter técnico e visavam os estudantes de piano. Schumann e (principalmente) Chopin levaram o gênero a outro nível, devido à qualidade artística das obras que criaram.
Assim, o último disco da postagem coloca Ligeti em companhia destes dois gigantes, Chopin e Debussy, sem contar três lindas peças de Nikolai Kapustin. Dora Deliyska é uma ótima pianista que também é uma artista versátil e interessante. Ela tem criado projetos que resultam em discos como este, um lançamento recente. Inspirada nas muitas coleções de 24 peças, ela escolheu entre as obras desses quatro compositores – Chopin, Debussy, Ligeti e Kapustin – uma coleção de 12 estudos e 12 prelúdios, criando assim o orgânico programa do disco – Études & Préludes.
A contribuição de Ligeti está na primeira metade do programa – quatro estudos, três dos quais já apresentados no disco do Alim Beisembayev. Você poderá ouvi-los na sequência integrada aos outros estudos dos outros compositores, mas também poderá perceber as nuances entre as diferentes interpretações dos dois pianistas. O quarto estudo é do primeiro livro e chama-se Fanfares. Deve ser tocado tão presto quanto possível, vivacissimo! Em um outro livreto este estudo é caracterizado como uma furious piece, baseado em um ostinato (teimosias) e está relacionado com o Trio para Violino, Trompa e Piano, escrito uns anos antes, em homenagem à Brahms. Resolvi incluir este disco na postagem pelo Ligeti ao lado dos outros compositores, mas também pela criatividade da pianista Dora Deliyska.
Sempre é bom voltar a Debussy, não acham? É um compositor que sempre me tranquiliza, ajuda a controlar minha ansiedade e a encarar o estresse diário. Lembro que quando comprei o meu primeiro disco com suas obras, exatamente ‘La Mer’, na já histórica versão de Pierre Boulez com a Philharmonia Orchestra, ouvi várias vezes seguidas sozinho em casa, imaginando sempre uma praia com suas ondas e arrebentações. Foi muito intenso, confesso. Morava sozinho na cidade grande, quase não tinha amigos se não aqueles do trabalho, então essa música me ajudou a combater a solidão, e a aquietar minha mente.
A bela versão que ora vos trago é a do experiente Emmanuel Krivine, lançada em 2018, que aqui dirige a excelente ‘Orchestre National de France’, ou seja, uma gravação com forte sotaque francês, afinal temos um compositor, um regente e uma orquestra franceses. Vale e muito a pena conferir esse registro. Como já comentei em outras postagens, a versão de Boulez continuará sendo a minha preferida, por diversos motivos, um deles citado acima, foi um disco fundamental em determinada fase de minha vida, o ouvi muito. Mas obviamente estou, e sempre estarei aberto a novas possibilidades e alternativas.
Espero que apreciem. É música para ser degustada preferencialmente sentados em uma confortável poltrona, de olhos fechados, ouvindo cada nota e imaginando o mar. Ou então, sentados a beira mar, observando as ondas.
La Mer (Revised 1909 Version)
1 I. De L’Aube À Midi Sur La Mer : Très Lent
2 II. Jeux De Vagues : Allegro
3 III. Dialogue Du Vent Et De La Mer : Animé Et Tumultueux
Images
4 I. Gigues
5.II. Iberia a. Par Les Rues Et Par Les Chemins
6 II. Iberia b. Les Parfums De La Nuit
7 II. Iberia c. Le Matin D’Un Jour De Fête
8 III. Rondes De Printemps
La Mer (Original 1905 Version)
9 III. Dialogue Du Vent Et De La Mer (Excerpt With Fanfare)
Orchestre National de France
Emmanuel Krivine – Conductor
Neste mês dedicado a Sergei Rachmaninoff, compositor romântico tardio e também grande virtuose do piano, recordaremos alguns outros pianistas do século passado que, de uma maneira ou de outra, cruzaram suas trajetórias com as do homenageado. O pianista de hoje é Shura Cherkassky (1909 – 1995): embora mais de 30 anos mais jovem que Sergei, eles têm em comum o fato de terem saído da Rússia na década de 1910 em meio às turbulências da 1ª Guerra e da Revolução. O corpo dos dois saiu da Rússia, mas a alma continuou profundamente russa, fazendo um tipo de música característica das expressões do romantismo tardio na Europa Oriental, como veremos a seguir.
A mãe de Shura, Lydia Cherkassky, era uma pianista conhecida em São Petersburgo, tendo tocado para Tchaikovsky, que aliás era um compositor importante no repertório de Shura, não só com seu famoso concertos mas também com peças para piano solo pouco tocadas por outros pianistas. Cherkassky foi, portanto, o continuador de uma certa tradição pianística da Europa Oriental, não só por suas origens russas mas também como aluno do polonês Josef Hofmann (1876-1957). Hofmann foi um dos pianistas mais célebres do mundo na virada do século XIX para o XX, embora por volta de 1930 sua prodigiosa técnica já não fosse a mesma devido ao alcoolismo, o que significa que poucas gravações fazem jus ao seu talento. Em 1909, Rachmaninoff dedicou seu 3º Concerto – o mais difícil dos quatro – para Hofmann. Anos depois, constatando o declínio do polonês, Rach afirmou: “Hofmann ainda é um grande … o maior pianista vivo se ele estiver sóbrio e em forma. Se não for o caso, é impossível reconhecer o antigo Hofmann.” O polonês, por sua vez, foi aluno de Anton Grigoryevich Rubinstein (1829-1894), pianista russo que foi frequentemente considerado o maior do mundo em sua época, além de compor cinco concertos para piano quase esquecidos hoje em dia. Anton Rubinstein, aliás, não era parente de Arthur Rubinstein, embora ambos tivessem origens judaicas. (Para um comentário sobre a “escola” dos alunos de Anton Rubinstein, confira o interessantíssima postagem do colega Alex aqui).
