Colloquium olympicum (fictum): Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) – As Sonatas para piano – Glenn Gould (1/4)

MI0000960404Postar qualquer gravação de Gould é, admito, pedir para levar pedrada. Pedradas, aliás: várias delas. Todas bem merecidas.

Justifico: a postagem com menos downloads entre as que fiz foi aquela do infame concerto em que Leonard Bernstein lavou as mãos ante a plateia antes de tocar com Gould o Concerto no. 1 de Brahms. Um colega de blog confessou-me que não tivera a coragem de baixar a gravação, e a caixa de comentários transbordou, se não de ódio, de manifestações de desprezo pela pessoa e pelo pianismo do canadense – que, reconheço, é merecedor de todas as críticas que recebe, mesmo mais de três décadas depois de sua morte, a despeito de sua criatividade e formidável domínio sobre seu instrumento.

Postar a integral de Gould para as Sonatas de Mozart – que, junto com aquelas de Beethoven, são figurinhas fáceis nas listas de mais detestadas de todos os tempos e estão inscritas com sangue e sanha nos livros de ódio de muitos melômanos – é pedir, como se diz lá na minha terra, para levar nos dedos. Mesmo os fãs mais incondicionais reconhecem, por exemplo, que a gravação da Sonata K. 331 é o pináculo da perversidade gouldiana, com as variações de abertura tocadas em velocidade crescente, um minueto interminável e um Alla turca bizarramente ruminativo. A recomendação mais complacente que encontrei para a série foi “para anti-mozartianos e completistas” – as mais furiosas, bem, furto-me a compartilhá-las em nome do pundonor que cabe a este blog (*pigarro*) ultrafamília.

Por que, então, postar Gould tocando Mozart? Puramente como um pretexto para divulgar a tradução do delicioso texto em que o alemão Michael Stegemann imagina um diálogo entre o compositor e o pianista que tão deliberadamente sabota suas obras, incluído no encarte do relançamento dessas gravações como parte da Glenn Gould Edition, em 1992. Baseada principalmente em entrevistas concedidas ao documentarista Bruno Monsaingeon e em ataques furibundos de críticos (trechos citados entre aspas), ele tem o mesmo tom dos textos com que Gould divulgava suas ideias sobre música, imaginando (dentro das peculiaridades de seu funcionamento cerebral) um colóquio entre um pianista de nome Glenn Gould e um psicanalista chamado, bem, glenn gould.

Enquanto antecipo minhas desculpas por eventuais derrapadas na tradução (pois a vida é demasiado curta para se aprender alemão), faço votos de que se divirtam com o texto. E, ah: o link para a gravação está lá no local de costume. Só para constar.

COLLOQUIUM OLYMPICUM (FICTUM)

Dois homens numa nuvem. Um deles usa um pulôver, jaqueta de tweed, capa de inverno, cachecol de lã, boina xadrez, óculos aro de tartaruga, luvas sem dedos, calças bufantes e sapatos marrons surrados. Ele toca piano – o Andante grazioso con variazioni da Sonata em Lá maior, K. 331, de Mozart. O outro usa uma peruca com tranças, lenço franzido, casaca de brocados ricamente bordados (com a Ordem do “Cavaleiro da Espora Dourada”), calças até os joelhos, meias de seda e sapatos com fivela. Ele escuta atentamente. O primeiro deles é GLENN GOULD, o outro, WOLFGANG AMADEUS MOZART.

