.:interlúdio:. Hermeto Pascoal – Por Diferentes Caminhos – Piano Solo, 1988

.:interlúdio:. Hermeto Pascoal – Por Diferentes Caminhos – Piano Solo, 1988

Magos existem. Eu vi um deles. Na verdade o último dos magos da música ainda sobre a terra. Capaz de transformar tudo o que toca, literalmente falando, em matéria musical. Sua aura faz brotar música por onde ele passa e quando ele toca a sua alquimia deixa pasmos até mesmo os que o acompanham há anos; a música se transforma, se transmuta, o que era bossa vira valsa, frevo, choro… Os músicos ao seu lado se esquecem de tocar, boquiabertos diante daquilo. Seu poder parece emanar de alguma Pedra Filosofal que traz entre as barbas alvas – com as quais ele também produz música, quando quer. Hermeto Pascoal é uma força da natureza. Quero narrar aqui um sonho que tive há alguns anos, embora ache piegas esse negócio de contar sonhos, mas Jung me autorizaria e para mim ele também é mago. Havia uma grande clareira em meio a uma mata, ali acontecia uma festa, índios e outras pessoas de diferentes origens. Hermeto tocava flauta no meio de uma roda de músicos, meio toré, meio arraial nordestino. Ele saia da roda e se afastava mais e mais em direção à mata. Eu o seguia mata dentro e o perdia de vista; logo mais notei no chão suas pegadas e eram luminosas. Emanava uma luz forte e azulada. Ora, interpretar sonhos ficou pro Zezinho da Bíblia e para o saudoso Pedro de Lara. Apenas digo que meus encontros com o mago me deixaram tatuagens musicais nos ossos, impressões radioativas provocadas por sua aura poderosíssima. A mais representativa foi em Mar Grande, na Ilha de Itaparica, do outro lado do mar frente a Salvador, na pousada ‘Sonho de Verão’ do amigo irmão Eratóstenes (Toza) Lima; singularíssima pessoa, mistura de músico, administrador, ecologista, ufólogo, mestre cuca, cronista, arquiteto, escultor… Neste lugar onde vivemos muitas aventuras musicais havia um grande palco em frente à piscina e ali uma diversidade de instrumentos à disposição de todos os músicos que por ali passassem. Hermeto pousou ali por uma noite e nos deu de sua arte fartamente. Espetáculo. Após o que, antes que tivéssemos o privilégio de tocar para o mestre, fui até ele e pedi que autografasse minha surdina growl, um desentupidor de pia; objeto muito conhecido entre jazzistas trompetistas, objeto que guardo como relíquia hierática.

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Na manhã seguinte acordei bem cedo, queria me despedir do mestre, que partiria presto. Fiquei ruminando no flugelhorn uns exercícios de rotina. Ele apareceu e disse: “Você estava tocando escalas cromáticas! É difícil no flugel, não é? Você sabe onde posso conseguir uma surdina pra flugel?” Respondi que existe, mas que é rara e ajudaria apenas amarrar um pano na campana. Ele gostou da ideia, disse que tinha o hábito de acordar muito cedo, sentar no chão e tocar flugel, acordando a casa toda e por isso ficavam furiosos; daí o interesse numa surdina (risos). No café da manhã seu filho indagou: “Pai, quer pão?” Foi o bastante para Hermeto, que tomou uns talheres, percutiu as xícaras e fez um baião: “Kepão, kepão…”