A partir de várias resenhas em jornais e outros textos do século XIX, o crítico Harold C. Schonberg, no livro The Great Pianists (1963), resume que Anton Rubinstein tocava com “extraordinária amplitude, vitalidade e virilidade, imensa sonoridade e grandiosidade”. Características também do romantismo tardio de Rachmaninoff, e que tinham como tradição mais ou menos rival o pianismo francês de compositores como Debussy, Fauré, Saint-Saëns e Ravel. Estes últimos evitavam as sonoridades exageradamente barulhentas – notem a quantidade de expressões masculinas na descrição de Harold Schonberg, muitas delas caberiam em um anúncio daquele remédio que os Generais brasileiros adoram – e se associaram a grandes intérpretes do início do século como Alfred Cortot, Ricardo Viñes, o próprio Saint-Saëns e muitas mulheres, incluindo Guiomar Novaes, Marguerite Long e Clara Haskil.
Mas o pianista do dia, de certa forma herdeiro daquela tradição romântica russa/polonesa, é Cherkassky, que foi um grande intérprete das obras de Rach (aqui) e também de uma pequena fantasia chamada Caleidoscópio, composta por Hofmann:
O que mais me interessa neste disco de hoje, registro de um recital de Cherkassky em Lugano (Suíça), é a sua reinvenção da sonata de um outro compositor romântico, Robert Schumann. Embora Shura também seja impecável em seu Debussy, Berg e Stravinsky – ou seja, ele não se limita como apenas um pianista romântico – o que me impressiona mesmo é a diversidade de emoções que ele extrai da 1ª Sonata de Schumann, já iniciando pelo sarcasmo das primeiras notas, seguido por alternâncias típicas de Schumann entre seriedade, melancolia e humor.
Robert Schumann foi um grande estudioso das obras de Bach e Beethoven mas, ao contrário deste último, ele não compôs sonatas para piano de grande invenção contrapontística em um estilo “maduro” no fim de sua vida. Se quisermos ouvir o Schumann maduro é melhor buscarmos outras obras como o o muito original concerto para violoncelo.
Talvez por isso, as três sonatas para piano de Schumann raramente (pra não dizer: nunca) são tocadas em bloco em um único recital ao vivo: ao contrário das sonatas de Beethoven, que mostram as mudanças no percurso do compositor, as de Schumann ficam nessa alternância de humores e sabores tipicamente românticos, sem apontar para uma evolução estilística. Se isso pode ser considerado um defeito, por outro lado é uma qualidade, sobretudo em nossos tempos já calejados quanto a essas ideias sobre evolução e progresso como o objetivo da humanidade, não é mesmo? Quando o progresso se mostra violento e sujo, sentimentos românticos parecem reaparecer com toda a força hipnotizante do som do piano de Cherkassky. Uma última observação: assim como Sviatoslav Richter (1915-1997), Cherkassky parecia detestar as gravações em estúdio, talvez porque sua arte – como a dos pianistas mais velhos Anton Rubinstein, Hofmann e Rach – tivesse esse aspecto tão importante da atração hipnótica sobre uma plateia presente.
Shura Cherkassky – Lugano, 1963 Felix Mendelssohn: Rondo Capriccioso in E major op. 14 Robert Schumann: Sonata no. 1 in F-sharp minor op. 11
I. Introduzione (Un poco adagio) – Allegro vivace; II. Andante cantabile; III. Scherzo e Intermezzo (Allegrissimo); IV. Finale (Allegro un poco maestoso) Alban Berg: Sonata op. 1 Claude Debussy: L’Isle joyeuse Igor Stravinsky: Trois mouvements de Petrouchka
I. Danses russes; II. Chez Petrouchka; III. La Semaine grasse Francis Poulenc: Toccata
Shura Cherkassky – piano
Recorded at Auditorio Radiotelevisione della Svizzera italiana, Lugano, 5/12/1963
Nesta postagem especial preparada para homenagear as mulheres nesta semana do Dia Universal da Mulher, escolhi algumas excelentes intérpretes que representam a enorme e inestimável contribuição delas para a música.
Começamos nosso programa com o Concerto para Marimba, escrito pelo jovem compositor norte-americano Kevin Puts. A solista chama-se Ji Su Jung, que foi a primeira percussionista a ganhar a prestigiosa bolsa Avery Fisher Career Grant. Formada pelo Peabody Institute, da Johns Hopkins University, e pela Yale School of Music, Ji Su Jung é agora uma solista requisitada universalmente e professora do Curtis Institute of Music e do Peabody Institute.
Sobre o Concerto, o compositor explicou como surgiu a inspiração: A melodia da abertura do Concerto foi provavelmente inspirada quando ouvi o aquecimento de um pianista no placo do Teatro Eastman enquanto por lá passava a caminho da aula. A tonalidade de mi bemol maior sempre me foi muito próxima devido à sua riqueza e também por aparecer com frequência nas obras de Mozart, em particular em dois de seus concertos para piano, que de certa forma serviram como modelo para a minha peça.
Ji Su Jung é acompanhada pela Baltimore Symphony Orchestra, regida pela maestrina Marin Alsop, que foi uma das primeiras a interpretar as obras de Kevin Puts.
Como eu gosto muito de ouvir o piano, na sequência teremos uma linda Sonata de Schubert interpretada pela maravilhosa pianista Maria João Pires.
Com uma carreira longa e de excelente qualidade, passou pelas gravadoras Denon e Erato e tem sido uma das estrelas do selo amarelo, Deutsche Grammophon. Esta sonata de Schubert é uma das mais belas e faz parte de um lançamento que reúne algumas obras de Schubert gravadas por Maria João Pires.
