Nossa homenagem ao saudoso Ranulfus continuará, também, através da republicação de suas preciosas contribuições ao nosso blog – como esta, que veio à luz em 4/9/2016.
Tem coisa mais improvável que uma peça jazzística composta por um sujeito chamado Jaromir Hnilička?
Tem: que a peça consista basicamente de uma execução instrumental bastante simples dos cantos litúrgicos da missa católica, seja executada por uma banda de jazz tcheca… e o disco tenha feito sucesso em todo o mundo.
Pois aconteceu, senhores: o disco foi lançado na Europa em 1969, e depois teve edições em todo mundo, inclusive aqui no Brasil, onde o Monge Ranulfus o adquiriu em 1975.
Apesar de ainda possuir o vinil, a ripagem postada foi garimpada na internet por Daniel the Prophet, e Ranulfus apenas tratou de reduzir os estalos com emprego das artes mágica do mestre Avicenna.
Não tenho ideia de se vocês vão gostar ou não dessa música bem feita porém não muito complexa. A mim sempre agradou bastante – especialmente a faixa mais longa, inspirada no Kyrie e sequências, com 11 minutos. E mais não digo.
Ah, digo sim: já que é domingo de manhã… boa missa, né?
MISSA JAZZ
Composta e arranjada por Jaromir Hnilička
Executada pela Gustav Brom Orchestra (1969)
Nossa homenagem ao saudoso Ranulfus continuará, também, através da republicação de suas preciosas contribuições ao nosso blog – como esta, que veio à luz em 2/6/2016.
Começo por advertir: este é um trabalho feito de sutilezas. Se você colocar como fundo pra ir fazer outra coisa ao longe, é possível que não veja nele interesse nenhum.
Chico Mello e o Monge Ranulfus nasceram no mesmo ano e na mesma cidade. Mais: quando adolescentes, estudaram na mesma classe de Solfejo e Ditado Musical de dona Beatriz Schütz, na Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Na ocasião, os dois mostravam interesse em incluir a MPB dentro do horizonte da formação academicista e eurocêntrica ministrada naquela escola, bem como nos experimentos do então nascente minimalismo.
Mas as semelhanças param por aí: logo Ranulfus percebeu que apenas seus nervos sensores tinham paixão e avidez por música, não os motores: por maior apreciador que fosse, jamais se tornaria um realizador efetivo de música, com aquela naturalidade de quem mija, que é a do verdadeiro artista em qualquer área (imagem com que Monteiro Lobato falou a Érico Veríssimo do ato de escrever). Chico tem essa naturalidade.
A vida levou Ranulfus por outros rumos, nunca mais viu Chico pessoalmente, apenas aqui e ali topou com composições suas – o suficiente para notar que suas construções em linguagens contemporâneas não são meramente cerebrais, e sim sempre vivificadas por esse sopro natural, que desde certa altura do século XX parecia haver se refugiado exclusivamente na música chamada “popular”.
Chico estudou composição com Penalva e Koellreuter, mudou-se pra Berlim, fez carreira artística e docente lá e cá. Em 2010 gravou os 3 CDs Vinte Anos entre Janelas, com uma espécie de sinopse dos seus caminhos de 1987 a 2007. O segundo deles, para dar ideia, se chama Mal-entendidos multiculturais, e contém as seguintes duas peças: Todo canto – para soprano, piano, canto indiano e tabla/pakhawa – e Hui Liu ou la vraie musique para músicos chineses e euroamericanos (!) (Mais sobre esses CDs aqui).
Já neste Ao lado da voz, Chico traz seu experimentalismo sonoro para conversar especificamente com uma das suas próprias fontes: a canção dita popular brasileira. Fá-lo com uma voz totalmente cool, como quem quer deixar claro (suponho) que a linha vocal e as palavras não têm primazia, não são “acompanhadas”, e sim parte igualitária no jogo de construções, desconstruções e reconstruções.
Faz pensar em alguma experiência anterior na nossa música? Acho que mais pelo não que pelo sim: no geral soa mais enxuto, mais parcimonioso que o também sutil mas quase-romântico Wisnik. Passa longe das intenções pop de Arrigo Barnabé. Talvez um pouco mais perto do Itamar Assumpção inicial, desde que expurgado do deboche. Minha impressão, enfim, é que ninguém passou tão perto do mesmo espírito quanto Caetano Veloso em Jóia (mas não em Araçá Azul). Minha impressão!
Uma faixa de amostra? Eu diria que a 3, com fragmentos sampleados de Nélson Gonçalves: acho que em nenhuma outra a vanguarda e a tradição se engalfinham tão profundamente. Já das originais do Chico, acho duro o páreo entre a 5 e a 9 – e já falei demais!
FAIXAS
01 Achado (Chico Mello, Carlos Careqa)
02 Cara da barriga (Chico Mello)
03 Pensando em ti (Herivelto Martins, David Nasser)
04 Mentir (Noel Rosa)
05 Chorando em 2001 (Chico Mello, Carlos Careqa)
06 Já cansei de pedir (Noel Rosa)
07 Carolina (Chico Buarque)
08 Eu te amo (Chico Buarque, Tom Jobim)
09 Valsa dourada (Chico Mello)
10 Rosa (Pixinguinha)
11 Paramá (Chico Mello, Walney Costa)
Chico Mello – vocals, guitars, piano, percussion
Ségio M Albach – clarinets
Uli Bartel – violin
Helinho Brandão – bass
Guilherme Castro – electric bass
Ahmed Chouraqui – percussion
Armando Chu – percussion
José Dias de Moraes Neto – clarinets
Wolfgang Galler – synthesizer, bass, percussion
Michael Hauser – bass
Lothar Henzel – bandoneón
Levent – darabuka
Burkhard Schlothauer – violins, bass
Mix: Chico Mello, Burkhard Schlothauer, Thilo Grahman, Ahmed Chouraqui, Gerhard Grell
Quem era vivo na década de 1990 vai se lembrar desse grupo de músicos cubanos, muitos deles com mais de 70 ou mesmo 80 anos de idade, que de repente ficaram famosos a partir de um documentário. Fizeram um belíssimo disco de estúdio, ganharam Grammy, mas o disco que apresento aqui é o segundo, gravado ao vivo em Nova York quando estavam na crista da onda.
É um caso raro de músicos que fizeram carreiras mais ou menos discretas por décadas, tocando em cassinos, casas noturnas e coisas do tipo, alguns deles desde antes da Revolução Cubana de 1959… e de repente alcançaram um estrelato mundial, coisa que naqueles tempos pré-Youtube e pré-redes-sociais ainda passava necessariamente pelo controle de gravadoras e outras empresas com poder de distribuição internacional. Os músicos se conheciam há anos, mas não formavam exatamente uma banda, de modo que temos um tipo de jazz caribenho em que os arranjos são bastante fluidos, às vezes o trompete tem destaque, às vezes o piano (Rubén González, 1919-2003), às vezes a voz masculina e às vezes a voz feminina (Omara Portuondo, nasc. 1930 e ainda não se aposentou!). Eu insisto em chamar esse tipo de música de jazz, o que é uma certa alfinetada na concepção segundo a qual esse estilo estaria restrito às fronteiras de um certo país anglófono. É bastante curioso que antes de 1959 as músicas de Cuba e dos EUA eram bem entrelaçadas e logo depois os laços se cortaram por motivos políticos, com esses músicos – muitos deles já falecidos em 2025 – representando uma memória viva de fluxos culturais típicos de tempos idos.
Buena Vista Social Club At Carnegie Hall:
Chan Chan 4:46
De Camino A la Vereda 4:59
El Cuarto de Tula 8:01
La Engañadora 2:44
Buena Vista Social Club 5:59
Dos Gardenias 4:24
Quizás, Quizás 3:48
Veinte Años 4:07
Orgullecida 3:23
¿Y Tú Qúe Has Hecho? 3:33
Siboney 2:33
Mandinga 5:30
Almendra 5:49
El Carretero 5:39
Candela 7:00
Silencio 5:25
Rubén González – Piano
Hugo Garzón – Vocals
Ibrahim Ferrer – Vocals
Manuel ‘Puntillita’ Licea – Vocals
Omara Portuondo – Vocals
Pío Leyva – Vocals
(Postagem do Ranulfus em 2016, revalidada por Pleyel em 2025 in memoriam ao nosso amigo Ranulfus e também aos 45 anos de morte de Vinicius de Moraes)
Dia desses, garimpeiros que encontraram no blog uma postagem antiga do colega Bluedog reabriram a conversa sobre a extraordinária música instrumental que tomou forma no Brasil na década de 1960 – o que nos motivou a revalidar aqui aquela postagem, do Quarteto Novo.
E a audição do Quarteto Novo me remeteu inevitavelmente a este outro disco, que eu já vinha planejando digitalizar e postar: ele contém um terço do que foi apresentado no histórico show de 25 de maio de 1964 no antigo Teatro Paramount em São Paulo (hoje Teatro Renault), inaugurando o nome “O Fino da Bossa”, que de 1965 a 67 seria aplicado ao programa comandado por Elis Regina e Jair Rodrigues, transmitido ao vivo desse mesmo teatro pela TV Record.
Como (quase) todo mundo sabe, a bossa nova emergiu entre 1957 e 59 (ao mesmo tempo que o rock’n’roll nos EUA, e este que vos escreve naquele faroeste que era então o Paraná) de todo o caldo de cultura dos anos 50, sobretudo por obra de um bruxo chamado João Gilberto, e foi imediatamente amplificada por uma juventude universitária antenada no que rolava “lá fora” mas suficientemente inteligente pra perceber a imensa riqueza e valor da herança cultural brasileira, e ater-se a ela como fundamento da sua criação, por multi-informada que fosse.
O famoso show no Carnegie Hall (NY, 21.11.1962) ficou como marco da explosão internacional da bossa, que se tornou um dos estilos mais ouvidos no mundo pelo resto da década. Complexados que somos, só depois disso a bossa ganhou um grande teatro no Brasil – ainda por meio de uma juventude universitária suficientemente abastada para abrir suas portas de cristal (Faculdade de Direito do Largo São Francisco – quem sabe um pouco sobre São Paulo entende).
O show aconteceu mês e meio depois do golpe de 64. O sucesso estrondoso fez a bossa ganhar espaço privilegiado na tevê pelos anos seguintes, virando trincheira de resistência nacionalista e de esquerda ao mesmo tempo em que tensionava sua base carioca-boa-vida com o influxo nordestino (vide faixa 8) – com surpreendente penetração e ressonância popular até nos interiores distantes (acreditem: eu vi), mesmo com a promoção paralela da Jovem Guarda como estratégia de despolitização da juventude – até que foi varrida da tevê por obra do golpe-dentro-do-golpe (1969), altura em que já tinha se transformado no campo multiforme e complexo que ganhou o rótulo MPB.
Foi no meio disso tudo que ainda floresceu uma espantosa safra de instrumentistas e arranjadores, como os que ouvimos no Quarteto Novo e ouviremos neste disco aqui, dominado por um sujeito chamado Oscar Castro Neves.
Pra mim essa riqueza é descoberta recente: em 1964 eu tinha só 7 anos; passei a adolescência pensando que bossa era música fútil de sala de espera – o que realmente chegou a ser na sua diluição internacional. Até hoje tendo a ver a bossa pura como uma espécie de piso Haydn-Mozart a partir dos qual se ergueria uma ousadia beethoveniana, no caso a da santíssima trindade Caetano-Chico-Mílton e outros deuses em torno… E talvez tenha sido justamente o encontro com os 10 minutos de timbres e texturas que este Oscar Castro Neves arranca com seu noneto de Berimbau, de Baden e Vinícius (faixa 9), o que me fez finalmente entender a declaração solene do próprio Caetano: “o Brasil ainda precisa merecer a Bossa Nova”.
Só que, estranhamente, pouco depois grande parte desses instrumentistas e arranjadores – como o Airto Moreira do Quarteto Novo, Eumir Deodato, Sérgio Mendes, o próprio Oscar Castro Neves – foram parar na Califórnia, onde vieram a fazer parte do clube dos arranjadores mais bem pagos dos EUA – mas aí sua produção musical logo deixou de ser convincente para ouvidos brasileiros. Suas tentativas de referência ao Brasil foram ficando constrangedoramente inautênticas.
O que no meu ver pode colocar em questão a tese do colega Bluedog naquela outra postagem: a de que o “jazz nordestino” poderia ter ganho o mundo: em certa medida ele até ganhou, mas… de repente pareço ouvir uma ressonância irônica e lúgubre da frase dos evangelhos: de que adianta ao homem ganhar o mundo e perder sua alma?
Enfim: o disco que vocês vão ouvir tem meninas que cantavam com charme mas com vozes pequenas e pouco seguras – como muitas que surgiram na última década, me fazendo pensar se isso pode ser característico de momentos de transição estilística… Tem Paulinho Nogueira mostrando impecavelmente que a geração bossa não necessariamente rejeitava a tradição… Tem Jorge Ben(jor) ainda lutando pra cantar com o R de língua, não carioca, que era exigido pelo rádio (!) até começo dos anos 60 (herança do estado Novo?). E tem Rosinha de Valença extraindo tamanha ginga e intensidade de seu violão, que eu tendo a considerar a faixa 5 o ponto alto do disco – mais ainda que os já mencionados dez minutos do Oscar.
