Aqui está a aguardadíssima versão das Goldberg pelo jovem e muito talentoso cravista Mahan Esfahani. Ele faz uma assinatura bem estranha na Aria, mas depois nos mostra uma versão espetacular — que poderíamos chamar de vertiginosa sem pensar no lugar-comum — de uma das mais importantes obras de todos os tempos.
Abaixo, um texto de Milton Ribeiro sobre as Goldberg:
Eu nunca tive insônia. Talvez, em razão de alguma dor ou febre, não tenha dormido repousadamente apenas uns dez dias em minha vida. Não é exagero. Quando me deprimo, durmo mais ainda e acordar é ruim, péssimo. O sono é meu refúgio natural. Mas há pessoas que reclamam (muito) da insônia. Saul Bellow escreveu que ela o teria deixado culto, mas que preferiria ser inculto e ter dormido todas as noites — discordo do grande Bellow, acho que ele deveria ter ficado sempre acordado, escrevendo, vivendo e escrevendo para nós. Também poucos viram Marlene Dietrich na posição horizontal, adormecida. Kafka era outro, qualquer barulho impedia seu descanso, devia pensar no pai e passava suas noites acordado, amanhecendo daquele jeito… Groucho Marx, imaginem, era insone, assim como Alexandre Dumas e Mark Twain. Marilyn Monroe sofria muito e Van Gogh acabou daquele jeito não por ser daltônico.
O Conde Keyserling sofria de insônia e desejava tornar suas noites mais agradáveis. Ele encomendou a Bach, Johann Sebastian Bach, algumas peças que o divertissem durante a noite. Como sempre, Bach fez seu melhor. Pensando que o Conde se apaziguaria com uma obra tranquila e de base harmônica invariável, escreveu uma longa peça formada de uma ária inicial, seguida de trinta variações e finalizada pela repetição da ária. Quod erat demonstrandum. A recuperação do Conde foi espantosa, tanto que ele chamava a obra de “minhas variações” e, depois de pagar o combinado a Bach, deu-lhe um presente adicional: um cálice de ouro contendo mais cem luíses, também de ouro. Era algo que só receberia um príncipe candidato à mão de uma filha encalhada.
O Conde tinha a seu serviço um menino de quinze anos chamado Johann Gottlieb Goldberg. Goldberg era o melhor aluno de Bach. Foi descrito como “um rapaz esquisito, melancólico e obstinado” que, ao tocar, “escolhia de propósito as peças mais difíceis”. Perfeito! Goldberg era enorme e suas mãos tinham grande abertura. O menino era uma lenda como intérprete e o esperto Conde logo o contratou para acompanhá-lo não somente em sua residência em Dresden como em suas viagens a São Petersburgo, Varsóvia e Postdam. (Esqueci de dizer que o Conde Keyserling era diplomata). Bach, sabendo o intérprete que teria, não facilitou em nada. As Variações Goldberg, apesar de nada agitadas, são, para gáudio do homenageado, dificílimas. Nelas, as dificuldades técnicas e a erudição estão curiosamente associadas ao lúdico, mas podemos inverter de várias formas a frase. Dará no mesmo.
O nome da obra — Variações Goldberg, BWV 988 — é estranho, pois pela primeira vez o homenageado não é quem encomendou a obra, mas seu primeiro intérprete.
O princípio de quase toda obra de variações consiste em apresentar um tema e variá-lo. (Lembram que Elgar fez uma obra de variações sem apresentar o tema, chamando-a de Variações Enigma?). Assim, o ouvinte tem a impressão de estar ouvindo sempre algo que lhe é familiar e, ao mesmo tempo, novo. A escolha de Bach por esta forma mostrou-se adequada às pretensões do Conde. E a realização não poderia ser melhor, é uma das maiores obras disponibilizadas pela e para a humanidade pelo mais equipado dos seres humanos que habitou este planeta, J. S. Bach. O jogo criado pelo compositor irradia livre imaginação e enorme tranquilidade. A Teoria Geral das Belas-Artes, espécie de Bíblia artística goethiana de 1794, diz o seguinte sobre as Goldberg: “em cada variação, o elemento conhecido está associado, quase sem exceção, a um canto belo e fluido”. E está correto. Só esqueceu de dizer que tudo isso tinha propósito terapêutico.
É muito provável que o enfermo Conde concordasse com a Theorie para descrever seu prazer de ouvir aquela música, mas diria mais. Seus efeitos fizeram que Goldberg a tocasse centenas de vezes para ele. O cálice repleto de ouro significava gratidão pela diversão emocional e intelectual. Dormimos por estarmos calmos e felizes, talvez.
J.S. Bach (1685-1750): Variações Goldberg (Esfahani)
1. Aria
2. Variatio 1 a 1 Clav.
3. Variatio 2 a 1 Clav.
4. Variatio 3 a 1 Clav. Canone All’unisono
5. Variatio 4 a 1 Clav.
6. Variatio 5 a 1 Ovvero 2 Clav.
7. Variatio 6 a 1 Clav. Canone Alla Seconda
8. Variatio 7 a 1 Ovvero 2 Clav. Al Tempo Di Giga
9. Variatio 8 a 2 Clav.
10. Variatio 9 a 1 Clav. Canone Alla Terza
11. Variatio 10 a 1 Clav. Fughetta
12. Variatio 11 a 2 Clav.
13. Variatio 12 a 1 Clav. Canone Alla Quarta
14. Variatio 13 a 2 Clav.
15. Variatio 14 a 2 Clav.
16. Variatio 15 a 1 Clav. Canone Alla Quinta. Andante
17. Variatio 16 a 1 Clav. Ouverture
18. Variatio 17 a 2 Clav.
19. Variatio 18 a 1 Clav. Canone Alla Sesta
20. Variatio 19 a 1 Clav.
21. Variatio 20 a 2 Clav.
22. Variatio 21 a 1 Clav. Canone Alla Settima
23. Variatio 22 a 1 Clav. Alla Breve
24. Variatio 23 a 2 Clav.
25. Variatio 24 a 1 Clav. Canone All’ottava
26. Variatio 25 a 2 Clav. Adagio
27. Variatio 26 a 2 Clav.
28. Variatio 27 a 2 Clav. Canone Alla Nona
29. Variatio 28 a 2 Clav.
30. Variatio 29 a 1 Ovvero 2 Clav.
31. Variatio 30 a 1 Clav. Quodlibet
32. Aria Da Capo
Mahan Esfahani, cravo
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