33uzi3nOutra vez que o encontrei foi numa casa noturna na qual eu tocava. Ele chegou e estávamos em ação. Parei tudo e lhe dedicamos uma Asa Branca bem Free-jazz. Ele tocou no meu trompete e depois subiu ao palco para nos conceder duas horas de maravilhas ao piano. A última vez que o vi foi um acaso, estava num ponto de ônibus diante de um restaurante chinês. Um taxi apareceu e ele surgiu. Fui lá pedir-lhe a bênção. Não preciso ressaltar que para um músico instrumentista toda essa tietagem é normal e dá orgulho tratando-se de Hermeto. Mas falemos do presente registro sonoro. Em 1988 Hermeto entrou num estúdio para gravar um disco solo no piano acústico. Muitas das faixas foram improvisadas, temas criados, desenvolvidos e concluídos instantaneamente; como somente os seus feitiços poderiam conceber. A primeira faixa, uma joia chamada ‘Pixitotinha’. Para quem não sabe a palavra é um substitutivo carinhoso para algo ou alguém pequeno, como uma criança; significando ‘pequenininha’. Termo muito usado em minha terra e no meu tempo de criança, Caruaru – Pe; meu avô Raimundinho (que Deus o tenha) usava bastante esta palavra. Foi uma peça criada instantaneamente, como uma pérola ou uma rosa que se materializa entre as mãos do mago. A sua conhecida peça Bebê nos vem com impetuosa e expressiva verve, tema talvez mais famoso do mestre. ‘Macia’ é uma brisa alvissareira, uma impressão suave como o nome da peça, um lampejo Debussyano, um véu que esvoaça. ‘Nascente’, um evocação da força criativa da natureza, que evolui para figuras cada vez mais complexas. ‘Cari’, uma melodinâmica de passagem, um trecho de energia musical do qual temos apenas um vislumbre. ‘Fale mais um pouquinho’, outro momento musical curioso e meio jocoso, como o titulo. ‘Por diferentes caminhos’, título do álbum, partindo de um ostinato que até lembra certo prelúdio gotejante de Chopin, para logo nos mergulhar em reflexões melódicas de cativante beleza; brisas de nordeste entrando pela janela, ponteios… ‘Eu Te Tudo’, uma peça inquieta, que certa nostalgia tenta apaziguar sem sucesso; as progressões engolfam a melodia, que luta para se instaurar, perdendo-se na distância das últimas notas agudas. ‘Nenê: um dos mais belos momentos do disco e que dispensa qualquer comentário, apenas ouçamos; digo apenas que o velho Villa decerto trocaria alguns dos seus charutos por certos trechos improvisados por Hermeto; a faixa é aberta pela voz do próprio, dedicando a música, que será feita naquele instante a um amigo baterista e compositor. Ao final, arrematando numa imponente cadência em ritardo, ouvimos o grito de Hermeto: “Obrigado Nenê!”, que a essa altura deve ter-se acabado de emoção. Na faixa ‘Sintetizando de verdade’ temos o que considero um dos maiores momentos de improvisação musical já gravados. Hermeto, no piano preparado (ou sabotado), nos arrebata com uma espantosa, meditativa e tenaz odisseia por plagas nordestinas; encontramos pelo caminho rastros de cangaceiros e beatos, depois o que parece um oriental com seu burrico carregado de quinquilharias, moçoilas com potes de água fresca, mandacarus e flores exóticas, frutas de palma e revoadas de passarinhos verdes; serras e riachos secos; para enfim nos levar a um povoado em festa, foguetório e forró na praça, meninada e bacamarteiros, bandas de pife e sanfonas. A habilidade do músico é espantosa e diria, sem receio, que a peça faria inveja a Prokofiev e Bartók – quem nem tiveram a sorte de conhecer a música nordestina. Em ‘Nostalgia’ Hermeto nos surpreende com um famoso tango que executa à sua maneira, lembrando talvez dos tempos em que tocava na noite e em happy hours. Uma história que ele mesmo conta desses tempos é que naquelas ocasiões, enquanto a audiência batia papo alheia ao seu piano, ele aproveitava para estudar algumas ousadias harmônicas e afins. Certa vez um sujeito veio de lá e perguntou: “O que você está tocando aí?” e ele: “E vocês, o que estão falando lá?” (mais risos). A última faixa, ‘Amanhecer’, mais um meditativo momento que evoca alvoradas e atmosferas orvalhadas, com um perfume de melancolia; a inquietude também está lá, porém dessa vez a melodia impera e nos conduz a um final cheio de luz – como as suas pegadas em meu sonho. Hermeto é inextinguível, temos a sorte de existir tal artista em nossas terras e, graças aos céus, ainda entre nós e gerando música. Que assim permaneça pelos séculos do séculos, magnífico Hermeto Pascoal, Mago dos Magos.

Por Diferentes Caminhos – Hermeto Pascoal – Piano solo, 1988
1 Pixitotinha
2 Bebê
3 Macia
4 Nascente
5 Cari
6 Fale mais um pouquinho
7 Por diferentes caminhos
8 Eu Te Tudo
9 Nenê
10 Sintetizando de verdade
11 Nostalgia
12 Amanhã

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Mago dos Magos - Esta coroa ninguém usurpa.
Mago dos Magos – Esta coroa ninguém usurpa.