E por falar no Oscar (Castro Neves), por mais que tenha procurado, não consegui encontrar os nomes dos integrantes do seu noneto. Será que algum dos leitores pode ajudar a matar a charada?
O FINO DA BOSSA
LP de 1964, contendo cerca de 1/3 da gravação ao vivo do show
“O Fino da Bossa”, promovido pelo Centro Acadêmico XI de Agosto (da faculdade de direito da USP) no Teatro Paramount de São Paulo, na noite de 25 de maio de 1964.
01 Onde Está Você? (Luvercy Fiorini / Oscar Castro Neves)
Alaíde Costa, voz; Oscar Castro Neves Noneto – 03’51
03 Pot-pourri: – Gosto Que Me Enrosco (Sinhô = José Barbosa da Silva) – Agora É Cinza (Bide = Alcebíades Maia Barcellos /
Marçal = Armando Vieira Marçal) – Duas Contas (Garoto = Aníbal Augusto Sardinha) – Bossa Na Praia (Geraldo Cunha / Pery Ribeiro)
Paulinho Nogueira, violão – 04’07
04 Tem Dó (Baden Powell / Vinicius de Moraes)
Ana Lúcia, voz; Oscar Castro Neves Noneto – 02’57
05 Consolação (Baden Powell / Vinicius de Moraes)
Rosinha de Valença, violão; Oscar Castro Neves Noneto? – 06’26
06 Chove Chuva (Jorge Ben / Benjor)
Jorge Ben (Benjor) – 03’39
07 Desafinado (Newton Mendonça / Tom Jobim)
Wanda Sá, voz; Oscar Castro Neves Noneto – 03’38
08 Maria Moita (Carlos Lyra / Vinicius de Moraes)
Nara Leão – 01’59
09 Berimbau (Baden Powell / Vinicius de Moraes)
Oscar Castro Neves Noneto – 10’18
Lançamento original em vinil: 1964.
Digitalizado em 2016 por Ranulfus & Daniel the Prophet
a partir do relançamento de 1989 em vinil,
comemorativo de 30 anos de Bossa Nova
Riley foi um dos pioneiros do que hoje chamamos minimalismo, mas também sempre esteve próximo do jazz e do improviso, de forma que é difícil saber se o álbum de hoje é um .:interlúdio:. ou não. E isso é só um detalhe, o que importa mesmo é a música, né?
Após ganhar uma certa notoriedade nos anos 1960, Terry Riley fez muitos shows solo tocando teclados em efeitos de overdubs e loops semelhantes aos do álbum A Rainbow in Curved Air (1968). Em alguns casos, com participações especiais notáveis, como a do trompetista Don Cherry (aqui). Gravado em estúdio em 1978, Shri Camel é um álbum que mostra os caminhos pelos quais os improvisos de Riley costumavam passear. Há momentos mais lentos, outros com sons pululando por todos os lados e, em todos os casos, as paisagens sonoras são profundamente originais e seriam copiadas por gente menos talentosa nos anos seguintes.
Terry Riley (nasc. 1935): Shri Camel
listing
1. Anthem of the Trinity – 9:25
2. Celestial Valley – 11:32
3. Across the Lake of the Ancient World – 7:26
4. Desert of Ice – 15:13
Riley – “modified Yamaha YC-45D combo organ tuned in just intonation and augmented with studio digital delay”
O nome já avisa: um concerto improvisado bem mais noturno, por vezes melancólico ou reflexivo em comparação com outras gravações do pianista que fez 80 anos este mês. E alguns momentos de extrema beleza improvisada, talvez principalmente na primeira e na última faixa do álbum.
Keith Jarrett: Dark Intervals
A1 Opening 12:51
A2 Hymn 4:55
A3 Americana 7:10
A4 Entrance 2:54
B1 Parallels 4:56
B2 Fire Dance 6:50
B3 Ritual Prayer 7:10
B4 Recitative 11:16
Recording: Tokyo, April 11, 1987
Durante aproximadamente 10 anos fiz uma ponte rodoviária entre Florianópolis, onde estudava e morava com meus pais e irmãos, e a cidade onde vivia minha futura esposa, companheira, namorada. Eu estudava e trabalhava em Floripa e ela trabalhava na cidade cujo nome não vem ao caso, então eu embarcava ou na sexta feira de noite ou no sábado de manhã e voltava para a capital catarinense no domingo de noite. São estas situações que fortalecem um relacionamento, e mostram o quão importante é a confiança entre o casal: estamos juntos há trinta e um anos. Enfim, para matar o tédio da viagem, que durava em média entre duas horas e duas horas e meia, eu ouvia música. Comprei um cd player portátil da Sony, que me acompanhou até há poucos anos atrás, e ia ouvindo meus cds.
O disco que provavelmente eu mais ouvi nestas viagens foi essa pintura, essa obra prima do Pat Metheny Group, “The Road to You” que, conforme comentei em postagem anterior, considero um dos melhores discos ao vivo já gravados. E um dos mais bonitos. Impossível não se render à beleza das harmonias, à incrível complexidade dos solos de Metheny e de seus músicos, e à voz maravilhosa de Pedro Aznar, com vocalizações incríveis, que me arrepiam até hoje quando às ouço. E hoje, pensando neste título tão singular, vejo que inconscientemente eu absorvia aquele disco como a trilha sonora daquela viagem semanal, o objetivo de todo aquele ‘sofrimento’ de ida e volta era o reencontro com a mulher amada, a certeza de que ela estava me esperando. Como comentei essa rotina durou dez anos, até eu me mudar em definitivo para a cidade dela, onde vivo até hoje, e onde pretendo terminar meus dias, sempre ao seu lado.
Passados quase vinte anos daquela rotina, e às vésperas de completar 60 anos, ouvindo novamente esse álbum duplo depois de alguns anos, ainda encontro nele as mesmas sensações e as mesmas emoções. E continuo com a mesma opinião: com certeza é um dos melhores e mais belos discos ao vivo já lançados. Cada faixa é uma explosão de sentimentos, cada solo é uma busca da nota perfeita, nada sobra ou falta. Poucos são os músicos que atingem este nível de qualidade e talento.
Ao ouvi-lo hoje, talvez a única diferença seja o fato de que não preciso chegar ao final da viagem e daquela maratona sonora para encontrar a mulher amada: ela está a apenas uma parede de distância, se me virar a vejo. E sorrio.
Pat Metheny Group: The Road to You
01 – Have You Heard
02 – First Circle
03 – The Road To You
04 – Half Life Of Absolution
05 – Last Train Home
06 – Better Days Ahead
07 – Naked Moon
08 – Beat 70
09 – Letter From Home
10 – Third Wind
11 – Solo From More Travels
Pat Metheny – Guitars
Lyle Mays – Piano & Keyboards
Steve Rodby – Bass
Paul Wertico – Drums
Armando Marçal – Percussion
Pedro Aznar – Percussin, Acoustic Guitar, Percussion, Sax, Voice
Mas a estrela principal desta postagem é um parceiro de longa data de Cobham…
Barcelona, 1964. Ron Carter estava em turnê com o quinteto de Miles Davis. No seu tempo livre, ele e Miles buscaram satisfazer duas necessidades profundas em um obscuro restaurante onde as paixões catalãs por boa comida e boa música se encontravam.
“Os funcionários pareciam honrados com o nosso interesse. O resultado foi um incrível jantar com peixe, seguido de duas horas de maravilhoso flamenco. Eram dois dançarinos e três músicos, todos autênticos. Eu sempre gostei de música espanhola. Mas naquela viagem tive a chance do ouvir horas, direto da fonte. Fiquei fascinado com o uso do tempo pelos músicos de flamenco. Uma ênfase diferente na marcação do tempo. Não consigo anotar ou explicar, mas é muito emocionante.”
Duas das peças neste álbum refletem as simpatias espanholas de Ron Carter. Ele não tem a pretensão de que essas peças observam formas tradicionais do flamenco. São composições distiladas do estilo espanhol e filtradas pela experiência e perspectiva de um mestre do jazz. Os solos apaixonados de Hubert Laws (flauta) e Roland Hanna (piano acústico e elétrico) em El Noche Sol e a atmosfera sensual de habanera em Sabado Sombrero atestam o sucesso de Carter como compositor, líder e baixista.
“Arkansas” – que ganhou este nome quando o filho de Ron Carter estudava um mapa e pronunciou de modo errado o nome daquele estado do sul dos EUA – tem o único overdub no disco: Carter toca ao mesmo tempo um baixo piccolo e um normal. As duas linhas de baixo têm, ambas, os elementos que fizeram de Ron Carter um músico tão popular entre ouvintes e músicos: potência, swing, um tom redondo e uma lógica arquitetural única.
Mas a sua habilidade para lidar e se ajustar com seus parceiros é igualmente importante. Neste álbum essa empatia é notável, por exemplo, nas conspirações rítmicas desenvolvidas por Carter e Billy Cobham.
“Ele ouve com as suas mãos e ouvidos,” diz Ron sobre Cobham. “O que quer que acontecer, ele sempre vai se adaptar e nós sempre nos viramos sem perder o tempo.”
(Adaptado do encarte de Spanish Blue, 1975, escrito por Doug Ramsey)
Enquanto o resto do álbum tem essa homenagem às sonoridades espanholas, a faixa final, Arkansas, tem uma levada mais dançante no baixo elétrico, lembrando um pouco o movimento que também Billy Cobham fazia em seu álbum do mesmo ano, A Funky Thide of Sings.
O baixo elétrico, porém, permaneceria minoritário na longa e produtiva carreira de Ron Carter: a partir dos anos 1980 ele se tornou um dos nomes mais constantes em grupos do chamado jazz tradicional, ou seja, com instrumentos acústicos. A sua pose de gentleman, quase sempre em ternos bem cortados, ajudaria a compor o estilo daquele jazz mais orientado para adultos acima dos 40 do que para jovens.
E mais ou menos a partir do ano 2000, também Billy Cobham voltaria a tocar esse tipo de jazz em instrumentos acústicos. Ele continuaria fazendo shows e álbuns de jazz-fusion, mas alternaria com formações como esta gravada ao vivo em 2011, com Ron Carter no baixo e o saxofonista Donald Harrison. Nascido em New Orleans em 1960, Harrison traz o swing do sul dos EUA para duas faixas compostas por Ron Carter e uma por Victor Feldman & Miles Davis. Há ainda um standard de 1936 assinado Vernon Duke & Ira Gershwin, um outro standard tocado somente por Carter no baixo e a faixa final é assinada pelos três músicos aqui presentes.
Ron Carter: Spanish Blue (1974)
1. El Noche Sol (Ron Carter)
2. So What” (Miles Davis) – 11:24
3. Sabado Sombrero (Ron Carter)
4. Arkansas (Ron Carter)
Recorded at Van Gelder Studio in Englewood Cliffs, New Jersey, USA, November 18, 1974
Ron Carter – bass
Hubert Laws – flute
Roland Hanna – electric piano, piano (tracks 1-3)
Leon Pendarvis – electric piano (track 4)
Jay Berliner (track 3) – guitar
Billy Cobham – drums, field drum
Ralph MacDonald – percussion
Donald Harrison, Ron Carter, Billy Cobham: This is Jazz (2011)
1. Cut & Paste (Ron Carter)
2. MSRP (Ron Carter)
3. You Are My Sunshine (Jimmie Davis, Charles Mitchell)
4. Seven Steps to Heaven (Victor Feldman, Miles Davis)
5. I Can’t Get Started (Vernon Duke, Ira Gershwin)
6. Treme Swagger (Donald Harrison, Ron Carter, Billy Cobham)
Recorded live at the Blue Note, NYC, USA, March 5-6, 2011
Donald Harrison – alto saxophone
Ron Carter – bass
Billy Cobham – drums
Billy Cobham talvez seja o maior baterista vivo e em atividade no planeta. E podem ter certeza de que eu não falo isso pra todos. Não me lembro de ter feito, até hoje, uma série de postagens com elogios tão longos a um baterista ou percussionista, e olha que já falei aqui de figuras veneráveis como Naná Vasconcelos (1944-2016), Wilson das Nees (1936-2017) e Rashied Ali (1933-2009).
Alex Blake
Temos aqui dois discos de Billy Cobham com sua banda de meados dos anos 1970. A sonoridade mantinha-se próxima do jazz-fusion do seu disco de estreia, porém, com três ou mais instrumentos de sopro e com linhas de baixo mais dançantes, ele ia se aproximando do funk. Isso já é verdade no disco gravado ao vivo na Europa, mas sobretudo no disco seguinte, A Funky Thide of Sings (1975). Um dos grandes momentos de toda a carreira de Billy Cobham, este álbum tem arranjos que lembram um pouco o instrumental dos discos de Michael Jackson como Off the wall (1979) e os anteriores com seus irmãos. A semelhança se dá sobretudo com os baixos extremamente dançantes, também os teclados e metais, mas é claro que a percussão aqui é muito mais elaborada. Amo este disco.