Para a última etapa da nossa compilação escolhi uma artista que chamou a atenção exatamente por desempenhar um papel que estava quase exclusivamente dominado por homens, interpretando grandes concertos para piano, como o Concerto em si bemol maior, de Brahms, o Concerto de Grieg, Concerto em mi bemol maior de Liszt e o Concerto em si bemol maior, de Tchaikovsky. Gina Bachauer nasceu em Atenas, de pais estrangeiros, e iniciou sua carreira na Grécia. Estudou em Paris com Alfred Cortot e nos anos 1930 trabalhou na França e na Suíça com Rachmaninov em seus Concertos para Piano. Ela tornou-se uma expoente nestes concertos, especialmente no de No. 3. Suas gravações para o selo Mercury são bastante conhecidas. Aqui podemos ouvir suas interpretações de algumas peças solo de Debussy e atuando como solista de um concerto de Mozart. A orquestra da gravação foi fundada pelo seu regente, Alec Sherman que foi o segundo marido de Gina Bachauer.
Mais uma vez a Terra está a completar uma volta em sua órbita celeste e nos aproximamos do fim deste peculiar ano de 2022. Alguns ciclos se completam, outros estão a vir, já anunciados. É um bom momento para, como Janus, olharmos para trás, considerando o que foi feito e desejarmos o que está chegando. Eu estou tentando criar espaço no presente para receber o que o futuro trará.
Passei em revista minha atividade no blog, entre 1 de dezembro de 2021 e 30 de novembro de 2022. Este ano não tive energia para verificar todas as publicações e limitei às que resultaram de meus próprios esforços. Estas postagens refletem meu envolvimento com música, que posso observar, é grande. Algumas delas foram fáceis de preparar, vindas de alguma boa inspiração, outras demandaram mais estudo e dedicação, mas todas me deram bastante prazer, ao longo do caminho. Prazer em ouvir a música, de eventualmente comparar com outras interpretações ou de seguir as direções que ela me apontava. Prazer também em burilar o texto, em catar as ilustrações e depois esperar que elas surgissem, no blog. Esperar os aguardados comentários, estes mais parcos do que eu gostaria. De qualquer forma, os que recebi ao longo deste período me pareceram sinceros e foi gratificante lê-los.
Olhar estas postagens mais uma vez me fez pensar o quanto é importante valorizar o tempo, que ouvir música demanda tempo. Talvez seja por isso que alguns de nós se agarre a um repertório mais restrito, voltando sempre aos mesmos intérpretes. Eu sou por demais curioso para isso, o que me força a constantemente abrir mão desse tipo de segurança, abrindo espaço para as novidades.
Neste período fiz 64 postagens e acabei selecionando uma playlist entre as peças que considerei representativas do total. Caso você tenha o tempo de ouvir, poderá se interessar em visitar a correspondente postagem e descobrir algumas outras novidades.
Três dessas postagens selecionadas são de nosso padroeiro, São Sebastião Ribeiro. Uma gravação estalando de nova das seis sonatas para cravo e violino, com o violinista Andoni Mercero e o cravista Alfonso Sebastián; um disco com cantatas para baixo interpretadas pelo (jovem) David Greco, acompanhado pelo Luthers Bach Ensemble, sob a direção de Tymen Jan Bronda; uma outra gravação (plena de reflexões feitas durante o afastamento social resultado da pandemia) das seis (maravilhosas) suítes para violoncelo pelo jovem e talentoso Bruno Philippe.
Duas postagens refletem essa minha busca por novidades. Assim, na minha playlist de Retrospectiva 2022 há duas peças que conheci este ano e que me impressionaram: num deles, o Concerto para Piano de Sir Michael Tippett, interpretado pelo veterano pianista Howard Shelley, com a Bournemouth Symphony Orchestra, regida pelo (late) Richard Hickox, num disco do selo Chandos, inglês em todas as instâncias; no outro, o Cantus Articus do compositor finlandês Einojuhani Rautavaara. A peça Cantus Articus foi a que me motivou investigar a música de Rautavaara e o disco também traz a sua Sinfonia No. 7 e o Concerto para flautas.
O repertório de música francesa dos séculos 19 e 20 aparece sempre nas minhas postagens e um exemplo é este disco de músicos poloneses (ótimos) tocando lindas peças de câmara com instrumentos de sopros, o Gruppo di Tempera. Veja o discreto charme deste La chaminée du roi René, de Darius Milhaud.
Outro exemplo é o disco Exotisme, sonorités pittoresques, com peças para piano solo ou a quatro mãos, interpretadas pelos ótimos Ludmilla Guilmaut e Jean-Noël Dubois. Uma mescla de música de compositores mais conhecidos com música de compositores que recebem menos exposição e que merecem maior divulgação. Muita alegria, charme e beleza, como num lindo buque de flores.
Cantores também me interessam muito e adorei ter conhecido o trabalho da mezzo-soprano Elisabeth Kulman cantando algumas canções de Mahler, acompanhada por um pequeno conjunto de músicos com o sugestivo nome Amarcord Wien.
Muito trabalho me deu a postagem das 40 árias, que passou incólume pelos nossos leitores. Muito trabalho, uma vez que ópera é um gênero musical que eu conheço pouco, mas muito prazer também em descobrir um pouco o sentido de tão belos momentos musicais. Para esta Retrospectiva 2022 escolhi algumas das árias que considerei mais emblemáticas. Entre elas Casta Diva, da ópera Norma, composta por Bellini, e Vissi d’arte, de Tosca, composta por Puccini.
