Há 591 anos, num trinta de maio, uma garota que talvez não tivesse dezenove primaveras foi sorvida por uma fogueira na praça central de Rouen. Queimaram-lhe as carnes e os ossos, mas não a reputação: acusada de heresia após inspirar as tropas francesas em vitórias importantes na Guerra dos Cem Anos, julgada com parcialidade por uma corte eclesiástica francesa submissa aos invasores ingleses, e incinerada por estes, Jeanne de Domrémy, dita Joana d’Arc, seria absolvida post mortem, reabilitada, e elevada a santa, heroína e símbolo de sua França natal.
A história extraordinária de Joana, que foge ao escopo de um blogue e, talvez, duma vida toda a contá-la, inspirou um sem-número de biografias e obras em todas as artes. Afora a obra-prima que encontrarão no apêndice dessa postagem, nenhuma outra me é mais instigante que este oratório de Arthur Honegger, composto para Ida Rubinstein – a mesma bailarina e atriz que encomendou o “Bolero” a Maurice Ravel – sobre um poema de Paul Claudel, hoje talvez mais famoso como irmão de Camille. Após recusar o convite de Honegger, por acreditar que Joana e suas palavras eram famosas demais para que ele lhe compusesse outras, Claudel mudou de ideia após ter uma visão com duas mãos atadas em cruz e deu seu trabalho por completo ao fim dum só jorro criativo, de pouco mais de duas semanas. A engenhosa estrutura do poema, que conduz a heroína a vários flashbacks a partir da fogueira de seu suplício, permite a Honegger dispor de várias formas e estilos – do cantochão a sugestões jazzísticas – para compor seus painéis, lançando mão de coros e de uma peculiar orquestra com saxofones em lugar de trompas, reforçada de dois pianos e uma célebre parte para ondas Martenot, em vivo contraste com os papeis dos protagonistas, totalmente declamados.
Tive o privilégio de assistir a Jeanne d’Arc au Bûcher ao vivo com a maravilhosa Marion Cotillard, a mesmíssima Joana dessa gravação que lhes alcanço. Preparado que estava para me embevecer com a atriz, que me conquistara irremediavelmente com sua atuação quase mediúnica na cinebiografia de Édith Piaf, acabei por me prostrar tanto ante Cotillard quanto ao impacto emocional da composição. Assim, quando soube dessa gravação da Alpha, eu esperei pelo sublime. Acabei, por fim, um tanto frustrado, não com os atores – pois tanto Marion quanto Xavier Gallais estão soberbos -, mas com alguns cantores, em especial no clímax da obra, quando Joana encontra o martírio e as vozes do firmamento a acolhem, desgraçadamente sem muita afinação. Ainda assim, recomendo-lhes a gravação para celebrar a memória da heroína em seu dia, para que se permitam encantar por Cotillard, e prestigiem a grande arte de Honegger e de Claudel tanto quanto eles, relativamente esquecidos, certamente o merecem.
Arthur HONEGGER (1892-1955)
Jeanne d’Arc au Bûcher, oratório dramático em onze cenas e um prólogo (1935)
Libreto: Paul Claudel (1868-1955)
1 – Prologue
2 -Scène I: Les voix du ciel
3 – Scène II: Le livre
4 – Scène III: Les voix de la terre
5 – Scène IV: Jeanne livrée aux bêtes
6 – Scène V: Jeanne au poteau
7 – Scène VI: Les Rois, ou l’invention du jeu de cartes
8 – Scène VII: Catherine et Marguerite
9 – Scène VIII: Le Roi qui va-t-à Rheims
10 – Scène IX: L’épée de Jeanne
11 – Scène X: Trimazo
12 -Scène XI: Jeanne d’Arc en flammes
Marion Cotillard (Jeanne d’Arc)
Xavier Gallais (Frère Dominique)
Yann Beuron, tenor (Porcus, Héraut I, Le Clerc)
Maria Hinojosa (La Vierge)
Aude Extrémo, mezzo-soprano (Catherine)
Anna Moreno-Lasalle (La mère aux tonneaux)
Eric Martin-Bonnet, baixo (Une Voix, Héraut II, Paysan)
Carles Romero Vidal (Héraut, L’âne, Bedford, Jean de Luxembourg)
Cor Vivaldi – Petits Cantors de Catalunya
Cor Madrigal
Cor de Càmera Lieder
Orquestra Simfònica de Barcelona i Nacional de Catalunya
Marc Soustrot, regência
Gravado ao vivo na Sala Pau Casals – L’Auditori, Barcelona, Catalunha, em 17 de novembro de 2012
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Bônus: uma rara gravação da versão italiana do oratório, intitulada Giovanna d’Arco al Rogo, numa produção dirigida por Roberto Rossellini e estrelada por sua então esposa, Ingrid Bergman. Ingrid, que era fascinada pela história de Joana e já vivera a heroína no cinema, convenceu Rosselini a levar o oratório de Honegger para os palcos da Itália, sob direção musical do experiente maestro Gianandrea Gavazzeni, onde estreou com sucesso. A encenação foi filmada no Teatro San Carlo de Nápoles e, levada às telas, naufragou nas bilheterias, o que levou ao cancelamento dos planos do casal de apresentar a versão original em palcos franceses. A gravação a seguir, extraído duma gravação em fita e de qualidade medíocre, vale pelo interesse histórico e pela possibilidade de escutar a divina Bergman brilhando em italiano, uma das cinco línguas em que atuava.
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La Passion de Jeanne d’Arc, C.T. Dreyer, 1928 – Lamentate, Arvo Pärt, 2002 from trineor on Vimeo.
Bônus 2: Por fim, como prometera, alcanço-lhes a maior obra-prima já inspirada pela história da heroína. Realizado por Carl Theodor Dreyer (1889-1968) em 1928 e baseado nas transcrições originais de seu julgamento, La Passion de Jeanne d’Arc acompanha os dias finais da vida de Joana. Um dos últimos grandes filmes mudos, rodado já no advento do cinema falado, La Passion deve tudo ao arrojo de Dreyer e a sua protagonista, Renée Falconetti (1892-1946), que nos alcança aquela que é, talvez, a maior atuação já levada à tela.
Vassily