Para além do entusiasmo com esses excelentes músicos como Milcho Leviev (teclados) e Alex Blake (baixo), é interessante notar também que tanto a mudança de sonoridade rumo ao funk como as turnês na Europa fizeram parte de um contexto de crise do jazz nos EUA como gênero comercialmente viável. Sobre isso, um respeitado historiador resume:
Assim como a música clássica, o jazz sempre foi um interesse de minorias, contudo, diversamente da música clássica, esse interesse não foi estável. O interesse pelo jazz passou por diferentes fases, havendo momentos de desânimo. O final da década de 1930 e os anos 1950 foram períodos em que o jazz se expandiu de maneira notável, mas nos anos da depressão de 1929 (nos EUA, pelo menos), até o Harlem preferiu música suave à meia-luz em vez de Duke Ellington ou Louis Armstrong. (…) A idade de ouro dos anos 50 terminou de repente (…). Os jovens, sem os quais o jazz não pode existir, o abandonaram com uma rapidez extraordinária.
Não foram poucos os músicos de jazz americanos que acharam melhor emigrar para a Europa naquelas décadas. Como disse um famoso saxofonista em 1976: “Não acho que possa ganhar o suficiente neste país. Não acho que alguém possa… Não há público em número bastante… Nos últimos dois anos, a banda fez mais apresentações na Alemanha do que aqui”.
(Eric Hobsbawm. O Jazz a partir de 1960. In: Pessoas extraordinárias – Resistência, rebelião e jazz. 1989)
Billy Cobham – percussion
Michael Brecker – saxophone
Randy Brecker – trumpet
Glenn Ferris – trombone
John Abercrombie – guitar
Milcho Leviev – keyboards
Alex Blake – bass
Recorded at the Rainbow Theatre, London, England, 13/jul/1974 (tracks 1, 3, 4) / at the Montreux Jazz Festival, Switzerland, 4/jul/1974 (track 2). All compositions by Billy Cobham
1. Panhandler (Billy Cobham) – 3:50
2. Sorcery (Keith Jarrett) – 2:26
3. A Funky Thide of Sings (Billy Cobham) – 3:23
4. Thinking of You (Alex Blake) – 4:12
5. Some Skunk Funk (Randy Brecker) – 5:07
6. Light at the End of the Tunnel (Billy Cobham) – 3:37
7. A Funky Kind of Thing (Billy Cobham) – 9:24
8. Moody Modes (Milcho Leviev) – 12:16
Billy Cobham – percussion, synthesizers
Milcho Leviev – keyboards
John Scofield – guitar
Alex Blake – bass
Michael Brecker, Larry Schneider – saxophone
Randy Brecker, Walt Fowler – trumpet
Tom Malone – trombone, piccolo
Glenn Ferris – trombone
Rebop Kwaku Baah – congas
O ano de 1973 foi extremamente movimentado para Billy Cobham: aos 29 anos, ele alcançava uma fama maior com o grupo Mahavishnu Orchestra, ao mesmo tempo que presenciava a desintegração deste grupo. Não faltaram outros parceiros musicais de imenso talento, com os quais ele tocou em estúdio e em turnês pelos EUA. um desses parceiros foi o guitarrista Carlos Santana, que naquele momento já tinha uma legião de fãs na California, enquanto os fãs de John McLaughlin se concentravam mais em Nova York e na costa leste em geral. Os dois guitarristas gravaram um disco em 1973 e cada um trouxe parte de suas bandas: McLaughlin contou com Billy Cobham na bateria e Santana trouxe Armando Peraza (1924-2014), percussionista de origem cubana. Larry Young (órgão hammond) completa a banda principal, que teve ainda a participação mais discreta do baixista Doug Rauch, também da banda de Santana desde 1970. Essa mesma banda fez uma curta turnê em 1973, uns 10 ou 20 shows. Ao vivo, no show em Saratoga (estado de NY, USA), aos menos para os meus ouvidos eles estão ainda melhores do que no estúdio.
Também foi em 1973 que Billy Cobham gravou seu primeiro álbum como líder de uma banda: aqui, sem guitarra, ele convidou o tecladista da Mahavishnu Orchestra, Jan Hammer, que é o principal destaque no disco Spectrum junto com o baterista. Hammer em seguida tocaria muitos anos com Jeff Beck, incluindo o clássico álbum Wired (1976). Apoiado na reputação que Billy Cobham ia construindo em meio a tantos discos e shows em outras bandas, esse seu primeiro disco solo foi um sucesso de vendas e alavancou a sua longa carreira solo, da qual veremos dois dos seus outros álbuns amanhã.
Na continuação das homenagens ao baterista Billy Cobham, hoje temos mais três discos com a sua participação, e que até hoje são frequentemente reeditados e relembrados em listas de melhores disso ou daquilo. Os textos abaixo são adaptados do blog jazz-rock-fusion-guitar, um dos mais longevos da internet junto com este PQPBach e uma meia dúzia de outros dedicados à música. Mas antes uma observação: é um exagero dizer que Billy Cobham foi da banda de Miles Davis. Ele gravou com Miles, como baterista já muito conhecido como músico de estúdio em Nova York e New Jersey. Mas não chegou a fazer vários shows e turnês com Miles Davis em sua encarnação elétrica, ao contrário de nomes como Wayne Shorter, Chick Corea, Keith Jarrett, Jack DeJohnette. Com a Mahavishnu Orchestra de John McLaughlin, sim, ele teve uma ligação mais duradoura e intensa entre 1971 e 1973. E foi a partir do grande sucesso dos discos e dos shows dessa banda que Billy Cobham ganhou um público de admiradores e iniciou uma carreira como líder de seus próprios grupos, mas isso já são cenas do próximo capítulo.
Jack Johnson, também conhecido como A Tribute to Jack Johnson, foi a segunda trilha sonora de filme que Miles Davis compôs, depois de Ascenseur pour l’échafaud em 1957. Em 1970, Bill Cayton (empresário do boxe) pediu a Davis que gravasse música para seu documentário de mesmo nome sobre a vida do boxeador Jack Johnson. A saga de Johnson ressoou pessoalmente em Davis, que escreveu no encarte do álbum sobre a maestria de Johnson como boxeador, sua afinidade com carros velozes, jazz, roupas e mulheres bonitas, sua negritude não reconstruída e sua imagem ameaçadora para os homens brancos. Jack Johnson foi um ponto de virada na carreira de Davis e desde então tem sido visto como uma de suas maiores obras.
Na capa original do LP (clique na foto mais abaixo para ampliar), além de uma foto de Miles Davis e seu trompete, há também um texto introdutório do próprio Miles, no seu característico estilo direto e combativo, que começa assim:
A ascensão de Jack Johnson à supremacia mundial dos pesos pesados em 1908 foi um sinal para o surgimento da inveja branca. Consegue imaginar? E, claro, nascer Negro na América… todos nós sabemos como é. Um dia antes de Johnson defender o título contra Jim Flynn (1912), ele recebeu um bilhete: “Deite-se amanhã ou amarraremos você – Ku Klux Klan.” Dig that!
Johnson representou a Liberdade – ela tocou tão alto quanto o sino que o proclamava Campeão. Ele era um homem de vida rápida, gostava de mulheres – muitas delas e a maioria brancas. Ele tinha carros chamativos, isso mesmo, os grandes e os rápidos. Ele fumava charutos, tomava os melhores champagnes e tinha um contrabaixo de mais de 2 metros no qual ele orgulhosamente tocava jazz. Sua extravagância era óbvia. (…) E quanto mais ele era odiado, mais dinheiro ele ganhava, mais mulheres ele conquistava e mais vinho ele bebia.
Davis, que queria formar o que chamou de “a maior banda de rock and roll que você já ouviu”, gravou com uma formação composta pela guitarra de John McLaughlin, o baixo elétrico de Michael Henderson, os teclados de Herbie Hancock e a bateria de Billy Cobham.
A principal sessão de gravação do álbum, em 7 de abril de 1970, foi quase acidental: John McLaughlin, aguardando a chegada de Miles, começou a improvisar riffs em sua guitarra, e logo se juntou a Michael Henderson e Billy Cobham. Enquanto isso, os produtores trouxeram Herbie Hancock, antigo parceiro de Miles e que por acaso estava de passagem pelo prédio, para tocar órgão Farfisa – criando sonoridades que por vezes lembram o Pink Floyd do período com Syd Barrett (1966-1968).
Em “Yesternow”, existem duas bandas, a primeira mencionada acima e outra que começa por volta das 12h55. A segunda formação foi Miles, McLaughlin e Sonny Sharrock (guitarras), Jack DeJohnette (bateria), Chick Corea (teclado), Bennie Maupin (clarinete baixo), Dave Holland (baixo elétrico). Os primeiros 12 minutos da música giram em torno de um único riff de baixo retirado de “Say It Loud, I’m Black and I’m Proud”, de James Brown. Jack Johnson é um dos melhores discos de jazz elétrico já feitos por causa do sentimento de espontaneidade e liberdade que evoca no ouvinte, pelos solos estelares e inspiradores de McLaughlin e Davis e pela perfeição da montagem de diferentes takes no estúdio por Miles e pelo produtor Teo Macero.
Os outros discos da postagem de hoje são da Mahavishnu Orchestra, que não era uma orquestra no sentido literal, apenas uma banda com cinco músicos tocando jazz-rock (fusion) em instrumentos elétricos: guitarra, baixo, teclado, violino e bateria. O líder, John McLaughlin, foi um dos protagonistas da banda de Miles na fase dos discos Bitches Brew e Jack Johnson, tendo fundado sua própria banda logo em seguida. Apesar de – ao menos quando sob os holofotes – espiritualizado em um peculiar estilo bastante influenciado pela fase final de Coltrane, McLaughlin ao mesmo tempo queria assinar como único compositor da banda e ficar com a maior parte da grana, o que fez com que a 1ª formação da Mahavishnu Orchestra durasse apenas uns dois anos. Uma pena, pois raramente se viu gente tão talentosa e com uma química tão intensa entre si. A bateria de Billy Cobham, com seu peculiar estilo de subdividir os ritmos, funcionava perfeitamente com os compassos quebrados da guitarra e dos demais instrumentos.
Mahavishnu Orchestra, 1973 (clique para aumentar)
Birds of fire foi o 2º e último disco de estúdio dessa 1ª e melhor formação da Mahavishnu Orchestra, é cheio de notáveis solos precisamente coreografados e de alta velocidade – com John McLaughlin, Jerry Goodman e Jan Hammer todos unidos, apoiados pela bateria de Billy Cobham e seu som muito peculiar.
Em seguida, em 1973, em meio às dificuldades durante a gravação de um abortado 3º álbum, lançaram o disco ao vivo Between Nothingness & Eternity. Neste show no Central Park de Nova York os cinco virtuosos do jazz-rock podem ser ouvidos em faixas mais longas e com mais liberdade do que no estúdio. Há apenas três faixas no disco, cada uma se desenvolve organicamente através de uma série de seções, e há menos passagens em uníssono sincronizado do que nas gravações anteriores. McLaughlin está tão brilhante como sempre na guitarra elétrica de braço duplo, e Jan Hammer (teclados) e Jerry Goodman (violino) são páreo para ele no departamento de velocidade, com o baterista Billy Cobham exibindo uma sonoridade poderosa, bruta e convincente em seu acompanhamento.
Younger listeners raised on rock responded to the band’s vitality and extraordinary musicianship; Hammer added synthesizers to his arsenal, developing a keyboard style nearly as influential as that of McLaughlin’s frenetic guitar work and Cobham’s rumbling percussive attack. But it was nearly inevitable that the life span of such a dynamic ensemble would be brief. The Mahavishnu Orchestra threw down the gauntlet; fusioneers who followed have been trying to catch up ever since.
The original Mahavishnu Orchestra only lasted a short time, but they created a tremendous body of work. Not quite rock but too loud for jazz, they blazed the trail for fusion and left everyone far behind. This collection has both studio albums – with not a bad cut between them -and the live ‘Between Nothingness and Eternity’, which, unusually for the time, had all new music on it and was more expansive, with the shortest cut being nearly ten minutes long.
Três álbuns gravados no Van Gelder Studio em Nova Jersey, perto de Nova York. Até 1972 Cobham gravou dezenas de discos como músico contratado. Outros grandes músicos como Ron Carter, Hubert Laws e Airto Moreira estavam lá gravando naquele estúdio vários meses do ano naqueles tempos…
No disco de estreia de Eumir Deodato no mercado norte-americano, ele toca o piano elétrico Fender Rhodes e fez as orquestrações, com muitas flautas e cordas suaves, às vezes lembrando certos arranjos posteriores de uma bossa nova sem o frescor dos primeiros anos, já a cópia da cópia, mas esses últimos arranjos copiaram muito o próprio Deodato, então ele não é de todo culpado pela música morna que fizeram depois dele. O disco vendeu bastante para os padrões da música instrumental, principalmente graças ao arranjo (por Deodato) do Zarathustra de Richard Strauss…
Hubert Laws
Também há o curioso momento em que nosso ídolo Billy Cobham toca no improviso jazzístico sobre o Prelúdio ao entardecer de um fauno, de Debussy. Nesse improvável encontro de mundos diferentes, a versatilidade do baterista aparece: um minuto contido até certo ponto, mas a partir do segundo minuto entra um groove irresistível: nem o Claude Debussy (que era do tipo de ia de sombrinha e gravata borboleta pra praia) resiste. E antes e depois do groove, Hubert Laws inicia e fecha a faixa com solos de flauta muito bonitos.