Uma grata surpresa neste ano foi a descoberta da música para piano de Radamés Gnattali, num disco primoroso. O intérprete Luís Rabello é sobrinho do violonista Raphael Rabello e ótimo pianista.
Para completar essa retrospectiva, não poderia deixar de mencionar mais música barroca. Escolhi algumas sonatas de Scarlatti, parte da postagem de um disco da espetacular pianista Zhu Xiao-Mei e uma postagem dedicada ao Opus 3 de Vivaldi, pelo Concerto Italiano, sob a direção de Rinaldo Alessandrini. Esta coleção tem de especial o fato de que os concertos de Vivaldi estarem entremeados com algumas das suas transcrições feitas por Bach.
Johann Sebastian Bach (1685 – 1750)
Sonata No. 6 em sol maior, BWV1019
Allegro
Largo
Allegro
Adagio
Allegro
Andoni Mercero, violino
Alfonso Sebastián, cravo
Cantata BWV 82 ‘Ich habe genug’
Ich habe genug
Ich habe genug! Mein Trost ist nur allein
Schlummert ein, ihr matten Augen
Mein Gott! Wann kömmt das schöne
Ich freue mich auf meinen Tod
David Greco, baixo
Joanna Huszcza, violino
Amy Power, oboé
Luthers Bach Ensemble
Tymem Jan Bronda
Suíte para Violoncelo No. 6 in D major, BWV1012
Prélude
Allemande
Courante
Sarabande
Gavottes I & II
Gigue
Bruno Philippe, violoncelo
Michael Tippett (1905 – 1998)
Concerto para Piano e Orchestra
I Allegro non troppo
II Molto lento e tranquilo
III Vivace
Howard Shelley, piano
Bournemouth Symphony Orchestra
Richard Hickox
Darius Milhaud (1892 – 1962)
Le cheminée du Roi René, Op. 205
Cortege
Aubade
Jongleurs
La Maousinglade
Joutes sur l’arc
Chasse a Valabre
Madrigal – Nocturne
Gruppo di Tempera
Agnieszka Kopacka, piano
Agata Igras-Sawicka, flauta
Sebastian Aleksandrowicz, oboé
Adrian Janda, clarinete
Artur Kasperek, fagote
Tomasz Bińkowski, trompa
Gustav Mahler (1860 – 1911)
Ging heut morger übers Feld – Mahler (Lieder eines fahrenden Gesellen)
Ich atmet’ einen linden Duft – Rückert-Lieder
Blicke mir nicht in die Lieder – Rückert-Lieder
Liebst du um Schönheit – Rückert-Lieder
Adagietto – 4 movimento da Quinta Sinfonia
Elisabeth Kulman, mezzo-soprano
Amarcord Wien:
Tommaso Huber, acordeão
Sebastian Gürtler, violino
Michael Williams, violoncelo
Gerhard Muthspiel, contrabaixo
Einojuhani Rautavaara (1928 – 2016)
Cantus Arcticus, Op. 61 (Concerto para Pássaros e Orquestra)
Suo (Pântano)
Melankolia
Joutsenet muuttavat (Cisnes migrando)
Sinfonia Lahti
Osmo Vänskä
Claude Debussy (1862 – 1918)
Préludes, Livre 1, L. 117
Voiles
Ludmilla Guilmault, piano
Déodat de Séverac (1872 – 1921)
En Vacances, Vol. 1
Où l’on entend une vieille boîte à musique
Valse romantique
Ludmilla Guilmault; Jean-Noël Dubois, piano
Gabriel Fauré (1845 – 1924)
Dolly, Op. 56
Le pas espagnol
Ludmilla Guilmault; Jean-Noël Dubois, piano
40 Best Arias
Bellini- Norma – Casta Diva – Maria Callas
Verdi- Rigoletto – La Donna E Mobile – Richard Leech
Bizet- Carmen – Habanera – ‘L’amour Est Un Oiseau Rebelle – Julia Migenes
Bizet- Carmen – Flower Song – Placido Domingo
Offenbach- Les Contes d’Hoffmann – Barcarolle – Jennifer Larmore & Hei-Kyung Hong
Mozart- Don Giovanni – Dalla Sua Pace – [Don Ottavio] – Hans-Peter Blochwitz
Delibes- Lakme – Flower Duet – [Lakme, Mallika]) – Jennifer Larmore & Hei-Kyung Hong
Verdi- La Traviata – Brindisi- Libiamo Ne’Lieti Calici – Neil Schicoff & Edita Gruberova
Puccini- La Boheme – Che Gelida Manina [Rodolfo]) – Jose Carreras
Puccini- La Boheme – Si. Mi Chiamano Mimi – Barbara Hendricks
Puccini- Tosca – Vissi D’arte’ [Tosca] – Kiri Te Kanawa
Puccini- Tosca – E Lucevan Le Stelle [Cavaradossi] – Placido Domingo
Gluck- Orphee Et Eurydice – J’ai Perdu Mon Eurydice – Susan Graham
Rossini- La Cenerentola – Non Piu Mesta [Angiolina] – Jennifer Larmore
Radamés Gnattali (1906 – 1988)
Rapsódia Brasileira
Poema de Fim de Tarde
Manhosamente
Uma rosa para o Pixinguinha
Luís Rabello, piano
Domenico Scarlatti (1685 – 1757)
Sonata em mi maior, K. 531 (L. 430)
Sonata em si menor, K. 87 (L. 33)
Sonata lá maior, K. 533 (L. 395)
Sonata em ré menor, K. 32 (L. 423)
Sonata em lá maior, K. 39 (L. 391)
Zhu Xiao-Mei, piano
Antonio Vivaldi (1678 – 1741)
Concerto No. 8 for 2 Violins in A Minor, Op. 3, RV 522
Allegro
Larghetto
Allegro
Johann Sebastian Bach (1685 – 1750)
Concerto for organ after RV 522 in A Minor, BWV 593
[Allegro]
Adagio
Allegro
Antonio Vivaldi (1678 – 1741)
Concerto No. 10 for 4 Violins in B Minor, Op. 3, RV 580
Allegro
Largo
Allegro
Johann Sebastian Bach (1685 – 1750)
Concerto for 4 Harpsichords after RV 580 in A Minor, BWV 1065
O ano que chega ao seu último mês viu o aniversário de 160 anos de Claude Debussy e tivemos nossa série de postagens dedicadas às suas obras. Você poderia até imaginar que depois de um fartum como aquele ficaríamos sem muita vontade de ouvir ou postar qualquer outra coisa dele… Mas, quando um disco deste calibre surge, toda lógica vai por água abaixo. O disco do selo Hyperion com o ótimo pianista Steven Osborne apresenta uma coleção de peças (quase) avulsas, que como o título do disco – Early and Late Piano Pieces – sugere, foram compostas no início de sua carreira ou nos seus últimos anos. Na verdade, essas últimas são uma minoria, mas isso não importa.
