O centenário de Herbert von Karajan chega junto com uma nova avaliação do seu passado e da ligação com o regime nazista.
Se acontece um tsunami na Indonésia, Herbert von Karajan é o culpado. Se há um ataque terrorista na África do Sul, Herbert von Karajan é o culpado. Um terremoto no Japão? Karajan é o culpado. Caem os índices das bolsas? Karajan. Uma estrela explode numa galáxia distante? Karajan! Interessante percurso, o da biografia de Herbert von Karajan, nome incontornável da música de concerto do século passado. Morto em 1989, desde então a sua fama só fez decrescer e suas culpas só souberam aumentar. Num artigo publicado em janeiro deste ano a respeito do centenário do nascimento de Karajan, que acontece hoje, o crítico inglês Norman Lebrecht fez um apelo melodramático:
– Não transformem um monstro num mito.
Mas Lebrecht, o Diogo Mainardi da música, se enganou: o mito é que tem sido transformado em monstro.
A metamorfose de Karajan nesses últimos 20 anos tem muito a ver com a sua morte no momento em que ele havia se transformado numa caricatura bizarra de líder de orquestra. Nos seus inúmeros vídeos, produzidos por ele mesmo, os ângulos da orquestra são irreais e existem somente para a glorificação da imagem, para a criação de um halo santificador que envolve o perfil de Karajan, sempre de olhos fechados como se internalizasse a música por sopro divino – ou como se ele mesmo fosse a própria divindade. A par disso, há a coleção de automóveis velozes e os aviões pilotados pelo maestro para levá-lo de um lado para outro da fama internacional.
Tudo isso se colocou em contradição à figura austera de Ludwig van Beethoven, o compositor por cujas interpretações Karajan se tornou célebre. O maestro desapareceu no auge dessas idiossincrasias.
Enquanto viveu e mesmo nessa fase da caricatura, Karajan pôde torcer a seu gosto uma pedra de sua biografia – a sua associação com o regime nazista dos anos 1930. Foi com a evidência de seu casamento em outubro de 1942 com Anita Gütermann, neta de judeus, que Karajan atestava o seu descompromisso com aquele regime e protestava perseguições daqueles a quem serviu sem titubear. Os comitês de desnazificação compraram a história e ela serviu para deter as investigações que surgiam de tempos em tempos para tentar desmentir o maestro. A partir da morte de Karajan a encenação foi caindo por terra e sua biografia começou a ser reescrita e o mito se reconstruiu em monstro.
Muitos historiadores têm se debruçado sobre a música do período nazista. O canadense Michael H. Kater, um desses mergulhadores, reconstituiu todo o percurso que levou Herbert von Karajan de obscuro maestro do interior da Alemanha, em 1929, ao posto de mais jovem diretor de teatro de ópera alemão em Aachen em 1935 e à caracterização como “o fabuloso Karajan” num artigo do crítico Edwin von der Nüll (e não de Joseph Goebbels, como se diz às vezes) numa edição do Berliner Zeitung em 1938.
O arrivismo e o oportunismo estavam na ordem do dia naqueles anos de expurgo de músicos judeus. Karajan filiou-se ao partido nazista na primeira hora, já em 1933. Não bastassem os fatos biográficos, há também música para atestar a natureza desse comprometimento político: existem os registros sonoros dos anos do nazismo, inclusive uma gravação do prelúdio de Os Mestres Cantores de Nürnberg, de Wagner, feito em fevereiro de 1939 na presença de Adolf Hitler.
As credenciais nazistas de Herbert von Karajan são impecáveis, inclusive na associação com a música de Carl Orff como prova de seu comprometimento com a música “moderna”. É surpreendente que Karajan tenha conseguido ocultá-las imediatamente, assumindo a regência da Filarmônica de Londres já em 1948, coordenando músicos que haviam lutado na guerra, mas evidentemente do lado oposto ao do maestro. Feito após feito, sucesso após sucesso, extravagância após extravagância, a carreira pós-guerra de Karajan se solidificou quase sem fissuras: maestro vitalício da Filarmônica de Berlim em 1955, regente da Filarmônica de Viena em turnês mundiais, fundador do Festival de Páscoa de Salzburg em 1967, doutor honoris causa da Universidade de Oxford em 1978, regente da Missa da Coroação de Mozart no Vaticano diante do Papa João Paulo II em 1985. Àquela altura, a canonização parecia iminente.