Em outras faixas, os arranjos e Deodato ficam a um pequeno passo de se tornarem música de elevador, música de hall de entrada de hotel e trilha sonora de telenovela carioca, mas esse pequeno passo não é dado, talvez graças ao talento absurdo dos instrumentistas contratados. Os dois baixistas, Ron Carter e Stanley Clarke, estão entre os melhores do mundo até hoje.
Billy Cobham nasceu no Panamá e se mudou para os EUA. Assim como o guitarrista mexicano Carlos Santana (mas com a pele mais escura e um sobrenome menos hispânico), Cobham tem em seu estilo certas características daquilo que, de um ponto de vista redutor estadunidense, é tido como música latina, algo que engloba desde a bossa nova até o jazz cubano como o daqueles músicos que ficaram famosos com o filme Buena Vista Social Club. Eumir Deodato, criado no Catete, bairro central do Rio de Janeiro, em 1972 já vivia nos EUA, tocando e principalmente fazendo arranjos que também evocam um imaginário “latino” de verão, praia, mulheres de biquini, essas coisas.
Em Red Clay, disco de 1970 liderado pelo trompetista Freddie Hubbard, Billy Cobham não tocava no LP original, mas ele está presente na faixa bônus do CD, uma longa jam sobre o tema título do álbum, gravada ao vivo em 1971 com a presença de George Benson (guitarra) e do incansável Ron Carter (baixo). Vocês sabiam que Ron Carter é o baixista que participou do maior número de discos na história? São mais de 2.200 e ele ainda está em atividade, assim como seu amigo Billy Cobham. Só a discografia deles dois juntos já dá mais de 20 álbuns, alguns deles estarão por aqui na próximas semanas…
Em Sky Dive (1972), alguns dos músicos presentes nos dois discos anteriores se repetem: Cobham (bateria), Carter (baixo), Benson (guitarra), Laws (flauta), com a presença ainda de Keith Jarrett (pianos acústico e elétrico, um dos últimos discos em que ele tocou este segundo) e do brasileiro Airto Moreira (percussão), mas há também arranjos para uma banda de apoio maior, com três trombones, três clarinetes, etc. Os fãs de Jarrett devem conferir sobretudo o seu solo de piano acústico na faixa 6, onde ele se solta mais do que no elétrico. E eu gosto especialmente da faixa 4, The Godfather, arranjo inspirado na melodia de Nino Rota para o filme O Poderoso Chefão. Uma confissão: eu já não me lembrava que essa melodia, rearranjada por tanta gente, era do filme e do Nino Rota, pra mim era do cancioneiro popular, o que também aliás já se tornou, sendo inclusive presença obrigatória em um certo bloco de carnaval carioca que sai perto dos Arcos da Lapa.
Dois discos liderados pelo saxofonista Stanley Turrentine, considerado um dos principais nomes do soul jazz, estilo que se mistura com vários outros mas, no geral, tem semelhanças com a soul music cantada de Aretha Franklin, Ray Charles e dos artistas da Motown e tem melodias mais simples e cantáveis do que as do jazz de vanguarda. No fundo, essas classificações ficam muito longe de explicar tudo que acontece na música, e tanto é assim que esses dois discos são bem diferentes.
No primeiro, gravado em 1968-69, Turrentine é acompanhado por uma banda menor: tirando uma faixa em que a organista Shirley Scott brilha no hammond, o resto do disco é formado por um quarteto formado pelas sonoridades marcantes de McCoy Tyner (piano), Billy Cobham (bateria) e o mais discreto Gene Taylor (baixo).
McCoy Tyner
O mais impressionante é ouvir McCoy Tyner e Billy Cobham tocarem bossa nova em Wave. Não creio que o solo de sax de Turrentine seja o melhor já feito sobre a melodia de Jobim: enfatizando sonoridades alegres e um tanto comuns – se comparadas com os sons bizarros de Coltrane ou Pharoah Sanders -, Turrentine trilha os caminhos já percorridos por Stan Getz nos álbuns premiados deste último.
A comparação com Billy Hart, baterista do quarteto de Stan Getz quando tocaram Wave ao vivo em 1975 (aqui) mostra a diferença entre um músico competente capaz de fazer uma bossa nova agradável e um gênio do instrumento que, mesmo se adaptando e dançando conforme a música, mantém uma personalidade única.
Já no disco Cherry, de 1972, a banda é um sexteto muito bem gravado no Van Gelder Studio, New Jersey, onde também foram feitos quase todos os álbuns de John Coltrane. Ouça em um bom aparelho stereo ou com bons fones de ouvido e você perceberá a cuidadosa – e até um pouco artificial em comparação com discos ao vivo – divisão dos seis músicos em duas duplas que ocupam o espaço sonoro assim:
A) Stanley Turrentine (sax) e Milt Jackson (vibrafone) à frente, se revezando nos solos
B) Bob James (piano elétrico) e Cornell Dupree (guitarra elétrica) ao fundo, mas com longas linhas melódicas agudas que ocupam os espaços deixados pelos solistas
C) Ron Carter (baixo), Billy Cobham (bateria) também ao fundo, mas em um plano grave no qual os dois dialogam, meio separados do plano agudo em (B).
Nos primeiros minutos de Cherry, quase parei de ouvir: um jazz sofisticado, chique mesmo, com piano elétrico e uma guitarra elétrica (sem distorção, suave como o violão de João Gilberto) acompanhando os dois solistas principais. O saxofone de Turrentine vai sempre mais ou menos direto ao ponto, enquanto o vibrafone de Milt Jackson dá voltas harmônicas sutis por meio de notas alteradas. Enfim, tudo isso a princípio me pareceu de mau gosto, mas com o passar dos minutos fui gostando mais, seja porque o ouvido se acostumou, seja porque o diálogo entre o baixo de Ron Carter e a bateria de Billy Cobham, lá no fundo, é sempre original. Carter já gravou mais de dois mil discos com os músicos mais diversos, mas quase nunca dá a impressão de ligar o piloto automático, está sempre ali presente com sua sonoridade elegante que se encaixa bem aqui, além de dialogar com muita fluência com Cobham, seu companheiro de longa data.
O fato é que, embora o saxofonista Stanley Turrantine tenha se notabilizado por solos mais ou menos sensuais e nunca angulares ou incômodos, este é um disco de um jazz cheio de complexidade, distante das supostas raízes do jazz como música dançante. E distante também ao utilizar o vibrafone e o Fender Rhodes, teclado onipresente naquela época. Mas, se prosseguirmos comparando esse disco com a bossa nova, devemos lembrar que, no Rio de Janeiro, o piano acústico era uma das grandes diferenças entre o “balanço zona sul” de Tom jobim e os batuques das escolas de samba, feitos por gente que não podia comprar um piano. Abordemos o tema por comparações: Milt Jackson está mais próximo de um Cartola ou de um Noel Rosa do que de um Jamelão da Mangueira, mais pra João Donato do que pra Elza Soares e Wilson das Neves. Há quem diga que o jazz com piano elétrico não é jazz “de verdade”, mas o jazz é muita coisa, como o samba é muita coisa, não é? Mesmo o piano acústico – abrilhantado pelos dedos de gênios como Oscar Peterson, Thelonious Monk e McCoy Tyner – é um instrumento que, em algum momento remoto, soou estrangeiro aos batuques dos negros norte-americanos, mas disso ninguém fala.
Esse tipo de soul jazz com sofisticados arranjos de vários instrumentos teve uma certa era de ouro no início dos anos 1970, utilizando instrumentos elétricos mas sem a intensidade roqueira do fusion. Boa parte desses discos foram lançados pela gravadora CTI: além de Turrentine, também Tom Jobim (Wave, de 1967, Stone Flower, de 1970), Freddie Hubbard, Eumir Deodato e outros. A capa de Cherry é uma foto de Pete Turner, pioneiro da fotografia artística colorida, e que também é responsável pelas capas dos dois discos de Tom Jobim mencionados acima.
Stanley Turrentine: Ain’t no way
Stan’s Shuffle 6:57
Watch What Happens 5:30
Intermission Walk 6:39
Wave 8:14
Ain’t No Way 11:02
Stanley Turrentine – tenor saxophone / McCoy Tyner – piano / Gene Taylor – bass / Billy Cobham – drums (tracks 1-4)
Stanley Turrentine – tenor saxophone / Shirley Scott – organ / Jimmy Ponder – guitar / Bob Cranshaw – bass / Ray Lucas – drums (track 5)
Stanley Turrentine with Milt Jackson: Cherry
Speedball (Lee Morgan) – 6:39
I Remember You (Johnny Mercer, Victor Schertzinger) – 5:10
The Revs (Milt Jackson) – 7:46
Sister Sanctified (Weldon Irvine) – 6:04
Cherry (Ray Gilbert, Don Redman) – 5:10
Introspective (Irvine) – 7:00
Stanley Turrentine – tenor saxophone / Milt Jackson – vibraphone
Bob James – piano, electric piano / Cornell Dupree – guitar
Ron Carter – bass / Billy Cobham – drums
O nome BaianaSystem vem da junção de “guitarra baiana” com “sound system”, duas tecnologias criadas respectivamente em Salvador e na Jamaica. Em 2017, logo após lançar aquele que considero o melhor álbum do BaianaSystem, Roberto Barreto, um dos seus fundadores, deu uma entrevista (aqui) na qual demarcou claramente os aspectos subversivos e políticos do Carnaval. Pra quem olhava de longe, podia parecer que o carnaval de Salvador, com abadás de trios sendo parcelados em 12x sem juros, tinha virado uma mercadoria tão elitizada e metida a besta quanto um desses copos caros pra deixar a água gelada. Estamos sempre por um fio dessa derrota completa para as máquinas de lucro (expressão do Baiana) mas ao mesmo tempo os loucos vão fazendo festa, não porque a vida está fácil, mas pelo motivo oposto. Enfim, fala aí, Roberto:
G1 – Muita gente, especialmente no Sudeste, cita a Baiana System como uma banda de axé – ou do novo axé. Esse rótulo incomoda? Roberto Barreto – Não incomoda porque, na verdade, o axé não existe enquanto gênero. É que, aqui [no Sudeste], as pessoas acabam colocando tudo dentro de uma mesma coisa. Olodum é completamente diferente de Ivete. O que existe é um mercado de axé, que funciona diferente do mercado que a gente surgiu. Quando fazem essa referência ao novo axé, talvez seja por causa de elementos que usamos – das festas de largo, o entendimento do sound system como uma coisa popular, percussão, guitarra, samba… Lógico que tem elementos do que as pessoas conhecem como axé.
“Como é da Bahia, e as pessoas às vezes não conseguem entender, dizem: ‘Funciona no Carnaval, é dançante, então é axé’. Mas não é necessariamente isso. Quando a gente tira esse peso, não se incomoda. A Bahia hoje está justamente numa fase de superar esse estigma do axé que ficou, muitas vezes como uma coisa pejorativa.
G1 – A música da Bahia é, ainda hoje, muito estigmatizada? Roberto Barreto – Acho que sim. O mercado acabou ditando muito como as coisas aconteceram. Salvador sempre teve uma produção incrível e nunca parou de ter. Mas estamos em um período em que a música passa por uma transformação. O que chega às pessoas não é necessariamente o que vem da grande mídia. Elas conseguem conhecer o que está acontecendo no Pará, em Goiânia, Recife, Salvador… Com essa dimensão, dá para fugir um pouco dessa centralização.
Roberto e sua guitarra baiana de 5 cordas (2016)
[…] Na Bahia, a coisa do Carnaval é forte. Independentemente do que gera no mercado fonográfico, ele é um catalisador de muita coisa.
G1 – Gerou muita repercussão um protesto da banda contra o governo Temer no Carnaval deste ano, em Salvador. Como lidaram com a polêmica? Roberto Barreto – Não foi uma coisa programada. A gente já fazia isso em shows, alguns sim, outros não. Como a gente tratou isso com naturalidade, saiu do âmbito da polêmica, que as pessoas quiseram dar. Não tem como a questão política não estar vinculada a nós, porque o nosso comportamento em relação ao mercado e nas nossas letras é eminentemente político. A gente vive um momento dificílimo. Não sabemos se vamos ter presidente amanhã. Estamos vivendo um ano após um golpe acontecer no país.
G1 – Qual o papel dos artistas em momentos políticos como esse? Roberto Barreto – Cada vez mais, se posicionarem. Ficou uma coisa muito asséptica. Todo o mundo acha que não pode falar isso ou aquilo. Você pode falar. Quando a gente definiu que o nome do nosso disco ia ser “Duas Cidades”, percebemos que não é só a cidade, o Brasil está dividido. Você vê famílias brigando, pessoas se digladiando no Facebook.
Você tem que se posicionar em relação a isso, mesmo que depois diga: ‘Vacilei nisso, achei que era uma coisa, me decepcionei’. Mas tem que falar.
A cada Carnaval, o BaianaSystem sai com seu trio Navio Pirata, sem cobrança de abadás. Enquanto o Chiclete com Banana – e seu ex-cantor Bell Marques, em carreira solo desde 2014 – continuam saindo em trios elétricos com cercadinho separando os pagantes da ralé, o Baiana arrasta a cada ano mais povo na bagunça indeferenciada, a mais carnavalesca dos nossos tempos, ao menos na Bahia.