Wellbach

.: interlúdio :. Quarteto Novo

Publicado originalmente em 07.09.2012

De vez em quando acontecem esses momentos musicais que são como eclipses. E este é daqueles raros, seculares; talvez o melhor disco de música instrumental feito no Brasil em todos os tempos.

Viveu pouco, porém forte, o Quarteto Novo. Que nasceu Trio Novo em 1966, meio punhado de músicos para acompanhar Geraldo Vandré num programa de tevê patrocinado pela farmacêutica Rhodia. Que no ano seguinte não renovaria seus contratos publicitários, deixando o grupo à sorte. Sorte mesmo: pois que quando um flautista chamado Hermeto Paschoal juntou-se, em 1967, à Theo de Barros, Heraldo do Monte e Airto Moreira, Vandré resolveu bancar do próprio bolso ensaios e turnês do grupo. Que durou apenas mais dois anos, e deixou apenas um disco, que saiu pela Odeon; e que disco é, caros amigos. Tivesse feito mais um ou dois desses e hoje o mundo seria diferente. O brazilian northeastern jazz seria nosso principal produto de exportação e influência musical. Não que tenha passado despercebido, longe disso. Diga “Quarteto Novo” a qualquer expert internacional do jazz e presencie uma cascata de elogios maior do que sou capaz de reproduzir. (Última reedição é da Blue Note, inclusive.)

Patriotismo (que não me pertence) à parte, puxa vida: se fosse sempre possível elevar dessa forma nossas mais brazucas expressões musicais. Como toda junção de estilos bem feita, não se trata de uma soma simples; é um caldo cozido a fogo lento e onde os sabores se entranham uns nos outros. A linguagem do jazz se adapta tanto à marcação de samba quanto ao 2/4 do baião; as linhas de flauta substituem os trompetes tradicionais (e a voz — lembrem que era 1967 e a bossa nova mandava e desmandava); a guitarra vai dar norte a Pat Metheny e, quando sai de lado para a viola ou violão de 12 cordas, se ouve tudo que Duofel vai fazer nos próximos 40 anos. O álbum flutua no mapa e vai do sertão (Algodão) à Nova York (mas) (Vim de Sant’ana) voando numa nuvem. Às vezes é Lampião de terno, batendo triângulo com Dolphy num bar de Chicago; noutras é Wes Montgomery comendo torresmo e tocando com o dedão engraxado. Imaginário à parte, a sofisticação dos arranjos; coisa fina como pouco se vê fazerem aqui, e já há tanto. Também o fato de uma banda que parece saber telepatia musical; Barros usando com a mesma sabedoria tanto contrabaixo elétrico como double bass, Airto Moreira simplesmente assinando um contrato com o futuro, na primeira linha do jazz internacional pro resto da vida. E a flauta-abraço de Hermeto, com sua performance singular e seu toque de Midas na alma: impossível ouvir Hermeto sem brotar um sorriso na cara.

Quarteto Nôvo – 1967: Quarteto Nôvo (320 kbps)
Theo de Barros: violão, contrabaixo
Heraldo do Monte: guitarra, viola caipira
Airto Moreira: bateria, percussão
Hermeto Pascoal: flauta, piano, arranjos.

01 O Ôvo (Vandré/Pascoal)
02 Fica Mal com Deus (Vandré)
03 Canto Geral (Vandré/Pascoal)
04 Algodão (Gonzaga/Dantas)
05 Canta Maria (Vandré)
06 Síntese (Monte)
07 Misturada (Moreira/Vandré)
08 Vim de Sant’Ana (Barros)
Faixas-bônus da reedição de 1993
09 Ponteio (Lobo)
10 O Cantador (Caymmi/Motta)

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Boa audição, e bom feriado!
Blue Dog
(post renovado por Ranulfus, em consequência
do comentário entusiasmado do leitor Sal)

Eufonium Brasileiro – Fernando Deddos

A resenha abaixo foi retirada deste link aqui. Particularmente, achei muito boa a iniciativa de se abrir repertórios para o eufônio/bombardino e este álbum apresenta uma diversidade de linguagens muito salutar e rica. Vale a pena, no mínimo, baixar para apreciar as obras, o belo som do eufônio e a competência do intérprete.

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Por Ricardo Prado

“Eufonium Brasileiro” é o primeiro CD do compositor e eufonista Fernando Deddos, um desses artistas poderosos cuja paixão por seu instrumento é capaz de nos iluminar de uma música inesperada e bela.