Logo após a morte de Karajan, o seu legado caiu num esquecimento veloz e profundo. A música tinha tomado outros rumos, distanciando-se dos maestros personalistas. Também as grandes orquestras se viram prisioneiras da arapuca das interpretações com instrumentos originais e pouco a pouco muito do seu repertório lhes foi retirado: Beethoven, Berlioz, os barrocos sem nenhuma exceção e Bach acima de todos, Mozart, Haydn. De uma hora para outra, Karajan transformou-se de divindade em mito fora de moda.
Foi assim que o centenário de nascimento veio encontrá-lo e mais uma vez vem o muxoxo azedo de Norman Lebrecht:
– Levantar um maestro dos mortos não tem nenhum valor criativo, pois desperta nada mais valioso do que a adoração a heróis.
Os desvãos da biografia de Karajan atraem como um pólo magnético e invadem aquela área na qual, afinal, se encontra a razão de toda a sua celebridade – a música. O oportunismo político de Karajan não impede que Michael H. Kater avalie ter sido ele “de 1939 a 1945, o mais interessante e atrativo de toda uma geração de jovens maestros do Reich”. Então: é possível descontaminar a música de Karajan das suas posições políticas e do seu carreirismo, para avaliá-la como objeto real, como música-em-si? Não, isso não é possível. Se assim fizéssemos, estaríamos incorrendo naquilo sobre o que o musicólogo americano Richard Taruszkin discorreu quando nos visitou anos atrás: a cegueira diante da presença de elementos desconfortáveis na música.
Na sua conferência Stravinsky e Nós, Taruszkin discutiu a cegueira diante do anti-semitismo de Stravinsky expresso num dos textos da sua Cantata de 1952. Disse Taruszkin: “todos nós operamos sob a pressão de colocarmos o que chamamos de considerações artísticas na frente e no centro de qualquer discussão sobre arte e de resistirmos – na realidade, a desdenharmos – considerações de qualquer outro tipo.” No caso da obra de Stravinsky, o foco da consciência musical havia se deslocado do “objeto em si parta o objeto como ele é feito. Isto se fez às custas da exclusão de idéias extra-musicais na consideração da música ela própria. E este tabu nos tem custado caro.”
O caso da música de Karajan, levando em conta a necessária diferença entre compositores de música e intérpretes de música, é semelhante ao de Stravinsky. Também aqui não há como ouvir Karajan pela música em si mesma. Se num momento ela aparece invadida pelo colaboracionismo político, em outro momento ela se deixa ocultar pelos gestos mais trovejantes do colecionador de carros, o piloto de aviões. Mesmo assim, não há de sobrar pouco de toda a música feita por Karajan. Afinal de contas, um terço de todos os lucros da gravadora Deutsche Grammophon veio durante décadas dos registros do maestro, em áudio e em vídeo.
Há dois extremos na avaliação crítica do legado de Karajan. Numa ponta, existem aqueles que o consideram a melhor personificação de maestro do século 20, sem comparação a nenhum outro, seja ele Arturo Toscanini, Wilhelm Furtwängler ou Leonard Bernstein. Para eles, os registros de Karajan são definitivos no repertório em que os outros também foram mestres, na música de Beethoven, Wagner e Brahms. Na outra ponta, há Lebrecht – sempre ele – a maldizer a tendência de Karajan de homogeneizar a música, fazendo com que “ouvir Karajan em excesso seja como como passar um mês em um McDonalds, uma experiência engordante e insensibilizadora.” Provavelmente, para além desses extremos, exista algum meio-de-campo razoável, no qual colocar a música de Karajan e apreciá-la sob anestesia, já que não será possível apreciá-la sem estar anestesiado às considerações que a cercam e perpassam.
O centenário de Herbert von Karajan é muito mais do que uma efeméride a ser assinalada com um par de livros e um saco de confetes. Todos os elementos que construíram o mito Karajan convergem para construir uma visão muito específica da arte do século passado e de suas turbulências ideológicas, suas adesões e recusas, as cores fortes de suas contradições chocantes. Por isso, talvez o que melhor represente todos os registros sonoros de Karajan seja mesmo o grito lancinante que encerra a sua gravação expressionista da Cavalleria Rusticana de Mascagni. No seu desespero, ele vale mais do que a beleza calculada de qualquer uma de suas múltiplas gravações da Marcha Fúnebre da Eroica de Beethoven.
CELSO LOUREIRO CHAVES | Músico | Publicado hoje no Caderno de Cultura de Zero Hora