Entre as peças do início da carreira, temos algumas pequenas gemas, como os dois Arabescos, de 1890. Numa coleção como esta não poderia faltar Clair de lune, que aí está assim como suas peças irmãs, compondo a Suite bergamasque.
Você também vai encontrar uma coleção intitulada Images, que ao ser bem posteriormente publicada passou a ser conhecida como Images oubliées, para diferencia-la das outras duas coleções que levam este nome e foram publicadas durante a vida do compositor. Assim como as outras, esta coleção é um tríptico e a peça central, a Sarabande, aparece de maneira revisada em mais outra coleção, Pour le piano. Com tantas interpretações postadas recentemente, vale a pena buscar uma delas e comparar as duas versões.
Entre as peças compostas nos últimos anos da vida do compositor, há uma pequena valsa escrita em 1909 para homenagear Haydn, nos 200 anos de sua morte, assim como a Élégie e Les soirs illuminés par l’ardeur du charbon, todas com mais ou menos dois minutos de duração. Esta última foi composta para homenagear seu fornecedor de carvão, que foi providencial no especialmente difícil inverno de 1916-17.
O pianista Steven Osborne é figurinha constante nas postagens aqui e você poderá dar uma busca, caso ainda não tenha ouvido seus discos. Em particular, seus outros dois discos com música de Debussy para o selo Hyperion você poderá encontrar aqui e aqui.
Claude Debussy (1862 – 1918)
[1] – Danse bohemienne (1880)
[2] – Mazurka (1890)
[3-4] – Deux arabesques, L. 66 (1890)
Andantino
Allegretto scherzando
[5] – Rêverie (1890)
[6] – Valse romantique (L. 71) (1890)
[7] – Ballade slave (1890)
[8-11] – Suite Bergamasque (1890)
Prélude
Menuet
Clair de lune
Passepied
[12] – Danse (Tarentelle styrienne) (1890)
[13] – Nocturne (1892)
[14-16] – Images oubliées (1894)
Lent: Mélancolique et doux
Sarabande
Quelques aspects de ‘Nous n’irons plus au bois’ parce qu’il fait un temps insupportable (1917)
[17] – Morceau de concours (1904)
[18] – Hommage à Haydn (1909)
[19] – Le petit nègre (1909)
[20] – Pièce pour l’oeuvre du ‘Vêtement du blessé’ (1915)
[21] – Élégie, L138 (1915)
[22] – Les soirs illuminés par l’ardeur du charbon (1917)
A programme which bridges Debussy’s first work for piano (the Danse bohémienne, from 1880) and his last (Les soirs illuminés par l’ardeur du charbon, from 1917). Steven Osborne is equally responsive to the very different musical moods of both.
Ao encerrarmos esse jubileu de Debussy, nada mais natural que o próprio moço dê as caras por aqui para celebrar conosco, mesmo que seja só para apagar as luzes. Claude, afinal, deixou-nos um diminuto, mas historicamente inestimável legado fonográfico, que passaremos a compartilhar sem muitas delongas.
As delongas: além de quatro gravações acústicas de 1904, acompanhando ao piano a soprano escocesa Mary Garden (a primeira Mélisande), e que também encontrarão no disco a seguir, a discografia de Debussy como intérprete também inclui seis rolos registrados em Paris pelo processo Welte-Mignon (WM), com um total de quatorze peças:
WM 2733: Children’s Corner (a suíte completa);
WM 2734: D’un cahier d’esquisses;
WM 2735: La Soirée dans Grenade (de Estampes);
WM 2736: La plus que lente;
WM 2738: Danseuses de Delphes, La Cathédrale engloutie, La Danse de Puck (do primeiro livro de Préludes);
WM 2739: Le Vent dans la plaine, Minstrels (também do primeiro livro de Préludes).
Tais gravações, que datam provavelmente do final de 1912 ou do início de 1913, foram feitas para a firma alemã M. Welte & Söhne de Freiburg. Desde a primeira metade do século XIX, os Welte já se debruçavam sobre a criação e construção de instrumentos musicais automatizados e, na alvorada do século XX, já ofereciam alternativas ao limitado fonógrafo para a gravação e reprodução de música ao piano. Esmiuçar o funcionamento dessas complicadas engenhocas e discutir suas vantagens em relação às relativamente populares – e pouco acuradas – pianolas de então é algo que aumentaria por demais nossas já volumosas delongas, pelo que remeto aqueles entre vós outros que desejem saber mais delas para este vídeo em alemão, sem legendas em outros idiomas, mas suficientemente eloquente em sua dissecção dos aparatos WM.