Eufônio vem de Euphonium, que significa “som bonito”. Ele é o bombardino das bandas militares e escolares – essas matriarcas da música no Brasil. Fernando chama o instrumento carinhosa, poeticamente, de “o querido bombardino”. O compositor Harry Crowl – que está presente com a obra “Diálogo sonoro sob as estrelas”, dedicada ao intérprete -, escreve: “Sempre me intrigou o fato de o bombardino, ou eufônio, não ser um instrumento mais valorizado como solista. Normalmente utilizado para fazer o contracanto nos dobrados e outras obras da tradição brasileira para banda militar, o eufônio também aparece em algumas obras orquestrais como um instrumento exótico. Mas, como podemos constatar, esse instrumento não fica nada a dever para uma trompa e tem mais possibilidades técnicas que um trombone”.

Além das obras de Fernando Deddos, marcadas pela inventividade e, frequentemente, por essa forma agudar de inteligência que é o humor, o CD conta composições de Carlos Gomes, Francisco Braga, Isidoro de Assumpção, Hermeto Paschoal, Carlos da Costa Coelho e Isaac Varzim: uma variedade de estilos que, além de demonstrar as imensas possibilidades do instrumento, forma um panorama da imensa riqueza da criação musical brasileira. Para tanto, Deddos reuniu um elenco de convidados que lhe permite ganhar deles e compartilhar conosco música tão singela quanto imensa.

O disco é, para mim, uma revelação comovente, uma lição de música que Fernando Deddos oferece e que precisa ser aceito e mantido por perto, ao alcance da mão, cotidiano.

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Eufonium Brasileiro

1 – Saudação (Tradicional brasileira)
2 – Frevo do Besouro (Fernando Deddos)
3 – Diálogo sonoro sob as Estrelas (Harry Crowl)
4 – Fantasia Fandango (Fernando Deddos)
5 – Ratatá! (Fernando Deddos)
6 – Interferência
7 – Quem Sabe!? (Carlos Gomes)
8 – Diálogo Sonoro ao Luar (Francisco Braga)
9 – Saudades de Minha Terra (Isidoro C. de Assumpção)
10 – Rabecando (Fernando Deddos)
11 – Chorinho pra Ele (Hermeto Pascoal)
12 – Ferme les Yeux (Carlos Coelho)
13 – Impropus (Fernando Deddos)
14 – Eletrofônio (Isaac Varzim)

Fernando Deddos, eufônio e compositor
Participações musicais: Rodrigo Capistrano, saxofone alto. Adailton Pupia, viola caipira. Rafael Buratto, violoncelo. Thiago Teixeira, Davi Sartori e Carlos Assis, piano. Danilo Köch Jr., caixa clara. Vina Lacerda, pandeiro. Danilo Koch Jr, marimba.

Selo independente

BAIXE AQUI

CVL

Hermeto: homem de uma só palavra

Em março de 2008, fiz um post começando com a seguinte citação:

Quem quiser piratear os meus discos, pode ficar à vontade. Desde que seja para ouvir uma boa música. (…) Mesmo o meu trabalho em gravadoras, o povo tem mais é que piratear tudo. Isso não é revolução. O que queremos é mostrar essa música universal. Porque isso não toca em rádio nem aparece na capa do jornal. Sabe o que Deus falou? Muita gente pensa que é só para transar. Mas, não. “Crescei e multiplicai-vos”. Isso é em todos os sentidos. Vamos crescer na maneira de ser e multiplicar o que tem de bom. Sem barreiras. A música é universal. Eu toco no mundo inteiro e é sempre lotado. Eu só cheguei a isso porque os meus discos são pirateados, estão à vontade na Internet.

Hoje sai a notícia no caderno Link, do Estadão:


“Minhas músicas são pétalas soltas, estão voando por aí.”
E, assim, Hermeto deixou suas pétalas ao vento. Desde novembro, abriu mão das licenças pela internet e liberou para uso de qualquer músico todas as composições registradas em seu nome. Nesta semana, promete disponibilizar parte da imensa e riquíssima discografia (são 34 álbuns) para download gratuito, num processo que chegará em alguns meses à totalidade da produção formal.

 

Hermeto, esse artista único: ele entende a música. E nós ganhamos com sua generosidade. Em compor e ensinar.

O restante dos artistas brasileiros pode continuar envergonhado.

obrigado a Cecília pela dica!