Dois erros seguidos – no link e com a gravação – fizeram-me por esta postagem atrás de tapumes e republicá-la só depois de conferir várias vezes se tudo estava certo. Peço desculpas aos leitores-ouvintes, enquanto agradeço pela gentileza dos que souberam apontar os problemas com a civilidade que tanto apreciamos.
Juro que lhes queria trazer essa gravação para mostrar-lhes a tremenda musicalidade de Gidon Kremer a serviço do concerto de Beethoven na companhia dum conjunto quase camerístico, a Academy of St. Martin-in-the-Fields, sob o comando daquele que sempre deixa tudo melífluo e redondinho, o Neville Marriner. Só que a cadenza de Schnittke, esse fascinante espantalho, é meu verdadeiro, e ademais confesso motivo para trazer-lhes hoje Kremer e Marriner.
Nota-se, pelo incomum anúncio da cadenza tanto no título da postagem quanto na própria capa do CD, que ela não é tão só uma vinheta inserida para o virtuose demonstrar um tanto boçalmente suas malandragens. Essa nota de advertência, como se uma tarja preta fosse sobre entorpecentes, ou um tapa-sexo a cobrir as vergonhas do bom-gosto, a exercer marotamente o efeito contrário sobre aqueles atraídos por tudo que é maldito, tornou-se necessária pelo escândalo que ela causou, quando de sua primeira audição. À parte de algum interesse meio constrangido, devido mais à projeção de Schnittke como o mais conhecido compositor soviético pós-Shostakovich e como notório dissidente do regime que caminhava para o colapso, essa estranha criatura foi execrada, odiada e esculachada a ponto de “pichação!” ser uma das coisas mais gentis que se escreveu sobre ela. Encomendada ao compositor pelo próprio Kremer, foi aqui gravada uma vez e, salvo um que outro estrebucho ou gravação, abandonada ao oblívio.
A vida é curta, a Arte é longa e, ainda bem, aberta. O poliestilismo de Schnittke aqui está, cru e escarrado, sem dúvidas incongruente com a serenidade clássica do Beethoven que envolve suas cadenze, e recheada de citações explícitas de várias obras. Na minha desimportante opinião, ela comenta e transforma o concerto duma maneira sensacional, o que justifica a inclusão desta gravação em nosso repositório pequepiano. Se a odiarem, como ademais quase todo o resto do planeta, restar-lhes-á ao menos o passatempo de, ao passar o pente fino na pelagem da besta schnittkeana, identificar as obras citadas e mencioná-las nos comentários.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Concerto em Ré maior para violino e orquestra, Op. 61 Composto em 1806 Publicado em 1808 Dedicado a Stephan von Breuning
1 – Allegro ma non troppo
2 – Larghett0
3 – Rondo: Allegro
Gidon Kremer, violino
Academy of St. Martin-in-the-Fields Neville Marriner, regência
Sim, mais uma gravação do concerto para violino – fazer o quê, se eu o amo tanto quanto aquele quarto concerto? Cresci ouvindo as maravilhosas gravações de Oistrakh, enquanto conhecia outras não menos belas, como as de Ferras, Menuhin e Stern. Quando chegou Heifetz, a concorrência pareceu liquidada, e eu quase perfurei o CD daquela gravação com Munch de tanto que a escutei. Com o tempo, percebi que não havia concorrência, e sim alternativas ao que propôs o maior de todos os violinistas, e me permiti apreciar outras versões: Kremer, Mintz, Mutter. Aí vi que a turma da interpretação historicamente informada tinha feito uma gravação, mas não conhecia o violinista e, por mais que gostasse de Frans Brüggen regendo Bach e tivesse sua “Die Schöpfung” de Haydn sem parar em meu toca-discos laser, tinha dificuldades de imaginá-lo a conduzir aquela peça que aprendera a ouvir nos andamentos frenéticos do ídolo Jascha. Só muito tempo depois, depois de descobrir a maestria de Brüggen como acompanhador e suas estimulantes leituras para as sinfonias de Beethoven, e de escutar os ótimos registros de Thomas Zehetmair nas sonatas e partitas de J. S. Bach, que enfim me permiti experimentar aquele Op. 61 que deixara por tanto tempo de lado, e…
O que lhes posso dizer foi que me senti um completo idiota por não a ter escutado antes. Chamá-la de impecável, apesar de ser verdade, seria apenas parte dela. Há a um só tempo um senso de concisão e uma serenidade que não consigo comparar a qualquer outra, um acompanhamento tão preciso que faz a Orchestra of the 18th Century soar não como um conjunto, mas sim como um colorido órgão, e uma precisão de entonação e de graça rítmica que fazem Zehetmair me ser inconfundível. Há brilho nas cadenze – outra vez adaptadas daquelas, anabólicas e com tímpanos, que Beethoven escreveu para o arranjo pianístico deste concerto – e vários achados, como a transição do Larghetto para o faceiro rondó final. Escutem-na e, depois, venham juntar-se ao coro a me chamar de completo idiota, de idiota completo.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Romance no. 2 para violino e orquestra em Fá maior, Op. 50 Composto em 1798 Publicado em 1805
1 – Adagio cantabile
Romance no. 1 para violino e orquestra em Sol maior, Op. 40 Composto em 1802 Publicado em 1803
2 – Adagio cantabile
Concerto em Ré maior para violino e orquestra, Op. 61 Composto em 1806 Publicado em 1808 Dedicado a Stephan von Breuning
3 – Allegro ma non troppo
4 – Larghett0
5 – Rondo: Allegro
Thomas Zehetmair, violino Orchestra of the 18th Century Frans Brüggen, regência
Que coisa mais linda esta série que finalizamos hoje! O Ébène fecha sua integral de quartetos de Beethoven com o maravilhoso Op. 132, aqui interpretado — surpreendentemente — com lentidão digna de Celibidache. Parece há uma competição entre os quartetos: quem toca o Molto Adagio mais lentamente? Acho que o Ébène tem a liderança provisória com mais de um minuto de vantagem. Beethoven escreveu este movimento depois de se recuperar de uma doença grave que ele temia ser fatal porque havia sofrido com uma desordem intestinal durante todo o inverno de 1824. Ele escreveu na partitura: “Heiliger Dankgesang eines Genesenen et die Gottheit, in der lydischen Tonart ” (“Canção sagrada de ação de graças de um convalescente à Deidade, no modo lídio”). Após ouvir este Op. 132 por mais de quarenta anos, ele permanece assustadoramente bonito para mim. Ainda sou fascinado por sua construção e ainda me emociono com a oração do terceiro movimento, mesmo sendo ateu. Seus cinco movimentos em conjunto só se tornam mais intrigantes com o tempo.
Ludwig van Beethoven (1770-1827): Quartetos Nº 3, Op. 18 e 15, Op. 132 (Ébène/Paris)
1 String Quartet No. 3 in D Major, Op. 18 No. 3: I. Allegro 7:40
2 String Quartet No. 3 in D Major, Op. 18 No. 3: II. Andante con moto 8:19
3 String Quartet No. 3 in D Major, Op. 18 No. 3: III. Allegro 2:51
4 String Quartet No. 3 in D Major, Op. 18 No. 3: IV. Presto 6:17
5 String Quartet No. 15 in A Minor, Op. 132: I. Assai sostenuto – Allegro 9:55
6 String Quartet No. 15 in A Minor, Op. 132: II. Allegro ma non tanto 8:35
7 String Quartet No. 15 in A Minor, Op. 132: III. Molto adagio 20:59
8 String Quartet No. 15 in A Minor, Op. 132: IV. Alla marcia, assai vivace 2:12
9 String Quartet No. 15 in A Minor, Op. 132: V. Finale (Allegro appassionato) 6:40
Quatuor Ébène:
Pierre Colombet, violin
Gabriel Le Magadure, violin
Marie Chilemme, viola
Raphaël Merlin, violoncelo
Depois de amar as maravilhosas gravações de Leonidas Kavakos para as sonatas de Lud Van, iniciou-se uma espera que admito ter sido ansiosa em demasia por este seu concerto de Beethoven com os bávaros da Rádio. Fruto de sua atuação como artista-em-residência da Symphonieorchester des Bayerischen Rundfunks, doravante denominada SOBR, ela foi tão boa que rendeu, além do Op. 61, um delicioso registro do septeto Op. 20, que atesta o deleite que foi para alemães e grego fazer música no período. A SOBR, conjunto lapidado durante décadas por regentes do calibre de Jochum, Kubelík e Maazel, era então conduzida havia dezesseis anos pelo gigante Mariss Jansons, um grande formador de conjuntos, o que é facilmente percebido na resposta que ela dá a Kavakos em sua dupla tarefa de solista e regente. Os leitores-ouvintes que amam este concerto certamente perceberão que se trata de uma de suas mais longas interpretações em toda discografia, graças à escolha de andamentos muito comedidos que valorizam, assim como nas sonatas supracitadas, o belíssimo timbre de Kavakos, que saboreia sem pressa todos os fraseados. Acusaram-no de parir um concerto romantizado, no que eu o defendo: eu o achei muito clássico no respeito à partitura e na discrição dos contrastes dinâmicos, com toques românticos no uso do rubato e, como perceberão também, em várias notas longas, prolongadas ad libitum. As cadências foram adaptadas pelo solista a partir daquelas escrita por Beethoven para a versão pianística do concerto. A cadência principal, no primeiro movimento, chega a destoar da serenidade prevalecente com seu virtuosismo desenfreado, uma exibição quase boçal de técnica, como se Kavakos quisesse botar suas asinhas de mestre dos truques de fora depois de tantos minutos cantando com o arco. As demais são mais sossegadas e afeitas ao estilo da obra, e serão surpresas muito interessantes para aqueles que amam este concerto e o conhecem de cor. Trata-se dum registro a ser ouvido dentro do mesmo espírito daqueles últimos, visionários quartetos do Op. 130 em diante: sem pressa, sem comparações, e sem distratores mundanos.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Concerto em Ré maior para violino e orquestra, Op. 61 Composto em 1806 Publicado em 1808 Dedicado a Stephan von Breuning
1 – Allegro ma non troppo
2 – Larghett0
3 – Rondo: Allegro
Symphonieorchester des Bayerischen Rundfunks Leonidas Kavakos, violino e regência
Os três quartetos Razumovsky, Op. 59, são obras que Ludwig van Beethoven escreveu em 1806, como resultado de uma encomenda do embaixador russo em Viena, o conde Andreas Razumovsky. Neste Disco, estão os dois primeiros e o terceiro está aqui. O único pedido específico feito pelo conde Razumovsky era que as músicas folclóricas russas fossem apresentadas de maneira significativa na música. Beethoven atendeu a esse pedido em dois dos três quartetos, mas com melodias que são, como ele disse, temas russos “reais ou imitados”. Com a publicação dos quartetos Op. 59, Beethoven transformou o gênero do quarteto de cordas para fora do cenário de “câmara” para um palco maior. Cada um dos quartetos Op. 59 se destaca como um trabalho individual monumental, tanto em termos de tamanho literal quanto de alcance dramático.