GOULD: (concluindo o movimento) E…?
MOZART: (perplexo) Desculpe-me perguntar-lhe, meu amigo, mas você sempre senta tão abaixo do teclado quanto está a tocar piano?
G: Sempre.
M: E sempre nessa, er, cadeira?
G: Sempre, sim. Meu pai a fez para mim quando eu tinha vinte, vinte e um anos.
M: (cautelosamente) Mas está quebrada…
G: Eu sei. Um acidente. Um agente de aeroporto subiu nela e foi-se através do assento.
M: (sem compreender) Um agente de aeroporto…?
G: Esquece. (rapidamente e com desconforto evidente) E antes que você pergunte, eu sempre cantarolo junto com a música quando estou tocando piano. Para mim isso não é qualquer vantagem, é apenas algo inevitável que sempre me acompanhou, eu nunca consegui me livrar disso. Desculpe.
M: Não precisa se desculpar. Não me incomodou, em particular. Não isso, de qualquer maneira…
G: O quê, então?
M: (evasivamente) O instrumento que você usa soa estranho… Não é um dos fortepianos de Streicher, é?
G: É um Steinway, número de série CD 318.
M: (sem muita convicção) Aha.
G: Então, o quê, exatamente, incomodou você?
M: (hesitantemente) Bem, como deveria colocar-lhe… foi… Quero dizer, você…
G: … toquei muito devagar?
M: Bem, eu escrevi “Adagio” sobre a quinta variação, e você a tocou como “Allegro”.
G: Você quer dizer, rápido demais?
M: … enquanto o tema do Andante grazioso soou mais como um Largo, tocado por você. (quietamente) Eu quase não o reconheci.
G: (gargalhando) Você não foi o primeiro! Havia pessoas (e espero que elas ainda existam) que descreveram minha gravação como “a mais repugnante jamais feita”.
M: (sem entender) Gravação…?
G: (benevolamente) Escute, Sr. Mozart, desde que você morreu, um monte de coisas aconteceu, sobre as quais você sequer poderia imaginar. Mas, em termos de nossa conversa, eu não acho que elas sejam importantes e sugiro que as esqueçamos. Por ora, agradeceria se nos mantivéssemos no assunto; quando terminarmos, terei a maior felicidade em falar-lhe de aeroportos, gravações e por aí vai, OK?
M: “OK”, como diz você – seja lá o que signifique.
G: Beleza. Você me falava que achou a quinta variação muito rápida e o tema muito lento, correto?
M: Entre outras coisas. Mesmo com a maior boa vontade do mundo eu não sei por que você…
G: (mantendo-se em seu raciocínio) Veja bem, “de acordo com o esquema que empreguei, a penúltima variação só perde em velocidade para o finale do movimento”
M: (algo perturbado) O esquema que você empregou. Mas, sério, meu amigo, e o meu esquema?
G: (recusando-se a abandonar seu raciocínio) “A ideia por trás da interpretação era, já que o segundo movimento é mais um noturno-com-minueto do que um movimento lento” – você não negará isso – “e já que o pacote é finalizado com aquela curiosa porção de exotismo à moda serralho, estamos lidando com uma estrutura incomum, e virtualmente todas as convenções de sonata-allegro podem ser deixadas de lado”
M: Sério? (sarcasticamente) Bem, muito obrigado por explicar minha própria sonata para mim!

[continua]

MOZART – THE PIANO SONATAS – GLENN GOULD

Wolfgang Amadeus MOZART (1756-1791)

AS SONATAS PARA PIANO (1/4)

Sonata no. 1 em Dó maior, K. 279 (189d)
01 – Allegro
02 – Andante
03 – Allegro

Sonata no. 2 em Fá maior, K. 280 (189e)
04 – Allegro assai
05 – Adagio
06 – Presto

Sonata no. 3 em Si bemol maior, K. 281 (189f)
07 – Allegro
08 – Andante amoroso
09 – Rondeau. Allegro

Sonata no. 4 em Mi bemol maior, K. 282 (189g)
10 – Adagio
11 – Menueto I-II
12 – Allegro

Sonata no. 5 em Sol maior, K. 283 (189h)
13 – Allegro
14 – Andante
15 – Presto

Sonata no. 6 em Ré maior, K. 284 (205b), “Dürnitz”
16 – Allegro
17 – Rondeau en Polonaise. Andante
18 – Thema. Andante – Variationen I-XII

Glenn Gould, piano

BAIXE AQUI — DOWNLOAD HERE

Sim: eu mereço
Sim: eu mereço

Vassily Genrikhovich

12 comments / Add your comment below

  1. Sinceramente, não entendo o motivo de tanta rabugice com Glenn Gould. As gravações dessas sonatas são diferentes do usual e cheias de maneirismos, mas e daí? Quem não gosta tem muitas outras opções mais convencionais para ouvir. Parabéns ao blog pelo excelente trabalho!

  2. Sempre tive muita admiração pela técnica de Gould. Ninguém pode negar a sua espetacular capacidade. Assisti vários documentários sobre ele e cheguei a uma conclusão: Sabe aqueles caras que fazem versões por não ter a capacidade de compor ? E, achando que é um poeta, muda completamente a letra, transformando “girl” em “meu bem” ? Pois é. O Gould, (compositor medíocre), apesar de tocar divinamente, muitas vezes transfigura a dinâmica e o “tempo” das composições que toca. Felizmente a música que toca é tão poderosa, que mesmo “desfigurada” é ótima de se ouvir.