Em outra entrevista, Roberto fala sobre sua relação com a guitarra baiana, instrumento que ele inseriu em uma linguagem musical próxima das gerações hoje com 20, 30 anos e próxima também do reggae jamaicano.
A guitarra não foi o meu primeiro instrumento. Comecei tocando o bandolim já com essa afinação da guitarra baiana e com essa referência dos trios elétricos e das músicas de carnaval. Não vejo muito como um instrumento, mas sim como um meio de expressar ideias e sentimentos. Por ser um instrumento criado e concebido aqui na Bahia existe a parte afetiva e junto com isso, acompanha uma estética musical que é única em um repertório (aqui).
BaianaSystem: Duas Cidades (2016)
A1 Jah Jah Revolta Parte 2
A2 Bala Na Agulha
A3 Lucro (Descomprimindo)
A4 Duas Cidades
A5 Panela
B1 Playsom
B2 Dia Da Caça
B3 Cigano
B4 Calamatraca
B5 Barra Avenida Parte 2
B6 Azul
O clima da cidade se torna outro. A atmosfera mais densa do que o lança-perfume que a senhora leva na bolsa. Todos os exus e santos estão à solta. As ruas de madrugada apinhadas de gente. O cheiro de mijo e álcool. As normas se alternam, a moral se amolece. Tudo parece poder acontecer, para o bem e para o mal.
O dia já havia nascido quando olhei o mar de gente, suada e semi-nua, debaixo do sol. Homens sem camisas, mulheres de peito de fora. E pensei: enfim civilização.
(Matheus Ultra)
Seguindo com a história de um dos instrumentos mais legitimamente brasileiros – ainda que quase totalmente restrito às proximidades da Baía de Todos os Santos – chegamos nos anos 1980 com um grupo que, como Armandinho, era e ainda é sinônimo de Carnaval: Chiclete com Banana. Sim, eu sei que eles fizeram muita porcaria depois, quando o Axé foi vendido para todo o país a partir, em primeiro lugar, de programas como o do Chacrinha, o da Xuxa e o do Faustão. Mas a história dos primeiros anos do Chiclete com Banana, além de conter inovações que se firmaram em todos os trios elétricos (assim como Dodô, Osmar e Armandinho, dá pra resumir como a amplificação dos velhíssimos batuques de Carnaval de modo a ocupar largas avenidas e praças com povo a sair pelo ralo), também tem música muito diferente do que o Chiclete se tornaria.
A história não vai surpreender os fãs de Pink Floyd: fundada por três irmãos Marques mais o guitarrista Missinho, este último fazia a maioria das músicas e tinha um estilo bastante único nas duas guitarras, a estrangeira e a baiana. Depois de alguns anos arrastando multidões em Salvador mas apenas em Salvador, Missinho cansou e saiu quando a banda começava a decolar para o sucesso nacional.
Os discos Energia (1984) e Sementes (1985) trazem música extremamente carnavalesca e ao mesmo tempo sofisticada e original, com a marca principal do Chiclete com Banana que é a mistura de tudo e mais um pouco, sem qualquer preocupação com o que vão pensar de se misturar Miami com Copacabana, chicletes com banana, rock e tamborim, metáforas do samba do baiano Gordurinha (1922 – 1969), “Chiclete com Banana”, regravado por Gilberto Gil em 1972, nome que a banda, como de costume, usou sem pedir licença ou bênção.
É também sem um pingo de vergonha que, em Energia (1984), eles vão da estrelas ao luar, de Pink Floyd a “um forró de Luiz”, da fogueira e balão de São João ao oceano, de Cuba à guitarra de Santana. Também Xangô, Oxum e o Ilê Aiyê. Tudo isso é citado nas letras, pra não falar dos vários empréstimos rítmicos e melódicos. Há ainda truques poéticos de sinestesia psicodélica como “bailando ao som de lindos astros”…
A cabeça que juntava com poesia essas fusões improváveis era Missinho, e ele dividia os vocais principais com Bell Marques mais ou menos metade das música pra cada um cantar. Depois da saída de Missinho em 1986, Bell ficou como líder da banda, e tem até hoje uma excelente voz e carisma no palco e no trio elétrico… mas em mais de 30 anos ele e seus dois irmãos devem ter tido talvez uma ou duas ideias próprias. Então o Chiclete com Banana ficou seguindo as modas dos anos 90 e 2000 sem a guitarra de Missinho: até 2000 ainda havia o guitarrista Jhonny, cria de Missinho (convidado por este para entrar na banda quando tinha 16 anos). Mas Johnny saiu em 2000. Em 2014, Bell Marques fez seu Carnaval de despedida com o Chiclete, saindo em carreira solo por motivos exclusivamente financeiros. O Chiclete, então, seguiu com os dois irmãos Marques como uma sombra ainda mais apagada do que tinha sido.
Mas voltemos para os primeiros anos. Faz muito tempo mesmo: o presidente ainda era o general Figueiredo, tinha até Censura prévia e por motivos não muito claros duas faixas de “Energia” foram censuradas: uma delas talvez por uma leve, levíssima conotação política e a outra por conservadorismo sexual mesmo, já que tinha versos como “transa ao luar” (rimando em seguida com Ravi Shankar!), o que incomodava um tipo de gente que fazia de tudo desde que entre quatro paredes. Essas duas faixas, então, circularam apenas em meia dúzia de LPs e aparecem aqui como bonus-tracks com o chiado do vinil.
Wadinho Marques, que hoje toca teclados mas em 1984 recebeu os créditos por violão, backing vocals e autoria de uma das músicas, explica o nome da banda: “Foi um amigo nosso, Nildão, cartunista, artista plástico aqui da Bahia que sugeriu que nós colocássemos esse nome, Chiclete com Banana pelo tipo de música que a gente fazia, nós misturamos muitos ritmos, há muito tempo que nós tocamos galope, reggae, rock, frevo, então ele via isso e achava que tinha que ser representado por um nome que fosse uma mistura. E nada mais que uma mistura tão louca como chiclete com banana.”
Nildão, aliás, é o responsável pela capa deste álbum, com uma Iemanjá surfista que pode parecer um sincretismo brilhante ou inadequado, a depender de quem olha. Representa bem, então, a música do disco. O destaque maior, em termos de guitarra baiana, é a primeira faixa, Mistério das Estrelas, com um ritmo de galope irresistível, como também sabe ser irresistível, às vezes, a voz aguda* nesta faixa ou então na faixa-título de Sementes, também de autoria de Missinho e transbordantemente carnavalesca.
* A voz é a de Missinho em Mistério das Estrelas. De Bell em Sementes. Em outras, é difícil de identificar. Na capa de Sementes, acima, Missinho é o cabeludo em pé de relógio; Johnny agachado no meio e Bell Marques agachado à direita.
Chiclete com Banana: Energia (1984)
A1 O Mistério das Estrelas (Missinho)
A2 Canto De Aledê (Missinho)
A3 Sujo Astral (Bell Marques/G. Roberto)
A4 Meu Balão (Missinho)
A5 Ondas De Baião (Missinho/Beto Nascimento)
B1 Luas (Missinho/Beto Nascimento)
B2 A Cor Do Cristal (Missinho/Beto Nascimento)
B3 Bahia Cubana (Missinho/Hercules Amorim)
B4 Me Segura Que Vou Dá Um Traço (Wadinho Marques)
B5 Estrela Menina (Missinho/Beto Nascimento)
Apenas vença (faixa bônus, censurada)
Minha gatinha é macrô (faixa bônus, censurada)
P.S.: “Hoje o que vemos é um Carnaval feito para a elite”, dizia Missinho em 2014 em entrevista de lançamento do seu disco Instrumental Guitarra Baiana (que está todo no Youtubeaqui). Enquanto isso, as declaraçoes públicas de Bell Marques são do tipo “aproveita agora para parcelar em 12 vezes o seu abadá para o Carnaval do ano que vem”…
Ao ser perguntado se ele tinha o desejo de tocar novamente com alguém, Missinho disse que era um desejo impossível, pois apesar de ter conhecido grandes artistas e músicos, a companhia que gostaria de reencontrar em cima dos trios era a de Osmar [pai do Armandinho que apareceu aqui ontem]. “Ele é uma figura que deixou uma saudade muito grande. Tinha uma juventude arrebatadora. Eu tinha uns 20 anos quando toquei com ele e ficava olhando, observando e admirado sua energia. Me apaixonei de primeira pela aquela emoção. Me perguntava como ele podia ter aquela energia toda? Depois eu mesmo me respondia dizendo: poxa, um cara que inventou o trio elétrico tinha que ser assim mesmo”, disse aos risos e lamentou: “Ele faz falta no Carnaval”.
Carnaval: celebração coletiva que afronta o individualismo e a decadência da vida em grupo; conjunto de ritos que reavivam laços contrários à diluição comunitária, fortalecem pertencimentos e sociabilidades e criam redes de proteção social nas frestas do desencanto. (Luiz Antônio Simas)
Não me leve a mal que hoje é Carnaval então vou poupá-los dos textos longos. Como sabemos, a guitarra baiana é um instrumento elétrico de tamanho mais próximo do bandolim ou do cavaquinho do que da guitarra inventada pelos gringos. Instrumento essencial nos primeiros trios elétricos de Salvador, foi inventada por Dodô e Osmar, que também inventaram o trio – em resumo um bloco carnavalesco com música microfonada e amplificada. Mas naquela época, anos 1950, o instrumento ainda era chamado “pau elétrico” ou “cavaquinho elétrico”. No fim dos 60, Armandinho, filho de Osmar, começou a fazer com o instrumento solos de linguagem guitarrística inspirada em Jimi Hendrix, mas ao mesmo tempo, é claro, sem perder a reverência a Jacob do Bandolim, ao frevo pernambucano e a ligação anual com a festa de rua mais popular de Salvador, sem falar no berimbau também típico da cidade mais africana do Brasil.
Armandinho é sinônimo de Carnaval baiano e guitarra baiana até hoje. Mas durante o resto do ano ele também tem outros talentos: no fim dos anos 1970 criou a banda A Cor do Som, com colegas cariocas também interessados em misturar o rock de Londres com coisas como o chorinho tão carioca de Ernesto Nazareth, sem esquecer a guitarra baiana.
A Cor do Som – em atividade até hoje, com alguns longos hiatos – também poderia ser entendida historicamente como uma terceira onda de influência sincrética baiana no eixo Rio-São Paulo: a maioria dos músicos fazia parte das bandas de apoio de Moraes Moreira e outros dos Novos Baianos, que por sua vez tinham esse nome para diferenciá-los da leva anterior de baianos da Tropicália (Gil, Caetano, Gal e Bethânia).
A Cor do Som: Ao Vivo em Montreux (1978)
1 Dança Saci (Mu)
2 Chegando da terra (Armandinho)
3 Arpoador (Mu/Dadi/Gustavo/Armandinho)
4 Cochabamba (Aroldo/Moraes Moreira)
5 Brejeiro (Ernesto Nazareth)
6 Espírito infantil (Mu)
7 Festa na rua (Mu/Aroldo/Dadi/Armandinho)
8 Eleanor Rigby (McCartney/Lennon)
Armandinho – guitarra baiana
Aroldo – guitarra baiana
Mú – teclados
Dadi – baixo
Gustavo – bateria
Ari – percussão
Gravado ao vivo em julho de 1978 durante apresentação no 12º Festival de Jazz no Cassino de Montreux, Suíça
McCoy Tyner era um pianista que, em resumo, tinha dois jeitos de tocar. Um estilo percussivo, com acordes batucados como os de My Favorite Things, sua estreia com John Coltrane e um hit em 1961. Um estilo extremamente suave, com escalas e arpejos agudos que lembram o piano de um Chopin, Fauré ou Debussy. Mas com “blue notes”, claro.
Ou seja, mais ou menos como um ator que interpretava dois tipos principais de personagem, mas entre esses dois tipos ele percorria, do pianissimo ao fortissimo, uma ampla gama de sonoridades: talvez por isso, por ter tanta preocupação com os timbres do piano de cauda, ele nunca aderiu ao piano elétrico, ao contrário de outros mais ou menos seus contemporâneos como Herbie Hancock e Chick Corea ou ainda Cesar Camargo Mariano. Breve parêntese: alguns dias atrás assisti Elis e Tom, filme que retrata a gravação do clássico LP de 1974 e ali vemos um clima tenso entre Tom Jobim (partidário do piano acústico) e C.C. Mariano (que alternava entre o Fender Rhodes elétrico e o “piano de pau”). Tensão que acaba se resolvendo: na vida como na harmonia.
Voltando para McCoy Tyner: há discos em que ele transita entre os dois estilos básicos: por exemplo Open Sesame, com o quinteto de Hubbard, ou A Love Supreme, com o quarteto de Coltrane. Já em Ballads, com Coltrane, e neste Nights of Ballads and Blues, ele harmoniza tudo com toques suaves e elegantes nas teclas do piano. O baixista Steve Davis – que, anos antes, também estava na gravação de My Favorite Things – e o baterista Lex Humphries fazem o básico, o arroz com feijão e quem brilha é sempre o piano ao longo dos quase 40 minutos.