Ludwig van Beethoven (1770-1827): Quartetos Nº 7 e 8, Op. 59, 1 e 2
[10:43] 01. Quatuor Ébène – Beethoven: String Quartet No. 7 in F Major, Op. 59 No. 1, “Razumovsky”: I. Allegro
[09:01] 02. Quatuor Ébène – Beethoven: String Quartet No. 7 in F Major, Op. 59 No. 1, “Razumovsky”: II. Allegretto vivace e sempre scherzando
[14:12] 03. Quatuor Ébène – Beethoven: String Quartet No. 7 in F Major, Op. 59 No. 1, “Razumovsky”: III. Adagio molto e mesto
[08:05] 04. Quatuor Ébène – Beethoven: String Quartet No. 7 in F Major, Op. 59 No. 1, “Razumovsky”: IV. Allegro (Russian Theme)
[09:58] 05. Quatuor Ébène – Beethoven: String Quartet No. 8 in E Minor, Op. 59 No. 2, “Razumovsky”: I. Allegro (SHRM 96/24)
[13:14] 06. Quatuor Ébène – Beethoven: String Quartet No. 8 in E Minor, Op. 59 No. 2, “Razumovsky”: II. Molto adagio
[06:59] 07. Quatuor Ébène – Beethoven: String Quartet No. 8 in E Minor, Op. 59 No. 2, “Razumovsky”: III. Allegretto
[05:42] 08. Quatuor Ébène – Beethoven: String Quartet No. 8 in E Minor, Op. 59 No. 2, “Razumovsky”: IV. Finale – Presto
Quatuor Ébène:
Pierre Colombet, violin
Gabriel Le Magadure, violin
Marie Chilemme, viola
Raphaël Merlin, violoncelo
Disso, e de muito mais, chamaram a delicada Op. 60, porque acharam que ela fora menos, e muito menor, do que esperavam duma sinfonia de Beethoven que viesse em seguida do portento da “Eroica”. A posteridade, por já conhecer a sinfonia seguinte, a impetuosa joia em Dó menor, considerou a Quarta uma obra menor, um bombom, uma bagatela entre duas obras de fôlego. A comparação atribuída a Schumann (“uma donzela grega entre dois gigantes nórdicos”) não contribuiu, infelizmente, para lhe melhorar a reputação entre um público a que, pelo jeito, apetecessem mais os colossos. Uma pena: essa sinfonia é um primor de concisão, um exercício radical de economia de meios que não tem tempo para, como sua predecessora, se deter em fugatos, e flui inexoravelmente, com um pulso crescente que se faz sentir inclusive em seu movimento lento, e até o moto perpétuo final. Se lhe tivessem ao menos arranjado um apelido grudento como “Sinfonia Solar” ou “a Radiante”, talvez ela fosse ouvida como merece. No entanto, como nem os editores se impressionaram com essa joia, e o próprio compositor perdeu-se no seu propósito, prometendo-a para um dedicatário, mas estreando-a pela orquestra dum outro, em mais um atrapalhado pregão de produtos beethovenianos, acabou por faltar-lhe uma alcunha à altura. “Pequena Notável”? Chamemo-la assim, e que alguma entre a dúzia de gravações que lhes alcanço a seguir possa fazer os leitores-ouvintes lhe darem o devido valor.
Sinfonia no. 4 em Si bemol maior, Op. 60 Composta em 1806 Publicada em 1812 Dedicada ao conde Franz von Oppersdorff
Aqui, só alegrias. Dois quartetos da época classicista de Beethoven e o último, quando ele já estava transformando o romantismo em algo muito pessoal. O Op. 18, publicado em 1801, são dois livros de três quartetos cada. São os primeiros seis quartetos de cordas de Beethoven. Eles foram compostos entre 1798 e 1800 por encomenda do príncipe Joseph Franz Maximilian Lobkowitz, que era o empregador de um amigo de Beethoven, o violinista Karl Amenda. Pensa-se que demonstrem seu domínio total do quarteto de cordas clássico desenvolvido por Joseph Haydn e Wolfgang Amadeus Mozart. Já o Op. 135 foi escrito em outubro de 1826 e foi o último grande trabalho que ele completou, o último dos últimos quartetos e a última grande obra de Beethoven. O 135 foi estreado pelo quarteto Schuppanzigh em março de 1828, um ano após a morte do compositor. O trabalho é menor em tempo do que os outros quartetos tardios. Sob os acordes lentos introdutórios do último movimento, Beethoven escreveu no manuscrito “Muß es sein?” (Deve ser?) Ao qual ele responde, com o tema principal mais rápido do movimento, “Es muß sein ” (Deve ser!). Todo o movimento é intitulado ” Der schwer gefaßte Entschluß ” (“A decisão difícil”).
Ludwig van Beethoven (1770-1827): Quartetos Nº 4, Op. 18, Nº 5, Op. 18 e Nº 16, Op. 135
Ludwig van Beethoven (1770 – 1827): Beethoven: String Quartet No. 4 in C Minor, Op. 18 No. 4:
1 Beethoven: String Quartet No. 4 in C Minor, Op. 18 No. 4: I. Allegro ma non tanto
2 Beethoven: String Quartet No. 4 in C Minor, Op. 18 No. 4: II. Scherzo (Andante scherzoso quasi allegretto)
3 Beethoven: String Quartet No. 4 in C Minor, Op. 18 No. 4: III. Menuetto (Allegretto)
4 Beethoven: String Quartet No. 4 in C Minor, Op. 18 No. 4: IV. Allegro
Beethoven: String Quartet No. 5 in A Major, Op. 18 No. 5:
5 Beethoven: String Quartet No. 5 in A Major, Op. 18 No. 5: I. Allegro
6 Beethoven: String Quartet No. 5 in A Major, Op. 18 No. 5: II. Menuetto
7 Beethoven: String Quartet No. 5 in A Major, Op. 18 No. 5: III. Andante cantabile
8 Beethoven: String Quartet No. 5 in A Major, Op. 18 No. 5: IV. Allegro
Beethoven: String Quartet No. 16 in F Major, Op. 135:
9 Beethoven: String Quartet No. 16 in F Major, Op. 135: I. Allegretto
10 Beethoven: String Quartet No. 16 in F Major, Op. 135: II. Vivace
11 Beethoven: String Quartet No. 16 in F Major, Op. 135: III. Lento assai, cantate et tranquillo
12 Beethoven: String Quartet No. 16 in F Major, Op. 135: IV. Grave ma non troppo tratto – Allegro
Quatuor Ébène:
Pierre Colombet, violin
Gabriel Le Magadure, violin
Marie Chilemme, viola
Raphaël Merlin, violoncelo
Acho que é a história natural do melômano: começas pelo que te é mais próximo, e depois expandes teus horizontes (ou não). Eu, que comecei torturando a família com um piano velho em casa, derretia em gozo com a literatura pianística que escutava na rádio e reescutava em fitas cassete (googleiem, garotada!) que da rádio gravava, e com o que conseguia nas esporádicas compras na loja de Shylock Simpson (porque minha adolescência, ahimè!, foi em cruzados). Enquanto isso, calculava a quantidade de encarnações que levaria para coordenar meus incapazes dedos a ponto de tocar aquela segunda Rapsódia Húngara de Liszt como Horowitz, ou desembrutecê-los a ponto fazer o piano cantar em pianíssimo com acompanhamento em pianissíssimo como Rubinstein fazia nos noturnos de Chopin.
Esse inexorável círculo vicioso de incompetência e frustração ao teclado, que foi de modo inapelável sepultado quando fui buscar uma profissão menos frustrante (no que também fracassei), abriu-me ao menos a porteira do conhecimento da música para piano e, posteriormente, para música COM piano – fosse em duos ou em conjuntos de câmara, e daí para a música de câmara e suas diversas combinações de instrumentos. Havia, no entanto, uma fronteira – aquela que não conseguia transpor de JEITO MANEIRA, a dos quartetos de cordas.
Por mais que tentasse, não conseguia escutá-los. Cheguei a pensar que fossem um gosto adquirido, feito chimarrão, dobradinha ou hákarl, mas não adiantava: não os compreendia. Aquelas cordas, que pareciam fanhosas ou estridentes se comparadas aos seus ricos naipes em orquestra, não me pareciam capazes de agradar. E já desistira do caso quando, na rádio, ouvi uma música irresistivelmente ebuliente. Contei suas partes: um violino, dois violinos, um violoncelo e uma viola. Eureka – um quarteto de cordas que me agradou! E não só isso, me deixou embevecido com sua energia maníaca e encerramento furioso – fui conferir, e o locutor me contou que aquele era o finale do Razumovsky no. 3, exatamente na primeira das gravações que lhes apresento agora.
Corri à loja, não à de Shylock Simpson, porque era careiro e cobrava em dólares, e ademais já quase não tinha mais lanches a sacrificar por gravações naquele mês. Meu destino era uma salinha subterrânea onde uma doce senhorinha, com a voz da Marge Simpson (talvez fosse parente de Shylock) e apropriadamente chamada Margarida, recebia-me com afeto e cafezinhos. Para lá me atirei porque lembrava-me de ter visto uma caixa de CDs com o nome de Beethoven e alguns cavalheiros japoneses a brandirem seus instrumentos. Acertei: era o Tokyo String Quartet, eles tocavam os Razumovsky e aquela caixa (saudades, RCA Victor Red Seal!) estava ao alcance de meu famélico orçamento.
Eu, que sempre temi que o feixe de laser do que chamada “toca-discos laser” acabasse por furar o CD, convenci-me do contrário, porque passei horas e dias a ouvir aquele fugato em loop e o CD aqui ainda está, tanto que eu o ripei para compartilhar com vocês. Depois de calejar os tímpanos com aquele movimento, aventurei-me nas outras faixas, enquanto aprendia que aqueles quartetos tinham o nome do embaixador russo, que para o agrado do tal Razumovsky tinham cada qual um tema russo (explícito em títulos de movimentos nos dois primeiros, e supostamente embutido no Andantino do terceiro), e que eram possivelmente os quartetos mais sinfônicos escritos até então – razão, talvez, deles terem me fisgado.
