Os antipianistas que me perdoem e que voltem noutro dia: hoje, mais uma vez, é dia de Chopin.
Tiete irremediável que dele sou, um verdadeiro “chopinete” com devoção quase patológica ao polonês genial, não foi à toa que o escolhi para minha estreia neste blogue, que ocorreu com duas postagensmamúticas do que eu afirmava ser a obra integral do polonês em instrumentos de época.
Sim, afirmava.
Sim, pretérito imperfeito.
ooOoo
Por algum motivo, não encontraram espaço naquela caixa de 21 CDs para estas transcrições dos concertos de Chopin para piano e quinteto de cordas. Ou talvez exista, sim, um bom motivo: o arranjo não é da lavra do próprio Chopin, mas de um certo Richard Hofmann, sobre o qual nada mais descobri, exceto o nome no frontispício da primeira edição do Concerto em Mi menor.
Ali, bem borradinho, no rodapé. Note-se o “avec Accompagnement d’Orchestre ou de Quintuor ad libitum” (“com acompanhamento de orquestra ou de quinteto, a bel-prazer”)
Tais arranjos eram muito populares naqueles tempos em que havia poucas orquestras profissionais, o que tornava os ensaios orquestrais muito dispendiosos. Ademais, ajudavam a popularizar a obra, libertando-a das salas de concertos e permitindo sua execução mesmo em domicílios ou nos salões aristocráticos notoriamente preferidos por Chopin.
Aqueles que não conseguem deglutir o que chamam de orquestração inepta de Chopin talvez apreciem seus Concertos nesta roupagem camerística, em que o pianista não só se exibe nos complicados solos, mas também assume algumas partes originalmente delegadas à orquestra, notoriamente aquelas das madeiras. A pianista Janina Fiałkowska pega leve nos fortes e fortissimos na parte solista e, assim, ajuda a preservar o caráter camerístico dos arranjos – que, se não chegam a se tornar sextetos com piano, pelo menos deixam estas muito conhecidas obras respirarem ar fresco.
FRYDERYK FRANCISZEK CHOPIN (1810-1849) CONCERTOS PARA PIANO EM VERSÃO DE CÂMARA Arranjos para piano e quinteto de cordas: Richard Hofmann
Um dos mais célebres concertos da história da Filarmônica de Nova York (e que o encarte chama de “infame”) foi o que aconteceu na noite de 6 de abril de 1962, cuja gravação agora lhes apresento.
Os músicos envolvidos eram estrelas da gravadora Columbia e surfavam em sucessos estrondosos: o regente Leonard Bernstein, nas ondas de “West Side Story”, que chegara ao cinema no ano anterior; e o pianista canadense Glenn Gould, ainda no maremoto causado por sua gravação de estreia das Variações Goldberg, sete anos antes, embora já granjeasse a reputação de excentricidade que só cresceria no decorrer dos vinte anos que lhe restariam de vida.
Bernstein e Gould já tinham colaborado algumas vezes, tanto em palcos quanto em estúdios, sem maiores dificuldades. Durante os ensaios do Concerto de Brahms, entretanto, ficou claro que as concepções de ambos para a obra eram radicalmente diferentes. Gould, célebre pelas liberdades que tomava em relação às partituras (em especial nos andamentos, articulação e dinâmica – i.e., quase tudo, exceto as notas!), escolhera uma abordagem lenta e ruminativa, enfatizando o contraponto. Bernstein, mais afeito a obedecer as indicações do compositor, acedeu. Não obstante, com a orquestra a postos, entrou sozinho no palco e, subindo ao pódio, sentiu obrigado a eximir-se da responsabilidade em relação ao que se iria ouvir:
“Não se apavorem, o Sr. Gould está aqui [risadas da plateia – Gould era famoso pelos cancelamentos de última hora, e de tal forma que a orquestra já preparara a Sinfonia no. 1 de Brahms para o caso dele não aparecer]. Ele aparecerá num instante. Não tenho, ahn, como vocês sabem, o hábito de falar em qualquer concerto, exceto os das quintas à noite, mas uma situação curiosa surgiu, que merece, penso eu, uma ou duas palavras. Vocês estão prestes a ouvir uma, digamos, interpretação bastante inortodoxa do Concerto em Ré menor de Brahms, uma interpretação distintamente diferente de qualquer outra que eu já escutei, ou até mesmo, diria, sonhei, em seus andamentos notavelmente vagarosos e frequentes abandonos das indicações dinâmicas de Brahms. Não posso dizer que estou totalmente de acordo com a concepção do Sr. Gould, e isso traz a interessante pergunta: ‘por que a estou regendo?’. Eu estou regendo porque o Sr. Gould é um artista tão capaz e sério que eu tenho que levar a sério tudo aquilo que ele concebe em boa fé, e sua concepção é interessante o bastante para eu achar que vocês também a devem ouvir.
Mas a velha pergunta permanece: ‘num concerto, quem é o chefe: o solista ou o regente?’. A resposta, claro, é às vezes um, às vezes o outro, dependendo das pessoas envolvidas. Mas quase sempre os dois conseguem se entender por persuasão, charme ou mesmo ameaças para chegarem a uma interpretação coerente. Só uma vez antes na vida eu tive que me submeter à concepção totalmente nova e incompatível de um solista, e isso foi da última vez que acompanhei o Sr. Gould [gargalhadas da plateia]. Mas dessa vez as discrepâncias em nossos entendimentos são tão grandes que achei que tinha que fazer esta breve ressalva. Então por que, para repetir a pergunta, estou regendo? Por que não faço um pequeno escândalo – conseguir um solista substituto, ou mandar o regente assistente conduzir? Porque estou fascinado, feliz com a oportunidade de um novo olhar sobre esta obra muito executada. Porque, ainda mais, há momentos na interpretação do Sr. Gould que emergem com frescor e convicção surpreendentes. Em terceiro lugar, porque todos nós podemos aprender algo com este extraordinário artista, que é um intérprete pensante, e finalmente porque há na música aquilo que Dimitri Mitropoulos costumava chamar de “elemento esportivo”, aquele toque de curiosidade, aventura, experimentação, e posso assegurar-lhes que tem sido uma aventura colaborar com o Sr. Gould neste Concerto de Brahms ao longo dessa semana, e é nesse espírito de aventura que nós agora o apresentamos a vocês” [minha tradução livre]
O comentário de Bernstein e a interpretação de Gould, claro, causaram um pequeno escândalo. Os críticos detonaram ambos, e a gravação da transmissão radiofônica circulou durante décadas em cópias piratas, até ser lançada oficialmente (e com qualidade de gravação pirata) pela Sony em 1998, incluindo o controverso pronunciamento de Bernstein.
Houve até quem atribuísse à controvérsia com Bernstein a decisão posterior de Gould de abandonar para sempre as apresentações ao vivo e concentrar-se em gravações de estúdio. Não é, entretanto, o que ele deixa entender na entrevista que deu a um radialista, anos depois, e que também está incluída no álbum. Não tenho como transcrever tudo o que Gould, um notório tagarela, falou, mas ele essencialmente corrobora a atitude de Bernstein e declara ter problemas com a dualidade masculino/feminino do concerto como forma musical – posição que o levaria, no restante da carreira, a preferir gravar obras para piano solo e música de câmara.
Sobre a gravação em si, já falei que a qualidade do som é medonha: tem-se a impressão de que os microfones preferiram captar a sinfonia tísica da plateia, que não para de botar os bofes para fora, ao piano de Gould, que parece tocar das coxias. Os andamentos são de fato muito lentos, mas me parece haver um gradual accelerando ao longo dos movimentos, em especial no Maestoso. O mais interessante é que as gravações posteriores de Bernstein (como aquela que ele faria com Krystian Zimerman) duram quase tanto quanto a que ele fez com Gould, o que nos faz concluir que, talvez, o solista tenha vencido o embate contra o regente.
É bem provável que vocês, acostumados a Gilels, Zimerman e Pollini, detestem a interpretação de Gould. Para mim, ela foi um gosto adquirido: eu também já a detestei, mas sua leitura heterodoxa é hoje uma de minhas favoritas.
Johannes BRAHMS (1833-1897)
Concerto para piano e orquestra no. 1 em Ré menor, Op. 15
01 – Introdução de Leonard Bernstein
02 – Concerto Op. 15 – Maestoso
03 – Concerto Op. 15 – Adagio
04 – Concerto Op. 15 – Rondo – Allegro non troppo
05 – Trecho de entrevista de Glenn Gould ao radialista James Fassett (1967)
Glenn Gould, piano New York Philarmonic Leonard Bernstein, regência
Gravado no Carnegie Hall, Nova York, em 6 de abril de 1962.
O conteúdo dos comentários à postagem inicial desta série sobre Antonio Guedes Barbosa – aclamação unânime de seu talento, especialmente por aqueles que tiveram o privilégio de ouvi-lo ao vivo, e indignação uníssona com o que consideram um oblívio incompreensível – só atestam sua condição de mestre esquecido.
A admiração pela arte de Barbosa não se restringe aos melômanos mundo afora. Muitos pianistas renomados declararam abertamente sua tietagem, e de tal maneira que não seria exagero considerá-lo, assim como pioneiramente intitularam Leopold Godowsky, um “pianista dos pianistas”.
Na Idade da Pedra Lascada da internet, eu já era fã de Barbosa e divulgava com entusiasmo seu legado em diversos fóruns, a maioria deles dedicada a Chopin. Muitos melômanos antes irredutíveis em suas preferências – fossem elas artistas do calibre de Rubinstein, Cortot e Argerich – acabavam reconhecendo a grandeza das interpretações do brasileiro, especialmente a combinação de precisão e originalidade.
Anos depois, já na Idade do Bronze, recebo uma mensagem de e-mail:
“Prezado senhor:
Encontrei sua referência a Antonio Barbosa, um de meus pianistas favoritos, num fórum de internet dedicado a Chopin. Falava com Andre Watts outro dia e ele me perguntou o que afinal acontecera com Barbosa. Nós dois estivemos num recital de Barbosa totalmente dedicado a Chopin em New York muitos anos atrás. Eu lhe falei que pensava que Barbosa morrera jovem de um ataque do coração. Se o senhor tiver qualquer informação sobre sua morte, eu apreciaria muito se a repassasse.
Muito obrigado.