Um fantasmagórico recital: “La plus que lente”, pelo próprio Debussy, tocada por um piano Steinway-Welte a partir de um dos rolos gravados em 1913.
Tampouco cabem em nossas delongas as muitas reservas que os conhecedores têm para com a capacidade do sistema Welte de registrar e reproduzir fidedignamente algo tão inefável e rico em nuances como uma interpretação ao piano. Fascinado que sou pelo simples privilégio de escutar algo muito parecido, inda que não idêntico, à concepção de um mestre da Música acerca da própria obra, admito minha incapacidade de lhe ter reservas. Por isso, enquanto os convido a evitarem anacronismos e a entenderem essas palavras dentro da devida perspectiva – no caso, os registros distorcidos e cheio de estalidos dos fonógrafos de então -, penso que aqui caiba o depoimento do próprio Claude-Achille, sempre um crítico incansável de si, de tudo e de todos, depois de ouvir a reprodução de seus próprios rolos feitos para a M. Welte & Söhne:
É impossível alcançar perfeição maior na reprodução [de música] do que com o aparato Welte. O que escutei maravilhou-me, e afirmo-o alegremente nessas poucas linhas”
Claude-Achille DEBUSSY (1862-1918)
Dos Prelúdios para piano, livro 1, L. 117:
1 – No. 1: Danseuses de Delphes
2 – No. 10: La cathédrale engloutie
3 – No. 11: La danse de Puck
4 – No. 12: Minstrels
5 – No. 3: Le vent dans la plaine
La plus que lente, valsa para piano, L. 121
6 – Lent (molto rubato con morbidezza)
De Estampes, para piano, L. 100:
7 – No. 2: La soirée dans Grenade
Children’s Corner, suíte para piano, L. 113
8 – Doctor Gradus ad Parnassum
9 – Jimbo’s Lullaby
10 – Serenade for the Doll
11 – The Snow is Dancing
12 – The Little Shepherd
13- Golliwog’s Cake Walk
… D’un cahier d’esquisses, para piano, L. 99
14 – Très lent
Claude Debussy, piano Welte-Mignon
Gravado pelo processo Welte para M. Welte & Söhne, entre 1912-1913
De Pelléas et Mélisande, ópera em cinco atos, L. 88:
15 – Mes longs cheveux
Das Ariettes oubliées, ciclo de canções para voz e piano, L. 60:
16 – Green
17 – L’ombre des Arbres
18 – Il pleure dans mon coeur
Mary Garden, soprano Claude Debussy, piano
Gravação fonográfica de 1904 para a Gramophone & Typewriter Co.
Ainda dentro das delongas, posso afirmar que há muito mais discussões – e textos, e tratados – acerca da relação pessoal e artística entre Claude Debussy e Maurice Ravel do que cabe nessa paupérrima postagem de moi. Se eles certamente nunca foram amigos, também é óbvio que mantiveram uma admiração artística mútua. Claude-Achille, e isso também é claro, não a demonstrou tão explicitamente quanto Maurice, que considerava Debussy “o gênio mais fenomenal da Música Francesa” e declarou que seu maior desejo seria “morrer delicadamente embalado pelo suave e voluptuoso colo do Prélude à l’après-midi d’un Faune” – o que não o impediu de também afirmar que, se pudesse, reorquestraria La Mer inteirinho!
Embora ambos tenham estudado piano no Conservatório de Paris, seus rumos ao teclado foram muito diferentes: Debussy poderia ter sido concertista se não desleixasse tanto seus estudos, e no final da vida ganhou alguns muito necessários francos editando o dedilhado de composições de Chopin para as Éditions Durand; Ravel, por sua vez, não deu ao instrumento, como intérprete, a mesma atenção que lhe dedicaria como compositor, criando algumas das mais suntuosas peças de seu repertório. Depois de ganhar um primeiro prêmio de piano em seus primeiros anos no Conservatório de Paris, suas pretensões tecladísticas perderam pujança e, salvo algumas recaídas – como a intenção de estrear ele próprio seu Concerto em Sol, tarefa de que acabou depois incumbindo a Marguerite Long, limitando-se a reger a orquestra em sua estreia -, ele nunca mais as alimentou. Não obstante, os Deutsche Marken da M. Welte & Söhne, ainda atraentes em 1913, no limiar da Grande Guerra, conseguiram convencê-lo a gravar-lhe alguns rolos, que ouvirão a seguir. Completa o disco a única gravação legítima de Ravel como regente, uma realização do Boléro pra lá de esquisita, e que muitos ouvintes já chamaram de incompetente. Ainda que o próprio compositor tenha desdenhado a obra, dando-lhe de ombros no melhor estilo gálico e chamando-a de “dezessete minutos inteiramente de tecido orquestral sem música, apenas um crescendo muito longo e gradual”, surpreende que ele tenha escolhido gravá-la com a orquestra Lamoureux logo depois – algumas fontes afirmam que foi um só dia depois – de Piero Coppola fazer a primeira de todas suas gravações, com a Grand Orchestre Symphonique du Gramophone, na presença do compositor. Quem sempre quis achar um calcanhar de Aquiles na armadura do genial Maurice, bem, terá talvez um prato transbordante na última faixa.