Adorei-os por muito tempo e, mesmo vindo a conhecer outras gravações, sempre guardei a melhor memória possível da leitura do Tokyo String Quartet. Bem mais tarde, quando eu já era um barbudo a pagar meus próprios boletos, veio à luz uma nova gravação dos mesmos quartetos com o mesmo conjunto, parcialmente renovado, e com dois daqueles cavalheiros nipônicos já bastante grisalhos. Um tanto cabreiro, gerei mais um boleto e levei-os para casa. Tudo muito diferente, melhor trabalhado, ataques menos agressivos, vibratos menos pungentes. Gostei tanto que, na dúvida entre qual das gravações eu lhes ofereceria, resolvi oferecer as duas, para que possam compará-las e que me façam saber o que acharam delas.
E o que acho hoje dos Razumovsky? Continuo a apreciá-los, e aquele fugato segue firme em minha lista de movimentos irresistíveis, mas hoje escuto mais os últimos quartetos de Beethoven. Talvez sejam meus próprios grisalhos – ou, então, seja a história natural do melômano.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Três quartetos para dois violinos, viola e violoncelo, Op. 59, “Razumovsky” Compostos em 1806 Publicados em 1808 Dedicados ao conde Andrei Kirillovich Razumovsky
No. 1 em Fá maior
1 – Allegro
2 – Allegretto vivace e sempre scherzando
3 – Adagio molto e mesto – attacca
4 – “Thème Russe”: Allegro
No. 2 em Mi menor
5 – Allegro
6 – Molto adagio (si tratta questo pezzo con molto di sentimento)
7 – Allegretto – Maggiore: Thème russe
8 – Finale. Presto
No. 3 em Dó maior
9 – Andante con moto – Allegro vivace
10 – Andante con moto quasi allegretto
11 – Menuetto (Grazioso)
12 – Allegro molto
Mais um ótimo CD desta série, este com quartetos das fases inicial e “middle” de Beethoven. Para este concerto em Melbourne, foram escolhidas três obras bastante contrastantes que permitiram ao quarteto explorar a notável amplitude e profundidade da escrita para cordas de Beethoven. No Op. 18, nº 2, há notável energia em todos os detalhes da música. Os episódios contrastantes do segundo movimento receberam bastante acentuados pelo primeiro violino, Pierre Colombet, enquanto a jocosidade haydniana do final foi perfeitamente realizada, com um toque esplêndido do violoncelista Raphaël Merlin.
O Op. 95, conhecido como “Serioso” tem uma arquitetura incomum. Destaca-se a ferocidade da abertura e a mudança de humor do final e seu fim abrupto foram muito bem trabalhados.
Para finalizar, temos o conhecido e amado Quarteto “Harp”, Op. 74. Numa palavra: o Ébène nos dá uma soberba execução desta linda peça.
Ludwig van Beethoven (1770-1827): Quartetos Nº 2, Op. 18, Nº 2, Nº 11, Op. 95 e Nº 10, Op. 74
Ludwig van Beethoven (1770 – 1827): Beethoven: String Quartet No. 2 in G Major, Op. 18 No. 2:
1 Beethoven: String Quartet No. 2 in G Major, Op. 18 No. 2: I. Allegro
2 Beethoven: String Quartet No. 2 in G Major, Op. 18 No. 2: II. Adagio cantabile – Allegro – Tempo I
3 Beethoven: String Quartet No. 2 in G Major, Op. 18 No. 2: III. Scherzo (Allegro)
4 Beethoven: String Quartet No. 2 in G Major, Op. 18 No. 2: IV. Allegro molto, quasi presto
Beethoven: String Quartet No. 11 in F Minor, Op. 95, “Quartetto serioso”:
5 Beethoven: String Quartet No. 11 in F Minor, Op. 95, “Quartetto serioso”: I. Allegro con brio
6 Beethoven: String Quartet No. 11 in F Minor, Op. 95, “Quartetto serioso”: II. Allegretto ma non troppo
7 Beethoven: String Quartet No. 11 in F Minor, Op. 95, “Quartetto serioso”: III. Allegro assai vivace, ma serioso
8 Beethoven: String Quartet No. 11 in F Minor, Op. 95, “Quartetto serioso”: IV. Larghetto espressivo – Allegretto agitato – Allegro
Beethoven: String Quartet No. 10 in E-Flat Major, Op. 74, “Harp”:
9 Beethoven: String Quartet No. 10 in E-Flat Major, Op. 74, “Harp”: I. Poco adagio – Allegro
10 Beethoven: String Quartet No. 10 in E-Flat Major, Op. 74, “Harp”: II. Adagio ma non troppo
11 Beethoven: String Quartet No. 10 in E-Flat Major, Op. 74, “Harp”: III. Presto
12 Beethoven: String Quartet No. 10 in E-Flat Major, Op. 74, “Harp”: IV. Allegretto con variazioni
Quatuor Ébène:
Pierre Colombet, violin
Gabriel Le Magadure, violin
Marie Chilemme, viola
Raphaël Merlin, violoncelo
Prometo que é a última postagem com o Op. 58 que eu tanto amo (enquanto também prometo que é minha última declaração de amor a ele), mas eu simplesmente não poderia seguir adiante nesta série sem mencionar as interpretações dessa obra a nós legadas pela inesquecível Guiomar Novaes (1894-1979). Não cogitara publicá-las aqui, pois elas já tinham sido escopo de duas postagens, uma do monge Ranulfus, outra do patrão PQP. Verifiquei, entretanto, que elas já não levavam a qualquer arquivo funcionante, de modo que resolvi restaurá-las e, de lambujem, publicar outras duas versões da genial Narizinho, ambas gravadasvivo em New York, e que vieram a público depois das postagens dos colegas: com a Filarmônica local sob George Szell, e com a American Symphony Orchestra (cria de Leopold Stokowski) sob André Previn. Ranulfus comentou o quão impressionante é que uma mesma pianista consiga dar interpretações tão distintas e consistentemente magníficas de uma obra tão rica, o que reitero, em dobro, depois de ouvir os registros de Guiomar ao vivo, ambos com a mesma precisão e expressividade das gravações vienenses e com uma verve que, sinceramente, não ouvi em qualquer das versões em estúdio. Escutem e ardam em brasas de dor ao perceberem o quanto Guiomar nos faz falta!
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Concerto para piano e orquestra no. 4 em Sol maior, Op. 58 Composto entre 1804-1807 Publicado em 1808 Dedicado ao arquiduque Rudolph da Áustria
Mais um baita disco. Vou ter que procurar sinônimos para meus elogios a fim de não cansar vocês, meus tesouros. O Ébène é sensacional e as obras… O que dizer? O Razumovsky Nº 3 era o quarteto de Beethoven preferido de meu pai. É lindo mesmo. O que são o segundo e quarto movimentos? E o Op. 130, ainda acompanhado pela Grosse fuge da qual jamais deveria ter se separado? Um disco incrível. O Op. 130 foi estreado lançado em março de 1826 pelo Quarteto Schuppanzigh e dedicado a Nikolai Galitzin em sua publicação em 1827, ano da morte de Beethoven.
Ludwig van Beethoven (1770-1827): Quartetos Nros. 9, Op. 59, Nº 3, 13. Op. 130 e Grosse fuge Op. 133
1. Beethoven: String Quartet No. 9 in C Major, Op. 59 No. 3, “Razumovsky”: I. Introduzione (Andante con moto – Allegro vivace) (11:15)
2. Beethoven: String Quartet No. 9 in C Major, Op. 59 No. 3, “Razumovsky”: II. Andante con moto quasi allegretto (9:26)
3. Beethoven: String Quartet No. 9 in C Major, Op. 59 No. 3, “Razumovsky”: III. Minuet. Grazioso – Trio (5:16)
4. Beethoven: String Quartet No. 9 in C Major, Op. 59 No. 3, “Razumovsky”: IV. Allegro molto (5:49)
5. Beethoven: String Quartet No. 13 in B-Flat Major, Op. 130: I. Adagio ma non troppo – Allegro (13:33)
6. Beethoven: String Quartet No. 13 in B-Flat Major, Op. 130: II. Presto (1:53)
7. Beethoven: String Quartet No. 13 in B-Flat Major, Op. 130: III. Andante con moto, ma non troppo. Poco scherzando (7:02)
8. Beethoven: String Quartet No. 13 in B-Flat Major, Op. 130: IV. Alla danza tedesca (Allegro assai) (3:12)
9. Beethoven: String Quartet No. 13 in B-Flat Major, Op. 130: V. Cavatina (Adagio molto espressivo) (8:37)
10. Beethoven: Grosse fuge in B-Flat Major, Op. 133 (16:21)
Quatuor Ébène:
Pierre Colombet, violin
Gabriel Le Magadure, violin
Marie Chilemme, viola
Raphaël Merlin, violoncelo
Não é todo dia que se ouve uma estreia mundial de algo de Beethoven, nem que seja a reinvenção de algo que bem conhecemos e, como é o meu caso – porque eu ainda não declarei a vocês hoje meu amor a esse concerto! -, que também amamos.
