Ainda assopro as feridas e conto os hematomas das trevas de que ora emergimos, enquanto ardo em sanhas de justiça às vítimas dos anos mortíferos em que a ignorância e a truculência foram políticas de Estado no Brasil. Nesse contexto pós-traumático, e instigado pela iniciativa de minha alma mater, eu saúdo e celebro o Dia Internacional do Orgulho trazendo-lhes um punhadinho das muitas lindezas legadas ao mundo por compositores LGBTQIA+.
Uma seleção assim jamais poderá ser inclusiva o bastante para o imenso escopo dessa homenagem, pelo que lhes peço desculpas antecipadas pelas necessárias omissões. Ainda assim, faço questão de oferecê-la à totalidade de vocês – tanto a quem está do lado de cá da luta quanto a quem, desgraçadamente, a rechaça pelos motivos mesmos que a tornam tão necessária. Se a Arte, afinal, é livre, o legado dessa linda gente também é – e deve chegar a todos, mesmo a quem lhes quer dar pontapés.
E a quem é indiferente essa luta diuturna por crer que ela não seja sua, lembro as palavras de Audre Lorde – mulher, lésbica e preta – sobre os grilhões impostos pelo racismo e o machismo…
Não serei livre enquanto alguma mulher não for livre, mesmo que suas algemas sejam muito diferentes das minhas. E não estarei livre enquanto qualquer pessoa de cor estiver acorrentada – e nem estará qualquer de vocês”
… e os convido a constatarem que, pelos mesmos motivos, todos os seres humanos privados de quaisquer de seus direitos fundamentais merecem essa luta, e que ela, portanto, é de todos nós.
Celebremos e protestemos, protejamos e respeitemos – e melhoremos, sempre.
Vassily
A londrina Ethel Smyth (1858-1944) sempre seguiu briosamente seus próprios rumos, o que implicou, como sói acontecer com as mulheres desde bem antes de seus tempos, uma vida de rompimentos: com o pai (que a proibiu de estudar Música), com a sociedade (que dela esperava casamento com um homem e uma penca de filhos) e com o governo (que a impedia, assim como todas as mulheres, de qualquer atividade política). Ethel foi uma ativa sufragista, que compôs o hino do movimento e chegou a ser presa por depredar um prédio público de onde um burocrata afirmara que mulheres só poderiam votar se fossem “submissas como a minha”. Essa criatura porreta estreia no PQP Bach com três álbuns: uma seleção de suas numerosas peças vocais, muitas delas cantadas em alemão, graças a sua temporada de estudos no Conservatório de Leipzig; um robusto trio e sonatas para violino e violoncelo, todos com piano; e sua obra mais inclassificável, The Prison, uma espécie de sinfonia-oratório (pois vocês ouvirão que é muito mais que isso) em que um prisioneiro (baixo-barítono) que contempla o suicídio divaga com sua alma (soprano), que tenta lhe trazer conforto, entre comentários metafísicos do coro.
Quatro canções para voz e orquestra de câmara
Lieder und Balladen, Op. 3
Lieder, Op.4
Três canções
Lucy Stevens, contralto
Elizabeth Marcus, piano
Berkeley Ensemble
Odaline de la Martinez, regência
Trio para piano, violino e violoncelo em Ré menor
Sonata para violino e piano em Lá menor, Op. 7
Sonata para violoncelo e piano em Lá menor, Op. 5
Chagall Trio:
Nikoline Kraamwinkel, violino
Tim Gill, violoncelo
Julian Rolton, piano
The Prison, para solistas, coro e orquestra (1930)
Sarah Brailey, soprano
Dashon Burton, baixo-barítono
Experiential Orchestra and Chorus
James Blachly, regência
Hans Werner Henze (1926-2012), perseguido em sua Alemanha natal por ser gay e marxista, radicou-se na Itália, onde filiou-se ao Partido Comunista e desenvolveu sua carreira, retornando posteriormente a seu país de origem. Sua variada, riquíssima produção torna especialmente complicada a tarefa de escolher uma fatia que lhe seja mais representativa, de modo que escolhi oferecer-lhes três: a primeira com suas sinfonias de 1 a 6, conduzidas por ele próprio; a seguinte com sua leitura para o oratório Das Floß der Medusa (“A Balsa de Medusa”), inspirado numa célebre pintura mas, em verdade, composto como um réquiem para Ernesto “Che” Guevara, o que levou alguns descontentes a impedirem sua estreia em Hamburgo, em 1968; e a trilha sonora para o filme “Um Amor de Swann”, inspirado no romance de Proust, que eu adorei desde a primeira audição e só descobri ser de Henze ao revisitá-la recentemente.