Sinceramente, M. Perahia”
Óbvio que implodi.
ooOoo
Fryderyk Francyszek CHOPIN (1810-1849)
Sonata para piano no. 2 em Si bemol menor, Op. 35
01 – Grave. Doppio movimento
02 – Scherzo
03 – Marche funèbre. Lento
04 – Finale. Presto
Sonata para piano no. 3 em Si menor, Op. 58
05 – Allegro maestoso
06 – Scherzo. Molto vivace
07 – Largo
08 – Finale. Presto non tanto
Depois de engulhar a turma do violão clássico com um duo certa feita apresentado como “bugres que sabem tocar” e com Paco de Lucía tocando o Concierto de Aranjuez, venho redimir-me junto a eles com uma boa dose (a dose integral, aliás) de um dos melhores compositores para seu instrumento.
O virtuoso espanhol Francisco Tárrega foi fundamental para consolidar o violão como um instrumento solista e o primeiro violonista de fama realmente mundial, capaz de atrair multidões para as mais célebres casas de concerto do planeta. Nessa condição de fundador e desbravador de fronteiras, Tárrega encontrou um repertório original muito acanhado, baseado principalmente em obras de precursores como o francês Robert de Visée (1655 – 1732), o catalão Fernando Sor (1778-1839) e o italiano Mauro Giuliani (1781-1829). Devido à insistência de sua família para que tivesse formação em piano – um instrumento sério e nobre, diziam, e não a plebeia, mourisca guitarra -, sua proficiência ao teclado acabou sendo de grande valia na tarefa de transcrever muitas obras do repertório pianístico para o violão.
Escreveu algumas dúzias de obras originais, muitas delas baseadas em reminiscências de suas extensas turnês pelo mundo. Numa delas, tocou um recital num dos recintos do Alhambra, o magnífico palácio-fortaleza dos mouros nos altos de Granada. A forte impressão causada por aquele triunfo da arquitetura islâmica, certamente uma das mais belas coisas já feitas pelo homem, levou-o a escrever a igualmente maravilhosa Recuerdos de la Alhambra, sua segunda obra mais conhecida.
[a primeira, claro, é o infame toque dos celulares Nokia, que vocês reconhecerão nos primeiros compassos da Gran Vals. Sim: falo sério]
Até hoje, os herdeiros de Tárrega nunca viram um pila sequer da Nokia.
O escocês David Russell, que estudou na Espanha, viveu boa parte de seus anos lá e muito pesquisou a obra de Tárrega, fez um bom trabalho nesta gravação, na qual defende com grande competência quase toda a obra do compositor.
Quase toda? Sim: o escocês promete-lhes a obra integral, mas não lhes entrega o que promete. Ficou faltando uma peça bastante conhecida dos fanáticos por violão, La Cartagenera, que não sei por que raios nunca foi gravada por Russell. Como EU cumpro o que prometo e lhes prometi a INTEGRAL da obra de Tárrega, inseri junto ao segundo CD a interpretação do grande Narciso Yepes para a peça que faltava.
De nada.
Francisco de Asís TÁRREGA y Eixea (1852-1909)
OBRA INTEGRAL PARA VIOLÃO SOLO
David Russell, violão
DISCO 1
01 – Maria (Gavota)
02 – Pavana
03 – Gran Vals
04 – El Columpio
05 – Vals em Ré maior
06 – Danza Mora
07 – Danza Odalisca
08 – Pepita (polka)
09 – Rosita (polka)
10 – Sueño (mazurka)
11 – Marieta (mazurka)
12 – Mazurka em Sol maior
13 – Adelita (mazurka)
14 – Las Dos Hermanitas (valsa)
15 – Minueto
16 – Paquito (valsa em dó)
17 – Isabel (valsa)
18 – Sueño (tremolo)
19 – Fantasia sobre motivos de “La Traviata” de Verdi
20 – Fantasia sobre “Marina” de Arrieta
21 – El Carnaval de Venezia
01 – Capricho Arabe
02 – Recuerdo de la Alhambra
03 – Alborada
04 – Tango
05 – Prelúdio no. 1 em Mi maior
06 – Prelúdio no. 2 em Lá maior
07 – Prelúdio no. 3 em Lá menor
08 – Prelúdio no. 4 em Si menor
09 – Prelúdio no. 5 em Sol maior
10 – Prelúdio no. 6 em Ré menor
11 – Prelúdio no. 7 em Sol maior
12 – Prelúdio no. 8 em Mi maior (“Lagrima”)
13 – Prelúdio no. 9 em Ré menor
14 – Prelúdio no. 10 em Ré menor
15 – Prelúdio no. 11 em Ré menor
16 – Prelúdio no. 12 em Ré maior
17 – Prelúdio no. 13 em Mi maior
18 – Prelúdio no. 14 em Lá menor
19 – Prelúdio no. 15 em Lá menor
20 – Prelúdio no. 16 em Mi maior
21 – Estudo em Forma de Minueto
22 – Estudo de Velocidade
23 – Estudo em Sol maior
24 – Estudo em Sol maior
25 – Estudo em Lá maior
26 – Estudo em Lá maior
27 – Estudo em Lá maior
28 – Estudo em Lá menor
29 – Estudo em Mi maior
30 – Estudo “Petit Menuet”
31 – Estudo em Ré maior
32 – Estudo em Dó maior
33 – Estudo em Lá maior
34 – Estudo “La Mariposa”
35 – Estudo sobre um tema de Wagner
36 – Estudo inspirado em J. B. Cramer
37 – Estudo sobre um tema de Mendelssohn
38 – Estudo em Lá maior
39 – Estudo em Si menor
40 – Estudo Brilhante de Alard
41 – Gran Jota
BÔNUS: “La Cartagenera” intepretada por Narciso Yepes
Uma das melhores gravações do ano, talvez só superada pelo primoroso “Time Present and Time Past” de Mahan Esfahani (que, aliás, tem aqui uma discreta participação no baixo-contínuo da trio-sonata).
O bandolinista israelense Avi Avital é daqueles virtuoses de importância seminal, que não só granjeiam público e prestígio a seus instrumentos, como também ampliam seu repertório. Neste álbum, Avital não se restringiu às escolhas óbvias (os concertos para bandolim de Vivaldi, que ele chama de “Velho Testamento” de seu instrumento) e gravou também transcrições de sua lavra de concertos para outros instrumentos.
O bandolim de Avital vibra e canta lindamente. As transcrições são primorosas, e mesmo o batido “Verão” de “As Quatro Estações” ganha pujância e frescor. Não se deixem enganar pelo caprichado encarte, que se preocupa mais em explorar a estampa do bem-apessoado rapaz do que com o comentário às obras gravadas, e que se rende à tendência atual de representar os artistas em posições que variam do torpor ao êxtase psicodélico: este bonito frasco está repleto do melhor perfume.
VIVALDI – AVI AVITAL
Antonio Lucio VIVALDI (1678-1741)
Concerto em Lá menor para violino, orquestra de cordas e baixo-contínuo, RV 356
(transcrição de Avi Avital)
01 – Allegro
02 – Largo
03 – Presto
Concerto em Ré maior para alaúde, orquestra de cordas e baixo-contínuo, RV 93 (transcrição de Avi Avital) 04 – Allegro
05 – Largo
06 – Allegro
Concerto em Dó maior para bandolim, orquestra de cordas e baixo-contínuo, RV 425
07 – Allegro
08 – Largo
09 – Allegro
Concerto em Dó maior para flautim, orquestra de cordas e baixo-contínuo, RV 443
(transcrição de Avi Avital)
10 – Largo
Avi Avital, bandolim Orchestra Barocca de Venezia
Trio-sonata em Dó maior para violino, alaúde e baixo-contínuo, RV 82 (transcrição de Avi Avital)
11 – Allegro non molto
12 – Larghetto
13 – Allegro
Avi Avital, bandolim Ophira Zakai, alaúde Mahan Esfahani, cravo Patrick Sepec, violoncelo
Concerto em Sol menor para violino, orquestra de cordas e baixo-contínuo, RV 315
14 – Allegro non molto
15 – Adagio e piano. Presto e forte
16 – Presto
Meu interesse em instrumentos musicais já me levou a tocar alguns deles em graus de sucesso que variam do sofrível ao ridículo. Minha experiência com todos, em especial os metais e as cordas, levou-me a admirar sobremaneira a dedicação dos instrumentistas para ajustarem suas bocas e dedos àqueles teimosos aparatos, extraindo deles não só sons agradáveis e condizentes com a intenção de um compositor, mas, o que é ainda mais impressionante, sem sucumbirem no processo.
Se acho uma façanha ser um virtuose de um instrumento que se toca tocando, que se pode dizer de um instrumento que se toca sem que se o toque?
Para mim, amigos, magia negra. Para o resto do mundo, é o assombroso teremim.
ooOoo
Inventado pelo físico russo Léon Theremin (Lev Termen, para os íntimos), este pioneiro entre os instrumentos eletrônicos é controlado pela posição das mãos do intérprete em relação a duas antenas: uma que regula a frequência, outra para o volume. O peculiar timbre resultante, já descrito como o de um “violoncelo perdido em neblina espessa, chorando por não saber como voltar para casa”, soa de melancólico a decididamente fantasmagórico. Não é à toa, portanto, que o teremim seja figurinha fácil de trilhas sonoras de filmes que abordam o incomum, o bizarro, e o inacreditável.
Parece difícil, e é mesmo. Por isso, talvez, passada a curiosidade inicial, o incrível instrumento de Theremin tenha ficado meio esquecido, e certamente limado de todos os círculos de música “séria”, até a entrada em cena de uma certa Clara Rockmore.
Nascida Klara Reisenberg em Vilnius (Lituânia), foi uma criança-prodígio no violino e chegou a estudar com Leopold Auer (sim, o professor de Heifetz; sim, o sujeito que esnobou o Concerto de Tchaikovsky) no Conservatório de São Petersburgo. Problemas de saúde fizeram-na abandonar o violino e a Música como um todo até encontrar, já nos Estados Unidos, o inventor Theremin. Trabalharam juntos no aperfeiçoamento do instrumento como meio de expressão artística. Foram tão próximos que Léon, que não era bobo, nem nada, lhe propôs casamento. Klara deu-lhe o fora, casou-se com um certo Rockmore, passou a chamar-se Clara e, emprestando ao teremim sua extraordinária musicalidade, transformou-se em sua primeira virtuose.