Trata-se dum arranjo para piano e quinteto de cordas do próprio Beethoven para seu concerto Op. 58. A obra foi um imenso sucesso, de modo que era natural que fosse rapidamente adaptado a formações de câmara e publicado para vendas ao público, como era praxe da época para a divulgação de composições bem-sucedidas. O arranjo, no entanto, parece não ter sido destinado às prensas, e sim encomendado pelo príncipe Lobkowitz, mecenas de Ludwig, em cuja residência o concerto tivera sua estreia privada, alguns anos antes. Os originais, em estado deplorável, quase ilegíveis pela caligrafia e desorganização medonhas do compositor, serviram de base para a reconstrução que aqui escutarão. Habilmente realizada pelo musicólogo Hans-Werner Küthen e descrita com detalhes no encarte desta gravação, ela mostra que Beethoven não se limitou somente a dividir as partes da orquestra entre as cordas. Ele foi bastante além, e reescreveu trechos consideráveis da parte do piano, tornando-a mais complexa que a original e dando ao instrumento uma proeminência que não tem no concerto, que é notório pelo admirável equilibrio entre solista e orquestra. Para os que conhecem bem a obra, é divertido perceber as alterações, mais notáveis no primeiro movimento, e muito estimulante ouvir o que Robert Levin, também distinto musicólogo, numa leitura surpreendentemente anabólica do ademais sereno concerto, para o qual escreveu suas próprias cadenze. Completa a gravação o trio para piano, violino e violoncelo baseado na sinfonia no. 2, que vocês já ouviram numa versão bastante camerística, e que sob Levin e seus talentosos comparsas soa tremendamente sinfônica.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Concerto para piano e orquestra no. 4 em Sol maior, Op. 58 Arranjo para piano e quinteto de cordas do próprio compositor
Reconstruído por Hans-Werner Küthen Cadenze de Robert Levin
Original composto entre 1804-1807 Publicado em 1808 Dedicado ao arquiduque Rudolph da Áustria
Robert Levin, piano Lucy Howard e Peter Hanson, violinos Anette Isserlis e Alan George, violas David Watkin, violoncelo
Sinfonia no. 2 em Ré maior, Op. 36 (arranjo para piano, violino e violoncelo pelo próprio compositor) Composta entre 1801-02 Arranjo para trio publicado em 1803 Dedicada ao príncipe Karl von Lichnowsky
4 – Adagio molto – Allegro con brio
5 – Larghetto quasi andante
6 – Scherzo: Allegro
7 – Allegro molto
Robert Levin, piano Peter Hanson, violino David Watkin, violoncelo
Mais um maravilhoso CD desta série do Ébène, desta vez advindo de um registro colhido na querida Sala São Paulo. Da ultra sofisticada série de últimos quartetos de Beethoven, o Op. 127 é aquele de que menos gosto. Ele foi concluído em 1825 e é o primeiro dos quartetos tardios. Mas gosto demais do Op. 18, Nº 6, uma peça com o toque de Haydn. O primeiro movimento é poderoso, o Scherzo é surpreendente com suas alterações rítmicas e interrupções (o que ocorre também no movimento inicial). A introdução lenta do quarto movimento, ‘La Malinconia’, é cheia de mudanças ousadas de harmonia e textura. É uma das passagens mais famosas do Beethoven inicial e ele pede que seja tocada com a maior delicadeza. Um discaço! O que dizer o Quarteto Ébène? Olha, são estupendos!
Ludwig van Beethoven (1770-1827): Quartetos Nros. 6, Op. 18 & 12, Op. 127 (Ébène)
1 String Quartet No. 6 in B-Flat Major, Op. 18 No. 6: I. Allegro con brio 6:24
2 String Quartet No. 6 in B-Flat Major, Op. 18 No. 6: II. Adagio ma non troppo 8:16
3 String Quartet No. 6 in B-Flat Major, Op. 18 No. 6: III. Scherzo (Allegro) 3:27
4 String Quartet No. 6 in B-Flat Major, Op. 18 No. 6: IV. La Malinconia 9:16
5 String Quartet No. 12 in E-Flat Major, Op. 127: I. Maestoso – Allegro 7:16
6 String Quartet No. 12 in E-Flat Major, Op. 127: II. Adagio ma non troppo e molto cantabile 17:01
7 String Quartet No. 12 in E-Flat Major, Op. 127: III. Scherzando vivace 8:22
8 String Quartet No. 12 in E-Flat Major, Op. 127: IV. Finale (Allegro) 6:51
Quatuor Ébène:
Pierre Colombet, violin
Gabriel Le Magadure, violin
Marie Chilemme, viola
Raphaël Merlin, violoncello
Tanto tempo despendi em lhes falar que amo esse concerto – falei de novo! – que acabei sem lhes falar DO concerto em si. Pois ele foi composto com a intenção de, como todos seus pares, servir de veículo para o próprio compositor, que ainda era, com folgas, o melhor pianista de Viena. Ele teve duas estreias, em farta companhia musical: uma privada, na qual também estrearam a abertura “Coriolan” e a sinfonia no. 4, e uma pública, um concerto leviatânico com orquestra, coro e o compositor-pianista, que também incluiu partes da missa em Dó e nada menos que as premières das sinfonias nos. 5 e 6, da ária Ah, perfido! e da Fantasia Coral, o grand finale que reunia todas as forças usadas nas quatro horas de música. A bilheteria reverteria integralmente para o compositor, que foi financiado por seus mecenas para o aluguel do teatro e os cachês dos muitos músicos. Provavelmente lhe rendeu um bom dinheiro, mas a recepção foi morna, tanto porque estava congelantemente frio no teatro, quanto porque algumas peças tinham sido pouco ensaiadas, e também, de acordo com os relatos, a superdose de tão poderosa música tornava difícil apreciá-la criticamente. De qualquer forma, o concerto também marcou a despedida de Beethoven como solista – quando da estreia do concerto no. 5, três anos depois, sua surdez estava tão profunda que a parte de piano teve que ser delegada a outrem.
Sempre que escuto John O’Conor tocando Beethoven de modo tão distinto e convincente, fico a imaginar se o próprio Beethoven não se reconheceria no estilo do irlandês: enérgico e expressivo, cantante sempre que necessário, com certas liberdades agógicas que certamente o compositor também tomava sem ressalvas. Suas gravações dos concertos são tão boas quanto as das suas sonatas, embora padeçam – tanto quanto elas – da engenharia de som um tanto tacanha da Telarc. Completam a gravação, com a regência muito competente do alemão Andreas Delfs, um concerto no. 1 bastante pimpão e uma das minhas versões favoritas do no. 3, cujo Dó menor soa aqui mais radiante do que o costume.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Concerto para piano e orquestra em Dó maior, Op. 15 Composto em 1795 Publicado em 1801 Dedicado à princesa Anna Louise Barbara Odescalchi
1 – Allegro con brio
2 – Largo
3 – Rondo. Allegro scherzando
Concerto para piano no. 3 em Dó menor, Op. 37 Composto entre 1800-1803 Publicado em 1804 Dedicado ao príncipe Louis Ferdinand da Prússia
Os 16 quartetos de cordas de Beethoven ocupam um lugar de honra no repertório de câmara e, com suas nove sinfonias e 32 sonatas para piano, traçam a progressão de uma vida criativa. 2020 marca o 250º aniversário do nascimento do compositor, e Quatuor Ébène estava realizando uma extensa turnê, intitulada Beethoven Around the World, que iria desde meados de 2019 a dezembro de 2020. Mas aí veio a pandemia… Durante esse período, o grupo francês faria mais de 120 apresentações num total de 21 países, com foco nos ciclos completos dos quartetos a partir de fevereiro de 2020. Beethoven Around the World abrange gravações ao vivo que constituem um ciclo completo, feito em sete das grandes cidades do mundo: Viena (no Konzerthaus); Filadélfia (Kimmel Center); Tóquio (Suntory Hall); São Paulo (Sala São Paulo); Melbourne (Centro de Recitais de Melbourne); Nairobi e Paris (Philharmonie de Paris). A interpretação do Ébène ficará como referência e o calor das apresentações ao vivo são apreciadíssimas por este que vos escreve. Vida longa ao Ébène! E que só voltem após a pandemia, tá?
Ludwig van Beethoven (1770-1827): Quartetos Nros. 1 & 14 (Ébène)
1 String Quartet No. 1 in F Major, Op. 18 No. 1: I. Allegro con brio 9:32
2 String Quartet No. 1 in F Major, Op. 18 No. 1: II. Adagio affettuoso ed appassionato 11:14
3 String Quartet No. 1 in F Major, Op. 18 No. 1: III. Scherzo. Allegro molto 3:17
4 String Quartet No. 1 in F Major, Op. 18 No. 1: IV. Allegro 6:37
5 String Quartet No. 14 in C-Sharp Minor, Op. 131: I. Adagio ma non troppo e molto espressivo 7:35
6 String Quartet No. 14 in C-Sharp Minor, Op. 131: II. Allegro molto vivace 3:12
7 String Quartet No. 14 in C-Sharp Minor, Op. 131: III. Allegro moderato – Adagio 0:49
8 String Quartet No. 14 in C-Sharp Minor, Op. 131: IV. Andante ma non troppo e molto cantabile – Allegretto 14:35
9 String Quartet No. 14 in C-Sharp Minor, Op. 131: V. Presto 5:13
10 String Quartet No. 14 in C-Sharp Minor, Op. 131: VI. Adagio quasi un poco andante 2:25
11 String Quartet No. 14 in C-Sharp Minor, Op. 131: VII. Allegro 7:05
Quatuor Ébène:
Pierre Colombet, violin
Gabriel Le Magadure, violin
Marie Chilemme, viola
Raphaël Merlin, violoncello
Como mencionei ontem, amo tanto esse concerto que não o consigo mais apreciar criticamente. Abandono-me às suas belezas, seja na interpretação de Gilels – que, assim como minha declaração de amor ao Op. 58, vocês também ouviram ontem -, seja na de Maria João (que recomendo muito, e restaurei para vocês), ou nessas duas do mestre praguense, Ivan Moravec.
Moravec, de quem, num doloroso dever, fizemos o obituário aqui no PQP Bach, era um pianista de toque muito preciso e absolutamente obcecado pela qualidade do som dos pianos que tocava, tanto que viajava com sua maletinha de utilidades e passava quase tanto tempo com os técnicos quanto com os regentes. Apesar de sua merecida fama de perfeccionista – o que não o impedia de dar seus grunhidos ao teclado, que os mais atentos ouvirão -, estava muito mais para um exigente sacerdote do que para um almofadinha cheio de manias, e provocava muita admiração pela capacidade de, tanto nos ensaios quanto nas apresentações, repetir com tanta precisão as passagens que os takes resultantes eram indiferenciáveis, se não fossem numerados, e de não errar uma nota sequer. É claro que as qualidades de Moravec vão bem além de não errar: suas leituras de Beethoven transbordam riqueza timbrística, lirismo e – especialmente no maravilhoso movimento lento – expressividade. A primeira que lhes apresento foi a segunda a ser gravada, ao vivo e em 2003, com a então jovem Prague Philharmonia sob a regência de seu fundador, Jiří Bělohlávek, que depois seria titular da BBC Symphony Orchestra. Ela tem um caráter, diria, mais mozartiano, e é seguida de duas peças que dificilmente poderíamos imaginar pareadas a um concerto de Beethoven, mas que harmonizam muito bem com ele: as Variações Sinfônicas de César Franck (que nasceu no ano em que Ludwig começou a “Ode à Alegria”), na interpretação que me fez enfim gostar da obra, e o maravilhoso concerto de Maurice Ravel (nascido no ano em que Franck, então decano do Conservatório de Paris, completou Les Éolides), tocado duma maneira que Benedetti Michelangeli, que praticamente cooptou Moravec para ser seu aluno, certamente amaria ouvir. As cadenze do Op. 58 são do próprio Beethoven.