Joseph Maurice RAVEL (1875-1937)
Valses Nobles et Sentimentales, para piano
1 – Modéré, très franc
2 – Assez lent, avec une expression intense
3 – Modéré – Assez animé
4 – Presque lent, dans un sentiment intime
5 – Vif
6 – Moins vif
7 – Epilogue: Lent
Da Sonatine para piano:
8 – Modéré
9 – Mouvement de Menuet
De Miroirs, para piano:
10 – No. 2: Oiseaux tristes
11 – No. 5: La vallée des cloches
Pavane pour une infante défunte, para piano
12 – Assez doux, mais d’une sonorité large
Maurice Ravel, piano Gravadas em Paris pelo processo Welte-Mignon, 1913 (faixas 1-9), e em Londres pelo processo Duo-Art, 1922 (10-12)
Boléro,para orquestra
13 – Tempo di bolero moderato assai
Orchestre Lamoureux Maurice Ravel, regência Gravado em Paris em janeiro de 1930
Igor Stravinsky, que viveu até a década de 70 e nos pode, por isso, parecer por demais contemporâneo, entra nesse nosso rolê não só por também ter gravado rolos, mas também por ter sido amigo de Debussy, como inequivocamente atestam tanto a dedicatória da terceira peça da suíte En Blanc et Noir (“À mon ami Igor Stravinsky”) quanto a fotografia a seguir, tirada no apartamento de Claude-Achille em 1910:
O maniacamente incansável Stravinsky, que tanto cartaz fizera durante a Belle Époque com suas partituras para os Ballets Russes de Diaghilev, tentou durante os anos 20 uma carreira como compositor-virtuose, parindo intrincadas peças para exibir-se, e que, por isso mesmo, relutava em levar à prensa e ao conhecimento de potenciais rivais. Curioso e multiúso que era, interessou-se pelos pianos automáticos a ponto de compor uma peça, incompatível com mãos humanas, especificamente para a pianola, e a gravar algumas de suas composições para concorrentes da M. Welte & Söhne: a parisiense Pleyel (que lançou uma pianola chamada, sem surpresa e criatividade, Pleyela) e a nova-iorquina Aeolian, patenteadora do processo Duo-Art, que viria a se tornar o mais popular de todos. No disco a seguir, ouvem-se as realizações de alguns dos milhares de rolos do imenso acervo do australiano Denis Condon (1933-2012), hoje albergado pela Universidade Stanford, com Stravinsky tocando a duas mãos sua Sonata de 1924 e depois, a quatro (por sobregravação, naturalmente), uma redução de seu Concerto para piano e sopros e outra de seu mais bem-sucedido balé, O Pássaro de Fogo.
Igor Feodorovich STRAVINSKY (1882-1971)
Sonata para piano (1924)
1 – ♩=112
2 – Adagietto
3 – ♩= 112
Do Concerto para piano e sopros (redução para piano a quatro mãos do próprio compositor):
4 – Largo
5 – “O Pássaro de Fogo”, balé completo (redução para piano do próprio compositor)
O catalão Ricard Viñes (1875-1943) foi contemporâneo de Ravel e Alfred Cortot nas classes de piano no Conservatório de Paris e participa de nossa homenagem a Debussy por muito bons motivos. Afinal, intérprete de muito sucesso e grande amigo de Claude-Achille, teve importância fundamental para que muitas de suas composições para o teclado obtivessem a atenção do público parisiense. Assim como Ravel (e, por um breve período, Stravinsky), Viñes foi membro muito ativo do célebre grupo Les Apaches, uma confraria de músicos dedicada à apresentação de novas composições e, sobretudo, à discussão e promoção de novas ideias musicais, e o principal responsável pela interlocução entre o grupo e Debussy, que, mais velho e um tanto blasé, tanto inspirava os Apaches quanto desdenhava os rumos que escolhiam.
Falando em desdém, Viñes – um homem extremamente vaidoso que adorava atenção e chuvas de confetes – nunca se interessou pela solidão dos estúdios e pelo então novo e bastante bizarro afã do processo de gravação. Somente no final da carreira rendeu-se ao dinheiro da HMV/His Master’s Voice e gravou a seleção a seguir, curiosa pelo repertório, que inclui peças de compositores sul-americanos muito pouco conhecidos. O que torna o disco impagável, no entanto, é o depoimento do pianista a Henri Malherbe, por ocasião do vigésimo aniversário do falecimento de Debussy (1938), e que tentei transcrever e traduzir do francês, mantendo seu tom coloquial (as repetidas referências a “Claude Debussy”, por exemplo, estão todas presentes no original):
Como posso falar de Claude Debussy, meu querido Henri Malherbe? Em primeiro lugar, não sou falante e, em segundo lugar, embora viva em Paris desde a minha infância, ainda tenho um leve sotaque espanhol do qual nunca consegui me livrar e, em terceiro lugar, tenho inúmeras lembranças de Claude Debussy, e não sei quais devo escolher dentre todas as que fluem em minha mente. Mas não posso recusar o pedido que você fez, caro amigo, para recordar e honrar a memória daquele glorioso músico cuja morte ocorreu há vinte anos, a quem eu tanto amava e a quem admirava mais do que a qualquer outro. Sou muito orgulhoso e eternamente grato a Claude Debussy por ele ter me escolhido para tocar as primeiras apresentações de quase todas as obras que ele escreveu para piano. Fui por muitos anos seu intérprete oficial, era conhecido como amigo e confidente de Claude Debussy. Ele me pediu para fazer as primeiras apresentações públicas de Prélude, Sarabande et Toccata, Pagodes, Jardins sous la pluie, La soirée dans Grenade, Masques, L’isle joyeuse, Reflets dans l’eau, Hommage à Rameau, Mouvement, Cloche à travers les feuilles, Et la lune descend sur le temple qui fut, Poissons d’or, etc. Esta última peça, Poissons d’or, foi até dedicada a mim. Fiquei ainda mais emocionado com a honra porque Claude Debussy nunca havia dedicado qualquer de suas obras a um pianista.