O vídeo acima, apesar do som precário, dá a vocês uma melhor ideia do que lhes tento dizer (além, claro,de ser deliciosamente funéreo!). O timbre, como já falamos, talvez seja um gosto adquirido, mas é assombrosa a expressividade que Rockmore obtém sem nada tocar além do éter. Se vocês perceberem, ao contrário da maior parte dos instrumentos, dos quais os silêncios são obtidos tão só pela suspensão da emissão do som, as pausas no teremim também têm que ser produzidas, através da ação a mão do volume (no caso de Rockmore, a esquerda).
Espero que, vencendo a natural estranheza, vocês possam apreciar a complicada arte desta virtuose incomum.
THE ART OF THE THEREMIN – CLARA ROCKMORE
Sergey VasilyevichRACHMANINOV (1873-1943)
01 – Canções, Op. 34 – no. 14: Vocalise
02 – Romances, Op. 4 – no. 4: “Ne poj, krasavitsa” [NOTA DO AUTOR: conhecida como “Canção de Grusia”, não se refere a qualquer pessoa, mas sim à região caucasiana da Geórgia, que tem este nome em russo]
Charles-Camille SAINT-SAËNS (1835-1921)
03 – O Carnaval dos Animais – no. 13: O Cisne
Manuel de FALLA y Matheu (1876-1946)
04 – El Amor Brujo – Pantomima
Yosif YuliyevichAKHRON (1886-1943)
05 – Melodia hebreia, Op. 33
Henryk WIENIAWSKI (1835-1880)
06 – Concerto para violino no. 2 em Ré menor, Op. 22 – Romance
Antes que nossos arretados leitores-ouvintes me intimem novamente a concluir a série, o cabra aqui apressa-se em fazê-lo.
O último álbum é um saco de gatos repleto de noturnos escritos por contemporâneos de Chopin. De Clara Schumann a Camille Pleyel (que faria fortuna como fabricante de pianos), e de Glinka ao boçal Kalkbrenner, que quase foi professor de Chopin e se considerava, após a morte de Haydn e Beethoven, “o último músico clássico vivo”, tem de tudo. Em sua maioria, são bombons tão untuosos e adocicados que farão até os mais ardentes anti-chopinianos querer escutar os noturnos do mestre e espocar fogos em homenagem ao gênio polonês.
Dignas de nota são as peças de Charles-Valentin Alkan (1813-1888), um compositor para piano extremamente original que, para minha total surpresa, faz sua estreia aqui no PQP Bach. Ele foi uma figura excêntrica, amigo de Liszt e Chopin e, ainda assim, tido por vários contemporâneos como o maior pianista de sua época. Daremos um jeito de trazer para cá, nas próximas semanas, um tanto de sua produção desenfreada, e muitas vezes prosopopeica, pelas mãos dos ótimos Marc-André Hamelin e Jack Gibbons.
THE ART OF THE NOCTURNE, volume IV
Joseph Étienne Camille PLEYEL (1788-1855)
01 – Noturno “alla Field” em Si bemol maior
Friedrich (Frédéric) Wilhelm MichaelKALKBRENNER (1785-1849)
Noturnos para piano, Op. 121
02 – No. 1 em Lá bemol maior, “Les Soupirs de la Harpe Éolienne”
03 – No. 2 em Fá maior, a três mãos*
Clara JosephineSCHUMANN (1819-1896)
Soirées Musicales, Op. 6
04 – No. 2: Noturno em Fá maior
Louis James AlfredLEFÈBURE-WÉLY (1817-1870)
05 – Noturno em Ré bemol maior, Op. 54, “Les Cloches du Monestère”
Sim, as agruras de atravessar o Congo deixaram-me meio sequelado. Estou indolente, rumo ao catatônico. Talvez tenham sido os alimentos peculiares que a gente ingere quando se está numa barca superlotada, com crocodilos amordaçados no convés. Ou, então, uma mosca tsé-tsé.
Seja lá o que for que estiver por trás dessa preguiça, não foi ela quem me fez repartir em duas postagens aquilo estes noturnos todos que poderia, tranquilamente, ter colocado numa só.
Julguem-me.
Fryderyk FranciszekCHOPIN (1810-1849)
NOTURNOS PARA PIANO
Dois Noturnos, Op. 27
01 – No. 1 em Dó sustenido menor
02 – No. 2 em Ré bemol maior
Dois Noturnos, Op. 37
03 – No. 1 em Sol menor
04 – No. 2 em Sol maior
Dois Noturnos, Op. 48
05 – No. 1 em Dó menor
06 – No. 2 em Fá sustenido menor
Dois Noturnos, Op. 55
07 – No. 1 em Fá menor
08 – No. 2 em Mi bemol maior
Estava eu em Kinshasa – o toalete do Inferno – bisbilhotando o que vocês aprontavam aqui no PQP Bach, quando então, em meio aos fumos pungentes da banquinha próxima de um vendedor de macaco assado (sic!), recebi a seguinte mensagem acerca da postagem inicial da série “The Art of the Nocturne”:
– Pô, Vassily: bote o restante da série, cabra!
Ôxe!
Fryderyk Franciszek CHOPIN (1810-1849)
NOTURNOS PARA PIANO
Três Noturnos, Op. 9
01 – No. 1 em Si bemol menor
02 – No. 2 em Mi bemol maior
03 – No. 3 em Si maior
Peças Póstumas para piano, Op. 72
04 – No. 1: Noturno em Mi menor
Três Noturnos, Op. 15
05 – No. 1 em Fá maior
06 – No. 2 em Fá sustenido maior
07 – No. 3 em Sol menor
Dois Noturnos, Op. 32
08 – No. 1 em Si menor
09 – No. 2 em Lá bemol maior
Dois Noturnos, Op. 62
10 – No. 1 em Si maior
11 – No. 2 em Mi maior
12 – Lento con gran espressione – Noturno em Dó sustenido menor, Op. Póstumo
O notável rol de compositores divulgados aqui no PQP Bach ganha mais um integrante.
O irlandês John Field foi muito famoso em seu tempo e tremendamente respeitado por seus colegas. Estudou com Clementi na Inglaterra, fez turnês por toda a Europa e acabou na Rússia, onde fez fama e fortuna. Gastou muito do que tinha – inclusive a saúde – vivendo como um sátiro priápico, e por um triz não morreu na penúria.
Nas décadas que se seguiram à sua morte, e talvez por ter feito sua carreira no que era então um país periférico no mapa-múndi musical (Glinka, na época, era só uma criança), a obra de Field foi sendo esquecida. Hoje, ele praticamente só é lembrado como o primeiro compositor de Noturnos para piano e, nessa condição, como o precursor das obras-primas de Chopin no gênero.
A reputação do dublinense entre os colegas pianistas era tamanha que Franz Liszt escreveu o seguinte no prefácio de uma edição póstuma dos Noturnos de Field:
“Ninguém obteve tais vagas harmonias eólicas, estes meios-suspiros flutuando pelo ar, lamentando suavemente, e dissolvidos em deliciosa melancolia”
Os ouvidos modernos, repletos que estão de Chopin, talvez não encontrem ecos para o entusiasmo de Liszt – que era, aliás, um contumaz rasgador de seda. Quem escuta Field pela primeira vez tem a impressão de que ele se contenta em repetir incessantemente escalas muito ornamentadas sobre um modesto acompanhamento. Por outro lado, quem toma o cuidado de não esperar de Field a audácia harmônica e a invenção melódica do gênio polonês acaba encontrando peças muito agradáveis, que bebem demais da fonte de Hummel – a referência inescapável dos pianistas da época – e parecem olhar, sem preocupação alguma, para o futuro.
Esta bonita caixa da Brilliant Classics, que postaremos ao longo das próximas semanas, é enriquecida por boas interpretações de Bart van Oort e pelo timbre incomum de pianos antigos – aqui, um Broadwood de 1823, semelhante àquele com que o fabricante presenteou Beethoven alguns anos antes.
JohnFIELD (1782-1837)
OS NOTURNOS PARA PIANO
01 – Noturno em Mi bemol maior, H. 24
02 – Noturno em Dó menor, H. 25
03 – Noturno em Lá bemol maior, H. 26
04 – Noturno em Lá maior, H. 36
05 – Noturno em Si bemol maior, H.37
06 – Noturno em Fá maior, H. 40
07 – Noturno em Dó maior, H. 45
08 – Noturno em Lá maior, H. 14e
09 – Noturno em Mi bemol maior, H. 30
10 – Noturno em Mi menor, H. 46b
11 – Noturno em Mi bemol maior, H. 56a
12 – Noturno em Sol maior, H. 58d
13 – Noturno em Ré menor, H. 59
14 – Noturno em Fá maior, H. 62a
15 – Noturno em Mi maior, H. 54f
A parceria entre os gigantes Menuhin e Shankar, iniciada a convite do primeiro no Festival de Bath de 1966, resultou numa amizade que duraria até o final de suas vidas e em três bem-sucedidos álbuns que foram condensados neste volume que ora lhes apresento.
Já defendi em outra postagem a divulgação de música clássica de outras paragens, lançando mão das palavras do colega Ranulfus: “uma das coisas que me motivam na colaboração no blog é tentar demonstrar o quanto nosso conceito de ‘clássico’ pode ser justificadamente expandido para além das suas fronteiras tradicionais (no fundo etnocêntricas), e isso com criações autênticas, não com adaptações tipo ‘transcrições de canções populares para orquestra’.”.
A música clássica indiana, com seus instrumentos peculiares, os microtons (shrutis), sua intensa verve e o caráter improvisatório superposto às estritas definições de raga e tala, às quais voltaremos algum dia, pode trazer dificuldades a ouvidos pouco acostumados a ela. A ilustre presença de Lord Menuhin, aqui muito reverente à arte que busca integrar à sua própria, talvez facilite um pouco a introdução de vós outros a este novo planeta musical. Para quem estranha a presença de violino no conjunto de virtuoses indianos, digo que este instrumento, com o mesmíssimo feitio, mas com afinação e sob técnica muito diferentes, é usado há já alguns séculos na Índia para fazer música, ainda que, para isso, seja apoiado entre o ombro esquerdo e o pé direito do executante.
Convido os leitores-ouvintes à apreciação do rico som do sitar, da habilidade de Shankar na improvisação e, especialmente, das intervenções daquele que é considerado por muitos o maior percussionista que já existiu – Alla Rakha, mestre supremo da tabla.