A segunda, de 1964, foi gravada em Viena, enquanto Moravec ainda podia viajar com bastante liberdade, sob a regência de Martin Turnovský, um compatriota que se exilaria do lado de lá da Cortina de Ferro depois da Primavera de Praga. É a versão mais idiomaticamente beethoveniana que conheço, tecnicamente impecável, expressão exuberante do controle absoluto do todo e de tudo, e um dos meus modelos de perfeição postos em disco. Deixo-a com vocês numa ripagem de LP, enquanto aguardo sentado que alguém no mercado fonográfico deixe um pouco de lado os decotões da Khatia e resolva fazer para a Humanidade o bem de remasterizá-lo e lançá-lo em mídia digital.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Concerto para piano e orquestra no. 4 em Sol maior, Op. 58 Composto entre 1804-1807 Publicado em 1808 Dedicado ao arquiduque Rudolph da Áustria
Tanto esperei por que chegasse a vez de postar meu concerto para piano favorito que, quando ela enfim chegou, eu mal acho o que lhes escrever. Já escutei tantas vezes o maravilhoso Op. 58 que não consigo mais pensar criticamente em suas qualidades: eu simplesmente as sorvo e com elas me delicio. E tanto o amo, e tão imenso é meu amor por ele, que não conseguirei deixar-lhes somente uma interpretação – serão algumas entre minhas preferidas, ao longo dos próximos dias, porque – bem, eu já lhes disse que é amor?
O início do primeiro movimento – que Beethoven, num gesto sem precedentes, deixa a cargo do solista – costuma dar-me a tônica de cada gravação. Alguns pianistas entram portentosamente, e terminam incongruentes com os comentários da orquestra, que se seguem. Outros acanham-se demais, talvez por medo de serem pervasivos nessa pérola em que solista e conjunto jamais duelam. E há Emil Gilels, que, a despeito de tudo que já se falou da têmpera leonina com que encarava os desafios mais furiosos da literatura para piano, acerta em cheio em timbre e pulso com seus acordes murmurantes. A parceria com Leopold Ludwig, um regente com larga experiência em ópera, e talvez por isso mesmo, funciona à perfeição – o pathos do Andante, um tenso diálogo entre piano e cordas, só poderia vir do mais lírico dos pianistas soviéticos e de um consumado, sensível acompanhador. Os dois oferecem-nos, entre todas as versões que conheço do Op. 58, aquela mais afim à obra-prima seguinte, o concerto para violino que também amo demais, que também se desenrola com serenidade a partir de uma célula rítmica expressa logo no primeiro compasso – aqui, pelo piano, e lá, pelos tímpanos. Atrações adicionais são as cadenze escolhidas por Gilels, que foram fornecidas pelo compositor, mas são muito menos tocadas que aquelas que vocês provavelmente conhecem, as dos longos trinados. Completando o disco, um “Imperador” que poderia ter mais pujança rítmica, ainda que lhe sobre garbo e, no Adagio muito mais lento que o habitual, uma mágica entrada do solista que, sozinha, vale toda a gravação.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Concerto para piano e orquestra no. 4 em Sol maior, Op. 58 Composto entre 1804-1807 Publicado em 1808 Dedicado ao arquiduque Rudolph da Áustria
Concerto para piano e orquestra no. 5 em Mi bemol maior, Op. 73, “Imperador” Composto em 1809 Publicado em 1810 Dedicado ao arquiduque Rudolph da Áustria
4 – Allegro
5 – Adagio un poco mosso
6 – Rondo: Allegro
Emil Gilels, piano Philarmonia Orchestra Leopold Ludwig, regência
“Não gostam agora? Gostarão mais tarde. Escrevo para o futuro”. Beethoven, em resposta às críticas às obras de sua última fase.
Maria João Pires, em introdução à live realizada com 10 pianistas da Deusche Grammophon no dia internacional do piano* (28/03/2020):
“Tenho uma pequena mensagem para vocês: acho que devemos encarar essa terrível crise pela qual estamos passando como algo que devemos aceitar de qualquer maneira, e com uma reflexão sobre o que devemos fazer melhor no futuro. Tomar mais cuidado conosco, com o planeta e uns com os outros. Ter mais respeito e compartilhar mais as coisas.
Eu gostaria de interpretar Beethoven hoje, porque acho que há uma forte conexão entre o que está acontecendo conosco e o que temos que aprender com isso. E Beethoven era o homem da luta, da esperança, da luta por justiça, que tinha muita compaixão, era realmente uma alma pura. E acho que a música dele reflete isso, e através dele, podemos aprender muitas coisas importantes para o presente e o futuro.”
Maria João é uma intérprete EXCEPCIONAL das últimas sonatas de Beethoven. Enquanto o disco anterior, com sonatas da fase do meio de Beethoven, é poético e interessante, este aqui é IMPERDÍVEL, por trazer uma concepção única das sonatas opus 109 e 110, compostas quando Beethoven já estava surdo. São sonatas que sempre soarão como música do futuro. A última sonata, opus 111, ela também toca em recitais, mas nunca gravou em LP ou CD, o que mostra o quanto as gravadoras podem ser estúpidas. Pior pras gravadoras! No final desta postagem** estão os links de vídeos da também extraordinária opus 111 de Maria João Pires.
Beethoven (1770-1827) – Sonatas para piano nº 8, 30 e 31
Sonata nº 31, opus 110
I. Molto cantabile, molto espressivo
II. Allegro molto
III. Adagio ma non troppo – Fuga
Sonata nº 8, opus 13, “Patética”
I. Grave – Allegro di molto e con brio
II. Adagio cantabile
III. Rondo
Sonata nº 30, opus 109
I. Vivace ma non troppo
II. Prestissimo
III. Andante molto cantabile ed espressivo
Maria João Pires, piano
Gravado na Igreja Norte-Dame des Roses, Grisy-Suisnes, França, dezembro de 1975
As longas e bem-sucedidas parcerias com Mstislav Rostropovich e, principalmente, com Anne-Sophie Mutter acabaram por eclipsar as outras vertentes da carreira do ótimo filadelfiano Lambert Orkis. Além de muito ter gravado com instrumentos originais (junto ao Castle Trio e em parceria com Anner Bylsma), ele tem uma discografia muito interessante como recitalista, que pretendemos revelar aos poucos por aqui.
Começamos por esta gravação com a grandiloquente “Appassionata” (para variar, mais um nome que Beethoven não agregou a obra sua) interpretada em três pianos diferentes, baseados em modelos vienenses. Não sou muito afeito a copiar textos de encartes, mas achei que o relato do próprio Orkis era informativo o bastante para ser traduzido bem livremente, dentro de seu estilo bastante direto e prosaico e aqui oferecido a vocês:
“Quando Beethoven compôs a ‘Appassionata’ em 1805, ainda não se chegara a um consenso acerca de como um piano deveria soar. De fato, o instrumento padecia das dores de um rápido desenvolvimento. A extensão do teclado expandia-se a partir das cinco oitavas, fabricantes tentavam aumentar o volume do som, e conceitos diversos de construção de teclado e pedais eram implementados.
Como Viena era uma capital musical, também era um centro para o desenho e construção de excelentes pianos. De fato, fabricantes na região de Viena durante o final do século XVIII e o começo do século XIX – tais como Johann Andreas Stein (muito prestigiado por Mozart), Wenzel Schantz (preferido por Haydn), Anton Walter (outro favorito de Mozart, e também de Beethoven), Nannette Streicher (admirada por Beethoven) e Conrad Graf (conhecido tanto por Beethoven quanto por Schubert) encontraram um mercado no público musical vienense.
Com o tempo, conceitos para a construção de pianos mudaram, algumas vezes dramaticamente. Os três instrumentos usados nesta gravação são baseados em modelos vienenses de construção de pianos e representam três instantâneos da evolução do piano em Viena.
Ao trazer para um CD três interpretações da sonata ‘Appassionata’ de Beethoven em três pianos diferentes, eu não estava só a tentar demonstrar as diferenças sonoras entre os instrumentos, mas também mostrar como qualidades tonais diversas e respostas variadas dos teclados afetariam minha maneira de tocar a peça.
As durações das respectivas interpretações diferiram do que eu antecipara. Ainda que os dois pianofortes fossem mais próximos em estilo entre si do que o moderno Bösendorfer, eu esperava uma maior diferença da duração de minha performance entre os dois instrumentos mais antigos. De fato, por causa de sua sonoridade mais profunda, martelos mais robustos, e ação algo mais pesada, esperava que a duração de minha interpretação no pianoforte Regier, que representava o design vienense mais tardio, fosse mais longa. Ainda que as diferenças não sejam grandes, minhas performances dos dois primeiros movimentos no Regier foram na verdade mais curtas que no pianoforte Wolf, de design mais antigo.
Por causa de seu timbre sustentado e cantante, e um conceito de construção planejado para prevalecer sobre as maiores orquestras e penetrar nos recessos mais distantes das maiores salas de concerto, não me surpreendi com que minhas interpretações no Bösendorfer Imperial Concert Grand fossem as mais longas para cada um dos movimentos. No entanto, as diferenças não foram tão grandes quanto esperava.
O efeito dos pianos propriamente ditos nas minhas interpretações foi bastante sutil. Dei-me conta de que foi minha concepção da sonata que foi, por fim, a força motriz em minhas leituras da peça. Em cada caso, ajustei minha abordagem do instrumento de maneira a perceber como eu percebia a obra de acordo com meu gosto.
Devo dizer que dediquei um tempo considerável a aprender esta peça em pianofortes. Uma vez que tive em mente o som da articulação nítida do pianoforte, bem como da flexibilidade rítmica de que precisava para compensar a relativa perda de poder de sustentação nos agudos desses pianos, este som tornou-se parte de minha visão interpretativa que tentei, então, conseguir em cada piano que toquei.
O pianoforte Wolf é o mais próximo em design àqueles que eram contemporâneos no momento em que Beethoven compôs esta peça. Seu som incisivo e ação leve ornam bem com as passagens rodopiantes e temperamento feroz dessa obra. As teclas brancas são mais curtas, e as pretas, mais estreitas que aquelas dum piano moderno. Esse teclado um tanto apertado, somada à ação muito leve torna a execução limpa e acurada um desafio, especialmente nos momentos mais dramáticos. Devo também apontar que eu sou consideravelmente maior que o vienense médio do começo do século XIX…
Não obstante, tocar a ‘Appassionata’ neste instrumento foi um deleite. O que lhe falta em volume é compensado por sua flexibilidade e intimismo. Ainda que sonicamente pequeno, em termos relativos, o drama possível com ele foi de fato bastante grande. No pianoforte Wolf, minha execução da sonata atingiu um alto grau de tensão nervosa. Pode-se quase sentir que Beethoven tentava romper as costuras do instrumento. Em suma, a peça crepita com vitalidade.