Thelonious Monk em pintura de Edú Marron
O repertório tem um tema de Tyner, dois de Thelonious Monk, um de Duke Ellington, duas canções de filmes da época e uma outra canção de melodia facilmente cantarolável mesmo que instrumental: We’ll Be Together Again. No lado B, Blue Monk (de Monk) e Groove Waltz (de Tyner), pelo contrário, são harmonicamente mais imprevisíveis, o que torna mais difícil assobiá-las. Monk (1917-1982), embora não tenha vendido discos na casa dos milhões, era muito respeitado por seus pares e foi, junto com Ellington, o compositor de jazz com o maior número de obras gravadas por outros artistas.
McCoy Tyner – Nights of Ballads & Blues
1. Satin Doll (Ellington, Mercer, Strayhorn) – 5:40
2. We’ll Be Together Again (Fischer, Laine) – 3:40
3. ‘Round Midnight (Monk) – 6:23
4. For Heaven’s Sake (Elise Bretton, Edwards, Donald Meyer) – 3:48
5. Star Eyes (De Paul, Raye) – 5:03
6. Blue Monk (Monk) – 5:22
7. Groove Waltz (Tyner) – 5:31
8. Days of Wine and Roses (Mancini, Mercer) – 3:21
McCoy Tyner – piano
Steve Davis – bass
Lex Humphries – drums
Recorded: 4 march 1963, Van Gelder Studio, New Jersey, USA
Carla Bley (1936-2023) foi pianista, compositora, arranjadora, além de fases mais ligadas ao fusion, quando tocou órgão hammond, piano elétrico e mais. Uma das poucas instrumentistas mulheres a liderar grupos de jazz – na verdade só consigo lembrar de uma outra, Alice Coltrane, e o fato de ambas terem precisado também do sobrenome dos ex-maridos para se estabelecerem comercialmente diz um pouco sobre a indústria musical… Aliás, um detalhe curioso de sua biografia: tendo estudado piano desde pequena, ela se enturmou junto a outros músicos em Nova York começando em um cargo de pouco prestígio, o de vendedora de cigarros na mítica casa de shows Birdland.
O jornalista alemão Wolfgang Sandner resumiu as qualidades de Carla Bley como: “uma grande estimuladora, musa, criadora de ideias e também alguém que recusava o virtuosismo, o perfeccionismo, convencionalismo e falso pathos”.
Vários dos seus discos já foram postados aqui e comentados por PQPBach (aqui eles todos), então não vou enrolar, apenas observar que também vale a pena conhecer mais sobre o trompetista italiano Paolo Fresu que, felizmente, segue vivo!
Ah sim, já ia esquecendo, neste show de 2010 em Colônia, Alemanha, as composições tocadas são todas de Carla Bley: quatro delas foram lançadas em um disco de 2007 (que pode ser conferido no link acima) e aqui aparecem em versões mais longas, com mais improvisos. O outro tema, Vashkar, é bem mais antigo, tendo sido gravado por Paul Bley na década de 1960 e por Jaco Pastorius na de 70.
Carla Bley – the Lost Chords find Paolo Fresu – Live – MusikTriennale Köln, 2010
1. Vashkar (Carla Bley) – 10:02
2. Radio Announcement – 01:31
3. Two Banana (Carla Bley) – 04:24
4. Three Banana (Carla Bley) – 09:15
5. Four (Carla Bley) – 09:49
6. Five Banana/One Banana more (Carla Bley) – 13:24
Carla Bley – piano, organ, arranger
Paolo Fresu – trumpet
Andy Sheppard – tenor sax
Steve Swallow – bass
Billy Drummond – drums
Stadtgarten, Köln, Germany – 26/4/2010
Resolvi dedicar o meu primeiro post da seção “interlúdio” a um disco que comprei em uma velha noite fria na capital alemã. Um dia que ficou marcado em minha memória com alguma nitidez, já que foi a única vez em que, como gentio, tive permissão para entrar na sinagoga da Rykestraße, ao pé da Wasserturm, no coração do bairro de Prenzlauer Berg. A razão que me levou até ali, para além de uma grande curiosidade que eu tinha de conhecer o prédio, desde que morei ali pertinho, foi uma apresentação do The Moscow Male Jewish Cappella, como parte dos Jüdische Kulturtage em Berlim.
Fiquei muito tocado com o concerto, por muitos motivo. A beleza daquelas vozes em harmonia, a força ancestral daquelas canções, o próprio ato simbólico de assistir a um coral judeu russo em uma antiga sinagoga na capital alemã, uma das poucas a sobreviver à selvageria nazista da Noite dos Cristais, em novembro de 1938, por um puro capricho arquitetônico: uma vez que o prédio da sinagoga é geminado com os vizinhos, era impossível incendiá-lo sem que as chamas tomassem conta dos prédios que dividem parede com ele.
A sinagoga da Rykestraße, no bairro de Prenzlauer Berg, em Berlim
Outra lembrança marcante daquela noite foi a presença de metralhadoras, uma visão bem rara no cotidiano berlinense. A segurança daquela noite foi feita por agentes policiais fortemente armados, que caminhavam de um lado para o outro ao lado de fora da sinagoga. A luz que atravessava os vitrais formava enormes sombras desses silenciosos policiais, lembranças espectrais de que o mundo é um lugar perigoso e cheio de ódio e intolerância.
Memórias à parte, o disco que trago nesse post é um pequeno cartão de visitas do coro, fundado em 1989. Com um repertório um tanto eclético – com música tradicional judaica, jazz, Besame Mucho e um par de canções napolitanas – e arranjos que de vez em quando resvalam em divertida cafonice, ele certamente vale a audição e comprova a versatilidade do conjunto. Para quem gosta de música coral é uma pequena janela para a fortíssima tradição russa no ramo. A regência fica por conta de Alexander Tsaliuk, diretor artístico do grupo.
Nesses tempos de guerra, em que a humanidade mostra a sua pior face, é ainda mais importante que nos voltemos para as coisas belas que essa mesma humanidade cria.
Limpo como a água de um rio sem qualquer traço de poluição, com as borbulhas suaves de uma cachoeira nesse rio, o som do saxofone de Wayne Shorter pode ser comparado à pureza da voz de Milton Nascimento. E por um desses acasos da vida, os dois se tornaram bons amigos. Em sua longa carreira, Shorter gravou uma imensa discografia: aqui no blog, não faz tanto tempo que PQP postou um dos seus principais álbuns como instrumentista e compositor: Schizophrenia, de 1967. Anos antes, com Freddie Hubbard (trompete) e McCoy Tyner (piano), ele participou do grande álbum Ready for Freddie (1962). Vejamos a seguir outros momentos da discografia de Wayne Shorter em dois álbuns que não têm o seu nome na capa, mas que têm nele, como compositor, instrumentista, arranjador, um dos pilares de construções musicais coletivas.
Menos conhecido que álbuns mais dançantes e acelerados como Bitches Brew, Filles de Kilimanjaro é um disco do início da fase de experimentações de Miles Davis e seu grupo com instrumentos elétricos. Um delicioso disco mais calmo, cheio de floreios de blues lento, com bastante destaque para o sax tenor de Shorter e para o piano elétrico Fender Rhodes de Herbie Hancock. A linda mulher da capa é Betty Gray Mabry – depois Betty Davis – que se casou com Miles em 1968. O casamento durou apenas cerca de um ano, mas tudo indica que foi Betty quem fez Miles escutar a música psicodélica de gente como Jimi Hendrix, além de apresentar o guitarrista – amigo dela – ao trompetista. A faixa Mademoiselle Mabry também é uma referência a Mabry e se baseia em um dos riffs mais suaves de Hendrix, o da balada The wind cries Mary, lançada em 1967.
Em álbuns posteriores como o já citado Bitches Brew (“Miles wanted to call it Witches Brew, but I suggested Bitches Brew and he said, ‘I like that’.” – Betty Davis), com a chegada da guitarra elétrica de John McLaughlin e de dois ou três percussionistas, Wayne Shorter teria menos destaque no grupo de Miles, do qual ele sairia em 1970 para fundar o grupo fusion Weather Report com o tecladista Joe Zawinul.
Miles Davis Quintet: Filles de Kilimanjaro
1. Frelon Brun
2. Tout de Suite
3. Petits Machins
4. Filles de Kilimanjaro
5. Mademoiselle Mabry
6. Tout de suite (alternate take)
Miles Davis – trumpet
Wayne Shorter – tenor saxophone
Herbie Hancock – electric piano on “Tout de Suite”, “Petits Machins”, and “Filles de Kilimanjaro”
Chick Corea – piano, RMI electra-piano on “Frelon Brun” and “Mademoiselle Mabry”
Ron Carter – electric bass on “Tout de Suite”, “Petits Machins”, and “Filles de Kilimanjaro”
Dave Holland – double bass on “Frelon Brun” and “Mademoiselle Mabry”
Tony Williams – drums
Recorded: June-September 1968, New York City, USA
Os discos mais famosos do Weather Report são aqueles com o fenomenal baixista Jaco Pastorius. Mas este Procession, de 1983, pouco após a saída de Jaco, é um outro interessante momento da discografia de Wayne Shorter que não merece ser esquecido. Se a faixa Where the Moon Goes, que dá início ao lado B do LP, inclui um coral com efeitos que alguns ouvidos não vão aprovar (os meus desaprovam), nas composições de Shorter – Plaza Real e The Well – temos aquele sax de som puro e calmo que mencionei lá em cima, associado aos sons muito originais dos sintetizadores de Zawinul e ao pau comendo nas percussões, que utilizam inovações dos anos 1980 sem soarem bregas, ao contrário de outros bateristas que abusararam de reverb e outros efeitos de gosto duvidoso naquela década.
Weather Report: Procession
1. Procession (Josef Zawinul)
2. Plaza Real (Wayne Shorter)
3. Two Lines (Zawinul)
4. Where the Moon Goes (Zawinul, lyrics by Nan O’Byrne and Zawinul)
5. The Well (Shorter, Zawinul)
6. Molasses Run (Omar Hakim)
Josef Zawinul – keyboards
Wayne Shorter – tenor and soprano saxophones
Omar Hakim – drums, guitar, vocals
Victor Bailey – bass
José Rossy – percussion, concertina
The Manhattan Transfer – vocals on “Where the Moon Goes”
Nossa homenagem ao saudoso Ranulfus continuará, também, através da republicação de suas preciosas contribuições ao nosso blog – como esta, que veio à luz em 31/12/2015
.Senhorxs: sei que este último dia de 2015 já está carregado até não poder mais de postagens tremendas, mas, desculpem, eu não posso deixar virar para 2016 sem registrar o vigésimo ano deste disco que considero um “unicum”, isto é: sem similar.
Ithamara é mais um desses casos de brasileirx vítima do nosso complexo de vira-lata endêmico: indicada não sei quantas vezes pela Downbeat entre as principais cantoras de jazz do mundo, diva absoluta no Japão, e ainda – ai! – “Ithamara quem?” para a maior parte dos brasileiros – isso quando este disco contém nada menos que a última gravação de Tom Jobim (no piano de algumas faixas); solos inacreditáveis de Ron Carter ao baixo; Luiz Bonfá, Marcos Valle, Paulo Malaguti e o próprio Tom entre os arranjadores – etc. etc.
Mas não deixo de compreender que, para brasileiros, ouvir sua própria música dita “popular” interpretada assim tenha que causar alguma estranheza. É realmente incomum – e tanto, que eu mesmo tenho dificuldades em colocar em palavras de que modo é incomum. Minha hipótese principal: por uma lado, Ithamara faz uma leitura instrumental da melodia – quero dizer, usando a voz como um instrumento solista, muitas vezes a-lu-ci-na-da-men-te; por outro, não esquece o texto, mas faz dele uma leitura teatral, de alta dramaticidade. São duas intensidades simultâneas tão altas que o resultado definitivamente não cabe em situação assim como embalar um jantar: ou você embarca e navega junto, ou se sente jogado para lá e para cá pela turbulência; sem paz – o que parece chegar ao extremo nas duas faixas em inglês, Cry me a river e Empty glass.
Quanto às onze faixas em português, admito que algo dificulta a fruição do disco até para mim: seis delas são um revival da chamada “música de fossa”, ou “música de dor de cotovelo” (ou mesmo sete, se incluirmos ‘Retrato em branco e preto’ nessa categoria) – sendo cinco numa sequência só. Ora, justamente com as leituras de La Koorax, isso pode ser uma travessia de efetivo risco para depressivos e bipolares… Se eu avalio que há um erro neste disco, é este excesso – entre tantos outros excessos que resultaram felizes!
‘Rio Vermelho’ foi o terceiro disco de Ithamara. Conheço bem este e o segundo, ‘Ao Vivo’, um pouco menos colorido timbristicamente porém igualmente intenso – mas conheço pouco dos posteriores, pois me passaram a impressão de que os produtores internacionais tenham conseguido domar um tanto o vulcão inventivo da artista – com o que confesso que meu interesse caiu um pouco.
Estarei dizendo que acho que na média Ithamara pode ter ficado sendo uma cantora menor? Não! Não acho que arte comporte esse tipo de cálculo mesquinho. Para mim, uma sílaba pode ser bastante para consagrar um(a) artista. No caso, sugiro que ouçam com atenção o gradualíssimo crescendo de tensão em Retrato em branco e preto, até a sílaba -CA- de “pecado”. Vocês me considerarão completamente maluco se seu disser que dentro dessa sílaba eu vejo se abrir uma paisagem tão ampla quanto as do Planalto Central, ou quem sabe a de algum mirante da Serra do Mar?