Estas gravações históricas marcaram não só a primeira colaboração entre um músico indiano e um grande nome da música ocidental, como também lançaram a carreira de Shankar no Ocidente, onde se tornaria figurinha fácil nas grandes salas de concertos e influenciaria George Harrison e o som dos Beatles. Conquistou, entre seus pares, a reputação de um dos maiores músicos vivos e, ao morrer em 2012, virou uma lenda – não sem antes deixar para o mundo as maravilhosas filhas Anoushka Shankar e Norah Jones, duas estrelas da música, cada qual em sua própria vertente.
Espero que este grande encontro de notáveis deixe com as senhoras e senhores um sabor de “quero mais” que torne bem-vindo, noutras ocasiões, o que de mais eu lhes trouxer da riquíssima música daquele subcontinente.
WEST MEETS EAST – THE HISTORIC SHANKAR/MENUHIN SESSIONS
[epílogo das trêspartesanteriores, retomando do ponto em que Amadeus ficou horrorizado com o andamento frenético com que Gould tocou uma de suas sonatas, a ponto de exclamar “Soeinspiellen und scheissen ist bey mir einerley!”]
GOULD: Assim fica melhor? [toca novamente o Allegro moderato da Sonata em Dó maior, K. 330, mas dessa vez adota o andamento mais lento de sua gravação de 1958]. Melhor?
MOZART: Melhor, sim. Mas as indicações dinâmicas – o contraste entre forte e piano, os sforzandi…
G: “Culpado, meritíssimo!”. Eu nunca toco sforzandi, “já que eles representam um elemento de quase-teatralidade pelo qual minha alma puritana tem vigorosa objeção”.
M: (cautelosamente) Mas o que dizem os críticos? Quero dizer, acerca dos sforzandi que faltam e o resto…
G: (com uma gargalhada) Oh, os críticos! Deveria ler-lhe o que um desses cavalheiros escreveu sobre minha interpretação para sua Sonata em Lá maior? “É muito difícil captar o que Gould tenta provar, a não ser que o boato de que ele realmente odeia essa música seja verdadeiro. Andamentos são dolorosamente lentos, a articulação picotada e destacada viola a estrutura frasal (e muitas das indicações específicas de Mozart) […] isso tudo evoca a imagem de um moleque tremendamente precoce mas muito sacana tentando aprontar uma para seu professor de piano”.
M: (inseguro de si mesmo) E você, er, realmente odeia essa música… minha música?
G: (sinceramente) Não, Sr. Mozart. É verdade que eu a ouço, entendo e interpreto diferentemente da maior parte das pessoas, e sem dúvidas diferentemente de você, “e tenho certeza de que frequentemente você não aprovaria o que eu faço com sua música. No entanto, mesmo que seja cego, o intérprete tem que estar convicto de que está fazendo a coisa certa e de que ele pode achar maneiras de interpretá-la das quais nem o próprio compositor estaria ciente”.
M: Poderia pedir-lhe para tocar-me uma de suas interpretações que você acha que eu aprovaria?
G: Que tal o Alla turca de sua Sonata em Lá maior?
M: (nervosamente) Er…
G: (com uma gargalhada) Não se preocupe, não o tornarei um Presto, quanto menos um Prestissimo. Muito pelo contrário: vou tocá-lo como um Allegretto, como você mesmo indicou (e como, acrescento, ele é raramente ouvido).
M: (com dúvidas) E também com os contrastes entre piano e forte?
G: Esses, também! (com uma gargalhada) Ainda mais porque não há sforzandi neste movimento!
M: Nota por nota, então, como eu o escrevi?
G: Nota por nota – exceto por alguns pequenos arpejos na coda, que dá ao movimento seu toque “turco”.
M: Bem, então… eu sou todo ouvidos!
MOZART: (friamente) Não preciso lhe dizer que, ao manter esse ponto de vista, você está numa minoria de… uma pessoa. Ainda que eu não me inclua entre eles (e tenho certeza de que você entenderá que, por motivos puramente pessoais, não compartilho seu ponto de vista), poderia, com toda modéstia, apontar-lhe milhares, mesmo centenas de milhares de amantes da música que…
GOULD: Mesmo que fossem milhões, não fariam diferença. “Ainda criança, eu não conseguia entender como meus professores, e outros adultos presumivelmente sãos, contavam as suas obras entre os grandes tesouros musicais do homem ocidental. […] Acho que eu tinha em torno de treze anos quando finalmente percebi que o mundo inteiro não via as coisas como eu via. Já que jamais me teria ocorrido, por exemplo,que alguém poderia não compartilhar meu entusiasmo por um céu cinza e nublado, foi então um verdadeiro choque descobrir que havia de fato pessoas que preferiam o ensolarado. Poderia acrescentar que isso continua a ser um mistério para mim, mas essa é outra história.
M: (com pena) Acho que começo a entendê-lo, meu pobre amigo. Escute, há um médico aqui que certamente poderia curá-lo de seu entusiasmo por céus cinzas e nublados. Ele se chama Dr. Freud…
G: (às gargalhadas) Não, obrigado – recusei-me a permitir que qualquer de seus colegas se aproximasse de mim enquanto vivia. Em todo caso, minha preferência por certos fenômenos meteorológicos em particular não está de qualquer maneira conectado com minha crítica a certas inconsistências composicionais em sua música. Tome, por exemplo, o Finale Allegro grazioso de sua Sonata em Si bemol maior, K. 333, ou, para ser mais preciso, a cadenza logo antes do final do movimento. “Para mim, essa página vale o preço do ingresso”.
M: (lisonjeado) Sério?
G: (incensado) Mas como lhe deu na telha a ideia insana de escrever “Cadenza a tempo” sobre ela? “É uma cadenza, não importa o que você diga, e eu simplesmente não posso imaginar como você esperaria que alguém passasse da tônica menor (Si bemol menor) para a submediante (Sol bemol maior) sem reduzir a marcha.
M: Parece-me que, pelo que você diz, você aborda minha música pura e simplesmente dum ponto de vista harmônico.
G: Uma vez que – como já disse – ela é incapaz de despertar o menos interesse contrapontístico…
M: E que tal sua forma?
G: (desdenhosamente) Oh, você sabe, “a forma básica da sonata não me interessa lá muito – a questão de temas tônicos vigorosos e masculinos e temas dominantes femininos e delicados parece-me infestado de clichês, isso para não dizer racista. Além do que, você sabe, muitas vezes sucede o contrário – segundos temas agressivos e masculinos, e aí por diante. Quanto à sua Sonata em Si bemol maior, que mencionamos há um instante, reflita sobre a não-integração entre o primeiro e o segundo temas do seu primeiro movimento, os quais, até onde posso perceber, poderiam ser tocados em ordem reversa e ainda assim prover um contraste perfeitamente satisfatório”.
M: Bem, é certamente uma ideia interessante… e talvez nem um pouco excêntrica, ademais…
G: (exultante) Você vê! (subitamente sério) “Mas o que eu não entendo é por que você ignorou tantas oportunidades canônicas óbvias para a mão esquerda!”
M: Você desaprova os baixos de Alberti?
G: Exatamente. Aqui está, por exemplo, o Allegro moderato de sua Sonata em Dó maior, K. 330 (ele começa o movimento com o mesmo andamento frenético de sua gravação de 1970, incluída na postagem) M: (horrorizado) Pare – é insuportável! “Rápido demais. Tocar assim ou cagar, para mim, é a mesma coisa!”
G: (rindo) Desculpe – eu me empolguei!!!
GOULD: (algo constrangido) “Eu admito que minha realização do primeiro movimento [da Sonata K. 331] é algo idiossincrática”
MOZART: (acidamente) Não me diga. (depois de uma curta pausa) O que meu tema fez para merecer esse tratamento?
G: (protestando cautelosamente) É um tema banal!
M: Certamente não do modo em que você o tocou!
G: Exatamente. Queria que as pessoas o escutassem e o experimentassem de um modo completamente diferente, entende? “Eu queria submetê-lo a um tipo de escrutínio em que seus elementos básicos fossem isolados uns dos outros, e a continuidade do tema, deliberadamente corroída”
M: E quando você transpõe as defesas – bum! – você explode tudo pelos ares, ahn?
G: Não, muito pelo contrário. “A ideia era que cada variação sucessiva contribuísse para a restauração daquela continuidade e, absorta nesta tarefa, fosse menos visível como um elemento ornamental, decorativo”
M: (estupefato) Como o quê? Como um “elemento decorativo”?
G: Como um “elemento ornamental, decorativo”. “Parece-me que você simplificou as coisas abusando das figurações; tem-se a impressão de que é tudo puramente arbitrário – um deleite puramente tátil que qualquer outra fórmula poderia igualmente prover”. Nada há de atraente nisso, você entende? Isso sem falar da completa ausência de qualquer interesse contrapontístico. Puro hedonismo teatral, se é que você me entende. (após uma breve pausa) Bem, diga algo.
M: Com toda honestidade, estou sem palavras. Ao ouvir você falar desse jeito, qualquer um pensaria que você não gosta de minha música…
G: (rapidamente e com veemência) Não, de modo algum! Que faz você dizer isso? Sua primeira sinfonia, por exemplo, é uma joia absoluta! Eu mesmo a regi certa vez, em 1959, no Festival de Vancouver. Ou que tal suas seis primeiras sonatas para piano? “Elas têm aquelas ‘virtudes barrocas’ – uma pureza de condução de vozes e cálculo de registro – que nunca foram igualadas em suas obras mais tardias e que as fazem as melhores da série. E ainda que ‘quando mais curta, melhor’ geralmente represente minha postura em relação a sua música, tenho que dizer que sua Sonata em Ré maior, K. 284, que é provavelmente a mais longa delas, é minha favorita”.
M: (desanimadamente) Não sei se devo me alegrar ou não…
G: (confidentemente) Sabe, Sr. Mozart, “você deveria ter congelado seu estilo quando deixou Salzburgo; se tivesse se contentado em não alterar sua linguagem musical nas trezentas e tantas obras que escreveria depois, eu estaria perfeitamente contente”.
M: (pensativamente) Você acha que Viena – como devo dizer? – corrompeu meu estilo?
G: Temo que sim, claro. “Quando gerações de ouvintes acham apropriado atribuir-lhe termos como ‘leveza’, ‘facilidade’, ‘frivolidade’, ‘galanteria’, ‘espontaneidade’, convém-nos ao menos refletir acerca dos motivos para tais atribuições – que não são necessariamente nascidas de desapreço ou de caridade”.