Sinfonia no. 1 (1947)
Sinfonia no. 2 (1949)
Sinfonia no. 3 (1949-50)
Sinfonia no. 4 (1955)
Sinfonia no. 5 (1962)
Sinfonia no. 6 (1969)
Berliner Philharmoniker
London Symphony Orchestra (sinfonia no. 6)
Hans Werner Henze, regência
Das Floß der Medusa, oratório para solistas, coro e orquestra (1968)
Charles Régnier, narrador
Edda Moser, soprano
Dietrich Fischer-Dieskau, barítono
Chor des Norddeutschen Rundfunks
RIAS-Kammerchor Chorus
Mitglieder Des Hamburger Knabenchores St. Nikolai
Symphonie-Orchester Des Norddeutschen Rundfunks
Hans Werner Henze, regência
Trilha sonora original para o filme Ein Liebe von Swann, de Völker Schlöndorff (1984)
Orchestre Symphonique de la Radio Bâle
Hans Werner Henze, regência
Ninguém estava melhor preparada que Wendy Carlos (1939) para trazer o sintetizador para a ribalta: diplomas em Música e Física, longa experiência em estúdios, colaborações com Robert Moog, inventor do sintetizador homônimo, e uma combinação incomum de meticulosidade e perseverança que a fez, entre outras proezas, montar um estúdio repleto de inventos e cheinho de soluções. Mesmo assim, quando Switched-On Bach (1968) tornou-se o surpreendente maremoto de sucesso que vendeu mais de um milhão de cópias e fez ninguém menos que Glenn Gould chamá-lo de “uma das conquistas mais surpreendentes da indústria fonográfica nesta geração e certamente um dos grandes feitos na história da performance de teclado”, a mui discreta Wendy viu-se jogada ao escrutínio do mundo – e em plena transição. Os fãs pediram mais, e o mundo acabou ganhando outros volumes Switched-On, que acabaram eclipsando outras vertentes do trabalho dela, como a composição de trilhas sonoras (mais famosamente para “A Laranja Mecânica” e “O Iluminado”, do genial e complicadinho Stanley Kubrick, que aproveitou nos filmes muito pouco do que Wendy lhe criou) e seu verdadeiro xodó, suas composições originais que exploram, em altos voos, os recursos que ela própria tanto ajudou a expandir no instrumento. Homenageio esta visionária, brilhante criatura com três álbuns que cobrem o escopo das décadas seguintes a Switched-On Bach : Sonic Seasonings (1972), volume duplo com quatro peças inspiradas nas estações do ano; Digital Moonscapes (1984), em que ela emula uma grande orquestra sinfônica em peças inspiradas em Astronomia, outra de suas paixões; e o eletrizante Tales of Heaven and Hell (1998), uma jornada sônica por um inferno pós-dantesco e neoboschiano. Aproveito o ensejo para fazer-lhes um convite para visitar seu site oficial, deliciosamente antiquado (mesmo porque não é atualizado desde 2009!), com muitas colaborações da própria Wendy, na esperança de que um influxo de visitantes faça a genial reclusa pelo menos reaparecer para nos dar um oi 🙂
Spring
Summer
Fall
Winter
Winter (Outtake)
Aurora Borealis
Midnight Sun
Cosmological Impressions
Genesis – Eden – I.C. (Intergalactic Communications)
Moonscapes
Luna – Phobos and Deimos – Ganymede – Europa – Io – Callisto – Rhea – Titan -Iapetus
Transitional
HeavenScent
Clockwork Black
City of Temptation
Memories
Afterlife
Seraphim
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
BÔNUS: de lambujem, alcanço-lhes também o único álbum infantil composto por Wendy, lançado em 1988, numa colaboração com outra figura única – Weird Al Yankovic. As tramas de “Pedro e o Lobo” e “O Carnaval dos Animais” são aqui recontadas sem uma nota sequer de Prokofiev e Saint-Saëns, com música totalmente nova e alguns aditivos curiosos, como o peculiar instrumento usado por Pedro para capturar o lobo, e alguns seres tão invulgares quanto os intérpretes, como o aardvark e o unicórnio. É ouvir para crer.