Um aspecto interessante deste pianoforte e do Regier é o sistema de pedais. Ambos têm um legítimo pedal ‘una corda’. Este pedal, frequentemente chamado assim nos pianos modernos, move os martelos e as teclas de maneira a que os martelos percutem apenas uma das três cordas [para cada nota]. Com o tempo, esta disposição, ainda que sonicamente interessante, provou-se mecanicamente problemática. Consequentemente, com a chegada da modernidade, esse sistema foi-se modificando de modo a que a maioria dos pianos de cauda de hoje movem os martelos de modo a golpearem duas das três cordas. E ainda, alguns dos instrumentos mais recentes modificaram o ajuste de modo que todas as três cordas são percutidas com uma parte diferente e mais macia do martelo.
Com estes pianofortes, é possível conseguir uma variedade de timbres dependendo de minha escolha de usar uma, duas ou três cordas. Além disso, esses pianos têm um pedal moderador que pianos modernos dificilmente têm. Esse pedal insere uma peça de material macio entre o martelo e a corda que resulta num som bastante peculiar, que combinado com o pedal ‘una corda’ dá-lhe um efeito um tanto fantasmagórico. Escute o começo da ‘Appassionata’ em cada um dos três instrumentos. Perceba o quão distante a introdução soa nos dois pianofortes e o quão comparativamente ‘real’ ela soa no instrumento vienense moderno.
Por causa da ação mais pesada no fortepiano Regier, eu previ mais dificuldades em gravar a obra nesse instrumento do que de fato encontrei. Este piano representa a tecnologia disponível para Beethoven no final de sua vida. Seu som mais profundo e sua sonoridade mais intensa não foram contemporâneas à composição desta peça. Achei o teclado um tanto maior um problema ao lidar com passagens complexas. Meus dedos apreciaram o contato mais firme. O resultado foi que pude tocar menos preocupado, o que provavelmente explica por que minhas gravações foram mais rápidas neste piano. Também foi muito divertido fazer-me ouvir com sua intensidade sônica. Passagens fortes ficaram ótimas. Com este piano senti que estava tocando um instrumento cujo conceito atingira o pináculo de seu desenvolvimento. Implementos adicionais seriam requeridos para conseguir algo diferente com o som do piano.
Essa diferença veio com o metal e o tamanho. Assistir aos carregadores de piano transportarem o Bösendorfer Imperial Concert Grand para o local da gravação durante uma tempestade torrencial foi algo. Sua grandeza fazia seus primos encolherem. Mesmo um Steinway de concerto que dividia a sala com o Bösendorfer parecia delicado, comparado a ele. Ainda que algumas vezes tenha tocado o Bösendorfer em salas de concerto pelo mundo, eu nunca gravara com ele. Nos Estados Unidos, instrumentos Bösendorfer são relativamente raros. Em seu país natal, a Áustria, ele é muito encontradiço. Graças à sequência de gravações – Wolf primeiro, Regier segundo, Bösendorfer por último -, tocar o Bösendorfer foi inicialmente um choque. Ainda que eu tivesse bastante experiência com a ‘Appassionata’ em pianos modernos, as tomadas iniciais nas gravações pareciam pesadas, pachorrentas, borradas, e altas. Havia som demais vindo do instrumento e muita força disponível; eu tinha que achar maneiras de colocar tudo em perspectiva.
No movimento lento, seu belo e sustentado timbre seduziram-me em adotar um andamento mais lento. Eu me flagrei tão só tomando meu tempo para saborear o som. Ainda que a ação deste piano não fosse pesada para os padrões modernos, ela certamente era mais pesada que seus parentes mais velhos. Somando-se a isso, o ataque suave e a qualidade cantante deste instrumento fizeram-me mudar minha técnica ao tocá-lo de modo a capturar algo da nitidez e da diversidade de articulação que sinto serem inerentes à peça.
Senti-me bem em tocar teclas modernas novamente. E quando a paixão do momento pedia por força aparentemente ilimitada, esse piano conseguia realmente dar a resposta. E, apesar da ação mais pesada e avassaladora, sua responsividade era tanta que a duração de minhas performances foi apenas um pouco mais longa que aquelas nos pianofortes.
Ao longo dessas sessões, estava bem ciente da linhagem desses instrumentos. Ainda que soem muito diferentes um dos outros, pode-se sentir a conexão entre eles através dos dedos. É como se eles fossem membros de famílias muito próximas. A diferença entre cada um deles e os membros de outra família podem ou não ser dramáticas, mas são tangíveis, pelo menos àqueles que conhecem bem os indivíduos específicos.
Espero que gostem de escutar esta grande obra através da ‘lente’ de cada um desses instrumentos. Tenham certeza de que eu adorei tocá-los. Eles ensinaram-me muito”
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Sonata para piano em Fá menor, Op. 57, “Appassionata” Composta entre 1804-5 Publicada em 1807 Dedicada ao conde Franz von Brunsvik
I – Allegro assai
II – Andante con moto
III – Allegro ma non troppo
Executada em três pianos de design vienense:
Faixas 01-03: pianoforte de Thomas e Barbara Wolf, baseado em instrumentos de Nannette Streicher (ca. 1814-20)
Faixas 04-06: piano Bösendorfer Imperial Concert Grand
Faixas 07-09: pianoforte de R. J. Regier, baseado em instrumentos vienenses de 1830
Como nos lembra Milton Ribeiro, Beethoven desde cedo tinha uma noção muito curiosa de que não lhe bastava estudar a música de Bach, Händel, Haydn e Mozart: era preciso também conhecer literatura. Com entusiasmo, atirou-se à leitura de Homero, Shakespeare, Goethe e Schiller.
Em carta de 29 de junho de 1800 para um amigo de Bonn, Ludwig escreveu sobre a vontade de rever seus companheiros, sua terra natal e o Reno: “Quando esse dia virá, não posso te dizer com certeza. Mas quero dizer que me encontrarão maior: não falo do artista, mas também do homem, que lhes parecerá melhor; e se o bem-estar não crescer um pouco em nossa pátria, minha arte deverá se dedicar a melhorar a sorte dos mais pobres…”
Maria João Pires tem uma visão de mundo um pouco similar, tão necessária em nossa era de profissionais hiperespecializados que, nas palavras de Millôr Fernandes, sabem cada vez mais sobre cada vez menos, até saberem tudo sobre nada. Maria João, que já passou dos 70 anos de idade, encerrou sua carreira internacional de turnês longas e cansativas. Só toca quando quer, onde quer. O resto do tempo, vive em sua casa em Portugal, bem longe das cidades grandes. Casa essa que é ao mesmo tempo o centro Artistico de Belgais, onde ela ensina alguns jovens em uma verdadeira imersão, onde eles aprendem música mas também aprendem a fazer pão. Pois é, a grande pianista de mãos pequeninas ainda hoje amassa pão na sua casa. Como escreveu o português Julio Resende:
Das suas mãos se trabalham e se enamoram muitos nutrientes, para o corpo e para a alma. Não, esqueçam o que disse agora! Não faz sentido falar aqui da velha distinção corpo-alma, porque a pianista tem demonstrado por todo o mundo que na sua música e nos seus concertos, os dois – alma e corpo – vivem muito bem em união, sem distinção, sem competição, a construir das suas diferenças momentos de comunhão.
Maria João é talvez a única discípula viva do lendário pianista alemão Wilhelm Kempff, outro grande intérprete de Beethoven que, como mostram suas gravações, também parecia transcender a divisão entre corpo e alma, com interpretações que davam novos significados para as frases musicais aparentemente mais banais, sobretudo nas sonatas mais simples e pouco tocadas. Mas vamos deixar a própria Maria João falar, em entrevista que deu na ocasião de sua mais recente vinda ao Brasil, em 2019:
“Kempff não era meu professor, mas eu tocava para ele, eram momentos importantes, foram fundamentais em minha carreira.”
“Beethoven ganhou a importância que teve em minha vida depois da mudança para a Alemanha. E a base do aprendizado foi o conhecimento profundo que Kempff tinha de sua obra. Naqueles encontros, eu comecei de fato a entender, respeitar, saber como decifrar uma partitura do compositor, a sua história”, ela explica.
Em seguida, questionada sobre o que a fascina no compositor, ela faz uma pausa. “É tão difícil colocar em palavras. Beethoven é quem liga a matéria ao espírito. É quem nos mostra que podemos viver uma vida material e, ao mesmo tempo, viver ideais muito fortes. Há nisso uma visão profunda do nosso universo, que não se explica. Mas se sente. É aí que entra o gênio.”
Beethoven (1770-1827) – Sonatas para piano nº 23, 17 e 14
Sonata nº 23, opus 57, “Appassionata”
I. Allegro assai
II. Andante con moto
III. Allegro, ma non troppo
Sonata nº 17, opus 31 no. 2, “Tempestade”
I. Largo – Allegro
II. Adagio
III. Allegretto
Sonata nº 14, opus 27 no. 2, “Ao Luar”
I. Adagio sostenuto
II. Allegretto
III. Presto agitato
Maria João Pires, piano
Gravado na Igreja Norte-Dame des Roses, Grisy-Suisnes, França, dezembro de 1975
Difícil falar da “Eroica” sem chover molhadissimamente no já encharcado. Que ela foi revolucionária e sem precedentes em termos de escopo, extensão e recursos; que é um marco entre o classicismo e o romantismo; que fora dedicada a Napoleão, e que a dedicatória foi removida com uma furiosa rasura a faca no frontispício da partitura; que seu cerne é uma extraordinária Marcha Fúnebre, instantaneamente admirada; e que o tema do finale é o único que, em sua obra, recorre em mais de uma peça, tendo aparecido antes numa contradança, em variações para piano e em seu balé Prometheus.