M: (incredulamente) Em outras palavras, nada de “Don Giovanni” e nada de “A Flauta Mágica”?
G: Não!
M: Nenhuma das minhas últimas sinfonias?
G: Enfaticamente não!
M: E presumo que nenhuma de minhas últimas sonatas, também?
G: Essas, muito menos! “Eu as acho insuportáveis” – perdoe-me dizer isso. Elas são “repletas de presunção quase teatral, e posso seguramente afirmar que, ao gravar uma peça como a Sonata em Si bemol maior, K. 570, eu o fiz sem qualquer convicção. (à parte) O mais honesto a se fazer teria sido pular essas obras, mas o ciclo tinha que ser concluído”.
M: (quietamente) E tudo que eu teria escrito se eu não tivesse…
G: (furiosamente, quase abrupto) Que disparate! Imaginemos que você… bem, digamos que você tivesse chegado aos setenta anos; você teria então morrido em 1826, um ano antes de Beethoven e dois anos antes de Schubert, pelo que, se eu pudesse extrapolar seu estilo posterior com base nas suas trezentas últimas obras, você acabaria um compositor entre Weber e Spohr. É uma especulação tão absurda quanto seria imaginar o que eu acabaria por gravar se eu não tivesse morrido aos cinquenta anos (amargamente) Deixe-me dizer uma coisa, Sr. Mozart: eu não teria gravado nada – nada mais! Aliás, eu já planejava abandonar o piano quando completasse cinquenta anos…
M: Se eu o compreendi bem, eu morri tarde demais, em vez de muito cedo…
G: Correndo o risco de exagerar: sim.
Postar qualquer gravação de Gould é, admito, pedir para levar pedrada. Pedradas, aliás: várias delas. Todas bem merecidas.
Justifico: a postagem com menos downloads entre as que fiz foi aquela do infame concerto em que Leonard Bernstein lavou as mãos ante a plateia antes de tocar com Gould o Concerto no. 1 de Brahms. Um colega de blog confessou-me que não tivera a coragem de baixar a gravação, e a caixa de comentários transbordou, se não de ódio, de manifestações de desprezo pela pessoa e pelo pianismo do canadense – que, reconheço, é merecedor de todas as críticas que recebe, mesmo mais de três décadas depois de sua morte, a despeito de sua criatividade e formidável domínio sobre seu instrumento.
Postar a integral de Gould para as Sonatas de Mozart – que, junto com aquelas de Beethoven, são figurinhas fáceis nas listas de mais detestadas de todos os tempos e estão inscritas com sangue e sanha nos livros de ódio de muitos melômanos – é pedir, como se diz lá na minha terra, para levar nos dedos. Mesmo os fãs mais incondicionais reconhecem, por exemplo, que a gravação da Sonata K. 331 é o pináculo da perversidade gouldiana, com as variações de abertura tocadas em velocidade crescente, um minueto interminável e um Alla turca bizarramente ruminativo. A recomendação mais complacente que encontrei para a série foi “para anti-mozartianos e completistas” – as mais furiosas, bem, furto-me a compartilhá-las em nome do pundonor que cabe a este blog (*pigarro*) ultrafamília.
Por que, então, postar Gould tocando Mozart? Puramente como um pretexto para divulgar a tradução do delicioso texto em que o alemão Michael Stegemann imagina um diálogo entre o compositor e o pianista que tão deliberadamente sabota suas obras, incluído no encarte do relançamento dessas gravações como parte da Glenn Gould Edition, em 1992. Baseada principalmente em entrevistas concedidas ao documentarista Bruno Monsaingeon e em ataques furibundos de críticos (trechos citados entre aspas), ele tem o mesmo tom dos textos com que Gould divulgava suas ideias sobre música, imaginando (dentro das peculiaridades de seu funcionamento cerebral) um colóquio entre um pianista de nome Glenn Gould e um psicanalista chamado, bem, glenn gould.
Enquanto antecipo minhas desculpas por eventuais derrapadas na tradução (pois a vida é demasiado curta para se aprender alemão), faço votos de que se divirtam com o texto. E, ah: o link para a gravação está lá no local de costume. Só para constar.
COLLOQUIUM OLYMPICUM (FICTUM)
Dois homens numa nuvem. Um deles usa um pulôver, jaqueta de tweed, capa de inverno, cachecol de lã, boina xadrez, óculos aro de tartaruga, luvas sem dedos, calças bufantes e sapatos marrons surrados. Ele toca piano – o Andante grazioso con variazioni da Sonata em Lá maior, K. 331, de Mozart. O outro usa uma peruca com tranças, lenço franzido, casaca de brocados ricamente bordados (com a Ordem do “Cavaleiro da Espora Dourada”), calças até os joelhos, meias de seda e sapatos com fivela. Ele escuta atentamente. O primeiro deles é GLENN GOULD, o outro, WOLFGANG AMADEUS MOZART.
GOULD: (concluindo o movimento) E…?
MOZART: (perplexo) Desculpe-me perguntar-lhe, meu amigo, mas você sempre senta tão abaixo do teclado quanto está a tocar piano?
G: Sempre.
M: E sempre nessa, er, cadeira?
G: Sempre, sim. Meu pai a fez para mim quando eu tinha vinte, vinte e um anos.
M: (cautelosamente) Mas está quebrada…
G: Eu sei. Um acidente. Um agente de aeroporto subiu nela e foi-se através do assento.
M: (sem compreender) Um agente de aeroporto…?
G: Esquece. (rapidamente e com desconforto evidente) E antes que você pergunte, eu sempre cantarolo junto com a música quando estou tocando piano. Para mim isso não é qualquer vantagem, é apenas algo inevitável que sempre me acompanhou, eu nunca consegui me livrar disso. Desculpe.
M: Não precisa se desculpar. Não me incomodou, em particular. Não isso, de qualquer maneira…
G: O quê, então?
M: (evasivamente) O instrumento que você usa soa estranho… Não é um dos fortepianos de Streicher, é?
G: É um Steinway, número de série CD 318.
M: (sem muita convicção) Aha.
G: Então, o quê, exatamente, incomodou você?
M: (hesitantemente) Bem, como deveria colocar-lhe… foi… Quero dizer, você…
G: … toquei muito devagar?
M: Bem, eu escrevi “Adagio” sobre a quinta variação, e você a tocou como “Allegro”.
G: Você quer dizer, rápido demais?
M: … enquanto o tema do Andante grazioso soou mais como um Largo, tocado por você. (quietamente) Eu quase não o reconheci.
G: (gargalhando) Você não foi o primeiro! Havia pessoas (e espero que elas ainda existam) que descreveram minha gravação como “a mais repugnante jamais feita”.
M: (sem entender) Gravação…?
G: (benevolamente) Escute, Sr. Mozart, desde que você morreu, um monte de coisas aconteceu, sobre as quais você sequer poderia imaginar. Mas, em termos de nossa conversa, eu não acho que elas sejam importantes e sugiro que as esqueçamos. Por ora, agradeceria se nos mantivéssemos no assunto; quando terminarmos, terei a maior felicidade em falar-lhe de aeroportos, gravações e por aí vai, OK?
M: “OK”, como diz você – seja lá o que signifique.
G: Beleza. Você me falava que achou a quinta variação muito rápida e o tema muito lento, correto?
M: Entre outras coisas. Mesmo com a maior boa vontade do mundo eu não sei por que você…
G: (mantendo-se em seu raciocínio) Veja bem, “de acordo com o esquema que empreguei, a penúltima variação só perde em velocidade para o finale do movimento”
M: (algo perturbado) O esquema que você empregou. Mas, sério, meu amigo, e o meu esquema?
G: (recusando-se a abandonar seu raciocínio) “A ideia por trás da interpretação era, já que o segundo movimento é mais um noturno-com-minueto do que um movimento lento” – você não negará isso – “e já que o pacote é finalizado com aquela curiosa porção de exotismo à moda serralho, estamos lidando com uma estrutura incomum, e virtualmente todas as convenções de sonata-allegro podem ser deixadas de lado”
M: Sério? (sarcasticamente) Bem, muito obrigado por explicar minha própria sonata para mim!
Bonita gravação de um improvável duo de kora (a harpa-alaúde mandê) e violoncelo. Os músicos são amigos, e foi sua amizade quem os levou, por fim, ao estúdio.
O francês Ségal nasceu em Reims e estudou em Lyon. Enveredou por todo lado em sua carreira, inclusive para o dito “trip-hop” com seu grupo Bumcello. Seu instrumento, aqui, definitivamente não soa como aquele para o qual Bach escreveu suas maravilhosas suítes. Ségal o faz mergulhar de espigão e tudo, e inclusive percussivamente, na longa tradição representada por seu parceiro africano.
O malinês Ballaké Sissoko nasceu em Bamako, capital do país, e foi muito influenciado pelo compatriota Toumani Diabaté, o grande nome da kora. A origem do instrumento remonta ao período correspondente à Idade Média na Europa. Mais adiante, no apogeu do império Songhay, a região que hoje é o Mali enriqueceu graças ao lucrativo comércio de ouro, sal e, infamemente, escravos. O principal entreposto das caravanas era a mítica cidade de Tomboctou, também conhecida como Timbuktu. Inestimável e mui ameaçada integrante do Patrimônio Cultural da Humanidade, ela é sede de uma das mais preciosas (e frágeis) bibliotecas do mundo islâmico. De quebra, como bem deverá se recordar quem lia os quadrinhos das aventuras de Mickey e de Tintin, Timbuktu é sinônimo de fim de mundo, e não à toa: está a pelo menos três dias (que para mim foram cinco) de Bamako, num ônibus atrolhado, tórrido e sovaquento, com janelas invariavelmente seladas por conta da fobia local a brisa – QUALQUER brisa.
Em compensação, para quem tem um camelo e está em Marrakesh, Tombouctou é logo ali (foto do autor)
Voltando à vaca fria, não creio que caibam quaisquer ressalvas à postagem deste disco num blogue criado pelo filho renegado da família Bach. O demiurgo Johann Sebastian é o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim de toda Música, e este álbum que ora apresento, afinal, contém não só grande música, critério bastante para que o lancemos aqui, mas também arte que é clássica até o caroço. Como o colega Ranulfus muito bem defendeu nos comentários de uma antiga postagem, “uma das coisas que me motivam na colaboração no blog é tentar demonstrar o quanto nosso conceito de ‘clássico’ pode ser justificadamente expandido para além das suas fronteiras tradicionais (no fundo etnocêntricas), e isso com criações autênticas, não com adaptações tipo ‘transcrições de canções populares para orquestra’.”