Pois bem: a uma cantora que conseguiu fazer isso comigo eu jamais admitirei que alguém venha a chamar de “menor” – seja lá o que houver feito ou deixado de fazer depois!
ITHAMARA KOORAX : RIO VERMELHO
Data de gravação: outubro de 1994
Data de lançamento: abril de 1995
1. Sonho de Um Sonho (Martinho da Vila/R. De Souza/T. Graúna) – 3:50
2. Retrato Em Branco E Preto (Buarque/Jobim) – 5:38
3. Correnteza (Bonfá/Jobim) – 6:41
4. Preciso Aprender a Ser Só (Valle/Valle) – 4:54
5. Tudo Acabado (Martins/Piedade) – 5:26
6. Ternura Antiga (Duran/Ribamar) – 3:48
7. Não Sei (DeOliveira/Gaya) [d’aprés Chopin] – 4:27
8. É Preciso Dizer Adeus (de Moraes/Jobim) – 3:36
9. Cry Me a River (Hamilton) – 6:06
10. Índia (Flores/Fortuna/Guerreiro) – 7:05
11. Rio Vermelho (Bastos/Caymmi/Nascimento) – 3:44
12. Se Queres Saber (Peter Pan) – 8:14
13. Empty Glass (Bonfá/Manning) – 4:02
Ithamara Koorax – Arranger, Vocals, Executive Producer
Antonio Carlos Jobim – Piano, Arranger
Luiz Bonfá – Guitar, Arranger
Ron Carter – Bass
Sadao Watanabe – Sax (Alto)
José Roberto Bertrami – Arranger, Keyboards
Arnaldo DeSouteiro – Arranger, Producer
Jamil Joanes – Bass (Electric)
Carlos Malta – Flute (Bass), Sax (Tenor)
Pascoal Meirelles – Drums
Paulo Sérgio Santos – Clarinet
Marcos Valle – Arranger, Keyboards
Mauricio Carrilho – Guitar (Acoustic), Arranger
Daniel Garcia – Sax (Soprano), Sax (Tenor)
Paulo Malaguti – Piano, Arranger, Keyboards
Sidinho Moreira – Percussion, Conga
Marcos Sabóia – Engineer, Mixing
Otto Dreschler – Engineer
Fabrício de Francesco – Engineer
Rodrigo de Castro Lopes – Engineer, Mastering
Livio Campos – Cover Photo
Hildebrando de Castro – Cover Design, Cover Art
Celso Brando – Liner Photo
Christian Mainhard – Artwork
Dois discos de John Coltrane sem piano, e essa ausência não é apenas uma curiosidade: faz toda diferença… O primeiro foi gravado em 1960 com três músicos da banda de Ornette Coleman, com três da cinco composições também assinadas por Coleman: ele e Coltrane tinham uma admiração mútua um pelo outro, embora nunca tenham gravado juntos. E as bandas de Coleman quase nunca contavam com pianistas, o que fazia parte de seu som característico, mais baseado em solos do que em acordes, e que receberia o nome de Free Jazz a partir do álbum com este nome, que seria gravado seis meses depois dessas sessões comandadas por Don Cherry e John Coltrane. (Outros saxofonistas, como Eric Dolphy e Archie Shepp, que surgem após Coltrane e Coleman, vão liderar bandas também sem piano, à vezes com o vibrafone ocupando o espaço dos agudos…)
Curioso, porém, que o disco, no qual Cherry e Coltrane estão em pé de igualdade, dividindo solos em cada faixa, não soe tão livre assim, pelo contrário, às vezes fica uma certa impressão de fórmula aplicada a cada uma das jams, com trompete e sax introduzindo as melodias em uníssono e depois dividindo solos, o trompete com seu som mais nasal e o sax mais “redondo”, sem as “cascatas sonoras” (sheets of sound) que Coltrane fazia em outros álbuns daquele período. Ou seja: alguns grandes solos, belas melodias de Ornette Coleman e Thelonius Monk, mas paradoxalmente organizadas de forma pouco livre, com um jeitão, se me permitem abusar de mais um anglicismo, um jeitão de “one size fits all”. Das suas gravações como convidado com bandas de colegas, Coltrane soa mais livre no discoBags & Trane, de 1959.
John Coltrane & Don Cherry: The Avant-Garde
1. Cherryco (Don Cherry) – 6:47
2. Focus on Sanity (Ornette Coleman) – 12:15
3. The Blessing (Ornette Coleman) – 7:53
4. The Invisible (Ornette Coleman) – 4:15
5. Bemsha Swing (Thelonious Monk, Denzil Best) – 5:05
John Coltrane – tenor and soprano saxophone
Don Cherry – cornet
Charlie Haden – double bass (tracks 1, 3)
Percy Heath – double bass (tracks 2, 4, 5)
Ed Blackwell – drums
Recorded: June 28, 1960; July 8, 1960 / Released: 1966
Coltrane (1926-1967) vive em uma rua em Denver, EUA
Quatro meses após as sessões de The Avant-Garde, Coltrane gravaria My Favorite Things e, devido ao grande sucesso não só artístico como comercial deste LP, ele não mais faria outras gravações com bandas alheias: tocaria sempre com o piano de McCoy Tyner e a bateria de Elvin Jones, até o fim de 1965. O baixista variava (às vezes, dois baixos!) e, às vezes, chamava mais alguém nos sopros, como Eric Dolphy e Freddie Hubbard. Como escreveu David Stoesz, no fim do ano de 1965, Coltrane entrou em um território tão “far out” que os seus leais companheiros — o “quarteto clássico” que havia gravado A Love Supreme e Crescent — não o seguia mais. O que ele buscava eram sentimentos puros, para além de notas e certamente para além de algo tão mundano como acordes.
Do fim de 1965 em diante, teria sempre ao seu lado o piano de Alice Coltrane. Não fez mais freelances… confiram o último mês em que Coltrane tocaria ao vivo e em estúdio com o grupo de Miles Davis: março de 1961, mesmo mês de lançamento de My Favorite Things…
Então o disco Interstellar Space, gravado em fevereiro de 1967, é uma raridade por apresentar novamente um Coltrane sem piano (e agora sem baixo), apenas com bateria e, agora sim, absolutamente livre. Dessa vez, após alguns anos que lhe trariam mais experiência e várias viradas de rumo, Coltrane soa sem amarras, nada parece planejado, a começar por aquela própria seção de gravação, se acreditarmos no jornalista Ben Ratliff: segundo ele, Interstellar Space foi gravado em um dia em que Rashied Ali (na banda de Coltrane desde 65) chegou no estúdio em New Jersey e não encontro nenhum outro músico, para logo depois ver Coltrane chegar:
Soon Coltrane arrived. / “Ain’t nobody coming?” he said to Coltrane. / “No, it’s just you and me.” / “What are we playing? Is it fast? Is it slow?” / “Whatever you want it to be. Come on. I’m going to ring some bells.”
Coltrane improvisou acompanhado apenas do baterista Rashied Ali, alçando alguns de seus voos mais altos e ao mesmo tempo incompreensíveis. Se você estiver iniciando sua jornada pela discografia do saxofonista, ouça primeiro alguma coisa de 1959 a 1964 e chegue aqui só depois de se apaixonar pelo timbre de Coltrane, sua maneira de respirar e de “fazer arte” (também no sentido de quem fala em crianças “fazendo arte”, ou seja, bagunça). No LP (lançado em 1974) temos a informação de que a música foi produzida por John Coltrane e o álbum, por Ed Michel e Alice Coltrane – suponho que o papel desses dois tenha sido, entre outros detalhes, nomear as faixas e escolher a ordem delas no disco. No CD (1991), temos duas faixas adicionais que entram no meio da bagunça de uma forma coesa, afinal foram gravadas no mesmo dia pela mesma dupla.
Aqui, só temas novos, não há espaço para standards de outros compositores – embora nos shows ao vivo da época ainda aparecessem versões muito peculiares de My Favorite Things e Naima (de Giant Steps, de 1959). Esses dois álbuns citados, e em um grau ainda maior A Love Supreme (1964), transformaram John Coltrane em uma celebridade internacional e ele poderia passar muitos anos repetindo a formação de quarteto e lotando show dos dois lados do Atlântico Norte. Mas se repetir certamente não era o objetivo de John Coltrane, ele queria sempre fazer algo novo e desde 1961 já havia inovado em outras formações, seja com mais músicos ou com menos e, nesse caso, uma forma de bagunçar o coreto era com só dois instrumentistas tocando: Saxofone e Bateria/Percussão. Sem baixo e piano, os improvisos podiam seguir ainda mais livres: é assim, sozinho com Elvin Jones, que ele toca já em 1961 em alguns trechos da faixa Chasin’ the Trane do disco “Live at the Village Vanguard”. No ano seguinte, o piano também se calava na metade final de Traneing In ao vivo na Suécia, lançada no disco póstumo“Bye Bye Blackbird”, além de alguns trechos de Crescent, disco de 1964… Mas um disco inteiro de saxofone e percussões, só em Interstellar Space.
John Coltrane & Rashied Ali: Interstellar Space
1 Mars 10:41
2 Venus 8:28
3 Jupiter 5:22
4 Saturn 11:33
5 Leo 10:53
6 Jupiter Variation 6:44
John Coltrane – tenor saxophone, bells, producer
Rashied Ali – drums
Recorded February 22, 1967 at Van Gelder Recording Studio, Englewood Cliffs, New Jersey; Released September 1974
Tony Whyton wrote that the tracks on Interstellar Space “clearly demonstrate the full glory of Coltrane’s late style”[32] and notes that “the removal of identifiable structures, a steady pulse, and clear sense of meter opens up the music and removes familiar aids of orientation for the listener. In this respect, although Coltrane’s sound and approach can be understood as part of the same continuum, the context has changed dramatically to the point where the music is clearly experienced more as an immediate sensation. This leads to recordings such as Interstellar Space being received as musical processes rather than as products; they encourage us to listen in the here and now as opposed to assimilating what has happened before and predicting what will happen next.”
Ao contrário das gravações ao vivo na Europa postadas aqui dias atrás, feitas por rádio ou TV e lançadas postumamente, esses dois discos de hoje foram produzidos com a participação de John Coltrane e sua gravadora, a partir de momentos selecionados em uma temporada de quatro concertos no Village Vanguard, famosa casa em Nova York.
Por um lado, temos o selo de aprovação dos músicos para o lançamento. Por outro lado, há um certo ar de colagem de datas diferentes, sem aquela sensação de um show com início, meio e fim. Só foram selecionados temas inéditos, deixando de fora músicas que eram comuns nos set lists do quinteto de Coltrane à época, como My Favorite Things, do álbum homônimo; Naima, de Giant Steps; e Greensleeves, lançada meses antes em Africa/Brass.
O clarinete baixo de Eric Dolphy soa em complemento ao sax de Coltrane em Spiritual, composição inspirada na música vocal devocional afro-americana, e que traz indícios do que faria Coltrane bem depois a partir de A Love Supreme. Mas se quiserem ouvir Eric Dolphy tocando flauta com o acompanhamento elegante do piano de McCoy Tyner, aí só ouvindo outros shows…
Inamu Baraka, autor de livros sobre jazz, assistiu John Coltrane ao vivo várias vezes e escreveu: “There is a daringly human quality to John Coltrane’s music that makes itself felt, wherever he records. If you can hear, this music will make you think of a lot of weird and wonderful things. You might even become one of them.”
John Coltrane – Live at the Village Vanguard, 1961
1. Spiritual
2. Softly As In A Morning Sunrise
3. Chasin’ The Trane
John Coltrane — soprano and tenor saxophone
Eric Dolphy — bass clarinet on “Spiritual”
McCoy Tyner — piano on 1, 2
Reggie Workman — bass on 1, 2
Jimmy Garrison — bass on 3
Elvin Jones — drums
Recorded: November 1961, Village Vanguard, NYC, USA
Impressions não se apresenta na capa como um disco ao vivo, mas as suas duas faixas mais longas – India e Impressions, cada uma por volta dos 15 minutos – foram gravadas ao vivo no Village Vanguard em 1961. As três faixas curtas, porém, foram gravadas em estúdio e na formação de quarteto, sem Dolphy. Apesar desse jeitão de colcha de retalhos, é considerado um dos pontos altos de Coltrane, especialmente devido à parte ao vivo. No início de 1963 o quarteto gravou em estúdio a composição Impressions, mas devem ter preferido a gravação ao vivo de 61, que lançaram em julho de 63. Só em 2018, no álbum “Both Directions at Once” (outra colcha de retalhos supervisionada pelo filho de John Coltrane), foi lançada a Impressions de estúdio. Para uma outra versão dela ao vivo e em vídeo, confiram o quinteto em Baden-Baden, Alemanha, aqui.
Em India, assim como em Olé Coltrane (gravada em estúdio meses antes), temos dois baixistas servindo como chão para os outros músicos se aventurarem por toques exóticos e escalas inspiradas em outros países. As faixas gravadas em estúdio e lançadas nesse disco Impressions (nº 2, 4 e 5) são, ao menos para mim, mais fracas: não sei apontar o motivo ou circunstância, mas naquele período (1962-63) algumas gravações de estúdio do quarteto de Coltrane, embora com extrema competência e bom gosto, parecem mostrar um certo bloqueio de criatividade, que seria definitivamente superado em 1964 com os discos de estúdio Crescent e A Love Supreme.