Uma noite, Debussy e Mme. Debussy me convidaram para jantar. Eu podia ver que ele estava agitado, envergonhado, e gesticulando para sua esposa. Ele era um amigo encantador, mas terrivelmente difícil de se conviver. Esperava uma reprimenda amigável, e aguardava com alguma apreensão o que ia acontecer, mas Debussy sentou-se ao piano e começou a tocar, no seu estilo flexível e aveludado, Poissons d’or. Então ele me contou, rindo-se, que a havia dedicado a mim. Agradeci, tomado de emoção. O único outro pianista a quem ele concedera essa distinção foi Chopin, a cuja memória ele dedicou uma coleção de peças para piano.
Claude Debussy era bastante inspirador, com sua cabeça grande, rosto magnificamente feio, sua testa estranha e saliente à maneira de Verlaine, e seus olhos felinos intimidantes olhando para você de baixo, com seu olhar bastante irônico e ambíguo. Essa imagem romântica lembrava algum condottière, ou se me permite a ousadia de dizer, algum ilustre bandoleiro calabrês.
Havia algo em Debussy – e mais de dois terços de sua obra testemunham isso -, algo mágico, algo extraordinariamente encantador, diáfano dizia-se, que vinha de outro mundo. A arte de Debussy era casada com os poderes da alma, como Stanislas Fumet afirmou sobre o Romantismo. Esse casamento místico dá à música de Claude Debussy seu caráter mais misterioso, essa nota de estranheza poética, que a tornava algo irreal, um antessabor do paraíso, se assim posso dizer, e um potencial de emoção persuasiva.
E não pense que Debussy fosse, de forma alguma, pesado ou austero. Em certos momentos, ele conseguia se divertir como criança.”
Giuseppe Domenico SCARLATTI (1685-1757)
1 – Sonata em Ré maior, K. 29 (L. 461)
Christoph Willibald GLUCK (1714-1787)
Arranjo para piano de Johannes Brahms (1833-1897)
De Iphigénie en Aulide, Wq. 40
2 – Gavotte
Manuel BLANCAFORT de Roselló (1897-1987)
De El parc d’atraccions: 4 – L’orgue dels cavallets
5 – Polca de l’equilibrista
Isaac Manuel Francisco ALBÉNIZ y Pascual (1860-1909)
Das Doce Piezas Características, Op. 92:
5 – No. 12: Torre Bermeja. Serenata.
Joaquín TURINA Pérez (1882-1949)
De Cuentos de España, Historia en siete cuadros, para piano, Op. 20:
6 – No. 3: Miramar (Valencia)
7 – No. 4: Dans les Jardins de Murcia
Claude DEBUSSY De Estampes, para piano, L. 100:
8 – No. 2: La soirée dans Grenade
De Images, livro II, L. 111:
9 – No. 3: Poissons d’Or
Aleksandr Porfiryevich BORODIN (1833-1887)
10 – Scherzo em Lá bemol maior para piano
Isaac ALBÉNIZ De Cantos de España, Op. 232:
11 – No. 2: Oriental
12 – No. 5: Seguidillas
Da Suite Española no. 1, Op. 47:
13 – Granada – Serenata
Manuel de FALLA y Matheu (1876-1946)
De El Amor Brujo: 14 – Calmo e Misterioso – El Aparecido
15 – Danza del Terror
16 – El Círculo Mágico (Romance del Pescador)
17 – A Medianoche: Los Sortilegios
18 – Danza Ritual del Fuego
Isaac ALBÉNIZ
De Deux Morceaux Caractéristiques, Op. 164:
19 – No. 2: Tango
20 – Célèbre Sérénade Espagnole, Op. 181
Pedro Humberto ALLENDE (1885-1959)
21-22 – Dos Tonadas De Carácter Popular Chileno
Carlos Félix LÓPEZ BUCHARDO (1881-1948)
23 – Bailecito
Cayetano TROIANI (1873-1942)
De Ritmos argentinos, para piano:
24 – No. 5: Milonga
25 – Ricard Viñes fala de Claude Debussy (1938)
FAIXAS-BÔNUS:
Claude DEBUSSY De Images, livro I, L. 110:
No. 2: Hommage à Rameau (incompleto, compassos 31-76)
Dos Douze Études para piano, L. 136:
No. 10: Pour les sonorités opposées (incompleto, compassos 31-75)
Enrique Granados (1867-1916) foi contemporâneo de Debussy e sua trajetória não tangenciou a do francês, a despeito de alguns anos passados em Paris, onde teve aulas privadas de piano, e do interesse comum pela música espanhola (que para Granados era paixão nativa, e para Debussy, inspiração tão exótica como a do gamelão indonésio que famosamente escutou na Exposição Universal de 1889). Ainda assim, decidi incluí-lo na homenagem a Claude-Achille, não só porque ele tinha um bigode tão frondoso quanto o do seu contemporâneo Viñes, ou por respeito a seu fim tão trágico, vitimado por um naufrágio decorrente dum torpedo alemão no Canal da Mancha. Granados aqui está, sobretudo, porque sua música é excelente, suas gravações são supimpas, e porque no disco a seguir os leitores-ouvintes poderão comparar a mesma composição – uma sonata de Scarlatti – gravada por Pantaléon Enrique tanto pelo processo Welte-Mignon quanto pelo fonógrafo, o que lhes permitirá (ou, pelo menos, assim espero) tirarem suas próprias conclusões acerca da capacidade do WM de registrar acuradamente as intenções do intérprete.
De Goyescas, Los Majos Enamorados, suíte para piano, Op. 11:
1 – No. 1: Los requiebros
2 – No. 2: Coloquio en la reja, duo de amor
3 – No. 3: El fandango de candil
4 – No. 4: Quejas, o La maja y el ruiseñor