Ditto.
CHAMBER MUSIC (2009)
01 – Chamber Music (Sissoko)
02 – Oscarine (Ségal)
03 – Houdesti (Sissoko)
04 – Wo Yé N’gnougobine (Sissoko)
05 – Histoire de Molly (Ségal)
06 – “Ma Ma” FC (Ségal)
07 – Regret – À Kader Barry (Sissoko)
08 – Halinkata Djoubé (Sissoko)
09 – Future (Sissoko)
10 – Mako Mady (Sissoko)
Será que um Stradivarius vale tudo o que pedem por ele?
E um Amati? Ou um Guarneri?
Talvez este álbum possa ajudá-los a responder.
Nele, o virtuoso ítalo-americano Ruggiero Ricci (1918-2012) toca, em quinze famosos violinos, várias peças curtas que considera adequadas às características de cada instrumento. Depois, no que é talvez a parte mais interessante do álbum, ele toca o mesmo trecho – o início solo inicial do Concerto no. 1 de Max Bruch – com as mesmíssimas condições de estúdio em cada um dos violinos, a maior parte dos quais leva apelidos que remetem a ex-proprietários célebres. Apesar da overdose de Stradivari, o xodó de Ricci era seu inseparável Guarneri del Gesù (o “Ex-Huberman”, que surpreendemente não aparece nesta gravação), que foi, depois de sua morte, adquirido por uma companhia japonesa e cedido à violinista japonesa Midori Gotō.
A “Glória de Cremona” a que se refere o título é a rica tradição de luteria daquela cidade, que teve seu pináculo entre os séculos XVI e XVIII através de luthiers da estirpe de Stradivari, Guarnieri, Bergonzi, Amati e da Salo, cujos preciosos instrumentos são, há já muito tempo, o privilégio dos maiores virtuosos.
THE GLORY OF CREMONA – RUGGIERO RICCI
Jean-Antoine DESPLANES [Giovanni Antonio Piani] (1678-1760)
01 – Intrada [violino de Andrea Amati, c. 1560-170]
PietroNARDINI (1722-1793) 02 – Larghetto [violino de Antonio Stradivari, “ex-Rode”, 1733]
Antonio Lucio VIVALDI (1678-1741)
03 – Praeludium [violino de Nicolò Amati, 1656]
Niccolò PAGANINI (1782-1840)
04 – Cantabile e Valzer [violino de Antonio Stardivari, “Il Monasterio”,1719]
Wolfgang AmadeusMOZART (1756-1791)
arranjo de Carl Friedberg (1872–1955)
05 – Adagio [violino de Giuseppe Guarneri del Gesù, “Il Plowden”, 1735]
Dmitri Borisovich KABALEVSKY (1904-1987)
06 – Improvisation, Op. 21 no. 1 [violino de Antonio Stradivari, “Il Spagnolo”, 1677]
Piotr Ilyich TCHAIKOVSKY (1840-1893)
07 – Souvenir d’un lieu cher, Op. 42 – no. 2: Mélodie [violino de Giuseppe Guarneri del Gesù, “Il Lafont”, 1735]
Francesco Maria VERACINI (1690-1768)
08 – Largo [violino de Gasparo da Salo, ca. 1570-80]
Maria Theresia vonPARADIS (1759-1824)
arranjo de Samuel Dushkin (1891-1976)
09 – Sicilienne [violino de Carlo Bergonzi, “Il Constable”, 1731]
Jenő HUBAY (1858-1937)
10 – The Violin Maker of Cremona [violino de Giuseppe Guarneri del Gesù, “Ex-Bériot”, 1744]
Georg FriedrichHÄNDEL (1685-1759)
11 – Larghetto [violino de Antonio Stradivari, “El Madrileño”, 1720]
Robert SCHUMANN (1810-1856)
arranjo de Fritz Kreisler (1875-1962)
12 – Romance em Lá maior [violino de Giuseppe Guarneri del Gesù, “Ex-Vieuxtemps”, 1739]
Johannes BRAHMS (1833-1897)
13 – Dança Húngara no. 20 [violino de Antonio Stradivari, “Ex-Joachim”, 1714]
14 – Dança Húngara no. 17 [violino de Giuseppe Guarneri del Gesù, “Ex-Gibson”, 1734]
Jakob Ludwig Felix MENDELSSOHN-Bartholdy (1809-1847)
arranjo de Fritz Kreisler
15 – Lieder ohne Wörte, Op. 62 – No. 1: “Mailüfte” (“Brisas de Maio”) [violino de Antonio Stradivari, “Ex-Ernst”, 1709]
Ruggiero Ricci, violinos Leon Pommers, piano
Max Christian FriedrichBRUCH (1838-1920)
Concerto para violino e orquestra no. 1 em Sol menor, Op. 26
I – Vorspiel. Allegro moderato (excerto – solo inicial)
Executado por Ruggiero Ricci nos seguintes instrumentos:
16 – Andrea Amati (c. 1560-70)
17 – Nicolò Amati (1656)
18 – Antonio Stradivari, “Il Spagnolo” (1677)
19 – Antonio Stradivari, “Ex-Ernst” (1709)
20 – Antonio Stradivari, “Ex-Joachim” (1714)
21 – Antonio Stradivari, “Il Monasterio” (1719)
22 – Antonio Stradivari, “El Madrileño” (1720)
23 – Antonio Stradivari, “Ex-Rode” (1733)
24 – Gasparo da Salo (c. 1570-80)
25 – Carlo Bergonzi, “Il Constable” (1731)
26 – Giuseppe Guarneri del Gesù, “Il Gibson” (1734)
27 – Giuseppe Guarneri del Gesù, “Il Lafont” (1735)
28 – Giuseppe Guarneri del Gesù, “Il Plowden” (1735)
29 – Giuseppe Guarneri del Gesù, “Ex-Vieuxtemps” (1739)
30 – Giuseppe Guarneri del Gesù, “Ex-Bériot” (1744)
Um álbum com o mesmo conceito daquele que postamos ontem: um célebre concerto para violino, Ruggiero Ricci, e várias cadências de diferentes autores. A orquestra, aqui, sai-se melhor, e Ricci parece mais à vontade com Brahms do que com Beethoven. As cadências mais famosas dividem o álbum com algumas das quais eu não fazia a menor ideia – assim como, em minha habitual ignorância, também não sabia que o célebre musicólogo Donald Francis Tovey tinha sido compositor.
RUGGIERO RICCI PLAYS BRAHMS VIOLIN CONCERTO
JohannesBRAHMS (1833-1897)
Concerto em Ré maior para violino e orquestra, Op. 77
01 – Allegro non troppo (início, compassos 1-525)
02 – Cadência de Ferruccio Busoni
03 – Cadência de Joseph Joachim
04 – Cadência de Edmund Sing
05 – Cadência de Hugo Heermann
06 – Cadência de Leopold Auer
07 – Cadência de Eugène Ysaÿe
08 – Cadência de František Ondrícek
09 – Cadência de Franz Kneisel
10 – Cadência de Henri Marteau
11 – Cadência de Fritz Kreisler
12 – Cadência de Donald Francis Tovey
13 – Cadência de Jan Kubelík
14 – Cadência de Adolf Busch
15 – Cadência de Jascha Heifetz
16 – Cadência de Nathan Milstein
17 – Cadência de Ruggiero Ricci
18 – Allegro non troppo (conclusão, compassos 511-535)
19 – Adagio
20 – Allegro giocoso, ma non troppo vivace – Poco più presto
Ruggiero Ricci, violino Sinfonia of London Norman del Mar, regência
Ruggiero Ricci (1918-2012) foi um extraordinário violinista, de carreira muito longa (mais de setenta anos!) e prolífica como solista e professor. Seu legado fonográfico é comparavelmente imenso, e só cresce se levamos as considerações as inúmeras gravações piratas de seus concertos lançadas por selos inescrupulosos.
Esta aqui traz Ricci já um tanto fora de sua melhor forma, aos 76 anos, mas ainda a tocar com muita energia e sabedoria, acompanhado de maneira anêmica e protocolar pela orquestra meia-boca. A maior atração, parece-me, não é nem tanto o Concerto de Beethoven em si, e sim o fato da gravação incluir praticamente todas as cadenze importantes escritas para ele, a longo de quase de dois séculos, por diversos violinistas e compositores. Note-se que, se Beethoven não nos legou sua própria cadenza na versão para o violino, ele deixou uma para a transcrição que fez do Concerto para o piano. Essa cadenza, extremamente serelepe e com participação esteroidea dos tímpanos, foi por sua vez transcrita e adaptada por Wolfgang Schneiderhan para o violino e incluída no disco.
Os leitores-ouvintes certamente reconhecerão as cadenze escritas por Joachim e Fritz Kreisler, que são as mais frequentemente escolhidas pelos violinistas. Recomendo, no entanto, nem que seja para engrossar o coro do escândalo, a sensacional (para mim), transgressora (para todos) e sacrílega (para muitos) cadenza escrita por Alfred Schnittke: ela começa bastante convencional, ainda que ao estilo do compositor, para então incluir citações de concertos de Shostakovich, Bartók, Brahms e Berg (o coral bachiano do segundo movimento de “Em memória de um Anjo”), havendo ainda espaço para uma “palhinha” da Sétima de Beethoven. Compreensivelmente odiada pelos críticos (o mínimo que li sobre ela foi considerá-la uma “pichação”), ela tinha sido gravada, até onde me consta, somente por Gidon Kremer (que, aliás, a encomendara a Schnittke) sob Neville Marriner e a Academy of St. Martin-in-the-Fields
Se os ouvidos de vocês doerem muito, há várias cadenze bem convencionais para neutralizar a dor – a de Ferdinand David, virtuoso que inspirou o Concerto de Mendelssohn, é uma grata surpresa. Programem o Mp3 player e sejam felizes.