O que talvez nem todos saibam é que justamente a extensão e o escopo foram as maiores reclamações daqueles que a ouviram na estreia; que seu papel de marco só foi reconhecido muito mais tarde, e que a “Eroica” não teve em sua época uma divulgação à altura da importância que hoje se lhe reconhece, muito por conta do plantel de músicos requerido, que não foi o pretendido por Beethoven nem em sua estreia, recriada nesta fascinante gravação; que a dedicatória a Napoleão foi retirada antes dos talhos de faca na partitura, mas por motivos do vil metal, oferecido ao sempre necessitado Beethoven pelo novo dedicatário; que a “Sinfonia Grande” foi, mesmo com a mudança na dedicatória, “[in]titolata Bonaparte”, para só ser chamada “Eroica” depois que o emputecimento com Napoleão levasse Ludwig a querer com ela “festeggiare il sovvenire d’un grand’uomo”; que muitas vezes ela foi abreviada, por premências de tempo ou pela incompreensão do público, e tocada só até a Marcha Fúnebre; e que o finale, detestado pelos contemporâneos por pouco portentoso e incongruente com os movimentos pregressos, soa-nos hoje como o mais beethoveniano, pelo emprego genial das técnicas de variação e pelos exemplos precoces de seu interesse na forma da fuga.
Todo regente que se preza encara a “Eroica”, e não há, para mim, alguém que tenha igualado Ferenc Fricsay, que já foi postado aqui. Ainda assim, sempre tento ouvir esse monumento como se fosse a primeira vez, e nunca deixo de lhe descobrir uma nuance nova em meio ao estupor.
Acabo de ouvi-la dezoito vezes, e redescobri-la outras tantas. Conclamo os leitores-ouvintes, agora, ao fazerem o mesmo.
Sinfonia no. 3 em Mi bemol maior, Op. 55, “Eroica” Composta em 1802-04 Publicada em 1806 Dedicada ao príncipe Franz Joseph von Lobkowitz
1 – Allegro con brio
2 – Marcia funebre. Adagio assai
3 – Scherzo. Allegro vivace – Trio
4 – Finale. Allegro molto – Poco Andante – Presto
Parear duas das mais concisas sonatas de Beethoven com a segunda do grandiloquente Rachmaninoff – ainda que seja sua versão revisada e, se é que se pode dizer isso de algo de Rach, um pouco simplificada – é uma escolha pouquíssimo convencional. Aí os leitores-ouvintes olham a capa do disco, enxergam o intérprete e compreendem tudo: o que é convencional, afinal, na carreira de Ivo Pogorelić?
Nada, sem dúvidas – desde sua origem, quando havia Iugoslávia, um filho de pai croata e mãe sérvia que o colapso da federação transformou num croata nascido em Belgrado, passando por sua formação naquela capital e em Moscou, os estudos e posterior casamento com sua professora e mentora Aliza Kezeradze, nada, desde o começo, apontava para o frugal.
Mesmo que não entendam tchongas do idioma, vale a pena conferir Ivo sendo,
bem, Ivo desde os tempos de moleque.
Sua grande estreia no cenário mundial, dir-se-ia de sola, ou mesmo uma voadora dupla nas costas do estado das coisas musical foi, claro, o X Concurso Internacional Chopin de Varsóvia, em 1980, no qual, entre 180 competidores engravatados e engomados e prontíssimos para agradar os jurados na meca dos chopinianos, ele surgiu com esses trajes, essa cachopa e tocando Chopin dessa maneira:
O público amou o enfant terrible e transformou-o em seu queridinho. Os jurados dividiram-se. Lajos Kentner abandonou o barco no final da primeira etapa, alegando que “se gente como Pogorelić chega à segunda etapa, eu não posso participar do júri – temos critérios diferentes”. Quando ele foi eliminado, na semifinal – depois de inverter a ordem de apresentação das peças, sair do palco e voltar para tocar o restante do programa obrigatório como se fosse um bis para uma plateia incensada -, foi a vez de Martha Argerich – ninguém menos! – pular fora em protesto, bradando que Pogorelić era um “gênio”, que seus colegas jurados eram incapazes de aceitá-lo por causa de seu “conservadorismo entranhado” e que sentia vergonha de fazer parte daquele júri.
GRAVATA DE CAUBÓI, gurizada
A eliminação de Pogorelić, somada a sua persona provocativa e sua abordagem heterodoxa das interpretações assegurou-lhe tanta fama que hoje ele é mais lembrado que o próprio vencedor do concurso em 1980 – o vietnamita Đặng Thái Sơn, um artista extraordinário e introspecto, que acabou por carregar a imerecida pecha de nêmese do croata. Ivo, entretanto, não voltou para casa com as mãos abanando: recebeu prêmios e troféus extraoficiais, foi convidado a tocar com uma orquestra no final do concurso (honra que caberia aos vencedores, ainda que sua orquestra fosse de estudantes) e, de quebra, ainda assinou um polpudo contrato com a Deutsche Grammophon, para a qual gravou vários discos, todos de muito sucesso e certamente recheados de momentos magníficos, durante os anos 80.
Nas décadas seguintes, Pogorelić tornou-se cada vez mais bissexto, tanto nos palcos como nos estúdios. Talvez por problemas de saúde, em parte também pela viuvez (Aliza, vinte anos mais velha que ele, faleceu em 1996), quem sabe pelos desafios naturais da maturidade, inda mais pungentes para quem foi menino-prodígio e jovem provocador. Quando voltou a dar recitais, tornou-se um esporte popular massacrá-lo por excentricidades e inconsistências em dinâmica e agógica não muito diferentes daquelas que tanto foram incensadas durante os anos 80. E em 2019, depois de mais de vinte anos sem gravar, lançou esse disco pela Sony e recebeu uma chuva de tomates.
Não acho que a tomatina se justifique, pelo menos no que tange a Beethoven. As duas sonatas escolhidas, que estão entre as mais concisas entre as trinta e duas, prestam-se bem às idiossincrasias de Pogorelić. A Op. 54, que abre com uma alegoria de um minueto e termina com um agitado finale, já foi comparada a uma sonata convencional da qual foram arrancados os dois primeiros movimentos. Gostei da abordagem, embora estranhe bastante os crescendos meio despropositados que estão a trovejar bem antes dos clímaxes. Costumo preferir a Op. 78, uma de minhas sonatas prediletas (e também do próprio Beethoven), com andamentos menos hesitantes, especialmente no segundo movimento, em que Pogorelić parece ruminativo e quebra toda a verve prescrita como um Allegro vivace. Sobre Rachmaninoff, deixo para vocês comentarem – não conheço bem a obra, mas estranhei os andamentos lentos e, de novo, os crescendos meio precoces. Fiquei sem saber muito bem qual a razão de ser de tudo aquilo que ouvi, mas talvez esse não seja um problema entre Ivo e essa sonata, e sim meu com Sergei no geral.
Gênio, como proclamou nossa deusa Marthinha, ou mero embuste? Qualquer que seja vosso veredito, eu saúdo o retorno do garoto terrível e espero ansioso suas novas traquinagens.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Sonata para piano em Fá maior, Op. 54 Composta em 1802 Publicada em 1804
01 – In tempo d’un menuetto
02 – Allegretto
Sonata para piano em Fá sustenido maior, Op. 78 Composta em 1809 Publicada em 1810 Dedicada a Therese von Brunsvik
03 – Adagio cantabile
04 – Allegro vivace
Sergei Vasilyevich RACHMANINOFF (1873-1943)
Sonata para piano no. 2 em Si bemol menor, Op. 36
(“A Nova Versão, Revisada e Reduzida pelo Autor”, 1931)
05 – Allegro agitato
06 – Non allegro—Lento
07 – Allegro molto
E se Vladimir Horowitz, que não morria de amores por Beethoven, tivesse gravado a integral das sonatas do grão mestre de Bonn? E se então recorrêssemos ao já nosso manjado expediente, o de tirar a medida da série pela interpretação da “Waldstein”? Como ele se sairia?
Daremos uma oportunidade dupla ao velho Volodya para que o julguem os leitores-ouvintes: suas duas gravações em estúdio da “Waldstein”, realizadas com um intervalo de dezesseis anos e muitíssimo diferentes. A primeira, de 1956, ainda tem toda a sua estampa de jovem virtuose, com os contrastes dinâmicos pouco atentos às intenções do compositor, os crescendos a retumbarem nos graves, e toda a gama de truques que impressionaram as plateias da primeira metade daquele século, o que inclui a substituição do famoso glissando em oitavas prescrito pelo compositor por agilíssimas “oitavas Horowitz”, uma de suas marcas registradas. Muito estimulante, sem dúvidas, mas também repleta de evidências para aqueles que o acusam, com muito bons motivos, de ser um “mestre da distorção”, e que talvez sosseguem ao escutar a segunda gravação, de 1972, muito mais fiel às detalhadas indicações dinâmicas de Beethoven, e que é uma de minhas interpretações favoritas da obra.
Acompanhando as “Waldstein” estão duas gravações da Sonata Op. 27 no. 2, também muito diferentes (a de 1956, gravada na sala de estar do pianista em New York, é melhor, apesar do som), além de uma outra “Appassionata” (menos furiosa que a pregressa) e uma leitura muito colorida, gravada ao vivo, da Op. 101, que demora a deslanchar, mas encerra muito bem.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
VLADIMIR HOROWITZ – THE COMPLETE MASTERWORKS RECORDINGS, 1965-1972
BEETHOVEN
Sonata “quasi una fantasia” no. 2 em Dó sustenido menor, “Ao Luar” Composta em 1801 Publicada em 1802 Dedicada à condessa Giulietta Guicciardi
Sonata para piano em Dó maior, Op. 53, “Waldstein” Composta entre 1803-4 Publicada em 1805 Dedicada ao conde Ferdinand von Waldstein
04 – Allegro con brio
05 – Introduzione: Adagio molto
06 – Rondo: Allegretto moderato
Sonata para piano em Fá menor, Op. 57, “Appassionata” Composta entre 1804-5 Publicada em 1807 Dedicada ao conde Franz von Brunsvik
07 – Allegro assai
08 – Andante con moto
09 – Allegro ma non troppo
Sonata para piano em Lá maior, Op. 101 Composta em 1816 Publicada em 1817 Dedicada à baronesa Dorothea Ertmann
10 – Etwas lebhaft, und mit der innigsten Empfindung. Allegretto, ma non troppo
11 – Lebhaft, marschmäßig. Vivace alla marcia
12 – Langsam und sehnsuchtsvoll. Adagio, ma non troppo, con affetto – Geschwind, doch nicht zu sehr, und mit Entschlossenheit. Allegro
Mesmo que não entendam italiano e não tenham o menor interesse no problema de executar as oitavas em glissando do finale da Waldstein, o vídeo vale só pela demonstração da passagem em diferentes pianos e pela elegante voz do distinto cavalheiro, que leciona piano no Japão (o que se deduz pela reverência que faz no início e no final do vídeo). E “Beethoven Autentico”, o sítio que ele menciona, foi das melhores descobertas que fiz nos meus mergulhos beethovenianos para esta série.