    1. Salve, Sérgio!
      Suas afirmações fazem todo sentido. Há uma citação de Gould no “Colloquium olympicum” que dá conta disso: da transformação para explorar possibilidades que talvez não tenham ocorrido sequer ao compositor, e a tentativa de injetar interesse em obras que Gould considerava pobres em interesse contrapontístico.

  3. Já que se está a falar em atirar pedras,permitam-me o abuso de sair dos trilhos e relatar um fato que aconteceu com Jesus. Ele andava saltitando pelas vielas da Galileia com seus discipulos quando viu ao longe um tumulto. Ao aproximar-se notou uma mulher no meio da turba prestes a ser apedrejada. Na gritaria, pasmem! um portugues exaltado, ali ao lado da mulher fazia parte do coro.
    Jesus perguntou: O que fez esta mulher? E eles responderam: É uma adúltera e segundo a lei, deve morrer a pedradas.
    Então Jesus disse: Atire a primeira pedra quem nunca pecou.
    Nesse instante o portugues apanhou meio tijolo do chão e arrebentou-o na cabeça da mulher. Todos ficaram atônitos. Jesus dirigindo-se ao luso assim perguntou: Filho, tu nunca errastes?
    E o português: “desta distância não sinhôre “

  4. Glenn Gould era ao mesmo tempo genial fanfarrão assim como Mozart!

    Suas gravações deixam isso bem claro.

    Na minha humilde opinião, após gravar maravilhosamente bem Bach, Byrd, Hindemith, Schoenberg e as baladas de Brahms, Glen Gould quis simplesmente se divertir com Mozart. O resultado é interessante.

    Os Mozartianos e amanes do lirismo piram, mas o canadense consegue nos mostrar detalhes das sonatas que nenhum outro pianista havia revalado.

    Viva Gould! Viva Mozart! Obrigado, PQP pela postagem!

    1. Caro Davi: na mosca. O próprio Gould afirma, em citação inclusa no “Colloquium olympicum”, que considera dever do intérprete imaginar possibilidades que não ocorreram ao próprio compositor. Se considerarmos que Gould foi, como comentado mais acima, um “compositor frustrado”, que tentava deslanchar como tal justamente perto de sua morte, ao abandonar gradativamente o piano, podemos entender sua atitude tida como transgressora como uma reinvenção, numa tentativa de trazer mais interesse a obras que, para ele, pouco tinham de interessantes.

  5. Muito bem, aqui vai a primeira pedra dessa nova edição da postagem!! Pacabum!!! Acertei? Espero que não… Não vou baixar o arquivo. Estou com o pendrivinho cheio de coisas para ouvir e seria demasiado, agora. Na verdade estou numa discussão animadíssima comigo mesmo sobre qual é a melhor integral das sonatas para piano de Mozart (que eu tenho à disposição). De manhã sou categórico: Uchida. Depois do almoço, Maria João Pires, um pouco mais dolente. Daí Uchida de novo. Ah, ouvi falar do Barenboim menino, no selo EMI. Aí tem mais aquelas miles de pecinhas extras… Xíiii, aí lembrei do Walter Klien. Rapaz, sentiu o drama.
    Mas, voltando às pedras. Só para dizer que o texto é massa! D+!! Isso é parte do blog, mesmo que seja para aqueles 18 leitores que às vezes nem baixam os arquivos, mas leem tudinho e depois até tiram onda. É, tenho esse CD aí e nem achei lá isso tudo…
    Falando nisso, o Vassily, o link do [continua], que eu queria continuar, não funcionou para mim!
    E viva Mozart, mesmo estrangulado pelo Gould, Glenn Gould!
    Saludos!
    MO

  6. Consegui arranjar uma briga com uma amiga, depois que botei para tocar um dos LPs da coleção desta integral, que comprei na antiga Breno Rossi, ali do Shopping Morumbi (se não estou enganado, eles estavam em promoção)…sem ter muita informação sobre aquela gravação, comentei um dia que queria lhe mostrar um LP novo de Mozart, mas não disse quem tocava. Quando ela ouviu os primeiros minutos gritou: que merda é essa ? Esse cara tá destruindo Mozart. Mostrei então o LP, e ela só comentou: só podia ser o Glenn Gould. Até então eu não conhecia a ‘fama’ dele, muito menos estas gravações. Achava pitorescas, diferente de tudo aquilo que eu já havia ouvido. Mas não sabia de que tinham pessoas que o odiavam por causa destas suas ‘liberdades’. Não sei se foi só por este motivo, mas depois disso, ela não falou mais comigo…
    Enfim, vendi os LPs já há algum tempo, e depois disso perdi o interesse nestas gravações.

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