RUGGIERO RICCI PLAYS BEETHOVEN VIOLIN CONCERTO
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Concerto em Ré maior para violino e orquestra, Op. 61
01 – Allegro ma non troppo (início, compassos 1-510)
02 – Cadenza de Ludwig van Beethoven (arranjo de Wolfgang Schneiderhan)
03 – Cadenza de Ferdinand David
04 – Cadenza de Henri Vieuxtemps
05 – Cadenza de Joseph Joachim (primeira versão)
06 – Cadenza de Joseph Joachim (segunda versão)
07 – Cadenza de Ferdinand Laub
08 – Cadenza de Henryk Wieniawski
09 – Cadenza de Camille Saint-Saëns
10 – Cadenza de Leopold Auer
11 – Cadenza de Eugène Ysaÿe
12 – Cadenza de Ferruccio Busoni
13 – Cadenza de Fritz Kreisler
14 – Cadenza de Nathan Milstein
15 – Cadenza de Alfred Schnittke
16 – Allegro ma non troppo (conclusão, compassos 511-535)
17 – Larghetto
18 – Rondo: Allegro
Ruggiero Ricci, violino Orchestra Sinfonica del Chianti Piero Bellugi, regência
De volta do Coração das Trevas, ainda no divertidamente aflito período de incubação de perebas medonhas, e enquanto removo os parasitos das longas barbas, tento destilar as memórias da, ahn, *indescritível* viagem pelo rio Congo com algumas inalações de boa música.
Este cidadão, o gambista e violoncelista Abel, foi um dos virtuoses da corte de Cöthen que inspiraram Johann Sebastian Bach a escrever muito do melhor de sua música instrumental: se é certo que lhe coube uma das partes de viola da gamba do peculiar conjunto instrumental do Concerto de Brandenburg no. 6, há também quem diga que ele inspirou o Demiurgo da Música a compor suas sublimes Suítes para violoncelo solo.
Mais ainda: com um dos filhos do Mestre – Johann Christian, o “Bach Inglês” – Abel estabeleceria os primeiros concertos por assinatura daquelas ilhas, decisivos para o processo, que culminaria nas décadas seguintes, de mudança dos holofotes dos salões da nobreza para as salas de concertos repletas de público pagante.
Para alguém que teve a reputação de maior gambista de seu tempo, não surpreende que as obras de Abel para a viola da gamba sejam bastante idiomáticas. Ainda assim, suas sugestões de classicismo e rococó às vezes soam incongruentemente modernas num instrumento que, posto que belíssimo, cairia em oblívio antes do final do século XVIII.
As vinte e oito peças deste álbum, que fazem parte da coleção Drexel – uma calhamaçuda doação do sujeito em questão para a Biblioteca Pública de New York – foram editadas e executadas com o tesão habitual pelo maravilhoso gambista Paolo Pandolfo, que é daqueles artistas que transformam em ouro tudo o que tocam, e de tal maneira que mantém brilho próprio num céu em que, há muitas décadas, reina supremo o grande Jordi Savall.
Se todo este Abel não for o bastante para convencê-los disso, as Suítes de Bach que postarei em breve serão. Aguardem!
CARL FRIEDRICH ABEL – THE DREXEL MANUSCRIPT
Carl Friedrich ABEL (1723-1787)
Solos para viola da gamba da coleção Drexel, volume 5871
Um dos melhores CDs que tenho, e, por vários motivos, tremendamente especial: trata-se da primeira gravação jamais feita da versão original (1904) do Concerto de Sibelius, autorizada expressamente pela família do compositor, e acompanhada no álbum pela versão definitiva (de 1905), que é aquela conhecida dos leitores-ouvintes. O solista é o maravilhoso violinista grego Leonidas Kavakos, talvez o maior especialista vivo nesse repertório, e que muito esforço despendeu para reconstruir a versão original que, segundo consta, foi tosada pelo compositor após uma première fracassada. A Orquestra Sinfônica de Lahti – que é frequentemente comparada à de Cleveland sob George Szell, como orquestra de cidade média que foi conduzida à excelência por um grande regente – está, como de costume, impecável, assim como o som da sempre interessante gravadora sueca BIS.
Chamam a atenção na versão original a dificuldade ainda maior na parte solista e alguns andamentos diferentes. Talvez vocês discordem, mas sempre achei a versão final meio abrupta, rapsódica, mesmo sem fazer ideia das mutilações a que Sibelius a submeteu. Prefiro a original. E vocês?
JEAN SIBELIUS – VIOLIN CONCERTO, OP. 47 (1904 AND 1905 VERSIONS)
Johan (“Jean”) Julius Christian SIBELIUS (1865-1957)
Concerto para violino e orquestra em Ré menor, Op. 47
Primeira versão (1903-04)
01 – Allegro moderato
02 – Adagio di molto
03 – Allegro (ma non tanto)
Segunda versão (1905)
04 – Allegro moderato
05 – Adagio di molto
06 – Allegro (ma non tanto)
Leonidas Kavakos, violino Orquestra Sinfônica de Lahti Osmo Vänskä, regência
Indisponível em CD: só em LP, e não vendo o meu por dinheiro algum!
Uma das melhores coisas que podem acontecer a um blogueiro é receber um comentário que, por si só, enseja uma nova postagem.
Assim foi o comentário do camarada Ranulfus, lá naquela postagem que fiz semana passada sobre os MÍTICOS Índios Tabajaras:
“FASCINADO depois de ouvir, e ouvindo mais uma vez agora mesmo. Puristas podem franzir o nariz, mas na verdade MÚSICA É ISSO, é realização sobretudo intuitiva. Os rapazes são músicos até debaixo d’água, DIZEM cada frase. Tenho certeza de que Bach também era isso: todo seu saber teórico era apenas apoio ao fazer-música intuitivo, tão naturalmente “como quem mija” (para usar uma fala do Monteiro Lobato relativa ao escrever, dirigida ao Érico Veríssimo e relatada por este).
A noção de agógica dos guris (condução do discurso musical pelo domínio do fraseado, das flexibilizações do tempo, das ênfases) dá de 10 a 0 em MUITO músico de currículo pomposo, seja em termos acadêmicos, de apresentações ou de gravações.
OBRIGADÍSSIMO por resgatar não só as preciosidades específicas que são essas faixas gravadas (de que eu queria muito mais), mas sobretudo A MEMÓRIA desses grandes músicos de BRASILIDADE insuperável – do que somente vira-latas complexados haveriam de se envergonhar (digo-o contrastando com os vira-latas assumidos e orgulhosos de sê-lo, como eu)”
Sou eu quem deve agradecer pelo comentário, e agradeço atendendo a vontade do colega de escutar um pouco mais da arte desses extraordinários músicos brasileiros, cuja trajetória do sertão do Ceará ao Concertgebouw de Amsterdam é das mais improváveis que este planeta já testemunhou.
Para que não pensem que estou sozinho na tietagem incondicional aos virtuosos Tabajaras – e “loin-cloth-to-tuxedo legend”, convenhamos, é o melhor resumo possível da epopeia dos irmãos Fonte: The Nato Lima Foundation
Em The Classical Guitars of Los Indios Tabajaras, seu segundo disco dedicado ao repertório erudito, Muçaperê e Erundi dividem-se entre escolhas batidíssimas (“Pour Elise” e o “Romance de Amor”), as audazes (a “Hora staccato” de Dinicu/Heifetz) e a francamente insana (o “Rondo des Lutins” de Bazzini, peça pra lá de cabeluda do repertório violinístico). Digna de destaque é a regravação de “Recuerdos de la Alhambra”, em que (corrijam-se se estiver enganado), talvez numa resposta aos puristas que criticaram o arranjo anterior para dois violões como uma simplificação do original, Muçaperê toca a versão original de Tárrega (tremolo e arpejos simultâneos) com discreto acompanhamento de Erundi.
Para mim, a qualidade de gravação deixa a desejar em relação à de Casually Classic. Sou troglodita confesso no que diz respeito a técnicas de gravação, mas tenho a impressão de que os microfones foram posicionados mais perto dos braços dos violões do que de seus corpos, resultando num som menos rico e menos reverberante, sem valorizar à altura o legendário vibrato de Muçaperê/Natalício/Nato Lima. Ainda assim, e mesmo que se tenha a impressão dos irmãos menos inspirados que no disco anterior, as belezas transbordam.
Muçaperê e Erundi gravariam ainda dois álbuns de música erudita, “Dreams of Love” e “Masterpieces”, que só tenho em cassetes, e em muito mau estado. No primeiro, há uma belíssima versão da “Valse Triste” de Sibelius que Muçaperê considerava seu melhor trabalho como arranjador. Farei de tudo para encontrar uma fonte melhor e compartilhá-lo com vocês. Se acham que podem me ajudar, deixem-me saber pela caixa de comentários.
OS ÍNDIOS TABAJARAS – THE CLASSICAL GUITARS OF LOS INDIOS TABAJARAS (1974)
Muçaperê (Natalício Moreira Lima) e Erundi (Antenor Moreira Lima), violões
Transcrições de Muçaperê
Fryderyk FranciszekCHOPIN (1810-1849)
01 – Duas Valsas, Op. 34 – no. 2 em Lá menor
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
02 – Bagatela em Lá menor, WoO 59, “Pour Elise”
Francisco de AsísTÁRREGAy Eixea (1852-1909)
03 – Recuerdos de la Alhambra
Grigoraş IonicăDINICU (1889-1949), em arranjo de Jascha Heifetz (1901-1987)
04 – Hora staccato
Fryderyk FranciszekCHOPIN
05 – Valsa em Lá bemol maior, Op. 69, No. 1, “Adeus”
AntonioBAZZINI (1818-1897)
06 – Scherzo Fantastico, Op. 25, “La Ronde des Lutins”
Joaquín MALATS i Miarons (1872-1912)
07 – Serenata Española
ANÔNIMO
08 – Romance de Amor*
* os créditos do LP atribuem a autoria ao violonista espanhol Vicente Gómez (1911-2001), mas a obra é certamente anterior a ele
Colagem para divulgação da extinta Nato Lima Foundation, criada com o fim de angariar fundos para o tratamento de Muçaperê/Natalício/Nato contra o câncer que o mataria. Nela aparece sua esposa, a japonesa Michiko, que aprendeu violão com Muçaperê e assumiu o lugar de Erundi depois que este se aposentou, no começo dos anos 80. Chorei feito um desgraçado ao encontrar esta colagem, pois não só desconhecia a maior parte das fotos que a compõem, como também porque foi a primeira vez que vi imagens da dupla na infância e adolescência – provavelmente durante a longa viagem, permeada por fome e violência, que empreenderam com a família do Ceará até o Rio de Janeiro. Fascinado que sou há tanto tempo pela história dos Índios Tabajaras, fico a imaginar onde está, ou que fim levou, este inestimável material iconográfico que poderia ajudar a contar, para as novas gerações, a trajetória destes brasileiros extraordinários.