Caso haja dificuldades para assistir ao vídeo aqui na página, sigam o link.
De tudo, um pouco – é o que encontramos nesse variado bornal de bagatelas que Beethoven nos legou para a voz, mas que jamais levou à prensa. Da primeira canção – “Para um bebê”, WoO 108, composta aos seus treze anos e quem sabe inspirada por algum de seus seis irmãos, dos quais quatro morreram ainda na primeira infância – até “Um Homem Nobre”, WoO 151 – escrita aos 52 anos sobre um poema de Goethe, seu ídolo por toda a vida -, passamos por duas canções de bebedeira (WoO 109 e 111, retratos de seus já bem ébrios vinte e poucos anos), canções em italiano (WoO 119 e 125) e francês (WoO 116), um poema de Matthison (que lhe inspiraria a maravilhosa Adelaide), nada mais que quatro versões para um mesmo poema do genial Goethe (WoO 134) e, para agradar tanto aos amantes de cuscos e bichanos, uma elegia a um poodle morto (WoO 110) e um arranjo duma canção folclórica sobre um querido gatinho (Hess 133):
“Unsa Kaz had Kazln g’habt
Draiunseksi, maini;
Oan’s had a Ringerl af,
Das is schon das maini”
“Nossa gata teve gatinhos,
Sessenta e três, todos meus;
Um deles tem listrinhas,
Esse é o meu favorito”
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
1 – An einen Säugling, WoO 108 (von Döhring, 1784) [AS/WO]
2 – Trinklied, beim Abschied zu singen, WoO 109 (1790) [PS/WO]
3 – Elegie auf den Tod eines Pudels, WoO 110 (1793) [PS/WO]
4 – Punschlied, WoO 111 (1790-92) [PS/WO]
5 – An Laura, WoO 112 (1792, Matthison) [PS/WO]
6 – Klage, WoO 113 (1790, Hölty) [PS/WO]
7 – Ein Selbstgesprach, WoO 114 (1792, Gleim) [PS/WO]
8 – An Minna, WoO 115 (1792) [PS/WO]
9 – Que le Temps me dure, WoO 116, Hess 129 (1ª versão) (Rousseau, 1793) [PS/WO]
10 – Que le Temps me dure, WoO 116, Hess 130 (2ª versão) (Rousseau, 1793) [UH/HH]
11 – Der freie Mann, WoO 117 (1792, Pfeffel) [PS/WO]
12 – Oh Care Selve, Oh Cara, WoO 119 (1794, Metastasio) [PS/WO]
13 – Man strebt, die Flamme zu verhehlen, WoO 120 (1800-02) [AS/WO]
14 – Abschiedsgesang an Wiens Burger, WoO 121 (1796, Friedelberg) [GL/WO]
15 – Kriegslied der Österreicher, WoO 122 (1797, Friedelberg) [GL/WO]
16 – La Tiranna, WoO 125 (1798-99, Wennington) [PS/WO]
17 – Neue Liebe, neues Leben, WoO 127 (1798-99, Goethe) [PM/HH]
18 – Romance, WoO 128 [PS/WO]
19 – Gedenke Mein!, WoO 130 [PS/WO]
20 – Sehnsucht, WoO 134 (1807-1808, Goethe) – 1ª versão [AS/WO]
21 – Sehnsucht, WoO 134 (1807-1808, Goethe) – 2ª versão [AS/WO]
22 – Sehnsucht, WoO 134 (1807-1808, Goethe) – 3ª versão [AS/WO]
23 – Sehnsucht, WoO 134 (1807-1808, Goethe) – 4ª versão [AS/WO]
24 – An die Geliebte, WoO 140 (1811-14, Stoll) – 2ª versão [AS/WO]
25 – An die Geliebte, WoO 140 (1811-14, Stoll) – 3ª versão [DFD/JD]
26 – Der Gesang der Nachtigall, WoO 141 (1813, Herder) [AS/WO]
27 – Des Kriegers Abschied, WoO 143 (1814, Reissig) [PS/WO]
28 – Merkenstein, WoO 144 (1814, Rupprecht) – 1ª versão [PM/HH]
29 – So oder So, WoO 148 (1817, Lappe) [PS/WO]
30 – Der edle Mensch, WoO 151 (1823, Goethe) [HP/HH]
31 – Gesang aus der Ferne, WoO 137 (1809, Reissig) – 1ª versão [PM/HH}
32 – Das liebe Kätzchen, Hess 133 (folclórica) [VH/HH]
33 – Der Knabe auf dem Berge, Hess 134 [UH/HH]
Adele Stolte, soprano [AS] Ulrike Helzel, mezzo-soprano [UH] Heidi Person, mezzo-soprano [HP] Peter Schreier, tenor [PS] Peter Maus, tenor [PM] Volker Horn, tenor [VH] Günther Leib, barítono [GL] Dietrich Fischer-Dieskau, barítono [DFD] Jörg Demus, piano [JD] Walter Obertz, piano [WO] Hans Hilsdorf, cravo (faixas 32 e 33) e piano [HH]
Sempre me perguntei a distinção entre Lied e Gesang que os alemães fazem e que, para nós, se perde na tradução – Lieder und Gesänge, como o ciclo de Mahler, vira “Canções e… Canções”. Fui ver, e as fontes beethovenianas que consultei asseguraram-me que Lieder – como os oito do Op. 52 – são canções mais concisas, normalmente estróficas e estruturalmente mais simples, ao passo que Gesänge – como as seis do Op. 75 – são formas mais extensas, com organização amiúde não estrófica (como aquelas inteiramente postas em música, Durchkomponiert) e acenos a recursos operísticos. Na obra de Beethoven, “Adelaide” seria o Gesang (termo que também designa “canto”) por excelência, ao passo que Urians Reise um die Welt (“A Viagem de Urian ao redor do Mundo”), com a reafirmação estrófica do protagonista de que encontra o mesmo tipo de gente em todo lugar que vai, bem, é um Lied.
Esse segundo volume de canções – sejam elas Lieder ou Gesänge – é muito variado e atraente. Gosto muito dos ciclos e aprecio a concisão com que Beethoven põe em música os por vezes curtíssimos poemas, como o de Goethe para um sujeito com seu esquilo – a “marmota” do título. Há varios duos, entre os quais Merkenstein, sobre uma visita às ruínas de um castelo na Áustria, e canções em italiano sobre textos de Antonio Domenico Bonaventura Trapassi, dito Pietro Metastasio, autor duma enormidade de libretos de óperas de sucesso, um filão aberto para todos compositores que, como Beethoven, aspiravam à fortuna com o teatro. Especialmente interessante são as duas composições baseadas sobre o mesmíssimo poema, L’amante impaziente, a primeira uma ária jocosa, e a segunda, uma ária “muito séria”. Minha favorita em todo disco é In questa tomba oscura: escrita para concorrer a um concurso que elegia a melhor composição sobre um poema de Giuseppe Carpani, ela destila a amargura que um homem desiludido leva à sua tumba (“Nesta tumba escura/Deixe-me repousar/Quando eu vivia, ingrata/Você devia pensar em mim”), e é sensacional a maneira com que o cromatismo do piano sublinha sua evocação a que as “sombras nuas” o encubram no episódio central.
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Oito Canções (Lieder), Op. 52 Compostas entre 1792-96
Publicadas em 1805
1 – Urians Reise um die Welt (Claudius) [DFD, JD]
2 – Feuerfarb’ (Mereau) [PS, WO]
3 – Das Liedchen von der Ruhe (Veltzen) [DFD, JD]
4 – Maigesang (Goethe) [DFD, JD]
5 – Mollys Abschied (Bürger) [AS, WO]
6 – Die Liebe (Lessing) [DFD, JD]
7 – Marmotte (Goethe) [DFD, JD]
8 – Das Blümchen Wunderhold (Bürger) [DFD, JD]
Seis canções (Gesänge), Op. 75 Compostas em 1809 Publicadas em 1810 Dedicadas à princesa Caroline Kinsky
9 – Mignon (Kennst du das Land) (Goethe) [AS, WO]
10 – Neue Liebe, Neues Leben (Goethe) [DFD, JD]
11 – Aus Goethes Faust (Mephistos Flohlied) (Goethe) [DFD, JD]
12 – Gretels Warnung (von Halem) [AS, WO]
13 – An den Fernen Geliebten (Reissig) [AS, WO]
14 – Der Zufriedene (Reissig) [DFD, JD]
Quatro arietas e um dueto, Op. 82 Compostas entre 1801-1809 Publicadas em 1811 15 – Dimmi, Ben Mio, che M’ami (desconhecido) [DFD, JD]
16 – T’intendo si, mio Cor (Metastasio) [DFD, JD]
17 – L’amante Impaziente (Arietta Buffa) (Metastasio) [DFD, JD]
18 – L’amante Impaziente (Arietta Assai Seriosa) (Metastasio) [DFD, JD]
19 – Odi L’aura che dolce sospira (Duetto) (Metastasio) [AS, PS, WO]
20 – Der Mann Von Wort, Op.99 (1816, Kleinschmid) [GL, WO]
21 – Merkenstein, Op.100 (1814-15, Rupprecht, 2ª versão) [AS, PS, WO]
22 – In Questa Tomba Oscura, WoO 133 (1807, Carpani) [DFD, JD]
23 – Die Laute Klage, WoO 135 (1815, Herder) [DFD, JD]
24 – Andenken, WoO 136 (1809, Matthison) [DFD, JD]
25 – Gesang aus der Ferne, WoO 137 (1809, Reissig) [DFD, JD]
26 – Der Jüngling in der Fremde, WoO 138 (1809, Reissig) [DFD, JD]
27 – Der Liebende, WoO 139 (1809, Reissig) [DFD, JD]
28 – Der Bardengeist, WoO 142 (1813, Hermann) [DFD, JD]
29 – Das Geheimnis (Liebe und Wahrheit), WoO 145 (1815, von Wessenberg) [DFD, JD]
30 – Sehnsucht, WoO 146 (1815-16, Reissig) [DFD, JD]
31 – Ruf vom Berge, WoO 147 (1816, Treitschke) [DFD, JD]
32 – Resignation, WoO 149 (1817, von Haugwitz) [DFD, JD]
33 – Abendlied unterm gestirnten Himmel, WoO 150 (1820, Goeble) [DFD, JD]
Adele Stolte, soprano [AS] Peter Schreier, tenor [PS] Günther Leib, barítono [GL] Dietrich Fischer-Dieskau, barítono [DFD] Jörg Demus, piano [JD] Walter Obertz, piano [WO]