John Coltrane – Impressions
1. India (Live, November 3 1961, Village Vanguard)
2. Up ‘Gainst the Wall (September 18 1962, Van Gelder Studio)
3. Impressions (Live, November 3 1961, Village Vanguard)
4. After the Rain (April 29 1963, Van Gelder Studio)
5. Dear Old Stockholm (April 29 1963, Van Gelder Studio, CD reissue bonus track)
John Coltrane – soprano and tenor saxophone
Eric Dolphy – bass clarinet (track 1), alto sax (track 3, final chord only)
McCoy Tyner – piano (tracks 1, 3, 4, and 5)
Jimmy Garrison – double bass
Reggie Workman – double bass (track 1)
Elvin Jones – drums (tracks 1, 2, and 3)
Roy Haynes – drums (tracks 4 and 5)
John Coltrane devia ter muitos admiradores em Copenhagen, porque após este show gravado em excelente qualidade de áudio na segunda-feira 20/11/1961, e após circular por outros países da Europa do norte, seu quinteto voltaria à capital da Dinamarca para um segundo show no domingo 26/11.
Além de faixas mais comuns no repertório de Coltrane, como Impressions, Naima e a balada de Cole Porter Ev’ry Time We Say Goodbye, o destaque do show de Copenhagen é Delilah, um tema de tipo orientalista (no sentido de Edward Saïd: um oriente mais nos olhos de quem vê) que, antes de ser introduzida ao mundo do jazz pelo timbre cool do trompete de Clifford Brown, havia sido composta como parte da trilha sonora de um Sansão e Dalila, superprodução bíblica de Hollywood em 1949. Aqui, esse tema serve para o quinteto “se esquentar”: começando meio lenta e também cool, a música ganha solos sucessivos de Coltrane e Dolphy, depois um de Tyner, para finalmente decolar nas notas rápidas do sax soprano de Coltrane nos minutos finais…
Jones na bateria, Coltrane no sax soprano (Baden-Baden 1961)
O outro destaque dessa turnê europeia foi o show em um estúdio de TV em Baden-Baden, Alemanha, todo gravado em som e vídeo, coisa rara na época. O quinteto de Coltrane certamente tinha algum grau de estranhamento com a ideia de serem gravados pelas diversas câmeras de um estúdio de TV. As câmeras, para músicos de jazz naquela época, eram bem mais raras do que os gravadores. Então eles escolheram o repertório mais tocado, para não correrem riscos: três temas que apareciam em quase todas as apresentações de 1961 e 62. Dois deles haviam sido lançados no LP My Favorite Things e o terceiro (a composição modal Impressions) ainda era inédito para os públicos mas vinha sendo retrabalhado pelo grupo praticamente a cada noite. Talvez seja o único registro em vídeo do grupo de Coltrane ainda com Reggie Workman, que sairia no ano seguinte. É verdade que Jimmy Garrison duraria mais tempo com Coltrane e faria solos mais longos (hipótese: os solos de baixo e bateria entram em 1962 para cobrir o buraco com a saída de Dolphy?) Mas Workman – que esteve em gravações como Olé Coltrane, Africa/Brass, Village Vanguard – também é um baixista sofisticado que, nas últimas notas de Ev’ry time we say goodbye, ataca o contrabaixo com o arco, como dá pra ver no vídeo mais abaixo, que também segue para download, para os excêntricos que ainda baixam vídeos.
Jones na bateria, Dolphy na flauta (Baden-Baden 1961)
A My Favorite Things de Copenhagen deve ser uma das mais longas já tocadas por Coltrane: dura 28 minutos com longos solos de (nesta ordem) Tyner no piano, Dolphy na flauta e Coltrane no sax. Pra não dizerem que não avisei: enquanto o solo de Tyner é brilhante mas ao mesmo tempo harmonicamente situado nas mudanças de acordes da versão do LP de 1960, o solo de flauta de Dolphy é bem mais free jazz, sem medo de em certos momentos soar em desalinho com os outros instrumentos. Já na “Things” de Baden-Baden, o quinteto funciona sob a pressão do relógio da gravação televisiva, o que por um lado poda as alturas alcançáveis, mas por outro lado coloca restrições que levam os músicos a inventar novas ideias.. O solo de pouco menos de 3 minutos de Dolphy na flauta (dos 6 aos 9 minutos do vídeo) é uma verdadeira obra-prima do improviso jazzístico.
Com uma qualidade de gravação pior e, portanto, apenas para os fãs mais dedicados – embora em primeiro na lista abaixo que é cronológica na ordem da turnê – temos o show no Olympia de Paris, outra grande casa de espetáculos, em atividade até hoje e com lugares para cerca de duas mil pessoas. Ali, o quinteto toca Blue Train, do disco homônimo de 1957-58, o primeiro lançado por Coltrane como artista principal e não coadjuvante. Blue Train começa com frases em uníssono dos dois saxofones (tenor de Coltrane, alto de Dolphy), que soam bastante interessantes com o eco da sala L’Olympia. Mas a gravação (que, pelo eco, podemos supor que foi feita da plateia e não do palco ou da mesa de som) deixa a desejar sobretudo nos detalhes de piano, baixo e bateria. Então as prioridades são o show em Copenhagen e a sessão televisionada em Baden-Baden.
John Coltrane Quintet: L’Olympia, Paris – November 18, 1961 (late show)
1. Blue Train (J. Coltrane)
2. I Want to Talk About You (Billy Eckstine)
3. My Favorite Things (Rogers/Hammerstein)
Falconer Salen, Copenhagen – November 20, 1961
1. Intro by Norman Granz
2. Delilah (Victor Young)
3. Ev’ry Time We Say Goodbye
4. Impressions (J. Coltrane)
5. Naima (J. Coltrane)
6. My Favorite Things (false start) > Announcement by Coltrane
7. My Favorite Things (Rogers/Hammerstein)
Südwestfunk TV Studio, Baden-Baden – December 4, 1961
1. My Favorite Things (Rogers/Hammerstein) 11:06
2. Ev’ry Time We Say Goodbye (C. Porter) 5:25
3. Impressions (J. Coltrane) 7:30
Tenor Saxophone, Soprano Saxophone – John Coltrane
Alto Saxophone, Bass Clarinet, Flute – Eric Dolphy
Piano – McCoy Tyner
Drums – Elvin Jones
Bass – Reggie Workman
McCoy Tyner, durante o solo, olha para o piano – reparem que na outra foto abaixo ele olha para Coltrane enquanto o acompanhaJones, Coltrane (sax soprano), Workman, Tyner: Baden-Baden 1961Workman (baixo), Coltrane (sax tenor), Dolphy (sax alto) em Baden-Baden, 1961
Dolphy died on June 29, 1964 in a diabetic coma, leaving a short but tremendous legacy in the jazz world. He was quickly honored with his induction into the Down Beat magazine Hall of Fame in 1964. Coltrane paid tribute to Dolphy in an interview: “Whatever I’d say would be an understatement. I can only say my life was made much better by knowing him. He was one of the greatest people I’ve ever known, as a man, a friend, and a musician.”
Recebendo Prêmio Edison no Concertgebouw de Amsterdam (1961)
Após o sucesso dos álbuns Giant Steps (1959-60), My Favorite Things (1960-61) e A Love Supreme (1964), John Coltrane era uma celebridade internacional e ele poderia passar muitos anos repetindo a formação de quarteto e lotando show dos dois lados do Atlântico Norte, ganhando prêmios e, claro, dinheiro.
Mas se repetir certamente não era o objetivo de Coltrane. No álbum Meditations, gravado em 1965, temos o quarteto “clássico” dos anos anteriores aumentado para sexteto com o saxofone de Pharoah Sanders e a a percussão de Rashied Ali. Mas na maior parte do tempo o piano e o baixo ficam mais discretos e o foco musical circula entre saxofones e percussão. Há exceções, como o fim de Consequences e o início de Serenity, onde finalmente temos uma participação mais marcante do pianista McCoy Tyner.
Através de sua carreira, a música de Coltrane foi tomando progressivamente uma dimensão espiritual. Ele dizia que, após esse acordar espiritual, “não dá mais para esquecê-lo. Torna-se parte de tudo que você faz. Nesse aspecto, este álbum é uma extensão de A Love Supreme, já que minha concepção dessa força continua mudando. Meu objetivo ao meditar sobre isso pela música, no entanto, continua o mesmo. É colocar as pessoas para cima, o máximo que eu posso. Inspirá-las a realizar mais e mais da sua capacidade de ter vidas cheias de sentido. Porque certamente há sentido na vida.” (John Coltrane no booklet de Meditations)
Por volta de 1957-58 ele havia largado o vício em álcool e heroína, embora essas substâncias sejam a provável causa do câncer de fígado que causaria sua morte aos 40 anos. E a partir desses fins dos anos 50, sua música vai se tornando cada vez mais permeada de religiosidade em um sentido amplo pois, como Coltrane dizia, “Acredito em todas as religiões”.
Rashied Ali (1935-2009) com vergonha de sorrir pra câmera
Ao mesmo tempo a música do Coltrane dos últimos anos vai se tornando mais estranha e inovadora, também, com influências do free jazz de Ornette Coleman e de Eric Dolphy (que tocou com Coltrane por cerca de um ano em 1961-62). Em Meditations, gravado em novembro de 1965, temos dois bateristas – e outra característica da última fase de Coltrane é a presença mais forte da percussão nos arranjos. Dizia ele que sentia necessidade de “mais ritmo ao meu redor. E com mais de um baterista, o ritmo pode ser mais multi-direcional.” Trata-se do último álbum com a presença do grande pianista McCoy Tyner, que por tantos anos fez a cama sonora para Coltrane brilhar. Justamente esse chão harmônico de Tyner não era mais o que Coltrane buscava a partir de meados de 1965, e o oposto também é verdadeiro: Tyner parecia um pouco sufocado pelas percussões intensas e, em muitos momentos de Meditations, sua participação é discreta, apesar de dois belos solos, sobretudo o do final de Consequences. Poucos meses depois, Tyner sairia do grupo (“I didn’t see myself making any contribution to that music… I didn’t have any feeling for the music, and when I don’t have feelings, I don’t play”), após mais de cinco anos juntos. Entraria no seu lugar Alice Coltrane, que já era uma pianista de longa carreira antes de adquirir esse sobrenome de casada. Com um estilo mais baseado em notas soltas e menos em acordes, ela se encaixaria bem nessa última fase da banda. Depois da morte de John, Alice gravaria alguns álbuns com Pharoah no sax, Garrison no baixo e/ou Rashied na bateria.
Enquanto o pianista Tyner estava perto de sair, o saxofonista Pharoah Sanders era um recém-chegado. O álbum utiliza bem a tecnologia stero, ainda recente à época, apenas por volta de 1958 surgem no mercado vitrolas capazes de reproduzir em dois canais separados, enquanto as transmissões de rádio FM em stereo se iniciaram em 1960. Sanders toca no canal direito, Coltrane no canel esquerdo (com fone de ouvido isso fica mais evidente… e os dois bateristas também estão um de cada lado!) Quando fazia uma dobradinha de saxofonistas com Cannonball Adderley (fim dos anos 50) ou com Eric Dolphy (início dos anos 60), Coltrane e seu colega frequentemente tocavam instrumentos de tamanho e alcance diferente: um no sax tenor e um no sax alto ou soprano, ou ainda no clarinete baixo. Aqui nessa fase final da carreira de Coltrane, que infelizmente durou apenas dois anos até sua morte precoce, Pharoah Sanders – que estava vivo e tocando fantasticamente até 2022 – toca um sax tenor igual ao de Coltrane, mas cada um com um timbre diferente, ao mesmo tempo em que um influencia o outro: muitos momentos de sopro intenso, forte e dando a impressão de estar forçando o instrumento para além do seu limite sonoro nos agudos…
Mas como Coltrane diz na entrevista que aparece no encarte de Meditations, não se chega nunca nesse limite:
“Nunca existe um fim”, Coltrane disse ao concluir nossa conversa sobre este álbum. “Sempre existem novos sons para se imaginar, novos sentimentos para se alcançar. E sempre há a necessidade de seguir purificando esses sentimentos e sons para vermos o que nós descobrimos no seu estado mais puro. Então podemos ver mais e mais claramente o que nós somos. Dessa forma, podemos chegar à essência, ao melhor do que somos. Mas para isso, a cada momento, temos que estar sempre limpando o espelho.”
Entenderam? Mais ou menos, né? Se fosse fácil de entender, não teria tanta graça…
John Coltrane: Meditations
1. The Father and the Son and the Holy Ghost
2. Compassion
3. Love
4. Consequences
5. Serenity
Personnel
John Coltrane – tenor saxophone, percussion (left channel)
Pharoah Sanders – tenor saxophone, tambourine, bells (right channel)
McCoy Tyner – piano
Jimmy Garrison – bass
Elvin Jones – drums (right channel)
Rashied Ali – drums (left channel)
Released: August 1966
Recorded: November 23, 1965, Van Gelder Studio, New Jersey
All tracks written by John Coltrane