Há histórias tão improváveis que são indeglutíveis.
E há a história de Muçaperê e Erundi, ou de Natalício e Antenor Lima, ou – como o mundo todo viria a conhecê-los – dos Índios Tabajaras.
ooOoo
Eles eram, de fato, indígenas, nascidos da nação Tabajara, na serra de Ibiapaba, perto da divisa entre o Ceará e o Piauí. Receberam seus nomes nativos porque eram o terceiro (“muçaperê”) e quarto (“erundi”) filhos de seu pai. Sua trajetória do sertão até o sucesso mundial é tão inacreditável que minha prosa não tem asas para contá-la: deixo o próprio Natalício fazê-lo, neste longo, fascinante depoimento.
Resumo da epopeia: um primeiro contato com militares (e com o violão) no sertão; um tenente os apadrinha, e adotam “nomes de branco”; a fome move a família para o Rio de Janeiro, a pé e em pau-de-arara, ao longo de três anos, durante os quais se familiarizam com a viola brasileira e o violão; primeiras aparições no rádio e em teatros da Capital Federal e em São Paulo, anunciados como “bugres que sabem tocar”; sem serem levados muito a sério, fazem suas primeiras gravações; saem em turnê pela América Latina; chegam ao México, onde são apresentados por Ricardo Montalbán como “analfabetos musicais”; o constrangimento leva-os a terem aulas de música em Caracas e Buenos Aires; excursão pelos Estados Unidos, onde gravam várias músicas do repertório easy listening, incluindo o fox “Maria Elena”; retorno desiludido ao Brasil e busca de uma nova carreira; no meio-tempo, o compacto de “Maria Elena” transforma-se num imenso sucesso retardado, com mais de um milhão de vendas; os irmãos são catapultados de volta aos Estados Unidos, onde, entre idas e vindas, se radicam e vivem até suas mortes.
A acreditar em tudo o que se conta deles, temos a mais fantástica trajetória artística que ainda não virou livro ou filme. Mas não é ela, claro, que nos interessa, pois isso aqui, afinal de contas, é o PQP Bach e quem me lê não quer saber de histórias fabulosas: quer música, e muita, e da muito boa.
Surge, pois, a minha deixa para apresentar-lhes esta gravação.
Se a maior parte do repertório da dupla consistiu em músicas melosas, feitas para pagar as contas e destinadas invariavelmente aos almoços de família e às salas de espera de consultórios de dentista, os largamente autodidatas Muçaperê e Erundi eram entusiastas da música clássica europeia e, sempre que podiam, incluíam suas peças em seus recitais. Em muitos deles, tocavam música de elevador vestidos em trajes, ahn, “indígenas” (daqueles para inglês ver) para, depois do intervalo e de smoking, tocarem as transcrições de obras de concerto habilmente feitas por Muçaperê.
Este álbum, Casually Classic, inclui algumas delas, com solos de Muçaperê, e acompanhamentos de Erundi.
Talvez alguns torçam o nariz para a transcrição de Recuerdos de la Alhambra para dois violões, em vez da difícil superposição entre melodia em tremolo e acompanhamento em arpejos com o polegar da versão solo. Eu a acho esplêndida e muito mais evocativa que o original. Os excertos orquestrais são cheios de verve, e a fuga de Bach – uma estranha no ninho entre as seleções – é deliciosamente trigueira. O ponto alto, para mim, é a Fantasia-Improviso de Chopin, transcrita e interpretada de uma maneira tão linda que me é até mais convincente que o original pianístico.
Se a muitos será uma surpresa a revelação de que houve um grande duo de violonistas brasileiros antes dos irmãos Assad conquistarem o planeta, espero que ela, ao escutarem esta gravação, seja muito grata.
OS ÍNDIOS TABAJARAS – CASUALLY CLASSIC (1966)
Fryderyk Franciszek CHOPIN (1810-1849)
01 – Valsa em Dó sustenido menor, Op. 64 no. 2
Pyotr IlyichTCHAIKOVSKY (1840-1893)
02 – O Quebra-Nozes, Op. 71: Valsa das Flores
Francisco de Asis TÁRREGA y Eixea (1852-1909)
03 – Recuerdos de la Alhambra
Nikolay AndreyevichRIMSKY-KORSAKOV (1844-1908)
04 – A Lenda do Czar Saltan – Ato III, Interlúdio: O Voo do Zangão
Fryderyk FranciszekCHOPIN
05 – Valsa em Ré bemol maior, Op. 64 no. 1
Johann SebastianBACH (1685-1750)
06 – O Cravo bem Temperado, livro I – Prelúdio e Fuga em Dó sustenido maior, BWV 848: Fuga
Manuel de FALLA y Matheu (1876-1946)
07 – El Amor Brujo: Dança Ritual do Fogo
Fryderyk FranciszekCHOPIN
08 – Fantasia-Improviso em Dó sustenido menor, Op. 66
Muçaperê (Natalício Moreira Lima) e Erundi (Antenor Moreira Lima), violões Transcrições de Muçaperê
POSTAGEM ORIGINAL DE RANULFUS EM JULHO DE 2010, REPUBLICADA EM MARÇO DE 2015 POR CONTA DOS 330 ANOS DE J. S. BACH, E RE-REPUBLICADA NESTA SÉRIE SOBRE AS CORDAS PORQUE É BOA DEMAIS!
Arquivos digitalizados a partir de um vinil original em mono, cujo estado de conservação deixa a desejar: valerá a pena postar?
Se os senhores têm sensibilidade, estou certo que dirão que sim. E que não economizarão qualificativos como “preciosidade” para esta raridade!
Ascendino Theodoro Nogueira nasceu em 1913 em Santa Rita do Passa Quatro, mas viveu boa parte da vida em Araraquara, ambas no interior de São Paulo. Aluno de Camargo Guarnieri, deixou composições para as mais diversas combinações instrumentais e vocais, porém a obra maior de sua vida parece ter sido sua vasta pesquisa sobre a viola brasileira – origens, técnicas de execução etc. – tendo em vista o reconhecimento de sua nobreza e potencial para todos os tipos de música.
Foi nesse sentido que incluiu uma viola brasileira na instrumentação da sua Missa, que escreveu o Concertino para Viola Brasileira e Orquestra de Câmara (1963?) e os 7 Prelúdios nos Modos da Viola Brasileira, e que realizou as presentes cinco transcrições de peças de Bach para violino solo (Theodoro era também violinista de formação), havendo preparado para executá-las um aluno seu, também compositor, Geraldo Ribeiro.
O disco foi lançado em 1971, com um artigo de Theodoro na contracapa “Anotações para um estudo sobre a viola: origem do instrumento e sua difusão no Brasil” – cuja imagem escaneada está incluída na postagem.
Que possa valer como um tributo especial ao velho João Sebastião Ribeiro por ocasião dos seus 330 anos (cumpridos ontem, em 31.03.2015), da parte de um país cuja música, por mil caminhos, lhe deve tanto!
BACH NA VIOLA BRASILEIRA
Transcrições de A. Theodoro Nogueira
Execução: Geraldo Ribeiro
Gravação: Fermata, 1971
A1 Prelúdio (da Partita 3 para violino solo) 4:00
A2 Loure (da Partita 3 para violino solo) 3:46
A3 Gavota (da Partita 3 para violino solo) 3:25
A4 Fuga (da Sonata 1 para violino solo) 4:27
B Chacona (da Partita 2 para violino solo) 12:14
Elza da Conceição Gomes, 81 (ou 87) anos, nascida na favela da Moça Bonita, Rio de Janeiro; obrigada a se casar aos 12 anos com um certo Soares; mãe pela primeira vez aos 13 e viúva aos 21; que já enterrou quatro de seus sete filhos; vítima de relacionamentos abusivos e de várias camadas de preconceito; Elza que cantava carregando latas d’água morro acima; que foi cantar no programa de calouros de Ary Barroso aos 13 anos para ter o que comer; que foi zombada pela plateia por ser preta, pobre e maltrapilha, e que respondeu ao ilustre anfitrião, quando lhe perguntou de que planeta ela vinha, que vinha do Planeta Fome; perseguida e apedrejada como destruidora de lares e de carreiras e ameaça à moral e aos bons costumes, particularmente em função de seu tempestuoso relacionamento com o futebolista Manoel Francisco dos Santos (1933-1983), o Mané Garrincha, que era casado; Elza que teve sua casa crivada por rajadas de metralhadora da ditadura e que se exilou com Mané e a família e as roupas do corpo para fugir uma vez mais da morte; que nunca deixou de cantar com sua voz poderosa e inconfundível o que ela é e de onde ela veio, e a dar voz a todos aqueles que vivem as dores que ela viveu; que incandesce os palcos do mundo há seis décadas com sua voz de trovão; que hoje não consegue ficar de pé sozinha, depois de fraturar várias vértebras num palco, mas que faz tremer tudo e todos quando nos deixa ouvir o que vem de seu espírito indômito; que fez seu primeiro show profissional nesta mesma Porto Alegre e neste Estado em que agora estamos, construídos sobre o legado infame da escravidão, e que tanto amam desprezar o que é preto e feminino e o que é pobre e popular; Elza que, ao ouvir o genial Louis Armstrong, encantado com seu estilo, chamá-la de “daughter” (filha), e que por não entender inglês respondeu-lhe com simplicidade que não era “doutora”, e sim “Elza”; pois essa mesma Elza-que-não-era-doutora receberá hoje, nesta mesma Porto Alegre e de minha querida alma mater, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, uma instituição pública e gratuita, vanguardista e inclusiva, o título de DOUTORA HONORIS CAUSA que me enche de orgulho e felicidade.
No exato momento em que esta postagem for ao ar, Elza, a Indestrutível, será recebida por um Salão de Atos da UFRGS abarrotado de gente e aclamada pela fração do Brasil que não se dobrou à infâmia do fascismo e do obscurantismo. Em tempos tão toscos e violentos, de ataques estatais à dignidade humana, às minorias e à educação e cultura, a láurea a uma artista e brasileira como Elza é um gesto político extraordinário que merece também ser aclamado:
VIVA ELZA!
VIVA A UNIVERSIDADE PÚBLICA!
VIVA O BRASIL FEMININO, PRETO E POPULAR!